Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 753/2021-T
Data da decisão: 2022-05-23  IMI  
Valor do pedido: € 8.279,83
Tema: Imposto Municipal sobre Imóveis – Indeferimento tácito reclamação graciosa – Inutilidade/Impossibilidade superveniente da lide – Juros indemnizatórios.
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DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro Vera Figueiredo, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Singular, decide nos termos que se seguem:

 

 

  1. RELATÓRIO
  1. A..., LDA., com sede social no ..., ..., ...-... ..., Portimão, titular do número de identificação de pessoa coletiva ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Portimão sob o mesmo número, adiante designada como “Requerente”, vem, na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada a 22-04-2021 do ato de liquidação de Imposto Municipal sobre Imóveis (doravante abreviadamente designado de “IMI”) identificado sob o n.º 2019..., e nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de tribunal arbitral e submeter pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante designada como “Requerida” ou “AT”), com vista à declaração de ilegalidade de tal liquidação, no valor de € 16.728,67.
  2. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi apresentado pela Requerente em 22-11-2021, tendo sido aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e notificado à Requerida em 24-11-2021.
  3. A Requerente alega, em suma, que:
  1. Verificou que a liquidação sub judice enferma de ilegalidade, na medida em que o valor patrimonial tributário (“VPT”) do terreno para construção foi determinado de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 38.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (“IMI”), na sua redação à data dos factos. De onde resulta que na avaliação foram considerados na respetiva avaliação os coeficientes de localização e de afetação, os quais não seria de aplicar ao tipo de prédio em apreço – terreno para construção.
  2. A inaplicabilidade dos referidos coeficientes decorre da especificidade do tipo de prédio – terreno para construção – face aos demais prédios urbanos, encontrando-se tal entendimento suportado pela jurisprudência dos tribunais superiores.
  3. Tendo em conta que a liquidação do IMI de 2019 teve por base um VPT incorretamente determinado, o imposto liquidado foi consideravelmente superior ao que seria legalmente devido, pelo que, vem a Requerente peticionar a anulação da liquidação e a sua substituição por liquidação a emitir com base no valor de coleta que seria devido caso as normas legais tivessem sido corretamente aplicadas.
  1. A Requerente optou por não designar árbitro, tendo, nos termos do artigo 6.º n.º 1 e do artigo 11.º n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico designado o árbitro do Tribunal Arbitral Singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo legalmente estipulado.
  2. As partes foram devidamente notificadas da nomeação em 01-10-2021, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma.
  3. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º n.º 1 alínea c) do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 28-01-2022.
  4. Na mesma data, a Requerida foi notificada do despacho proferido pelo tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 17.º n.º 1 do RJAT, para apresentar resposta, solicitar a produção de prova adicional e remeter o processo administrativo.
  5. Em 28-02-2022, a Requerida juntou aos autos a sua resposta, na qual apresenta defesa por exceção e por impugnação, pugnando pela legalidade do ato tributário praticado e alegando, em suma, o seguinte:
  1. A reclamação graciosa apresentada pela Requerente teria sido indeferida expressamente em 20-12-2021, pelo que o pedido de pronúncia arbitral não poderia prosseguir por falta de objeto, o que configuraria uma exceção de inutilidade superveniente da lide que determinaria a absolvição da Requerida instância.
  2. A liquidação seria legal, na medida em que os invocados vícios da mesma a existirem seriam imputáveis não ao ato de liquidação de IMI, mas aos atos de fixação do VPT. Os vícios do ato de fixação do VPT não seriam suscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base naquele ato.
  3. O tribunal arbitral será incompetente para apreciar vícios de atos de fixação do VPT, atos esses que são destacáveis e autonomamente impugnáveis, e que se encontram consolidados na ordem jurídica.
  4. Reconhecendo que a AT acolheu já o entendimento preconizado pelos tribunais superiores no sentido de a determinação do VPT dos terrenos para construção ser realizada de acordo com a regra do artigo 45.º do CIMI, não sendo de considerar os coeficientes previstos no artigo 38.º do CIMI, tais como os coeficientes de localização, afetação, qualidade e conforto.
  5. Defendeu que a avaliação que determinou o VPT do terreno para construção em apreço foi realizada há mais de cinco anos, pelo que não poderia já ser objeto de anulação administrativa, nos termos do art.º 168, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo (“CPA”), encontrando-se consolidado.
  6. O referido terreno foi avaliado de acordo com o pretendido pela Requerente, na avaliação pedida pela mesma em 30-12-2020, a qual produziu efeitos a partir desta data.
  7. Concluindo, por último, pela proibição legal de pronúncia do tribunal arbitral de acordo com critérios de equidade e a vinculação da AT ao princípio da legalidade
  1. No mesmo prazo, a Requerida juntou aos autos o processo administrativo.
  2. Em 05-03-2020, foi emitido despacho pelo tribunal arbitral relativamente à produção de prova testemunhal e à realização da reunião do artigo 18.º do RJAT, tendo o processo prosseguido para alegações escritas sucessivas da Requerente, no prazo de 15 dias, nas quais a mesma se poderia pronunciar sobre a exceção alegada pela Requerida, e pela Requerida no prazo de 15 dias, contado da apresentação das alegações da Requerente ou do final do prazo concedido.
  3. A Requerente apresentou alegações escritas em 24-03-2022, nas quais se defendeu da exceção invocada pela Requerida considerando que o pedido de pronúncia arbitral apresentado no prazo de 90 dias da formação do ato tácito de indeferimento da reclamação graciosa do ato de liquidação de IMI n.º 2019 ... mantém o objeto. Relativamente à defesa por impugnação da Requerida, a Requerente veio alegar que não pretendia atacar o ato de fixação do VPT do prédio em apreço, mas a liquidação de IMI de 2019, emitida com base naquele ato. Alegando, ainda, que o artigo 168.º n.º 1 do CPA não teria aplicação ao caso em apreço, na medida em não existia procedimento administrativo à data da sua entrada em vigor. No mais, reiterou todo o alegado no pedido de pronúncia arbitral.
  4. A Requerida não apresentou alegações escritas.

 

  1. SANEAMENTO
  1. O presente Tribunal Arbitral considera-se regularmente constituído para apreciar o litígio (artigo 5.º n.º 1 e n.º 2, artigo 6.º n.º 1 e artigo 11.º do RJAT).
  2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas [artigos 3.º, 6.º e 15.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea a) do RJAT].
  3. Foi alegada pela Requerida a exceção da inutilidade superveniente da lide, decorrente da emissão de despacho de indeferimento expresso da reclamação graciosa, bem como a incompetência do tribunal arbitral para apreciar vícios de atos de fixação do VPT, que serão analisadas na parte decisória, após a fixação da matéria de facto dada como provada.
  4. Não se verificam quaisquer nulidades, nem foram alegadas pelas partes outras exceções ou questões prévias que devam ser analisadas de imediato.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO
  1. Factos dados como provados
  1. A Requerente é uma sociedade anónima com sede no ..., ..., ..., Portimão, Portugal.
  2. Em 31-12-2019, a Requerente era proprietária de um terreno para construção urbana, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., Portimão, sob o artigo U-....
  3. O terreno para construção foi objeto de primeira avaliação em 11-02-2013 da qual resultou um VPT de €3.581.950,00:

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  1. A Requerente recebeu em 2020 a nota de liquidação de IMI n.º 2019 ... referente ao ano de 2019, no montante total de €16.728,67, o qual foi apurado com base num VPT de €3.717.482, 04 (VPT resultante da avaliação e atualização prevista no artigo 138.º do CIMI):

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  1. Em 30-12-2020, a Requerente apresentou pedido de avaliação do terreno para construção, com fundamento em VPT desatualizado, nos termos do artigo 130.º n.º 3 alínea a) do Código do IMI.
  2. Conforme resulta da ficha de avaliação n.º ..., datada de 02-01-2021, o VPT do terreno para construção foi atualizado em 02-03-2021 para €1.845.870,00:

 

  1. Em 22-04-2021, a Requerente deduziu reclamação graciosa do ato de liquidação de IMI, identificado supra, referente ao período de tributação de 2019, com fundamento em ilegalidade do VPT, determinado de acordo com as regras do artigo 38.º do Código do IMI, com a aplicação de coeficientes de afetação e de localização, e não de acordo com o artigo 45.º do mesmo código.
  2. Em 22-11-2021, a Requerente apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral junto do CAAD, o qual foi notificado à Requerida em 24-11-2021.
  3. Em 20-12-2021, foi emitido pela Direção de Finanças de Faro despacho de indeferimento da reclamação graciosa nos seguintes termos e com base no parecer cujo excerto se transcreve infra:

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  1. O tribunal arbitral ficou constituído em 28-01-2022.
  1. Factos não provados
  1. Não se comprovou que o despacho de indeferimento expresso da reclamação graciosa referido no parágrafo 25 tenha sido notificado à Requerente ou comunicado ao CAAD, em cumprimento do disposto no artigo 13.º do RJAT.
  2. Com relevo para a decisão não se verificaram quaisquer outros factos alegados que devam julgar-se não provados
  1. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada [cfr. artigo 123.º n.º 2 do CPPT e artigo 607.º n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º n.º 1 alíneas a) e e) do RJAT].

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea e) do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

Nos termos do disposto no artigo 608.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea e) do RJAT, “(...) sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.”, sendo que nos termos do n.º 2 da mesma disposição, “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

Nestes termos, torna-se necessário apreciar e decidir previamente, no presente processo arbitral, as exceções suscitadas pela Requerida.

 

  1. Da inutilidade superveniente da lide

A Requerida, veio na sua Resposta alegar que o presente pedido de pronúncia arbitral teria ficado sem objeto por ter sido proferido despacho de indeferimento expresso da reclamação graciosa da liquidação de IMI de 2019.

Com efeito, resulta dos autos que a reclamação graciosa apresentada pela Requerente relativa à liquidação de IMI controvertida foi objeto de despacho de indeferimento expresso em 20-12-2021.

Coloca-se, assim, a questão de saber se o Tribunal Arbitral estará perante uma causa extintiva da instância, nos termos constantes do artigo 277.º alínea e) do CPC.

O artigo 277.º alínea e) do CPC determina que “A instância extingue-se com: (…) e) A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.”, aplicável ao processo arbitral tributário ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea e) do RJAT.

Conforme se retira da jurisprudência dos tribunais superiores, “A extinção da instância pressupõe, por via de regra, que se atingiu o objectivo ou efeito útil pretendido com a propositura da acção. Assim, a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, enquanto causas determinantes da extinção da instância – com previsão na alínea e) do art. 277.º do CPC – resultarão de circunstâncias acidentais ou anormais que, na sua pendência, precipitam o desinteresse na solução do litígio, induzindo a que a pretensão do autor não possa ou não deva manter-se: nos casos de impossibilidade, pelo desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo e nos casos de inutilidade, porque essa pretensão logrou satisfação fora do esquema da providência pretendida (Cfr., por todos, ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, volume III, Coimbra Editora, 1946, págs. 367-373.)”[1].

Segundo a doutrina, “(…) a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por já ter sido atingido por outro meio” [2].

Contudo, no caso sub judice o despacho de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada pela Requerente terá sido proferido em momento posterior ao da apresentação do pedido de pronúncia arbitral.

O artigo 13.º do RJAT determina quais os efeitos da apresentação do pedido de constituição de tribunal arbitral:

“1 – Nos pedidos de pronúncia arbitral que tenham por objeto a apreciação da legalidade dos atos tributários previstos no artigo 2.º, o dirigente máximo do serviço da administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo, devendo notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão, iniciando-se então a contagem do prazo referido na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º.

2 – Quando o ato tributário objeto do pedido de pronúncia arbitral seja, nos termos do número anterior, total ou parcialmente, alterado ou substituído por outro, o dirigente máximo do serviço da administração tributária procede à notificação do sujeito passivo para, no prazo de 10 dias, se pronunciar, prosseguindo o procedimento relativamente a esse último ato se o sujeito passivo nada disser ou declarar que mantém o seu interesse.

3 – Findo o prazo previsto no n.º 1, a administração tributária fica impossibilitada de praticar novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos.

4 – A apresentação dos pedidos de constituição de tribunal arbitral preclude o direito de, com os mesmos fundamentos, reclamar, impugnar, requerer a revisão, incluindo a da matéria coletável, ou a promoção da revisão oficiosa, ou suscitar pronúncia arbitral sobre os atos objeto desses pedidos ou sobre os consequentes atos de liquidação, exceto quando o procedimento arbitral termine antes da data da constituição do tribunal arbitral ou o processo arbitral termine sem uma pronúncia sobre o mérito da causa.

5 – Salvo quando a lei dispuser de outro modo, são atribuídos à apresentação do pedido de constituição de tribunal arbitral os efeitos da apresentação de impugnação judicial, nomeadamente no que se refere à suspensão do processo de execução fiscal e à suspensão e interrupção dos prazos de caducidade e de prescrição da prestação tributária.”

Da mesma forma, o CPPT dispõe sobre os efeitos da apresentação da impugnação judicial quando existam reclamações graciosas apresentadas anteriormente.

Assim, nos termos do artigo 68.º n.º 2 do CPPT: “Não pode ser deduzida reclamação graciosa quando tiver sido apresentada impugnação judicial com o mesmo fundamento.”

Por seu turno, o artigo 111.º n.º 3 do CPPT determina que: “Caso haja sido apresentada, anteriormente à recepção da petição de impugnação, reclamação graciosa relativamente ao mesmo acto, esta deve ser apensa à impugnação judicial, no estado em que se encontrar, sendo considerada, para todos os efeitos, no âmbito do processo de impugnação.”

Logo, resulta da conjugação das normas acima que, com a apresentação de impugnação judicial, com fundamento em indeferimento tácito de reclamação graciosa, fica limitada a competência da Autoridade Tributária e Aduaneira.

Neste sentido, veja-se o seguinte acórdão do STA: “Concordamos com o Mº Pº quando expressa que a AT, atento o disposto nos artigos 68.°/2 e 111.º/3/4, ambos do CPPT, deveria ter apensado o procedimento de reclamação graciosa à presente impugnação judicial, no estado em que se encontrava, sendo, absolutamente, incompetente para produzir o despacho de indeferimento expresso da reclamação graciosa, pois que tendo sido deduzida impugnação antes da decisão expressa na reclamação graciosa deve ser o tribunal e não a administração tributária que fará a apreciação das questões suscitadas na reclamação graciosa no âmbito do processo de impugnação judicial. Há, efectivamente, uma preferência absoluta do meio judicial de impugnação sobre os meios administrativos, impedindo-se que seja apreciada por via administrativa a legalidade de um ato tributário que seja objecto de impugnação judicial, com as excepções do artigo 112.° do CPPT. (...). E, aqui entende-se que o acto da AT que indeferiu, expressamente, a reclamação graciosa foi praticado em violação de disposição legal expressa, não podendo produzir quaisquer efeitos jurídicos, pelo que não há lugar a modificação/alteração objectiva da presente instância, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 70.º do CPTA, a determinar a necessidade de os impugnantes requererem a sua alteração. Assim, a nosso ver não se verifica no caso dos autos a inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.°/e) do CPC ex vi do artigo 2°/e) do CPPT, impondo-se a revogação da decisão recorrida”[3](sublinhado nosso).

Não poderemos deixar de concluir no mesmo sentido relativamente aos efeitos da apresentação do pedido de pronúncia arbitral. Com efeito, com a notificação da apresentação do pedido de pronúncia arbitral, ficou limitada a competência da Autoridade Tributária e Aduaneira, ora Requerida, ao disposto no artigo 13.º do RJAT.

Ainda que estivesse na disponibilidade da AT a prática do ato expresso de indeferimento da reclamação graciosa, refira-se que tal decisão não foi comunicada pela Requerida ao Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 13.º n.º 1 do RJAT.

Conforme refere Carla Castelo Trindade, “(…) caso a Administração Tributária não notifique o CAAD da sua decisão, no prazo de 30 dias, tal não implica a paralisação do procedimento. Dito de outro modo, se a Administração Tributária nada disser naquele prazo de 30 dias previsto no n.º 1 – (…) – admite-se, tacitamente, que o ato tributário que o sujeito passivo pretende ver discutido em sede arbitral se mantém, ou seja, que a autoridade tributária não revogou, rectificou, reformou ou converteu o acto.”[4]

Nem terá sido comunicada ao Requerente a decisão proferida pelos serviços da AT, ao abrigo do disposto no artigo 13.º n.º 2 do RJAT, pelo que não poderia produzir qualquer efeito no processo arbitral.

Nesta medida, face a todo o supra exposto, tem-se por não verificada a exceção invocada de inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º alínea e) do CPC, ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea e) do RJAT, conducente à absolvição da instância da Requerida.

 

  1. Da incompetência do tribunal arbitral para apreciar vícios dos atos de fixação do VPT

A Requerida alega na sua resposta a incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar vícios de atos de fixação do VPT, atos destacáveis e autonomamente impugnáveis.

Com efeito, resulta do artigo 2.º alíneas a) e b) do RJAT que os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD são competentes tanto para apreciar a legalidade de atos de liquidação como a legalidade de catos de fixação de valores patrimoniais.

Pelo que não poderá proceder esta exceção.

 

  1. Da proibição de julgar segundo a equidade e vinculação da Autoridade Tributária ao princípio da legalidade

O controlo jurisdicional do pedido formulado pela Requerente será realizado com base na apreciação da legalidade do ato de liquidação e não em juízos de equidade, conforme resulta do disposto no artigo 2.º do RJAT.

Donde resultará um juízo da atuação da Autoridade Tributária e Aduaneira em cumprimento do princípio da legalidade previsto no artigo 266.º, n.º 2 da CRP.

Razões pelas quais improcedem também as demais exceções invocadas pela Requerente.

 

  1. Questão da consolidação do ato tributário que determinou o VPT, impugnabilidade do ato de liquidação de IMI com fundamento em vícios do ato de fixação do VPT

A Requerente pretende a anulação da liquidação de IMI de 2019 com fundamento em vícios do ato que fixou o VPT do terreno para construção.

Por seu turno, a Requerida entende que os vícios do ato que fixou o VPT não são suscetíveis de ser impugnados por referência ao ato de liquidação praticado com base no mesmo, sendo o tribunal arbitral incompetente para apreciar os referidos vícios na medida em que tais atos são destacáveis e autonomamente impugnáveis, encontrando-se consolidados na ordem jurídica se não tiver havido impugnação.

Alega, ainda, a Requerida que tais atos não podem já ser objeto de anulação administrativa, por força do artigo 168.º, n.º 1, do CPA. Com efeito, defende a Requerida que a correção da base de incidência do imposto, i. e., a correção do ato de avaliação do qual resultou a fixação do VPT foi efetuada há mais de cinco anos, pelo que não poderá ser objeto de anulação administrativa, tendo-se consolidado definitivamente tal ato de avaliação do VPT.

Cumpre decidir.

Nos termos do artigo 15.º do Código do IMI, a avaliação dos prédios urbanos é direta, sendo suscetível de impugnação contenciosa direta (artigo 86.º n.º 1 da LGT).

Nos termos do n.º 2 do mesmo artigo 86.º, “a impugnação da avaliação direta depende do esgotamento dos meios administrativos previstos para a sua revisão”.

O artigo 134.º do CPPT estabelece os termos da impugnação da avaliação direta de valores patrimoniais:

“1 - Os atos de fixação dos valores patrimoniais podem ser impugnados, no prazo de três meses após a sua notificação ao contribuinte, com fundamento em qualquer ilegalidade.

2 - Constitui motivo de ilegalidade, além da preterição de formalidades legais, o erro de facto ou de direito na fixação.(...)

7 - A impugnação referida neste artigo não tem efeito suspensivo e só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação.”

Os meios graciosos a que se refere o artigo 134.º n.º 7 do CPPT são os previstos no artigo 76.º do Código do IMI.

Com efeito, nos termos do artigo 76.º do Código do IMI, o sujeito passivo notificado da decisão de avaliação de um prédio pela Autoridade Tributária poderá, no prazo de 30 dias, requerer uma segunda avaliação.

Passado esse prazo, o VPT resultante da avaliação consolida-se na ordem jurídica: “O Autor embora notificado da decisão e informado dos meios de defesa previstos entendeu não requerer uma segunda avaliação, no prazo de 30 dias, de acordo com o previsto no artigo 76.º do CIMI.(…) Em consequência da inacção do Requerente o VPT resultante da avaliação consolidou-se na ordem jurídica independentemente do erro que enfermou o acto de avaliação. A não utilização dos meios de defesa, previstos no artigo 76.º do CIMI, por parte do Requerente levou à formação de caso decidido ou resolvido sobre o VPT constante da matriz. Assim, o acto de liquidação adicional impugnado assentou num VPT que se encontrava consolidado na ordem jurídica, por ausência de reacção do contribuinte, estando a Administração Tributária, nestes termos, vinculada legalmente a proceder à referida liquidação de IMT”[5].

Sendo que, “Do resultado das segundas avaliações cabe impugnação judicial”, a qual “pode ter como fundamento qualquer ilegalidade, designadamente a errónea quantificação do valor patrimonial tributário do prédio.” (Cf. Artigo 77.º n.º 1 e 2 do Código do IMI).

Logo, seguindo de perto a fundamentação da Decisão Arbitral n.º 676/2021-T de 15-02-2022, “Como decorre do n.º 1 do artigo 134.º, ao fixar um prazo especial de três meses para impugnação de actos de fixação de valores patrimoniais, «com fundamento em qualquer ilegalidade», e do n.º 7 do mesmo artigo, ao exigir o esgotamento dos meios graciosos, está afastada a possibilidade de essa impugnação com fundamento em ilegalidade se fazer, por via indirecta, na sequência da notificação de actos de liquidação que a tenham como pressuposto, como são os de IMI, sem observância do prazo de impugnação referido e sem esgotamento dos meios de revisão previstos no procedimento de avaliação. No âmbito do IMI e do AIMI, quando o sujeito passivo não concordar com o resultado da avaliação directa de prédios urbanos, pode requerer ou promover uma segunda avaliação, no prazo de 30 dias contados da data em que o primeiro tenha sido notificado (artigo 76.º, n.º 1, do CIMI). Só do resultado das segundas avaliações (que esgotam os meios graciosos do procedimento de avaliação) cabe impugnação judicial nos termos do CPPT (artigo 77.º, n.º 1 do CIMI).”

Tal conclusão resulta da qualificação dos atos de avaliação de valores patrimoniais previstos no Código do IMI como atos destacáveis, para efeitos de impugnação, podendo ser objeto de impugnação autónoma. Logo, na impugnação dos atos de liquidação emitidos com base naqueles atos de avaliação não poderá já discutir-se a legalidade dos mesmos.

Conforme explicado na decisão arbitral no processo n.º 676/2021-T de 15-02-2022, a natureza de atos destacáveis que é atribuída aos atos de avaliação de valores patrimoniais é há muito reconhecida pela jurisprudência do STA[6][7], da qual é exemplo mais recente o processo n.º 0885/16, de 05-10-2017: “Ora, quanto à matéria da impugnação de atos destacáveis dispõe igualmente o artigo 102.º, n.º 1, alínea e) do CPPT, que a impugnação será apresentada no prazo de 3 meses contados a partir da notificação dos restantes actos que possam ser objecto de impugnação autónoma nos termos deste Código. (...). Sendo, pois, uma norma mais ampla que a do artigo 134.º, n.º 1, do CPPT, que, permite a utilização do mesmo meio processual para reagir contra um ato destacável concretoo ato que fixa o VPT em segunda avaliação –, no prazo de 90 dias contados a partir da respetiva notificação. Estas duas normas estão, então, numa relação de especialidade, uma vez que a do artigo 134.º, n.º 1, contém elementos que também constam da do artigo 102.º, n.º 1, alínea e) - possibilidade de impugnação judicial de atos destacáveis -, acrescentando-lhe particularidades: o único ato destacável ali previsto é o ato de fixação dos valores patrimoniais (aqui são os restantes atos que possam ser objeto de impugnação autónoma); e o prazo para lançar mão da Impugnação é ali de 90 dias (e aqui de 3 meses).” (sublinhado nosso).

 Como se conclui na Decisão Arbitral acima referida a cuja fundamentação se adere, “Assim, o sujeito passivo de IMI ou de AIMI pode impugnar as liquidações, mas não são relevantes como fundamentos de anulação eventuais ilegalidades dos antecedentes actos de fixação de valores patrimoniais, que se firmaram na ordem jurídica, por falta de tempestivo esgotamento dos meios graciosos previstos nos procedimentos de avaliações e de subsequente impugnação autónoma a deduzir no prazo de três meses, nos termos dos n.ºs 1 e 7 do artigo 134.º do CPPT. Na verdade, não sendo impugnado tempestivamente o acto de fixação de valores patrimoniais, forma-se caso decidido ou resolvido sobre a avaliação, que se impõe em sede de liquidação de IMI, sendo que «o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada município, pelos serviços centrais da Direcção-Geral dos Impostos, com base nos valores patrimoniais tributários dos prédios e em relação aos sujeitos passivos que constem das matrizes em 31 de Dezembro do ano a que o mesmo respeita» (artigo 113.º do CIMI). Este regime de impugnação autónoma justifica-se por razões de coerência do sistema jurídico tributário inerentes ao facto de cada acto de avaliação poder servir de suporte a uma pluralidade de actos de liquidação de impostos (liquidações anuais de IMI e eventuais liquidações de IMT) e ser relevante para vários efeitos a nível de IRS (   ), IRC (   ) e Imposto do Selo (   ), o que não se compagina com a possibilidade de plúrima avaliação incidental que se reconduzisse à fixação de diferentes valores patrimoniais tributários para o mesmo prédio, no mesmo momento. Por outro lado, a caducidade do direito de acção derivada da inércia do lesado por actos administrativos durante um prazo razoável, é generalizadamente justificada por razões de segurança jurídica, necessária para adequado funcionamento da administração pública, que é um valor constitucional ínsito no princípio do Estado de Direito democrático e é reconhecida generalizadamente em matéria administrativa e tributária. O prazo de três meses para impugnação de actos de fixação de valores patrimoniais é perfeitamente razoável, sendo o prazo geral previsto a lei para a impugnação da generalidade dos actos administrativos com fundamentos geradores de vícios de anulabilidade (artigo 58.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e artigo 102.º do CPPT).”

No mesmo sentido de não admissibilidade da impugnação da liquidação de IMI com base em vícios do ato de avaliação, a decisão proferida no Processo 253/2021-T, de 10-12-2021: “Deste modo, improcede o ponto de vista da Requerente no que respeita à impugnação de atos tributários de avaliação consolidados na ordem jurídica a 31 de Dezembro de cada ano de tributação de IMI (2015, 2016, 2017 e 2018), uma vez que há muito se encontra ultrapassado o prazo de 3 meses concedidos para o efeito. Estando os Tribunais arbitrais obrigados a decidir em consonância com o direito constituído, entende-se que as liquidações de IMI em causa não poderão ser anuladas com fundamento nos alegados erros nas avaliações que fixaram os valores patrimoniais dos terrenos para construção, perfeitamente consolidados à data das liquidações.”[8]

Face a todo o supra exposto, conclui-se que os alegados vícios do ato de avaliação invocados pela Requerente, que não foram objeto de impugnação autónoma, não podem ser fundamento de anulação da liquidação de IMI, pelo que a liquidação de IMI sub judice não pode, assim, ser anulada com fundamento em erro na avaliação.

 

  1. Questão da admissibilidade de revisão oficiosa das liquidações ao abrigo do artigo 115.º do CIMI e do artigo 78.º da LGT e aplicação do regime de anulação administrativa

A título prévio refira-se que em sede de alegações finais escritas[9], a Requerente refere que “veio peticionar a revisão oficiosa do ato tributário, ao abrigo do disposto no artigo 115.º do Código do IMI e do artigo 78.º da LGT”, acrescentando nos parágrafos seguintes que “a ser admissível a posição ora sustentada pela Requerida, não seria possível a qualquer contribuinte lançar mão do referido procedimento e teria de aceitar de forma definitiva e passiva uma injustiça grave e notória concretizada na fixação de um VPT em valor claramente superior ao que resultaria das disposições legais que deveriam ter sido aplicadas e que se traduziu no ato de liquidação de AIMI, objeto do presente processo”, concluindo que este “erro não pode ser imputável a qualquer comportamento negligente do contribuinte”.

Sucede, porém, que o pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente tem como objeto a presunção de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra a liquidação de IMI de 2019 (objeto imediato) e a ilegalidade da liquidação de IMI (objeto mediato), não sendo feita qualquer referência ao disposto no artigo 115.º do CIMI ou ao artigo 78.º da LGT.

Assim, tendo a Requerente apresentado reclamação graciosa do ato de liquidação de IMI com fundamento na ilegalidade do ato de avaliação, face ao decidido no ponto antecedente, resta aferir da possibilidade anulação administrativa do ato de avaliação.

É a própria Requerida que, face ao entendimento jurisprudencial vigente sobre a fórmula de cálculo do VPT dos terrenos para construção, admite a possibilidade de anulação dos atos de avaliação dos prédios urbanos terrenos para construção que tenham considerado esses coeficientes do artigo 38.º do CIMI.

A Requerida remete para o regime da revogação e anulação dos atos administrativos em matéria tributária está previsto no artigo 79.º da LGT e artigos 165.° a 174.° do Código de Procedimento Administrativo (“CPA”) aplicável subsidiariamente por força do artigo 2.º, alínea c) da LGT. 

O artigo 168.º n.º 1 do CPA estabelece que “Os atos administrativos podem ser objeto de anulação administrativa no prazo de seis meses, a contar da data do conhecimento pelo órgão competente da causa de invalidade, ou, nos casos de invalidade resultante de erro do agente, desde o momento da cessação do erro, em qualquer dos casos desde que não tenham decorrido cinco anos, a contar da respetiva emissão.”

Assim, apenas serão anuláveis os atos administrativos desde que não tenham decorrido cinco anos a contar da respetiva emissão. Neste sentido já se pronunciou o Tribunal Central Administrativo Sul:“I. Não constando da LGT nem do CPPT norma definidora do prazo para a revogação e anulação administrativas dos atos tributários, hão de acolher-se as regras constantes dos artigos 165° a 174° do Código de Procedimento Administrativo (CPA). II. Os atos administrativos podem ser objeto de anulação administrativa no prazo de 6 meses, a constar da data do conhecimento do órgão da causa da invalidade ou, nos casos de invalidade resultante de erro do agente, desde o momento da cessação do erro e em qualquer caso, desde que não tenham decorrido 5 anos, a contar da respetiva emissão – artigo 168/1 CPA. III. Salvo nos casos previstos nos n.ºs 3 a 7, do artigo 168º CPA, os atos constitutivos de direitos só podem ser objeto de anulação administrativa dentro do prazo de um ano, a contar da data da respetiva emissão - artigo 168º, n.º 2, do CPA.”[10]

Contudo, a Requerente vem alegar, que a aplicação do disposto no artigo 168.º do CPA não é possível uma vez que de acordo com o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro (e não do CPA como alegado pela Requerente): “O disposto nas partes I e II, no capítulo III do título I da parte III e na parte IV do Código aplica-se aos procedimentos administrativos em curso à data da sua entrada em vigor, sendo as restantes disposições do Código aplicáveis apenas aos procedimentos administrativos que se iniciem após a entrada em vigor do presente decreto-lei..”. 

Concluindo que, não estando em curso o procedimento de avaliação aquando da data de entrada em vigor do disposto no artigo 168.º do CPA (em 07-04-2015), não seria possível a aplicação do prazo de 5 anos à situação sub judice.

Sem prejuízo do mérito de tal argumentação e contra-argumentação, a questão central é saber se as normas gerais do CPA serão de aplicar ao caso em apreço.

Na decisão arbitral no processo n.º 676/2021-T, de 15-02-2022[11], cujo coletivo foi presidido pelo Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, conclui-se que “A possibilidade de revisão oficiosa de actos de avaliação de valores patrimoniais não está prevista no CIMI. Designadamente, o artigo 115.º do CIMI reporta-se a actos de liquidação e não a actos de fixação de valores patrimoniais. Por outro lado, trata-se de um regime especial para cumprimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira do dever de revogação que emana do princípio da legalidade que, estando especialmente previsto para o contencioso tributário, afasta a aplicabilidade subsidiária do artigo 168.º do Código do Procedimento Administrativo, pois não há uma lacuna de regulamentação. Assim, só à face do regime geral da revisão oficiosa, previsto no artigo 78.º da LGT, se pode aventar a possibilidade de revisão, nos termos dos seus n.ºs 4 e 5 (...)” (sublinhado nosso).

Assim, da avaliação de prédio que tenha resultado da incorreta aplicação das normas do CIMI, que não tenha sido impugnada autonomamente, não poderá decorrer a ilegalidade do ato subsequente de liquidação de IMI, nem poderá ser invocada a existência de erro imputável aos serviços, nos termos do artigo 78.º n.º 1 da LGT.

Restará aferir da possibilidade de revisão da matéria tributável com fundamento em injustiça grave ou notória, prevista no artigo 78.º n.º 4 e 5 da LGT:

“(...) 4 - O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente, nos três anos posteriores ao do acto tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte.

5 - Para efeitos do número anterior, apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional.(...)

7 - Interrompe o prazo da revisão oficiosa do acto tributário ou da matéria tributável o pedido do contribuinte dirigido ao órgão competente da administração tributária para a sua realização.”

Conforme decorre da jurisprudência dos tribunais superiores, “O facto de a lei determinar que “o dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente,” a revisão, não obsta à possibilidade de convolação da reclamação graciosa em pedido de revisão com fundamento em injustiça grave ou notória pois tal poder de autorização não é mera faculdade mas, antes, um verdadeiro poder-dever. Com efeito, como escreve Jorge de Sousa, ob. cit., págs. 406-407, “esta autorização apenas pode ser concedida excepcionalmente. Esta restrição, porém, deve ser entendida como reportando-se às características incomuns da situação em que se verifica uma injustiça dos tipos referidos e não como permitindo ao dirigente máximo do serviço, perante situações que mereçam aquela qualificação, deixar de autorizar, em todos os casos, a efectivação da revisão. Com efeito, este dever de rever os actos injustos é um corolário do dever de actuação segundo o princípio da justiça, constitucionalmente consagrado (art. 266.º, n.º 2, da CRP), pelo que não é constitucionalmente admissível o estabelecimento, pela lei ordinária, de casos de dispensa de observância de tal directriz de actuação”. Pelo que, estando perante um poder estritamente vinculado, o Tribunal pode ordenar a convolação do procedimento de reclamação graciosa em pedido de revisão por injustiça grave ou notória - cuja alegação se retira, por interpretação, da petição de reclamação.» Fim de citação.”[12]

No mesmo sentido, o Acórdão do STA mais recente:

“A previsão constante do dito art. 78.º n.º 4, como excepcional, é de entender como correspondendo a um poder-dever que implica a sua aplicação a todos os casos, verificados que sejam os referidos requisitos – cfr, entre outros, acórdão do S.T.A. de 2-11-2011, proc. 0329/11, acessível em www.dgsi.pt e Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, em Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª ed., Encontro de escrita, 2012, pág. 710.(...)

Quanto a se verificar tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade, implica que seja considerado não só o princípio da proporcionalidade, como ainda os princípios da justiça, da igualdade e da legalidade, e em termos de corrigir todos os erros nas liquidações de que resulte ter sido cobrado imposto superior ao previsto na lei, conforme defendem ainda os autores acima citados a pág. 711.”[13]

Admite, assim, a jurisprudência dos tribunais superiores, a possibilidade de revisão oficiosa da matéria tributável, nos termos do artigo 78.º n.º 4 e 5 da LGT, “Ou seja, a mesma só pode ser autorizada pelo dirigente máximo dos serviços, verificados que sejam ainda os seguintes requisitos:

1- três anos posteriores ao ato tributário;

2- Fundamento de injustiça grave e notória, conceito que é precisado no seguinte n.º 5, em termos de “tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional”;

3- Erro não imputável a comportamento negligente do contribuinte.”[14]

Iremos ver em seguida se tais requisitos se verificam no caso sub judice.

  1. Tempestividade do pedido de revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º n.º 4 da LGT

O prazo para ser autorizada a revisão da matéria tributável pelo dirigente máximo do serviço é de três anos posteriores ao do ato tributário, que terminam no dia 31 de dezembro do terceiro ano posterior àquele em que foi praticado o ato tributário.

A liquidação de IMI sub judice foi emitida em 2020, pelo que os três anos posteriores terminariam em 31-12-2023.

Tendo a Requerente apresentado a reclamação graciosa em 22-04-2021, a mesma foi apresentada no prazo de três anos prevista no artigo 78.º n.º 4 da LGT.

  1. Erro não imputável a comportamento negligente do contribuinte

A AT fixou a matéria tributável com base numa fórmula prevista no artigo 38.º do Código do IMI, não resultando dos factos dados como provados que tal fixação tenha decorrido de informação errada quanto à natureza do prédio – terreno para construção – dada pela Requerente.

Pelo que, o erro na aplicação da fórmula de avaliação invocado pela Requerente não será imputável a um comportamento negligente daquela.

  1. Erro imputado pela Requerente à fixação de valores patrimoniais de terrenos para construção

O erro apontado pela Requerente é o de a Requerida ter aplicado à avaliação de terrenos para construção, as normas legais aplicáveis às avaliações de prédios edificados.

A jurisprudência dos tribunais superiores fixou jurisprudência neste sentido, conforme se retira da decisão arbitral do coletivo presidido pelo Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, que se transcreve com a devida vénia:

“O Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a decidir, uniformemente, na esteira Acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 23-10-2019, processo n.º 170/16.6BELRS 0684/17, que

I – Na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção há que observar o disposto no artigo 45.º do Código do IMI, não havendo lugar à consideração do coeficiente de qualidade e conforto (cq).

II – O artigo 45 do CIMI é a norma específica que regula a determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção.

III – O coeficiente de qualidade e conforto, factor multiplicador do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38 do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços não pode ser aplicado analogicamente por ser susceptível de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto (...)

Esta jurisprudência foi posteriormente reafirmada pelo Supremo Tribunal Administrativo, como pode ver-se, entre vários outros, pelos acórdãos seguintes acórdãos:

– de 05-04-2017, processo n.º 01107/16 («Na fórmula final de cálculo do VPT dos terrenos para construção é de afastar a aplicação do coeficiente de localização, na medida em que esse factor de localização do terreno já está contemplado na percentagem prevista no nº 3 do art. 45º do CIMI»);

– de 28-06-2017, processo n.º 0897/16 («II – Os coeficientes de afectação e conforto, factores multiplicadores do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38 do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços não podem ser aplicados analogicamente por serem susceptíveis de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto. III – Na fórmula final de cálculo do VPT dos terrenos para construção é de afastar a aplicação do coeficiente de localização, na medida em que esse factor de localização do terreno já está contemplado na percentagem prevista no nº 3 do art. 45º do CIMI»).

– de 16-05-2018, processo n.º 0986/16 («O coeficiente de qualidade e conforto, factor multiplicador do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38 do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços e bem assim o coeficiente de afectação não podem ser aplicados analogicamente por serem susceptíveis de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto (IMI)»;

– de 14-11-2018, processo n.º 0133/18 («No cálculo do VPT dos terrenos para construção é de afastar a aplicação do coeficiente de localização, na medida em que esse fator de localização do terreno já está contemplado na percentagem prevista no nº 3 do art. 45º do CIMI»;

– 23-10-2019, processo n.º 170/16.6BELRS 0684/17 («os coeficientes de localização, qualidade e conforto, factores multiplicadores do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38 do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços e bem assim o coeficiente de afectação não podem ser aplicados analogicamente por serem susceptíveis de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto (IMI).»

– de 13-01-2021, processo n.º 0732/12.0BEALM 01348/17 («Relativamente à avaliação de terrenos para construção, sobre o que regula o art. 45.º do C.I.M.I., não são de aplicar os coeficientes ou características não especificamente previstos, entre os quais o coeficiente de qualidade e conforto».

Na linha desta jurisprudência, é de entender que a avaliação dos terrenos para construção devia ser efectuada sem aplicação dos coeficientes não especificamente previstos, entre os quais os coeficientes de localização, de qualidade e conforto e de afectação.”[15]

No caso em apreço, a Requerida não contesta esta jurisprudência, antes declara que já aderiu à mesma, o que é manifesto na avaliação realizada a pedido da Requerente e datada de 30-12-2020.

Logo, face à jurisprudência supra citada, não existem dúvidas que a fixação do VPT do terreno para construção enferma dos erros que a Requerente lhes imputa, que não resultam de qualquer comportamento negligente desta, mas de uma errada interpretação das regras do Código do IMI que deveriam aplicar-se aos terrenos para construção.

  1. Injustiça grave ou notória

Para que seja admissível a revisão oficiosa ao abrigo do artigo 78.º n.º 4 da LGT, haverá que determinar se o apuramento da matéria tributável consubstancia “injustiça grave ou notória”.

O artigo 78.º n.º 5 da LGT determina que “apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional.”

Logo, tendo resultado da avaliação da matéria tributável uma tributação superior em sede de IMI à que seria devida se tivesse sido aplicada a norma correta do Código do IMI, será de considerar-se grave a injustiça cometida[16].

  1. Conclusão

Face ao supra exposto, têm-se por verificados todos os requisitos de que depende a revisão oficiosa da matéria tributável prevista no artigo 78.º n.º 4 e 5 da LGT, pelo que a Autoridade Tributária e Aduaneira deveria ter convolado a reclamação graciosa em revisão oficiosa da matéria tributável e anulado a liquidação de IMI relativa ao ano de 2019.

Pelo exposto, justifica-se a anulação do indeferimento tácito da reclamação graciosa respeitante ao ano de 2019, quanto à revisão da matéria tributável, bem como a anulação parcial da liquidação de IMI, na parte em que exceda o IMI que seria devido se tivesse tido como pressuposto a avaliação realizada nos termos legais.

 

  1. Juros indemnizatórios

Por último, o Requerente pede a condenação da Requerida a pagar juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT.

De acordo com o disposto na artigo 24.º n.º 1 alínea b) do RJAT “A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, alternativa ou cumulativamente, consoante o caso: (…) b) Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito. (…)”.

No mesmo sentido, o artigo 100.º da LGT prevê que “A Administração está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros, nos termos e condições previstos na lei”.

A doutrina e jurisprudência têm defendido que se enquadra no âmbito das competências dos tribunais arbitrais a fixação dos efeitos das suas decisões, nos mesmos termos previstos para a impugnação judicial, designadamente, quanto à condenação em juros indemnizatórios ou a condenação por indemnização por garantia indevida.

Quanto aos juros indemnizatórios, prevê o artigo 43.º n.º 1 da LGT que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

Ainda nos termos do artigo 24.º n.º 5 do RJAT é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos LGT e no CPPT.

Tendo a Requerente apresentado o pedido de revisão da matéria tributável (sob a forma de reclamação graciosa) em 22-04-2021, os juros indemnizatórios serão devidos nos termos do artigo 43.º n.º 3 alínea c) da LGT, ou seja, “São também devidos juros indemnizatórios (...): (...) c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”

Logo, apenas serão devidos juros indemnizatórios, contados a partir de um ano do pedido de revisão (22/04/2022) e até ao reembolso do IMI indevidamente pago, calculados à taxa supletiva legal nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.

 

 

  1. DECISÃO

Termos em que decide este Tribunal Arbitral:

  1. Declarar improcedente a exceção de inutilidade superveniente da lide;
  2. Declarar procedente o pedido de pronúncia arbitral, no sentido de anulação do indeferimento tácito da reclamação graciosa da liquidação de IMI n.º 2019 ... relativamente ao artigo ..., freguesia de ..., respeitante ao ano de 2019;
  3. Consequentemente anular parcialmente a liquidação de IMI n.º 2019 ... relativamente ao artigo ..., freguesia de..., respeitante ao ano de 2019; 
  4. Declarar procedente o direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º n.º 3, alínea c) da LGT.

 

  1. VALOR DA CAUSA

Em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 306.º do CPC e da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.°-A do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPTA), fixa-se ao processo o valor de € 8.279,83 (oito mil duzentos e setenta e nove euros e oitenta e três cêntimos), conforme resulta do pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. CUSTAS

Nos termos do n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento, fixa-se o montante das custas em €918,00, nos termos da Tabela I, do RCPTA, a cargo da Requerida.

Lisboa, 23 de maio de 2022

O Árbitro,

Vera Figueiredo

 



[1] Cf. Acórdão do STA no processo n.º 0977/18.0BEPRT, disponível em http://www.dgsi.pt.

[2] Cf. José Lebre de Freitas, Rui Pinto e João Redinha, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 2008, pág. 555

[3] Cf. Acórdão do STA no processo n.º o processo n.º 0506/18, de 13-03-2019, disponível em http://www.dgsi.pt

[4] Cf. CARLA CASTELO TRINDADE, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado, Almedina, 2016, págs.. 334.

[6]

[8] Cf. Decisão Arbitral no processo n.º 253/2021-T, datado de 10-12-2021, disponível em: https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listpagesize=100&listorder=sorter_data&listdir=desc&listpage=240&listPage=6&id=5937

[9] Cf. parágrafo 18 das Alegações Finais da Requerente, a página 11, juntas aos autos.

[10] Cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul no processo n.º 23/16.8BELRS de 14.10.2021, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/c74ab59c1bb0462c8025876e0053b52a

[16] No mesmo sentido, as decisões arbitrais citadas, nos processos n.º 676/2021-T, de 15-02-2022, processo n.º 253/2021-T, de 10-12-2021.