Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 593/2019-T
Data da decisão: 2020-03-23  IRS  
Valor do pedido: € 9.575,19
Tema: IRS – Tributação de Mais-valias; Residente em Estado-membro da União Europeia; Princípio da não discriminação; Reenvio prejudicial para o TJUE.
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DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

O árbitro Vera Figueiredo designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, para formar o Tribunal Arbitral decide o seguinte:

  1. RELATÓRIO
  1. A..., com o número de identificação fiscal ..., solteira, maior, residente em ...,  ..., França, adiante designada como “Requerente”, vem ao abrigo do artigo 10.º n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”), requerer a constituição de tribunal arbitral e submeter pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante designada como “Requerida” ou “AT”), e que tem por objeto a declaração da ilegalidade da liquidação de IRS com o n.º 2018... e respetivos juros compensatórios, no valor de € 9.575,19, referente ao ano de 2017, com a consequente anulação da mesma e com vista à condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira a restituir a quantia indevidamente liquidada e já paga pela Requerente.
  2. O pedido de constituição de Tribunal Arbitral foi apresentado pela Requerente em 10-09-2019, tendo sido aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e notificado à Requerida em 13-09-2019.
  3. A Requerente optou por não designar árbitro, tendo, nos termos do n.º 1 do artigo 6.º e do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designado o árbitro do Tribunal Arbitral Singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo legalmente estipulado.
  4. As partes foram devidamente notificadas da nomeação em 28-10-2019, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma.
  5. Em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 27-11-2019.
  6. Em 29-11-2019, a Requerida foi notificada do despacho proferido pelo Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 17.º do RJAT, para apresentar resposta, solicitar a produção de prova adicional e remeter o processo administrativo.
  7. A Requerida juntou o processo administrativo aos autos em 08-01-2020.
  8. Na mesma data, a Requerida juntou aos autos a sua resposta, na qual pugnou pela manutenção da liquidação de IRS do ano fiscal de 2017 e pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral. Caso assim não o entendesse, por se tratar de uma questão de incompatibilidade da legislação nacional com o direito da União Europeia, requereu a suspensão da instância arbitral e o reenvio prejudicial para que o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).
  9. Considerando o pedido de suspensão da instância arbitral e o pedido de reenvio prejudicial apresentado pela Requerida, o Tribunal Arbitral notificou a Requerente para se pronunciar, mediante despacho datado de 13-01-2020.
  10. A Requerente pronunciou-se em requerimento junto aos autos no dia 23-01-2020, pugnando pela inexistência de fundamento para a suspensão da instância e reenvio prejudicial do presente pedido de pronúncia arbitral.
  11. Em 28-01-2020, o Tribunal Arbitral emitiu despacho em que decidiu não admitir o pedido de suspensão da instância e de reenvio prejudicial para o TJUE apresentado pela Requerida, dada a inexistência de fundamento para o mesmo ao abrigo da “teoria do ato claro”.
  12. No mesmo despacho, dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e ordenou a notificação das partes para produzirem alegações escritas, no prazo de 15 dias (prazo sucessivo), iniciando-se o prazo da Requerente com a notificação do referido despacho e o prazo da Requerida com a notificação da apresentação das alegações da Requerente, ou com o decurso do prazo de 15 dias. No mesmo despacho, foi designado o dia 27-03-2020 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral.
  13. Nem a Requerente, nem a Requerida apresentaram alegações escritas no prazo dado pelo despacho supra.
  1. SANEAMENTO
  1. O presente Tribunal Arbitral considera-se regularmente constituído para apreciar o litígio (n.º 1 e n.º 2 do artigo 5.º, n.º 1 do artigo 6.º e artigo 11.º do RJAT).
  2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas (artigos 3.º, 6.º e 15.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ex vi alínea a) do n.º 1 do artigo 29.ºdo RJAT).
  3. Não foram alegadas outras questões prévias para além das decididas nos presentes autos que obstem à decisão de mérito.
  1. MATÉRIA DE FACTO

 

  1. Factos dados como provados
  2. Com interesse para a decisão da causa, dão-se como provados os seguintes factos, que não foram contestados pela Requerida.
  1. Em 2017, a Requerente era residente fiscal em França, na ..., ... .
  2. Nesse ano, a Requerente alienou a sua quota-parte, correspondente a 50%, que detinha na qualidade de herdeira da herança aberta por óbito de seu pai B..., relativamente a quatro imóveis, localizados em Portugal, no distrito de Braga, freguesia de ..., concelho de ... identificados sob os seguintes artigos matriciais: i) Rústico – artigo ...; ii) Urbano – artigo ...; iii) Urbano - artigo ...; e iv) Urbano – artigo ..., todos descritos na conservatória do registo predial de ... sob o n.º ... .
  3. A Requerente submeteu em 07-08-2018 a sua Declaração de Rendimentos Modelo 3 de IRS relativa ao ano 2017, com o Anexo G – “Mais-Valias e outros Incrementos Patrimoniais”.
  4. Na referida Declaração de Rendimentos Modelo 3 de IRS, a Requerente enquadrou-se como não residente em Portugal, sendo residente na União Europeia e optando pela tributação de acordo com o regime geral:

  1. Tendo declarado no Anexo G os seguintes valores:

Uma imagem com captura de ecrã

Descrição gerada automaticamente

  1. A requerente foi notificada da liquidação de IRS referente a 2017 com o n.º 2018...emitida pela Autoridade Tributária, datada de 10-08-2018, com prazo de pagamento até dia 24-09-2018:

Uma imagem com captura de ecrã

Descrição gerada automaticamente

  1. A requerente procedeu ao pagamento da quantia de €9.575,19 em 23-09-2018.
  2. Em 21-12-2018, a Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação supra identificada, junto da Direção de Finanças de Lisboa – Serviço de Finanças de Lisboa-..., com fundamento na sua ilegalidade por violação do princípio da discriminação resultante da tributação da totalidade da mais-valia sobre bens imóveis, que auferiu em Portugal em 2017. 
  3. A Requerente foi notificada em 21-05-2019, mediante Ofício n.º ... da Direção de Finanças de ...– Divisão de Justiça Tributária, datado de 20-05-2019, para exercício de audição prévia, nos termos do artigo 60.º da LGT, relativamente ao projeto de indeferimento da reclamação graciosa com os seguintes fundamentos:

  1. A Requerente não exerceu audição prévia, tendo sido proferido despacho de indeferimento da reclamação graciosa, que lhe foi notificado em 14-06-2019, mediante Ofício n.º ... da Direção de Finanças de...– Divisão de Justiça Tributária, datado de 13-06-2019.
  2. Não se conformando com o despacho de indeferimento, a Requerente apresentou pedido de constituição do Tribunal Arbitral junto do CAAD em 10-09-2019.
  1. Factos não provados

Não existem factos com relevo para a decisão que não tenham sido dados como provados.

  1. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. n.º 2 do art.º 123.º do CPPT e n.º 3 do artigo 607.º do CPC, aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.ºdo RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º, aplicável ex vi alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, não contestados pelas partes.

  1. MATÉRIA DE DIREITO
    1. Questão decidenda

A questão decidenda no presente processo arbitral respeita ao regime de mais-valias imobiliárias auferidas por não residentes em território português, tal como previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, n.º 1 do artigo 13.º, alínea h) do n.º 1 do artigo 18.º, n.º 1 e 2 do artigo 43.º, alínea a) do n.º 1 do artigo 72.º, todos do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos.

A Requerente vem alegar que o n.º 2 do artigo 43.º do CIRS, ao limitar a incidência do imposto a 50% das mais-valias realizadas apenas para residentes em Portugal e excluir dessa limitação as mais-valias realizadas por um residente noutro Estado membro, viola a liberdade de circulação de capitais, prevista no artigo 63.º do TFUE, peticionando a ilegalidade da liquidação de IRS de 2017, que tributou a mais-valia imobiliária por si auferida, na sua totalidade. A favor desta interpretação cita o Acórdão de 11 de outubro de 2007, proferido no processo C-443/06 (“Acórdão Hollmann”) [1], do TJUE.

 Na sua resposta, a Requerida pronunciou-se no sentido da legalidade da liquidação de IRS referente ao ano fiscal de 2017 e pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral, na medida em que o disposto no n.º 2 do artigo 43.° do Código do IRS não poderia ser aplicável ao caso em análise. Com efeito, a Requerida entende que a jurisprudência do Acórdão Hollmann seria de aplicar apenas às situações ocorridas na vigência da redação do artigo 72.º do Código do IRS, anterior à Lei n.º 67-A/2007, de 31/12. Argumenta que, com as alterações introduzidas por este diploma, nomeadamente o aditamento dos n.ºs 7 e 8 (atuais n.ºs 9 e 10) ao artigo 72.º do Código do IRS, veio permitir-se que, tanto residentes como não residentes, beneficiem do regime previsto no n.º 2 do artigo 43.º (consideração do saldo da mais-valia em apenas 50% do seu valor), do mesmo Código, desde que optem pelo englobamento dos rendimentos obtidos tanto em Portugal como fora deste território.

Acrescentou a Requerida que,  caso assim não o entendesse o Tribunal Arbitral, deveria considerar que não existe ato claro ou ato aclarado, requerendo a suspensão da instância e o envio da questão ao TJUE, nos termos previstos no instituto do reenvio prejudicial (artigo 267.º do TFUE), a que o Estado Português se vinculou.

  1. Do reenvio prejudicial

No que concerne ao pedido de reenvio prejudicial apresentado pela Requerida, o mesmo foi objeto de despacho emitido pelo Tribunal Arbitral e cuja fundamentação se remete infra:

Assim, estabelece o artigo 267.º do TFUE:

“Artigo267.º

O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

  1. Sobre a interpretação dos Tratados;
  2. Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal. (…)”

Sobre a questão da natureza jurisdicional dos tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD, a mesma já foi apreciada pelo TJUE que decidiu de forma afirmativa: “Resulta das considerações expostas que o organismo de reenvio apresenta todos os elementos necessários para ser qualificado de órgão jurisdicional de um Estado‑Membro para efeitos do artigo 267.º TFUE” [2].

Tratando-se a questão prejudicial em causa de uma questão de interpretação do direito da União, o reenvio prejudicial é obrigatório apenas quando tal questão seja suscitada perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial.

Nos termos do disposto no artigo 25.º do RJAT, na redação atualmente em vigor, as decisões arbitrais em matéria tributária são, em regra, irrecorríveis quanto ao mérito, sendo apenas passíveis de recurso para o Tribunal Constitucional, por violação de normas constitucionais, e para o Supremo Tribunal Administrativo, quando estejam em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral ou com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo.

Contudo, de acordo com a jurisprudência fixada no Acórdão CILFIT[3], a obrigação de reenvio admite exceções quando:

  1. exista já jurisprudência na matéria e desde que o quadro eventualmente novo não suscite nenhuma dúvida real quanto à possibilidade de aplicação dessa jurisprudência ao caso concreto;
  2. o correto modo de interpretação da norma jurídica em causa seja inequívoco;
  3. a questão prejudicial não seja necessária nem pertinente para o julgamento do litígio no órgão jurisdicional nacional.

No caso subjudice, existe vasta jurisprudência nesta matéria dos tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD (a título de exemplo, refiram-se as decisões arbitrais nos processos n.ºs 127/2012-T, 748/2015-T, 89/2017-T, 520/2017-T, 617/2017-T, 644/2017-T, 370/2018-T, 583/2018-T, 596/2018-T, 600/2018-T, 613/2018-T, 74/2019-T, 208/2019-T, e 332/2019-T)[4].

No mesmo sentido, vide os acórdãos do STA de 03-02-2016, Proc. 01172/14, e de 20-02-2019 no processo n.º 0692/17.

Por outro lado, não estamos perante um quadro novo, sendo que a consagração de um regime de opção (como o consagrado no artigo 72.º do Código do IRS) não tem sido considerada relevante na análise do efeito discriminatório da diferenciação de regimes prevista na legislação nacional entre residentes e não residentes. Neste sentido, vide Acórdão de 18 março de 2010, proferido no processo C-440/08 (“Acórdão Gielen”)[5]..

Pelo que, não se suscitando qualquer dúvida sobre a possibilidade de aplicação da jurisprudência citada ao caso em apreço, nem subsistindo dúvidas sobre a correta interpretação das normas jurídicas aplicáveis, foi decidido por este Tribunal Arbitral excecionar o reenvio prejudicial ao abrigo da teoria do ato claro.

  1. Enquadramento legislativo 

O artigo 10.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos, dispunha nos seguintes termos:

“1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:

a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis e afetação de quaisquer bens do património particular a atividade empresarial e profissional exercida em nome individual pelo seu proprietário;”

Por sua vez, nos termos do artigo 13.º do Código do IRS, “1 - Ficam sujeitas a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que, nele não residindo, aqui obtenham rendimentos.”

Sendo que, nos termos do artigo 18.º do mesmo Código, “1 - Consideram-se obtidos em território português: (…) h) Os rendimentos respeitantes a imóveis nele situados, incluindo as mais-valias resultantes da sua transmissão;”

Logo, de acordo com o Código do IRS, as mais-valias realizadas por não residentes com a alienação de bens imóveis sitos em Portugal serão tributáveis em Portugal.

Considerando que a Requerente é residente fiscal em França, haveria, ainda, que aferir se a Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e França (“CDT”) permitiria a tributação em Portugal de tais mais-valias realizadas por um residente em França relativamente a bens imóveis situados em Portugal.

O artigo 14.º da CDT estabelece a seguinte regra: “Os ganhos provenientes da alienação de bens imobiliários, conforme são definidos no artigo 6.º, podem ser tributados no Estado Contratante em que tais bens estiverem situados.

Assim, embora a Requerente seja residente fiscal em França, a CDT permite a tributação no Estado da fonte (Portugal) de mais-valias resultantes da alienação de bens imóveis sitos em território português.

As regras de apuramento das referidas mais-valias estão previstas no artigo 43.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos:

“1 - O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, determinadas nos termos dos artigos seguintes.

2 - O saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efetuadas por residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é apenas considerado em 50 % do seu valor.”

Nos termos do artigo 72.º do mesmo Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos, estabelecia que:

“1 - São tributados à taxa autónoma de 28 %:

a) As mais-valias previstas nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 10.º auferidas por não residentes em território português que não sejam imputáveis a estabelecimento estável nele situado; (…)

9 - Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.

10 - Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.(…)”.

Assim,  a questão que se coloca é saber se o disposto no n.º 2 do artigo 43.º deverá ser ou não aplicável a residentes na União Europeia, sob pena de violação do princípio da não discriminação e da liberdade de circulação de capitais, previstos, respetivamente, nos artigos 18.º e 63.º do TFUE.

O artigo 18.º do TFUE prevê o princípio geral da proibição da discriminação: “No âmbito de aplicação dos Tratados, e sem prejuízo das suas disposições especiais, é proibida toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade.

O n.º 1 do artigo 63.º do TFUE (ex-artigo 56.º TCE) estabelece o princípio da livre circulação de capitais:

“1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.”

A Requerente vem arguir a desconformidade da tributação das mais-valias obtidas com a legislação da União Europeia, mais precisamente com esta disposição.

No Acórdão “Hollmann”, o TJUE decidiu que: “O artigo 56.º CE [atual artigo 63.º do TFUE] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no litígio no processo principal, que sujeita as mais valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efectuada por um residente noutro Estado Membro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobre as mais valias realizadas por um residente do Estado onde está situado esse bem imóvel.

Mais recentemente, no despacho de 6 de setembro de 2018, proferido no processo C-184/18 [6], o TJUE (7.ª secção) veio confirmar o juízo de incompatibilidade do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS com o direito da União Europeia, neste caso aplicado também a residentes em Estados terceiros: “Uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que sujeita as mais‑valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado nesse Estado‑Membro, efetuada por um residente num Estado terceiro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, nesse mesmo tipo de operações, sobre as mais‑valias realizadas por um residente naquele Estado‑Membro constitui uma restrição à livre circulação de capitais que, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, não é abrangida pela exceção prevista no artigo 64.°, n.° 1, TFUE e não pode ser justificada pelas razões referidas no artigo 65.°, n.° 1, TFUE.”

Dúvidas não restam sobre o juízo de incompatibilidade da redação do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS com o direito da União Europeia que dela fazem a jurisprudência do TJUE.

Refira-se que o despacho do TJUE supra citado, à semelhança do acórdão Hollmann, foram proferidos relativamente às disposições do Código do IRS na redação em vigor anterior à Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, ou seja, antes do aditamento dos n.ºs 7 e 8 (atuais n.ºs 9 e 10) ao artigo 72.º do Código do IRS.

Com o aditamento dos n.ºs 7 e 8 (atuais n.ºs 9 e 10) ao artigo 72.º do Código do IRS, veio permitir-se que, tanto residentes como não residentes, beneficiem do regime previsto no n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, desde que optem pelo englobamento dos rendimentos obtidos tanto em Portugal como fora deste território.

Assim, resta saber se o juízo de discriminação do TJUE sobre a previsão normativa do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS será de afastar com o aditamento ao artigo 72.º do Código do IRS dos seus números 7 e 8 pela Lei n.º 67-A/2007, de 31.12 (atuais números 9 e 10), como pretende a Requerida.

A jurisprudência do TJUE tem entendido que a existência de um regime opcional, que permite a aplicação do regime fiscal dos residentes aos não residentes, não deverá ser considerada relevante na análise do efeito discriminatório da diferenciação de regimes prevista na legislação nacional entre residentes e não residentes. Neste sentido, vide Acórdão de 18 março de 2010, proferido no processo C-440/08 (“Acórdão Gielen”)[7]:

“(…) 50. Antes de mais, importa recordar que a opção de equiparação permite a um contribuinte não residente, como F. Gielen, escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório.

51. Ora, cumpre frisar a este respeito que, no presente caso, essa escolha não é susceptível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.

52. Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência, como é essencialmente observado pelo advogado‑geral no n.° 52 das suas conclusões, validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.° TFUE em razão do seu carácter discriminatório.

53. Por outro lado, como o Tribunal de Justiça já teve ocasião de precisar, um regime nacional que limite a liberdade de estabelecimento é incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa.”

Concluindo que  “Resulta de todas as considerações que precedem que o artigo 49.° TFUE se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes na concessão de um benefício fiscal como a dedução concedida aos trabalhadores independentes, em causa no processo principal, apesar de esses contribuintes poderem optar, no que se refere a esse benefício, pelo regime aplicável aos contribuintes residentes.”

Assim sendo, face ao supra exposto, a existência de um regime opcional de equiparação dos não residentes a residentes, não afasta a invalidade do regime discriminatório, ainda em vigor, decorrente da não aplicação do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS às pessoas singulares não residentes.

No mesmo sentido, vide as Decisões do CAAD proferidas, nomeadamente, nos processos n.º 332/2019-T, n.º 111/2019-T, n.º 74/2019-T, n.º 67/2019-T, n.º 65/2019-T, n.º 63/2019-T, n.º 617/2018-T, n.º 613/2018-T, n.º 594/2018-T, n.º 590/2018-T, n.º 583/2018-T, n.º 577/2018-T, n.º 562/2018-T, n.º 548/2018-T, n.º 370/2018-T, n.º 307/2018-T, n.º 644/2017-T, n.º 520/2017-T, n.º 89/2017-T, n.º 748/2015-T, n.º 127/2012-T e n.º 45/2012-T [8].

Conforme resulta de todo o supra exposto, a norma prevista do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS é contrária à liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE. Assim, a liquidação emitida pela AT, na qual, para cálculo da mais-valia realizada por pessoa singular residente na União Europeia com a alienação de bem imóvel sito em Portugal, não considerou a regra do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, é ilegal por violação do disposto no artigo 63.º do TFUE.

Termos em que deverá ser declarada a ilegalidade da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) com o n.º 2018... e respetivos juros compensatórios, no valor de € 9.575,19, devendo ser anulado nos termos do n.º 1 do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos da alínea c) do artigo 2.º da LGT. 

  1. Os juros indemnizatórios

Por último a Requerente pede a condenação da Requerida a pagar juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT.

De acordo com o disposto no artigo 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT “A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, alternativa ou cumulativamente, consoante o caso: (…) b) Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito. (…)”.

No mesmo sentido, o artigo 100.º da LGT prevê que “A Administração está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros, nos termos e condições previstos na lei”.

A doutrina e jurisprudência têm defendido que se enquadra no âmbito das competências dos tribunais arbitrais a fixação dos efeitos das suas decisões, nos mesmos termos previstos para a impugnação judicial, designadamente, quanto à condenação em juros indemnizatórios ou a condenação por indemnização por garantia indevida.

Quanto aos juros indemnizatórios, prevê o artigo 43.º, n.º 1, da LGT que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

No caso sub judice, o pedido da Requerente é julgado procedente no que se refere à liquidação de IRS referente ao exercício de 2017, no montante de € 9.505,40, acrescido dos respetivos juros compensatórios, tendo-se concluído que tal liquidação é ilegal.

Por outro lado, é manifesto que, na sequência da ilegalidade da liquidação impugnada, haverá lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago, por força da alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT, e do artigo 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.

A Requerente tem direito ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, relativamente ao valor do imposto e juros indevidamente pagos, contados desde a data em que tais valores foram indevidamente pagos até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

  1. DECISÃO

Termos em que decide este Tribunal Arbitral:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, declarando a ilegalidade do despacho de indeferimento proferido na reclamação graciosa com o n.º ...2018..., praticado pela Direção de Finanças de Braga, relativamente à Liquidação de IRS de 2017 n.º 2018...da Requerente;
  2. Anular a Liquidação de IRS de 2017 n.º 2018..., e respetiva liquidação de juros compensatórios, no montante de € 9.505,40, e de € 69,79, respetivamente;
  3. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a Requerida a pagar à Requerente, os juros indemnizatórios que forem liquidados em execução da presente decisão.
  1. VALOR DA CAUSA

Em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 306.º do CPC e da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.°-A do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPTA), fixa-se ao processo o valor de € 9.575,19 (nove mil quinhentos e setenta e cinco euros e dezanove cêntimos).

  1. CUSTAS

Nos termos do n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 918,00, nos termos da Tabela I, do RCPTA, a cargo da Requerida.

Lisboa, 23 de março de 2020

O Árbitro,

 

Vera Figueiredo

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131º, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, redigido segundo a grafia do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/91 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/91, ambos de 23 de agosto.

 

 
 

 

 

 

 



[2] Confr. Acordão de 12/06/2014 no processo C-377/13; Acórdão de 11/06/2015 no processo C-256/14, todos disponíveis em http://curia.europa.eu

[3] Confr. Acordão de 06/10/1982 no processo C-283/81, disponível em http://curia.europa.eu

 

[5] Confr. Acórdão de 18-03-2010 no processo C-440/08, disponível em http://curia.europa.eu.