DECISÃO ARBITRAL
DEMANDANTE: A...
DEMANDADA: DIREÇÃO-GERAL DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA,
I. RELATÓRIO
A. Identificação das partes e objeto do litígio
1. O Demandante, A... (doravante, “Demandante”), apresentou petição inicial nos termos do artigo 10.º do Novo Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Administrativa (adiante, abreviadamente, designado por “RACAAD”) contra a Demandada, Direção Geral – da Administração da Justiça, (doravante, “Demandada”), estando as partes suficientemente identificados nos autos, e pedindo o Demandante a anulação do procedimento administrativo e a condenação da Direção-Geral a proceder à contabilização das avaliações de serviço obtidas pelo Demandante nos anos em que desempenhou funções nas Forças Armadas, para efeitos de atribuição de posição remuneratória no âmbito do SIADAP.
2. Distribuído o processo, foi a Demandada citada para contestar, tendo, nesse seguimento, e através do seu requerimento de 13.07.2023 informado que, em 23.06.2023, procedeu à anulação do ato consubstanciado no ofício n.º..., de 15.03.2023, alegando ter expurgado os vícios que lhe estavam inerentes e, simultaneamente, notificado o Demandante para se pronunciar em sede de audiência de interessados.
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3. Nos termos do RACAAD, foi o signatário designado como árbitro para o processo, considerando-se o Tribunal Arbitral constituído, após aceitação do aqui signatário, em 17.07.2023.
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B. Despacho Inicial
4. Findo os articulados foi proferido Despacho Inicial, em 11.09.2023, pronunciando-se o Tribunal Arbitral sobre os pressupostos processuais, mantendo-se, no presente, todos os pressupostos de regularidade e validade da instância que presidiram à prolação daquele Despacho, nada obstando ao conhecimento do mérito.
5. Por via do mesmo Despacho foram as Partes notificadas, tendo presente o previsto nas disposições conjugadas dos artigos 269.º, n.º 1, al c), e 274.º, n.º 2, ambos do CPC, bem como os princípios de celeridade e flexibilidade processual, e da igualdade das partes e observância do contraditório [presentes nas als. c) e d) do artigo 5.º do RACAAD], para, no prazo de 10 (dez) dias, informaremos os autos se manifestam o seu acordo à suspensão da instância pelo prazo máximo de três meses, em ordem a que dentro desse período a entidade Demandada profira nova decisão final do procedimento em apreço.
6. Por requerimento de 20.09.2023, veio a Demandada informar que «concorda com a suspensão da instância pelo período de 3 (três) meses, nos termos do n.º 4 do artigo 272.º do Código do Processo Civil (CPC)»; já o Demandante, por requerimento de 25.09.2023, veio reportar que «se opõe ao pedido de suspensão da instância apresentado pela Demandanda».
7. Sendo que, por requerimento apresentado nos autos, apresentado em 12.12.2023, veio a Demandada juntar aos autos «a nova decisão proferida do procedimento em apreço».
8. Nessa sequência, resultou que a Demandada proferiu novo ato administrativo em substituição do ato impugnado, através do despacho proferido pela Senhora Subdiretora-Geral da Administração da Justiça em 30.11.2023, exarado sobre a Informação n.º INT-DGAJ/2023/...-DSRH/DRGRH, e que através do mesmo se procede a uma nova definição da situação jurídica, ou seja, que se regista a anulação do ato impugnado a que se sucedeu a prática de um novo ato que regula a situação jurídica do Demandante (ainda que com os mesmos efeitos), constatando-se verificada a hipótese de ampliação objetiva presente no artigo 64.º do CPTA.
9. Razão pela qual, por Despacho de 02.01.2024, determinou-se – tendo presente o princípio do contraditório, previsto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, ex vi artigo 1.º do CPTA, o princípio da igualdade das partes preceituado no artigo 6.º do CPTA, e o princípio da cooperação e boa-fé processual previsto no artigo 8.º do CPTA – a notificação do Demandante para, no prazo de 10 (dez) dias, informar os autos se pretende que o processo prossiga contra o novo ato prolatado pela Demandada, nos termos e para os efeitos do artigo 64.º do CPTA, sendo, nesse caso, aproveitada a prova produzida e dispondo o Demandante da faculdade de, dentro daquele prazo, oferecer novos meios de prova.
10. Notificado daquele Despacho, veio o Demandante comunicar aos autos que pretende que o processo prossiga contra o novo ato prolatado pela Demandada.
C. Saneamento
11. Findo os articulados, foi proferido Despacho Saneador, em 21.02.2024, pronunciando-se o Tribunal Arbitral sobre os pressupostos processuais, mantendo-se, no presente, todos os pressupostos de regularidade e validade da instância que presidiram à prolação daquele Despacho Saneador, nada obstando ao conhecimento do mérito.
12. Por via do mesmo Despacho foram as partes notificadas para se pronunciarem quanto ao mecanismo de adequação formal, simplificação e agilização processual aí proposto, designadamente quanto à dispensa de realização de audiência de prova e de qualquer outra prova que não documental, bem como quanto à dispensa de realização de audiência de julgamento e de alegações finais.
13. Em resposta, tanto a Demandada, em 22.02.2024, como o Demandante, em 28.02.2024, declararam nada terem a opor àquele mecanismo de adequação formal, simplificação e agilização processual.
II. Questões a decidir
14. Fixa-se o objeto do litígio nos presentes autos: o ato impugnado praticado pela Senhora Subdiretora-Geral da Administração da Justiça em 30.11.2023, exarado sobre a Informação n.º INT-DGAJ/2023/...-DSRH/DRGRH, versando sobre a pretensão do Demandante de que se proceda à contabilização das avaliações de serviço obtidas pelo mesmo nos anos em que desempenhou funções nas Forças Armadas, para efeitos de atribuição de posição remuneratória no âmbito do SIADAP.
III. Fundamentos de Facto
15. Analisados os articulados, é convicção deste Tribunal Arbitral que devem dar-se por assentes os seguintes factos, não havendo factos controvertidos e matéria por provar:
1) Em 3.03.2008, o Demandante ingressou como militar no Exército Português, na categoria de oficial em regime de contrato, perfazendo no dia 25.07.2014 os 6 anos deste regime, tempo máximo previsto na legislação, e passado à situação de disponibilidade;
2) Por via do procedimento concursal aberto por Aviso n.º 8316/2015, de 30 de julho, o Demandante, celebrou contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, com a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I.P. – Agrupamento de Centros de Saúde da ..., em ... (ARSLVT), com efeitos a 1.11.2016, na carreira e categoria de Assistente Técnico;
3) Por despacho do Subdiretor-Geral da Administração da Justiça, de 28.11.2017, exarado na Informação n.º .../2017-DSRH/DRGRH, foi autorizada a mobilidade intercarreiras do Demandante, pertencente ao mapa de pessoal da ARS de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I.P./Agrupamento de Centros de Saúde da..., em ..., para aquela Direção-Geral, com efeitos a 1.12.2017, na carreira e categoria de técnico superior, no 11.º nível remuneratório da TRU;
4) Por despacho do Subdiretor-Geral da Administração da Justiça, de 29.10.2019, foi determinada a consolidação definitiva da mobilidade intercarreiras, para a carreira e categoria de Técnico Superior, no mapa de pessoal desta Direção-Geral, com efeitos a 1.06.2018, ficando posicionado e a auferir pela 2.ª posição remuneratória e no 15.º nível remuneratório da TRU, a que corresponde a remuneração de € 1.201,48.
5) Em 13.11.2019, foi publicada em Diário da República a consolidação definitiva da mobilidade intercarreiras do Demandante para a carreira e categoria de técnico superior, com supra referidos efeitos a 1.06.2018;
6) Em 31.12.2020, foi publicada a Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro - Orçamento do Estado para 2021, que, no seu artigo 22.º, com a epígrafe "Contabilização da avaliação obtida pelos ex-militares das Forças Armadas após ingresso na Administração Pública" estatui o seguinte: "Após ingresso na Administração Pública, as avaliações de serviço obtidas pelos ex-militares nos anos em que desempenharam Junções nas Forças Armadas, são contabilizadas para efeitos de atribuição de posição remuneratória no âmbito do Sistema Integrado de Avaliação da Administração Pública (SIADAP), com as devidas adaptações";
7) Em 23.02.2021, o Demandante requereu à Exma. Senhora Diretora-Geral da Administração da Justiça, a contabilização, para efeitos de atribuição de posição remuneratória no âmbito do Sistema Integrado de Avaliação da Administração Pública (SIADAP), das avaliações de desempenho obtidas durante a prestação do serviço militar;
8) No seu requerimento de 23.02.2021, o Demandante anexou “Declaração de Retificação”, datada de 18.10.2016, emitida pelo Centro de Informação e Orientação para a Formação e o Emprego do Ministério da Defesa Nacional, a qual refere, em suma “Declara-se, para os efeitos previstos nos n.ºs 7 e 8 do artigo 30.° do Regulamento de Incentivos à Prestação de Serviço Militar (RI), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 320 A/2000, de 15 de dezembro, […], que A..., prestou serviço militar efetivo como Oficial em Regime de Contrato no Exército, com data de incorporação em 03 de março de 2008, tendo iniciado o vinculo contratual em 25 de julho de 2008 e passado à situação de disponibilidade em 25 de julho de 2014. Mais se declara que desde 06 de fevereiro de 2009 até à data de passagem à disponibilidade, desempenhou funções que se integram no conteúdo funcional da
carreira de Técnico Superior (Licenciatura em Geografia e Planeamento Regional).”;
9) Em 26.01.2023, a Direção-Geral da Administração e do Emprego Público emitiu a Orientação Técnica DGAEP n.º .../2023, para apoio aos órgãos e serviços integrados na administração direta e indireta do Estado relativa à contabilização da avaliação obtida pelos ex-militares das Forças Armadas que prestaram serviço no regime de contrato e de contrato especial, após ingresso na Administração Pública;
10) Por ofício n.º..., de 15.03.2023, remetido ao Demandante por comunicação eletrónica da mesma data, a Demandada comunicou ao mesmo que não reunia os requisitos para a aplicação do artigo 22.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, Lei do Orçamento de Estado para 2021;
11) Em 22.06.2023, a Demandada deu sem efeito o ofício n.º ..., de 15.03.2023, através da informação n.º INT – DGAJ/2023/..., de 22.06.2023, da DSRH/DARH;
12) Através da mesma informação n.º INT – DGAJ/2023/..., de 22.06.2023, da DSRH/DARH, a Demandada procedeu à reconstituição da carreira e categoria de assistente técnico, em que o ora Demandante ingressou por procedimento concursal na ARS de Lisboa e Vale do Tejo, I.P./Agrupamento de centros de Saúde da ..., em ..., com efeitos a 1.11.2016, designadamente, ao reconhecimento do direito a progredir da 1.ª posição/5.º nível para a 2.ª posição/7.º nível, da tabela remuneratória única, de acordo com o estabelecido no artigo 22.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro (LOE para 2021), sem repercussão remuneratória na atual carreira e categoria de técnico superior, pelo facto de ter iniciado uma mobilidade intercarreiras nesta Direção-Geral em 1.12.2017, passando a auferir pela 1.ª posição remuneratória/11.º nível, e, após ter consolidado a mobilidade em 1.06.2018, ter progredido para a 2.ª posição remuneratória/15.º nível da TRU, o que lhe conferiu montantes remuneratórios mais elevados daqueles a que teria direito em resultado da reconstituição operada;
13) Por despacho da Subdiretora-Geral da Administração da Justiça de 23.06.2023, exarado na Informação n.º INT-DGAJ/2023/...-DSRH/DARH, foi determinado a notificação do Demandante, para se pronunciar, querendo, no prazo de 10 dias úteis, nos termos dos artigos 121.º e 122.º do Código do Procedimento Administrativo, relativamente ao projeto de decisão constante na mesma, e, por se suscitarem dúvidas de interpretação quanto ao ponto 3 da Orientação Técnica n.º .../2023/DGAEP, que se diligenciasse por pedido de esclarecimento junto da SGMJ/DGAEP;
14) Notificado em 23.06.2023, pelo ofício n.º SAI-DGAJ/2023/..., da mesma data, o Demandante nada veio dizer;
15) Por despacho da Subdiretora-Geral da Administração da Justiça de 8.11.2023, exarado na Informação n.º INT-DGAJ/2023/...-DSRH/DARH, foi determinado a notificação do Demandante, para se pronunciar, querendo, no prazo de 10 dias úteis, nos termos dos artigos 121.º e 122.º do Código do Procedimento Administrativo, relativamente ao projeto de decisão constante da mesma;
16) Por comunicação eletrónica remetida em 10.11.2023, o Demandante foi notificado da referida Informação através do ofício n.º SAI-DGAJ/2023/...-DSRH/DARH, da mesma data;
17) Decorrido o prazo de pronúncia em sede de audiência dos interessados, o Demandante nada veio dizer;
18) Nessa sequência, através da Informação n.º INT-DGAJ/2023/...-DSRH/DRGRH, de 30.11.2023, foi realizada a seguinte proposta de decisão:
“Considerando o exposto na presente Informação, bem como o enquadramento legal e factual
constante da Informação n.º INT-DGAJ/2023...-DSRH/DARH, caso haja concordância com os fundamentos da presente Informação, propõe-se a V. Exa:
a) Que seja dado sem efeito o ofício n.º ...-DARH, de 15 de março de 2023, notificado a A... por comunicação eletrónica da mesma data;
b) O não reconhecimento do direito à contabilização das avaliações obtidas nos anos de 2009 a 2014, em que A... desempenhou funções nas Forças Armadas, para efeitos de atribuição de posição remuneratória no âmbito do Sistema Integrado de Avaliação da Administração Pública (SIADAP), previsto no artigo 22.º da Lei do Orçamento do Estado para 2021, por não existir correspondência entre os graus de complexidade funcional da carreira militar (oficial/grau 3) e da carreira de ingresso na Administração Pública (assistente técnico/grau 2), conforme linha interpretativa da Orientação Técnica n.º .../2023, de 26/01/2023, da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público e pronúncia da rede interministerial de trabalho colaborativo da mesma entidade”;
19) Por ofício de 1.12.2023, foi o Demandante notificado do despacho proferido pela Senhora Subdiretora-Geral da Administração da Justiça em 30.11.2023, exarado sobre a Informação n.º INT-DGAJ/2023/...-DSRH/DRGRH, cuja cópia se anexou, com o seguinte teor:
“Concordo.
30-11-2023
A Subdiretora-Geral
a) ....”.
16. A fixação da matéria de facto baseou-se nos documentos juntos pelas partes, bem como na aplicação dos princípios e regras em matéria de ónus de alegação e de prova.
17. Sendo que, a convicção e motivação do Tribunal Arbitral para a prova dos sobreditos factos, que se afiguram ser os pertinentes para a boa decisão da causa, resulta dos factos articulados pelas partes e da análise crítica da prova documental produzida, tendo sido ainda tomados em consideração os factos instrumentais para a compatibilização de toda a matéria de facto tida por adquirida. Neste conspecto, importa salientar que as partes juntaram documentos com os seus articulados que, na sua globalidade, foram submetidos ao pleno contraditório das partes, não tendo sofrido impugnação. Também se verifica que nos articulados das partes, embora a interpretação dos factos não seja coincidente, a subsunção jurídica efetuada radica na apreciação dos mesmos documentos. Assim, a controvérsia em análise assenta, essencialmente, na interpretação dos factos e das normas legais pertinentes e não tanto em torno de uma divergência, por ser inexistente, acerca dos factos (essenciais e instrumentais) documentalmente corporizados, já que as partes os aceitam.
IV. Fundamentos de Direito
18. O thema decidendi situa-se no espaço controvertido da interpretação e aplicação da norma constante do artigo 22.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, Lei do Orçamento de Estado para 2021 (LOE 2021), nomeadamente quanto à aplicação deste normativo à situação laboral concreta do Demandante, em concreto saber se opera a contabilização do tempo de exercício de funções do Demandante enquanto militar na sua atual carreira/categoria na Administração Pública (Avaliações Individuais de Mérito referentes aos anos 2009, 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014).
19. Conforme resultou do acima exposto quanto à tramitação do presente processo, na pendência do mesmo a Demandada procedeu à anulação administrativa do ato primitivamente impugnado (dando sem efeito o ofício n.º...-DARH, de 15 de março de 2023), ficando, assim, prejudicado o peticionado pelo Demandante quanto à preterição da audiência prévia do Demandante e, bem assim, da incompetência do autor do ato decisório.
20. Outrossim, a Demandada empreendeu uma nova definição da situação jurídica, tendo o presente processo impugnatório prosseguido, após anuência do Demandante, contra o novo ato com fundamento na reincidência nas mesmas ilegalidades.
21. Em face dos factos assentes, importa aplicar o Direito, passando pela apresentação das questões jurídicas em apreço e do seu respetivo enquadramento jurídico.
A) Do artigo 22.º da LOE 2021:
22. A análise a esta questão passa, necessariamente, pelo seu entendimento à luz do que se encontra previsto no artigo 22.º da LOE 2021, onde se prevê que seja contabilizada a avaliação obtida pelos(as) ex-militares das Forças Armadas após ingresso na Administração Pública para efeitos de atribuição de posição remuneratória no âmbito do Sistema Integrado de Gestão e Avaliação do Desempenho na Administração Pública (SIADAP), aprovado pela Lei n.º 66-B/2007, de 28 de dezembro, na sua atual redação, com as devidas adaptações.
23. De facto prevê aquele normativo, sob a epígrafe “Contabilização da avaliação obtida pelos ex-militares das Forças Armadas após ingresso na Administração Pública”, que “[a]pós ingresso na Administração Pública, as avaliações de serviço obtidas pelos ex-militares nos anos em que desempenharam funções nas Forças Armadas, são contabilizadas para efeitos de atribuição de posição remuneratória no âmbito do Sistema Integrado de Avaliação da Administração Pública (SIADAP), com as devidas adaptações”.
24. Colocadas dúvidas quanto à interpretação do artigo 22.º da LOE 2021 e se este seria um dos artigos daquela lei que, para ser exequível, carecia de regulamentação, a Exma. Senhora Provedora de Justiça enviou uma recomendação ao Governo – Recomendação n.º 1/A/2022 (Contabilização da avaliação obtida pelos ex-militares das Forças Armadas após ingresso na Administração) – para que assegurasse a efetiva contabilização da avaliação dos ex-militares das Forças Armadas ingressados na Administração Pública ao abrigo do “sistema de incentivos à prestação de serviço militar”, nomeadamente recomendando que “sejam definidas as orientações para garantir a efetiva, uniforme e coerente aplicação do direito à contabilização das avaliações de serviço a todos os ex-militares por ele abrangidos”1.
25. O que motivou a Resposta da Exma. Senhora Ministra da Defesa Nacional e da Ministra da Presidência à Recomendação n.º 1/A/2022 (Contabilização da avaliação obtida pelos ex-militares das Forças Armadas após ingresso na Administração), de 30.01.2023, onde se reconhecia que a norma do artigo 22.º da LOE 2023 era exequível por si mesma, podendo ser aplicada diretamente pelos Serviços Públicos, sem necessidade de regulamentação adicional que a complemente2.
26. Ademais, deu-se conta da publicação, em 26.01.2023, da Orientação Técnica DGAEP n.º 01/20233, por se afigurar “útil a emissão de uma linha interpretativa que auxilie os órgãos e serviços na aplicação de referida disposição legal”, da qual se passa a transcrever o seguinte excerto:
“1. Compete ao órgão ou serviço onde os(as) trabalhadores(as) se encontram a desempenhar funções, proceder à reconstituição das carreiras daqueles(as) que pretendam beneficiar da avaliação de serviço obtida durante a prestação de serviço militar, mediante requerimento do(a) próprio(a).
2. Para efeitos de alteração de posicionamento remuneratório, relevam as avaliações de serviço obtidas pelos(as) ex-militares, durante a prestação de serviço militar, a partir de 1 de janeiro de 2004.
3. A contabilização das avaliações de serviço processa-se na carreira ou categoria de ingresso na Administração Pública, sem prejuízo de eventuais repercussões na carreira e categoria atuais.
4. As avaliações de serviço obtidas pelos(as) ex-militares das Forças Armadas são convertidas em pontos, atento o disposto no n.º 1 do artigo 85.º da Lei SIADAP, nos termos do mapa anexo à presente orientação.
5. A possibilidade de conversão de pontos não é aplicável aos(às) ex-militares que tenham ingressado na Administração Pública em data anterior a 23 de janeiro de 2009, e beneficiado do incentivo previsto nos n.ºs 2 e 7 do artigo 30.º do Regulamento de Incentivos à Prestação do Serviço Militar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 320-A/2000, de 15 de dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 118/2004, de 21 de maio, e pelo Decreto-Lei n.º 320/2007 de 27 de setembro.
6. Quando da aplicação da norma resulte uma alteração de posicionamento remuneratório que se reporte aos anos em que se registaram proibições de valorizações remuneratórias (até 31.12.2017), deverá ser aplicado aos pontos em excesso o disposto no n.º 6 do artigo 18.º da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro (LOE 2018), para efeitos de futura alteração obrigatória de posicionamento remuneratório.
7. Para efeitos de equiparação das categorias das carreiras militares a carreiras ou categorias de grau 3, 2 ou 1 de complexidade funcional, a DGRDN emite declaração contendo as avaliações obtidas como militar, indicando qual o grau de complexidade funcional (1, 2 ou 3) a que as respetivas funções correspondem.
8. O artigo 22.º da Lei n.º 75-B/2020, produz efeitos a 1 de janeiro de 2021”.
B) Da contabilização das avaliações de serviço obtidas pelo Demandante nos anos em que desempenhou funções nas Forças Armadas:
27. Como vimos, não se mostra questão controvertida que o artigo 22.º da LOE 2023 se trata de uma norma exequível por si mesma, podendo ser aplicada diretamente pelos Serviços Públicos, sem necessidade de regulamentação adicional que a complemente. Ficando ultrapassados focos litigiosos como os expressos na Decisão Arbitral prolatada, em 21.11.2022, no Processo n.º 5/2022-A do CAAD4 (maxime, quanto ao que aí se decidiu em matéria de atraso da Administração Pública na emissão de condições/regras de implementação do vertido no artigo 22.º da LOE 2021).
28. Não obstante essa imediata exequibilidade da norma, no “presente momento histórico” – e como resultado da Recomendação da Exma. Sra. Provedora de Justiça – impôs-se, como forma de garantir a efetiva, uniforme e coerente aplicação do direito à contabilização das avaliações de serviço a todos os ex-militares por ele abrangidos, que fossem definidas orientações quanto a essa aplicação. Desde logo, como forma de assegurar o respeito do princípio da igualdade presente no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
29. Essa mesma procura de garantir uma efetiva, uniforme e coerente aplicação do direito à contabilização das avaliações de serviço a todos os ex-militares por ele abrangidos foi preconizada pela Orientação Técnica DGAEP n.º .../2023 (contrariamente ao entendimento vertido no artigo 20.º da P.I. do Demandante).
30. Na Orientação Técnica DGAEP n.º .../2023, no seu ponto 7, definiu-se que «[p]ara efeitos de equiparação das categorias das carreiras militares a carreiras ou categorias de grau 3, 2 ou 1 de complexidade funcional, a DGRDN emite declaração contendo as avaliações obtidas como militar, indicando qual o grau de complexidade funcional (1, 2 ou 3) a que as respetivas funções correspondem».
31. É nosso entendimento que, uma aplicação da norma, em concordância prática com os princípios da confiança, da segurança jurídica e da igualdade, demanda que se assegure a correspondência entre os graus de complexidade funcional da carreira militar e da carreira de ingresso na Administração Pública, só assim permitindo que as avaliações obtidas, através de declaração do respetivo ramo das Forças Armadas onde o ex-militar desempenhou funções, possam relevar na carreira/categoria de ingresso na Administração Pública.
32. Sem a existência desse “padrão comum” de equiparação das categorias das carreiras militares a carreiras ou categorias de grau 3, 2 ou 1 de complexidade funcional na carreira/categoria de ingresso na Administração Pública fica prejudicada uma aplicação efetiva, uniforme e coerente do artigo 22.º da LOE 2021 para todos os ex-militares por ele abrangidos – daí a razão da DGRDN emitir declaração contendo as avaliações obtidas como militar, indicando qual o grau de complexidade funcional (1, 2 ou 3).
33. Na verdade, o princípio constitucional do estado de direito, nos seus subprincípios de segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos supõe um mínimo de certeza, previsibilidade e estabilidade das normas jurídicas de forma a que as pessoas possam ver garantida a continuidade das relações jurídicas onde intervêm e calcular as consequências dos atos por elas praticados, confiando que as decisões que incidem sobre esses atos e relações tenham os efeitos estipulados nas normas que os regem.
34. Os citados princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança assumem-se como princípios classificadores do Estado de Direito Democrático, e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado.
35. Como resulta dos doutos ensinamentos de JJ Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e a Teoria da Constituição, Almedina, 2.a Edição, pp 250 e ss.: a segurança e a proteção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios atos. Sendo que, no âmbito da proteção da segurança jurídica relativamente a atos normativos, vigora o princípio da precisão ou determinabilidade das normas jurídicas. De acordo com o Autor acima citado, na mesma obra, pp 251, “A segurança jurídica postula o princípio da precisão ou determinabilidade dos actos normativos, ou seja, a conformação material e formal dos actos normativos em termos linguisticamente claros, compreensíveis e não contraditórios. (...) O princípio da determinabilidade das leis reconduz-se, sob o ponto de vista intrínseco, a duas ideias fundamentais. A primeira, é a da exigência de clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco capaz de alicerçar uma solução jurídica para o problema concreto. A segunda aponta para a exigência de densidade suficiente na regulamentação legal, pois um acto legislativo (ou um acto normativo em geral) que não contêm uma disciplina suficientemente concreta (=densa, determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de: (1) alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos; (2) constituir uma norma de actuação para a administração; (3) possibilitar, como norma de controlo, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos (Acs. 285/92, DR, 17-8-92, e 233/94, RD, II, 27-8-94)».
36. Ora, para que todos os ex-militares abrangidos pelo artigo 22.º da LOE 2021 possam, em situação de igualdade, beneficiar do que aí decorre em matéria de “sistema de incentivos à prestação de serviço militar”, nomeadamente para que haja uniformidade e coerência na aplicação do direito à contabilização das avaliações de serviço a todos os ex-militares por ele abrangidos, para que aquela norma possa oferecer uma medida jurídica capaz de: (1) alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos; (2) constituir uma norma de atuação para a administração; (3) possibilitar, como norma de controlo, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos, tem de haver um “padrão-comum” nessa contabilização, o que só é garantido pela definição de critérios de comparabilidade / equiparação entre as carreiras militares e as carreiras ou categorias de ingresso na Administração Pública dos ex-militares.
37. Tendo presente o enquadramento acima exposto, verifica-se que o Demandante ingressou na Administração Pública na carreira e categoria de assistente técnico [facto provado 2)], pelo que uma efetiva, uniforme e coerente aplicação do artigo 22.º da LOE 2021 exige que se faça a correspondência entre graus de complexidade, ou seja, que o Demandante tenha desempenhado, enquanto militar, funções de grau de complexidade 2.
38. Todavia, o Demandante desempenhou, enquanto militar, funções de grau de complexidade de grau 3 (tal como a carreira geral de técnico superior) [factos provados 1) e 8)].
39. Atente-se, no que tange aos graus de complexidade funcional, ao disposto no artigo 86.º, n.º 1, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (aprovada em anexo à Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, na sua redação em vigor, adiante LTFP):«[e]m função do nível habilitacional exigido, em regra, em cada carreira, estas classificam-se nos seguintes graus de complexidade funcional: a) Grau 1, quando se exija a titularidade de escolaridade obrigatória, ainda que acrescida de formação profissional adequada; b) Grau 2, quando se exija a titularidade do 12.º ano de escolaridade ou de curso que lhe seja equiparado; c) Grau 3, quando se exija a titularidade de licenciatura ou de grau académico superior a esta».
40. Sendo gerais as carreiras de: a) Técnico superior; b) Assistente técnico; e c) Assistente operacional, como decorre do artigo 88.º, n.º 1, da LTFP.
41. Em suma, para que as avaliações de mérito do Demandante na carreira militar das Forças Armadas pudessem ser contabilizadas para efeitos de atribuição de posição remuneratória no âmbito do Sistema Integrado de Avaliação da Administração Pública (SIADAP), estabelecido pela Lei n.º 66-B/2007, de 28 de dezembro, ele teria de ter desempenhado, enquanto militar, funções de grau de complexidade de grau 2, pois foi esse o grau de complexidade das funções com que ingressou na Administração Pública, ou seja as funções da carreira e categoria de assistente técnico
42. Sucede que, as avaliações de mérito do Demandante na carreira militar das Forças Armadas foram obtidas enquanto oficial militar, funções de grau de complexidade de grau 3, a que corresponde o grau de complexidade das funções da carreira de técnico superior na Administração Pública.
43. Ficando, assim, inviabilizada a possibilidade das avaliações de serviço obtidas pelo Demandante, enquanto ex-militar das Forças Armadas, ao abrigo da Portaria n.º 301/2016, de 30 de novembro, serem convertidas em pontos, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 85.º da Lei SIADAP. Id est¸ fica inviabilizada a possibilidade de “com as devidas adaptações”, referidas na parte final do artigo 22.º da LOE 2021, se proceder à contabilização para efeitos de atribuição de posição remuneratória no âmbito do SIADAP.
44. Assim, atento o quadro fáctico-jurídico acima retratado soçobra a pretensão do Demandante de que se proceda à contabilização das avaliações de serviço obtidas pelo Demandante nos anos em que desempenhou funções nas Forças Armadas, para efeitos de SIADAP, porquanto se mostra inviabilizada uma efetiva, uniforme e coerente aplicação do artigo 22.º da LOE 2021, por não haver correspondência entre os graus de complexidade das funções que o Demandante desempenhou enquanto militar e das funções em que o Demandante ingressou na Administração Pública.
V. Decisão
Tendo por fundamento as razões de facto e de direito acima aduzidas, julga-se o pedido totalmente improcedente, por não provado, porquanto, não se verifica a existência de fundamento legal que comine a prática à Demandada da contabilização das avaliações de serviço obtidas pelo Demandante nos anos em que desempenhou funções nas Forças Armadas, para efeitos de atribuição de posição remuneratória no âmbito do SIADAP.
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Valor do processo: Por ser esse o valor indicado pelo Demandante, sem oposição por parte da Demandada (mais se tratando de valor consentâneo com o preceituado nos artigos 31.º a 34.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), fixa-se o valor da ação em € 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo).
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Relativamente às custas processuais, resulta do disposto no artigo 29.º, n.º 5, do RACAAD, que nas arbitragens que tenham por objeto questões emergentes de relações jurídicas de emprego público não há lugar a fixação do critério de repartição de encargos processuais, sendo estes pagos por ambas as partes em função do valor fixado na tabela de encargos processuais.
Tendo presente o valor fixado à presente causa, e atendendo ao disposto na tabela I anexa ao referido Regulamento, fixo os encargos processuais devidos por cada um dos sujeitos processuais em €150,00 (cento e cinquenta euros), nesse montante se imputando os eventuais preparos ou adiantamentos que cada um deles haja já realizado na presente arbitragem.
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Notifiquem-se as partes e promova-se a publicitação da decisão arbitral, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do RACAAD.
CAAD, 09/03/2024
O Árbitro
Vasco Cavaleiro
1 Vide https://www.provedor-jus.pt/documentos/Recomenda%C3%A7%C3%A3o%201_A_2022.pdf.
2 Vide hhttps://www.provedor-jus.pt/documentos/Of%C3%ADcio_Presid%C3%AAncia_Carreira_Militares.pdf e a Decisão Arbitral prolatada, em 16.06.2023, no Processo nº 508/2022-A do CAAD, disponível em https://caad.org.pt/administrativo/decisoes/decisao.php?id=285.
3 Vide https://www.dgaep.gov.pt/upload/Legis/2023_ot_01_dgaep.pdf.
4Cfr.https://caad.org.pt/administrativo/decisoes/decisao.php?s_materia=1&s_processo=&s_data_ini=&s_data_fim=&s_resumo=&s_artigos=&s_texto=SIADAP&id=264.