Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 706/2022-T
Data da decisão: 2023-07-26  IRC  
Valor do pedido: € 465.564,85
Tema: IRC – benefício fiscal do RFAI – investimento elegível – transformação de produtos agrícolas.
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SUMÁRIO:

  1. Não dependendo a aplicação do RFAI ao caso concreto de qualquer das condições referidas na alínea c) do n.º 3 do seu artigo 1.º, do RGIC, tem de se concluir que tal aplicação não é afastada por este instrumento do Direito da União Europeia.
  2. O ponto 10 das OAR contém a remissão do regime de apoio à transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado para as “regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações outro diploma”.
  3. Não só as “Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020”, por regularem um setor específico constituem lex specialis relativamente às OAR para 2014-2015, como para elas remetem explicitamente
  4. A atividade de produção de vinhos comuns e licorosos prosseguida pela Requerente e no âmbito da qual foram efetuados os investimentos tendentes ao aumento da sua capacidade produtora, não se encontra excluída do âmbito de aplicação setorial das OAR 2014-2020.
  5. No pressuposto de que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, não resta outra conclusão senão a de que o artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, é ilegal, por desrespeito do grau hierárquico entre atos legislativos e atos regulamentares, ao restringir o âmbito setorial de aplicação do RFAI.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Carla Castelo Trindade (árbitro presidente), Armando Oliveira e Mariana Vargas (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 3 de fevereiro de 2023, acordam no seguinte:

 

 

I – RELATÓRIO

 

A...– SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS, S.A., com o número de identificação fiscal ... e sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Vila Nova de Gaia, Porto (adiante designada por Requerente), veio, em 23 de novembro de 2022, apresentar pedido de constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do disposto nos artigos 95.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e d), da Lei Geral Tributária (LGT), 99.º e 131.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), no qual é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante Requerida ou AT), não tendo usado da faculdade de proceder à nomeação de árbitro.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 24 de novembro de 2022 e automaticamente notificado à AT e, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo o Senhor Professor Doutor Nuno Cunha Rodrigues (Presidente) e os árbitros vogais acima identificados, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Nos termos do despacho do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, foi determinada a substituição do árbitro presidente designado nos autos pela Senhora Professora Doutora Carla Castelo Trindade, que aceitou a nomeação, sem oposição das partes.

 

 

  1. Objeto do pedido:

O pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente tem por objeto imediato a apreciação da (i)legalidade das decisões de indeferimento das reclamações graciosas deduzidas contra as autoliquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) dos exercícios de 2018 e de 2019 e, por objeto mediato, a declaração de ilegalidade e consequente anulação parcial das mesmas autoliquidações, no montante global de € 465 564,85 (de € 262 490,02, referente a 2018 e de € 203 074,83, referente a 2019).

 

A Requerente peticiona ainda a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT, a partir da data da notificação dos atos decisórios das reclamações graciosas, e, bem assim, nas custas do processo arbitral, tudo com as demais consequências legais.

 

 

B.      Síntese da posição das partes

a.      Da Requerente

A Requerente fundamenta o pedido nos seguintes termos:

  1. A Requerente é uma sociedade anónima de Direito português, com sede e direção efetiva em território nacional, que exerce, a título principal, a atividade de gestão de participações sociais noutras sociedades, sendo a sociedade dominante do consolidado fiscal do grupo de sociedades do qual faz parte (doravante “GRUPO”), ao qual é aplicável o Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (“RETGS”).
  2. Não obstante o zelo empregue no cumprimento das suas obrigações, no âmbito de revisão interna de procedimentos, a Requerente concluiu que, aquando da entrega das declarações Modelo 22 de IRC, referentes aos exercícios de 2018 e 2019, por mero lapso, não foram considerados no preenchimento daquelas declarações os montantes respeitantes ao crédito fiscal apurado a título de Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (“RFAI”).
  3. Pretendendo a Requerente retificar essa situação, apresentou, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 131.º do CPPT, reclamações graciosas contra os referidos atos de autoliquidação de IRC dos exercícios de 2018 e 2019.
  4. As reclamações graciosas foram objeto de decisões de indeferimento, com fundamento no “incumprimento do requisito legal de elegibilidade da atividade”.
  5. A sociedade dominada que efetuou investimentos passíveis de beneficiar do RFAI é uma sociedade anónima, com sede e direção efetiva em território nacional, que exerce, a título principal, a atividade a que corresponde o CAE 11021 (“produção de vinhos comuns e licorosos”).
  6. Por referência aos exercícios de 2018 e 2019, aquela sociedade realizou investimentos tendentes ao aumento da capacidade de estabelecimento já existente e, bem assim, de estabelecimento novo, considerados elegíveis para efeitos de RFAI pelo que, por referência a esses exercícios, a Requerente tem direito a deduzir à coleta, a título de RFAI, o montante total de € 465 564,85.
  7. A Requerente rejeita veementemente o entendimento preconizado pela AT nas decisões de indeferimento das reclamações graciosas, por o mesmo colidir com o CFI, a Lei Fundamental e com uma correta interpretação e aplicação do Direito da União Europeia, sustentando, em suma, o seguinte:
    1. O RFAI – enquanto auxílio de Estado com finalidade regional – encontra-se regulado no CFI, aplicável aos períodos de tributação iniciados em ou após 1 de janeiro de 2014, bem como na Portaria n.º 297/2015, de 21 de setembro (que regulamenta o RFAI) e na Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro (que procede à definição dos códigos CAE dos projetos de investimento considerados elegíveis para efeitos dos benefícios fiscais previstos no CFI).
    2. O artigo 22.º, n. º 1, do CFI dispõe: “O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR e do RGIC”.
    3. (…) “o artigo 2.º, n.ºs 2 e 3, do CFI, preceitua: “2 - Os projetos de investimento referidos no número anterior devem ter o seu objeto compreendido, nomeadamente, nas seguintes atividades económicas, respeitando o âmbito setorial de aplicação das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (OAR) e do RGIC: a) Indústria extrativa e indústria transformadora; (…) 3 - Por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia são definidos os códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades referidas no número anterior”.
    4. Em execução do n.º 3 do artigo 22.º do CFI, a Portaria 282/2014, de 30.12, dispõe no seu artigo 1.º, sob a epígrafe “Enquadramento comunitário”, que, em conformidade com as OAR 2014-2020 e com o RGIC: “(…) não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas dos setores siderúrgico, do carvão, da pesca e da aquicultura, da produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, da silvicultura, da construção naval, das fibras sintéticas, dos transportes e das infraestruturas conexas e da produção, distribuição e infraestruturas energéticas”,
    5. Por sua vez, o artigo 2.º da mesma Portaria, sob a epígrafe “Âmbito setorial”, estipula: “Sem prejuízo das restrições previstas no artigo anterior, as atividades económicas previstas no n.º 2 do artº 2.º do Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31.10, correspondem aos seguintes códigos da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3 (CAERev.3), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14.11: (…) b) Indústrias transformadoras - divisões 10 a 33”.
    6. Do regime exposto resulta serem identificados no artº 2.º, n.º 2 do CFI, por remissão do artº 22.º, n.º 1, do CFI, os setores de atividade elegíveis para efeitos RFAI, incumbindo aos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia, mediante portaria, elencar os códigos CAE correspondentes, estando, porém, tais órgãos impedidos de indicar códigos CAE relativos a atividades excluídas do âmbito de aplicação das OAR 2014-2020 e do RGIC.
    7. Dos normativos suprarreferidos decorre também ser o setor onde se enquadra a sociedade (CAE 11021, correspondente à “produção de vinhos comuns e licorosos”) elegível para efeitos do incentivo fiscal em apreço enquanto indústria transformadora (cfr. artigo 2.º, n.º 2, alínea a), do CFI, ex-vi artigo 22.º, n.º 1, do mesmo diploma).
    8. (…) interessa começar por chamar à colação o RGIC, o qual declara as categorias de auxílio que podem ser consideradas compatíveis com o mercado interno – em especial, o seu artigo 1.º, que define o respetivo âmbito de aplicação.
    9. (…) releva sobretudo o que dispõe o artigo 1.º, n.º 3, alínea c), nos termos do qual: “O presente regulamento não é aplicável aos seguintes auxílios: (…) c) Auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas nos seguintes casos: (i) sempre que o montante dos auxílios for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados em empresas no mercado pelas empresas em causa; (ii) sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários”.
    10. Ora, no caso em apreço, não se verificando qualquer de tais situações, tem necessariamente de se concluir que a aplicação do benefício fiscal atinente ao RFAI não é afastada pelo RGIC (…).
    11. (…) cumpre referir que o artigo 13.º, alínea b), do RGIC, que define o âmbito de aplicação dos auxílios com finalidade regional, confirma a sua aplicação à atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas, ao excluir do seu âmbito de aplicação os “auxílios com finalidade regional sob a forma de regimes orientados para um número limitado de setores específicos de atividade económica”.
    12. (…) esclarece igualmente o referido normativo não ser como tal considerada “a transformação de produtos agrícolas”: “A presente secção não é aplicável aos seguintes auxílios: (...) b) Auxílios com finalidade regional sob a forma de regimes orientados para um número limitado de setores específicos de atividade económica; os regimes destinados a (…) comercialização e transformação de produtos agrícolas não são considerados orientados para setores específicos da atividade económica”.
    13. (…) a atividade da Requerente inclui-se no âmbito de aplicação do RGIC, pelo que a exceção de aplicação do RFAI às atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação do RGIC, prevista na parte final do artigo 22.º, n.º 1, do CFI, não afasta a aplicação do benefício fiscal atinente ao RFAI àquela atividade.
    14. (…) a atividade exercida pela Requerente também não se encontra excluída do âmbito setorial de aplicação das OAR 2014-2020.
    15. O parágrafo 10 das OAR 2014-2020 mencionado pela AT nas decisões de indeferimento das reclamações graciosas, relativo ao âmbito de aplicação dos auxílios com finalidade regional, estabelece o seguinte: “A Comissão aplicará os princípios estabelecidos nas presentes orientações aos auxílios com finalidade regional em todos os setores de atividade económica (9), com exceção da pesca e da aquicultura (10), da agricultura (11) e dos transportes (12), que estão sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações. A Comissão aplicará estas orientações à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas. As presentes orientações aplicam-se a medidas de auxílio em apoio de atividades fora do âmbito do artigo 42.º do Tratado, mas abrangidas pelo regulamento relativo ao desenvolvimento rural, e cofinanciadas pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural ou concedidas como um financiamento nacional em suplemento dessas medidas cofinanciadas, salvo previsão em contrário das regras setoriais”.
    16. Na nota de rodapé (11), relativa à agricultura, refere-se o seguinte: “Os auxílios estatais à (…) transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado (…) estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola”.
    17. As Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 204, de 1.07.2014, constituem as orientações específicas relativas a estes setores de atividade.
    18. O parágrafo 33 de tais Orientações refere: “Em virtude das especificidades do setor, não se aplicam aos auxílios à produção de produtos primários as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020 (27). Aplicam-se, no entanto, à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas presentes orientações”.
    19. (…) de acordo com parágrafo 168 das mesmas Orientações: “Os Estados-Membros podem conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio: (a) Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 17.06.2014, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado; (b) Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014- 2020; (c) As condições estabelecidas na presente secção”.
    20. (…) à luz do parágrafo 10 (e da respetiva nota de rodapé 11) das OAR 2014-2020 e dos parágrafos 33 e 168 das Orientações para os Auxílios Estatais no Setor Agrícola, conclui-se que a atividade da Requerente não se encontra excluída do âmbito de aplicação setorial das OAR 2014-2020, sendo, pelo contrário, abrangida por este instrumento.
    21. (…) o sentido útil do parágrafo 10 das OAR 2014-2020, no segmento em que se refere à “transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas”, é precisamente o de estender a essa atividade os princípios estabelecidos nas orientações aos auxílios com finalidade regional.
    22. (…) não é possível deduzir do parágrafo 10 da OAR 2014-2020, naquele específico segmento, um princípio-regra de sentido oposto para os casos por ele não abrangidos, pela linear razão de que as orientações são, por exemplo, igualmente aplicáveis à transformação de animais, sendo possível articular essa disposição das OAR 2014-2020 com a do artigo 2.º, alínea 10), do RGIC.
    23. Perante o exposto, quer as decisões de indeferimento das reclamações graciosas quer as autoliquidações de IRC dos exercícios de 2018 e 2019 afiguram-se desconformes ao regime ínsito no artigo 22.º, n.º 1, in fine, do CFI, padecendo por isso de ilegalidade, geradora de anulabilidade nos termos do artigo 163.º do CPA, (…)
    24. (…) constitui firme convicção da Requerente não poder a concessão do incentivo em referência estar dependente de diploma de natureza regulamentar (Portaria n.º 282/2014, de 30.12), deficitário face ao regime cuja regulamentação o legislador prima facie visou.
    25. Na situação sub judice, verifica-se ter o Governo exorbitado, aquando do exercício das suas funções administrativas previstas no artigo 199.º, alínea c), da CRP, o seu âmbito de atuação, ao limitar a concessão de benefícios fiscais aos projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas, entre outras, de transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no Anexo I do TFUE.
    26. A Portaria n.º 282/2014, de 30.12, ao excluir do seu campo de aplicação as atividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas, entre outras, redunda numa inadmissível derrogação do regime instituído pelo CFI, designadamente pelo seu artigo 2.º, n.º 2, restringindo, por via regulamentar, as atividades elegíveis para efeitos de concessão do benefício fiscal previsto nos artigos 22.º a 26.º do CFI.
    27. (…) sendo a Portaria n.º 282/2014, de 30.12, um verdadeiro regulamento administrativo, as normas dela constantes assumem de modo inequívoco natureza regulamentar.
    28. (…) na situação em presença, e em face dos parâmetros normativos referenciados, a Portaria n.º 282/2014, de 30.12, não pode inovar – seja restringindo, seja ampliando – o âmbito de aplicação do artigo 2.º, n.º 2, do CFI.
    29. (…) a Portaria n.º 282/2014, de 30.12, tem necessariamente como critério parametrizador, como fundamento e limite, o regime ínsito no artigo 2.º, n.º 2, CFI, não podendo o Governo, nas suas vestes de Administração, fazer “tábua rasa” deste normativo, sob pena de inconstitucionalidade por preterição dos artigos 112.º, n.º 5, 165.º, n.º 1, alínea i) e 103.º, n.º 2, CRP.
    30. Nestes termos, a Portaria n.º 282/2014, enquanto regulamento administrativo que fixa regras (derrogatórias) relativas a benefícios fiscais – padece de inconstitucionalidade por violação dos artigos 199.º, alínea c), 103.º, n.º 2, 165.º, n.º 1, alínea i), e 112.º, n.º 5, da CRP –, inquinando os atos tributários e decisórios objeto dos presentes autos de ilegalidade geradora de anulabilidade, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do CPA, o que se invoca perante esse Douto Tribunal Arbitral para os devidos efeitos legais.

 

 

b. Da Requerida

  Notificada por despacho arbitral de 3 de fevereiro de 2023, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a Autoridade Tributária e Aduaneira remeteu aos autos o processo administrativo e apresentou Resposta, na qual veio defender a legalidade e a manutenção dos atos de indeferimento das reclamações graciosas, bem como dos atos de autoliquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral, com os seguintes fundamentos:

  1. Como ponto prévio, sustenta a AT:
    1. não ter validado o preenchimento dos demais requisitos cumulativos de que depende a concessão do benefício fiscal do RFAI, designadamente i) a elegibilidade das despesas de investimento – em razão da sua qualificação como “aplicações relevantes” e integração no conceito de “investimento inicial” – ii) a criação de postos de trabalho e, ainda, iii) os limites de intensidade do benefício, que, conforme resulta do das decisões de indeferimento [das reclamações graciosas apresentadas pela Requerente].
    2. que a análise levada a cabo [naqueles atos decisórios] centrou-se unicamente no requisito atinente ao setor de atividade, inexistindo qualquer referência à verificação dos restantes requisitos e condições, que não foram examinados, por se ter concluído não estar cumprido o primeiro requisito de acesso ao benefício fiscal atinente à atividade económica desenvolvida pelo sujeito passivo.
    3. consequentemente, a questão a decidir no presente processo consiste tão somente em saber se a atividade desenvolvida pela Requerente se enquadra ou não nos setores de atividade elegíveis para a concessão do benefício fiscal RFAI, à luz da interpretação dos artigos 2.º e 22.º do Código Fiscal ao Investimento (CFI) e demais legislação aplicável e das exclusões previstas no RGIC e nas OAR.
    4. estando a verificação dos demais requisitos dentro daquilo que são as atribuições e deveres da Requerida, logo esta não poderá ser condenada no restante do pedido da Requerente, cuja apreciação se encontra dependente da realização de valorações próprias do exercício da função administrativa e tributária.
    5. (…) não existindo elementos para se decidir (…) da validação dos demais requisitos de que depende a aplicação do benefício fiscal RFAI (…)  tais requisitos devem ser verificados e reconhecidos pela Requerida, em sede de execução de julgado, meio processual adequado para os definir, quando não há elementos para esse efeito no processo declarativo (artigo 609.º, n.º 2, do CPC).
  2. Na defesa por impugnação, refere a Requerida:
    1. (…) as atividades desenvolvidas pela Requerente estão contempladas quer no CFI, artigo 2.º, n.º 2, alínea a) «indústria transformadora» quer no artigo 2.º, alínea b) da Portaria n.º 282/2014, o seu afastamento do âmbito de aplicação do RFAI, é determinado pelo disposto no proémio deste artigo, que começa com a expressão “Sem prejuízo das restrições previstas no artigo anterior …”.
    2. (…) foi no artigo 1.º da referida Portaria que o legislador, por força da subordinação dos benefícios fiscais (de natureza contratual e do RFAI) ao quadro normativo europeu constituído pelo RGIC e pelas OAR – afirmada no artigo 1.º, n.º 2, artigo 2.º, n.º 2 e artigo 22.º, n.º 1 do CFI – explicitou os setores de atividades económicas excluídos do campo de aplicação de tais benefícios.
    3. (…) tanto nas normas do CFI (artigo 2.º, n.º 2 e artigo 22.º, n.º1) como no artigo 1.º da Portaria, apenas é feita referência às Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020 (OAR), não havendo qualquer menção às Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos sectores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020 (J.O. C204, de 01/07/2014) a cujas regras se encontram sujeitos os auxílios estatais à (…) transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado (cfr. Parágrafo 10, nota (11) das OAR).
    4. (…) as atividades económicas associadas aos investimentos realizados pela Requerente integram o conceito “transformação de produtos agrícolas em que o produto final continua a ser um produto agrícola”, em conformidade com a lista constante do Anexo I do Tratado (…)
    5. (…) ao contrário do que defende a Requerente, a Portaria n.º 282/2014 nada introduziu de inovador, contendo-se nos limites de um regulamento de execução, efetivação e aplicação dos princípios e regras contidos nas OAR, no RGIC e nos artigos 107.º a 109.º do TFUE e demais atos legislativos relevantes do direito europeu.
    6. (…) a Portaria n.º 282/2014 não invade o campo de incidência do benefício fiscal do RFAI, porque as normas habilitantes – os n.ºs 2 e 3 do artigo 2.º e n.º 1 do artigo 22.º do CFI – são normas de aplicação condicionada, criadas por decreto-lei que executa uma autorização legislativa que não especifica os setores de atividade elegíveis, nem traça diretrizes claras sobre a delimitação dos setores de atividade a beneficiar tendo em vista os objetivos definidos, subordinando-os apenas à legislação europeia relevante em matéria de auxílios de Estado (o RGCI e as OAR).
    7. (…) sobre a alegada violação do artigo 112.º, n.º 5, da Constituição, que proíbe qualquer lei de “conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 496/2020, sustenta que “O artigo 112.º, n.º 5 da Constituição constitui uma norma de ação, dirigida exclusivamente ao legislador, não à Administração. Consequentemente, a Portaria n.º 282/2014 jamais poderia violar tal preceito.”
    8. (…) os auxílios estatais às atividades exercidas pela Requerente não estão excluídos do âmbito de aplicação do RGIC, ponto sobre o qual não há divergência de entendimento.
    9. O parágrafo 10 das OAR exclui do seu campo de aplicação, entre outros, os auxílios ao setor da agricultura, com a justificação de que “estão sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações”, explicitando em nota de rodapé (11) que os auxílios à agricultura cobrem “Os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola”.
    10. E, de facto, as Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020 preveem, no parágrafo 20, que “As presentes orientações aplicam-se aos auxílios estatais à produção agrícola primária, à transformação dos produtos agrícolas que resultem num produto agrícola e à comercialização de produtos agrícolas”.
    11. Ora, os pontos de clivagem situam-se justamente na interpretação dos parágrafos 33, da Secção 2.3 (…) e (168), da Parte 2, Capítulo 1 (…).
    12. A leitura do parágrafo (33)12 que a Requerente perfilha é parcial porque alheia-se da parte final da segunda frase que indica que as OAR aplicam-se aos auxílios estatais à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas presentes orientações.
    13. O que vale por dizer que a aplicação das OAR está subordinada às regras estabelecidas nas Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020.
    14. No que concerne aos auxílios aos investimentos, o parágrafo 168 (Parte II, Capítulo I, Subsecção 1.1.1.4) das mesmas Orientações, prevê que: “(168) Os Estados-Membros podem conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio: (a) Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado; (b) Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020; (c) As condições estabelecidas na presente secção.”
    15. Donde resulta que a legislação nacional sobre os auxílios estatais a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas deve fazer referência ao quadro normativo europeu aplicável e, como já foi dito, o CFI não menciona as Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020.
    16. (…) no domínio dos auxílios estatais, na modalidade de benefícios fiscais aos investimentos na transformação e comercialização de produtos agrícolas e, em concreto o benefício fiscal do RFAI, tanto no CFI como na Portaria n.º 282/2014, apenas se subordinam ao RGIC e às OAR 2014-2020 sendo que, como tem sido afirmado, estas Orientações explicitam – no parágrafo 10, nota de rodapé (11) – que “Os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola.”.
    17. (…) no âmbito da liberdade de conformação do legislador no domínio da definição dos pressupostos do benefício fiscal do RFAI, acolheram, por inteiro, as orientações que emanam das OAR, ao estabelecer no artigo 22.º, n.º 1 do CFI e artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, que, em conformidade com as OAR e com o RGIC, são inelegíveis “(...) para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas (...), da produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, (...)”.
    18. (…) é infundada a alegação da Requerente de que o referido parágrafo (168) permite considerar tacitamente abrangidos pelas OAR os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no Anexo I do TFUE.
    19. Por conseguinte, não pode concluir-se que a atividade económica desenvolvida pela Requerente tenha sido incorretamente considerada como atividade excluída do âmbito do RFAI.

 

Por requerimento de 14 de abril de 2023 e no exercício do contraditório, veio a Requerente responder à questão prévia colocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, defendendo que este Tribunal Arbitral é competente para aferir da ilegalidade assacada aos atos de autoliquidação impugnados e, consequentemente, para apreciar da existência do direito à dedução do benefício fiscal em causa, por considerar que o nascimento do direito do seu direito ao benefício fiscal em causa não integra o âmbito de um poder discricionário da administração.

 

Pelo despacho Arbitral de 26 de junho de 2023 e não havendo factos controvertidos, foi decido dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, facultando-se às partes a produção de alegações escritas por prazo simultâneo de 15 dias, prazo no qual a Requerente deveria proceder ao depósito da taxa arbitral. Mais se notificaram as partes de que a decisão final seria proferida até ao dia 3 de agosto de 2023.

 

Ambas as partes produziram alegações escritas, nas quais reiteraram as respetivas posições iniciais.

 

 

II. SANEAMENTO

1.  O tribunal arbitral singular é competente e foi regularmente constituído em 28 de março de 2022, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro;

2.  As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, do RJAT, e do artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março;

3.  O processo não padece de vícios que o invalidem;

4. Estão preenchidos os pressupostos da cumulação de pedidos previstos no artigo 3.º do RJAT;

5. A questão prévia colocada pela Requerida na sua Resposta, será apreciada pelo Tribunal Arbitral em sede de fundamentação;

6. Não foram invocadas exceções de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

 

 

III.    FUNDAMENTAÇÃO

III.1 MATÉRIA DE FACTO

Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral (PPA) e do processo administrativo (PA), fixa-se como segue:

 

  1. Factos provados:
  1. A Requerente é uma sociedade comercial que exerce, a título principal, uma atividade comercial que tem por objeto a gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indireta de exercício de atividade económica.
  2. A Requerente dispõe de contabilidade organizada, estando enquadrada no regime geral de tributação em sede de IRC e a sua matéria coletável é determinada por avaliação direta.
  3. A Requerente tem a sua situação tributária e contributiva regularizada, não sendo devedora de quaisquer dívidas à Autoridade Tributária ou à Segurança Social.
  4. A Requerente não é uma empresa “em dificuldade nos termos da comunicação da Comissão – Orientações relativas aos auxílios estatais de emergência e à restruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldade, publicada no Jornal da União Europeia n.º C 249, de 31 de julho de 2014”.
  5. A Requerente é a sociedade dominante do consolidado fiscal do grupo de sociedades do qual faz parte (“GRUPO B...”), ao qual é aplicável o Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (“RETGS”).
  6. Para efeitos do RETGS, do GRUPO fazem parte integrante, para além da Requerente (sociedade dominante), as sociedades dominadas C..., S.A., com o NIPC ... e D..., S.A., com o NIPC... .
  7. A C... é uma sociedade comercial que tem como atividade principal a produção de vinhos comuns e licorosos, a produção de vinhos espumantes e espumosos, e o comércio por grosso de bebidas alcoólicas, a que corresponde o CAE 11021 (“produção de vinhos comuns e licorosos”).
  8. A C... dispõe de contabilidade organizada, estando enquadrada no regime geral de tributação em sede de IRC e a sua matéria coletável é determinada por avaliação direta.
  9. A C... tem a sua situação tributária e contributiva regularizada, não sendo devedora de quaisquer dívidas à Autoridade Tributária ou à Segurança Social.
  10. A C... não é uma empresa “em dificuldade nos termos da comunicação da Comissão – Orientações relativas aos auxílios estatais de emergência e à restruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldade, publicada no Jornal da União Europeia n.º C 249, de 31 de julho de 2014”.
  11. Por referência aos exercícios de 2018 e 2019, o GRUPO B... delineou uma estratégia de crescimento que requeria, quanto à C..., a elaboração e execução de planos de investimento, tendo em vista o aumento da sua capacidade de produção e, dessa forma, fazer face à evolução do mercado e dar resposta à crescente procura verificada e esperada.
  12. Nos exercícios aqui em causa (2018 e 2019), a C... realizou investimentos tendentes ao aumento da capacidade de estabelecimento já existente e, bem assim, de estabelecimento novo, considerados elegíveis para efeitos de RFAI, no âmbito de três projetos complementares entre si:
    1. Projeto ..., focado no aumento da capacidade instalada de produção de vinho da marca ...;
    2. Projeto ..., focado no aumento da capacidade de armazenamento da adega sita em ...; e
    3. Projeto ..., focado no aumento da capacidade produtiva e armazenamento, por um lado, e a criação de uma base operacional, por outro, através da aquisição e equipagem da Quinta ..., sita em ... .
  13. Os investimentos realizados pela Requerente situam-se geograficamente nas regiões Norte (Projeto ...– Vila Nova de Gaia), Centro (Projeto...–...) e Sul (Projeto...), tendo permanecido nestas regiões (e na esfera da Requerente) desde 2018 (e 2019, quanto à ...).
  14. O Projeto ... visou dar resposta ao aumento da procura e ao aprofundamento da política de expansão e desenvolvimento do mercado internacional, com o aumento significativo da produção de caixas de vinho da marca ... .
  15. No ano de 2017, a C... estava já no limite da sua capacidade de produção, tendo produzido 1 396 872 caixas, de 9 litros, de vinho ... .
  16. Em virtude dos investimentos realizados nos anos de 2018 e 2019, foi possível aumentar de modo significativo a produção da C..., que produziu 1 472 139 (em 2018), 1 522 664 (em 2019), 1 611 895 (em 2020) e 1 893 865 (em 2021) caixas de 9 litros de vinho ... .
  17. No âmbito do projeto “...”, a C... celebrou contratos de trabalho sem termo, para as funções de auxiliar e profissional de armazém, com os colaboradores n.ºs ... e ..., que ainda se mantêm em funções.
  18. Os investimentos realizados no projeto “...”, no exercício de 2018, ascenderam ao valor total de € 1 570 665,75.
  19. Do valor referido na alínea anterior, a Requerente apenas considerou como investimento elegível para efeitos de RFAI o montante de € 869 467,37.
  20. No exercício de 2019, a Requerente considerou como investimento elegível para efeitos de RFAI o montante de € 352 573,61.
  21. O Projeto ... teve em vista o aumento da capacidade de armazenamento, para o que a C... procedeu à aquisição de duas novas torres de inox, com capacidade de armazenagem de um milhão de litros cada.
  22. Os investimentos realizados no projeto “...” ascenderam ao valor total de € 625 718,15, no exercício de 2018.
  23. Do valor mencionado na alínea precedente, a Requerente apenas considerou como investimento elegível para efeitos de RFAI o montante de € 180 492,71.
  24. A Requerente considerou como investimento elegível para efeitos de RFAI, no exercício de 2019 e no âmbito do projeto “...”, o montante de € 311 193,59.
  25. O aumento da capacidade produtiva da C... implicou a criação de postos de trabalho por tempo indeterminado para os colaboradores n.ºs ... e..., afetos ao projeto da ..., os quais ainda se mantêm em funções.
  26. A  C... procedeu à aquisição da ..., constituída por 75 hectares de vinha e 50 hectares de terreno de floresta (com potencial de plantação), adega com capacidade de vinificação de 0,8 milhões de litros e de armazenagem de 2 milhões de litros.
  27. O aumento da capacidade produtiva da C... proporcionou a criação de um posto de trabalho por tempo indeterminado, com a contratação do colaborador n.º..., afeto ao projeto da Quinta ... e que ainda se mantém em funções.
  28. No exercício de 2018, os investimentos realizados pela C... ascenderam ao montante total de € 1 049 960,08.
  29. Por referência ao exercício de 2019, os investimentos realizados pela C..., ao abrigo dos três projetos, ascenderam a €1 035 97,54.
  30. Relativamente ao exercício de 2018 a C... não inscreveu, a título de dotação do período, qualquer valor no campo 714, do quadro 074, do Anexo D da sua declaração individual (declaração Modelo 22 de IRC, identificada com o n.º..., e substituída pela declaração Modelo 22 de IRC identificada com o n.º...).
  31. Quanto ao exercício de 2019, a C... não incluiu qualquer montante a título de RFAI na sua declaração individual (declaração Modelo 22 de IRC, identificada com o n.º..., e substituída pela declaração Modelo 22 de IRC identificada com o n.º...).
  32. A Requerente não inscreveu qualquer montante, a título de RFAI, no respetivo campo do Anexo D, aquando da entrega das declarações Modelo 22 de IRC do Grupo B..., do exercício de 2018 (declaração Modelo 22 identificada com o n.º ... e declaração Modelo 22 de substituição identificada com o n.º...).
  33. A Requerente não inscreveu qualquer montante, a título de RFAI, no respetivo campo do Anexo D, aquando da entrega das declarações Modelo 22 de IRC do Grupo B..., do exercício de 2019 (declaração Modelo 22 identificada com o n.º ... e declaração Modelo 22 de substituição identificada com o n.º...).
  34. Na declaração Modelo 22 do Grupo B... do exercício de 2018, identificada com o n.º ..., a Requerente apurou o montante de imposto a pagar de € 225 840,34.
  35. Na declaração Modelo 22 de substituição do Grupo B... identificada com o n.º..., referente ao exercício de 2018, a Requerente apurou imposto a pagar de € 239 045,05.
  36. Por referência ao exercício de 2019, a Requerente apurou, na declaração Modelo 22 do Grupo B... identificada com o n.º..., imposto a recuperar no montante de € 443.914,34.      
  37. Na declaração Modelo 22 de substituição do Grupo B... identificada com o n.º..., referente ao exercício de 2019, a Requerente apurou imposto a recuperar no montante de € 425 737,19.
  38. A Requerente apresentou, em 27 de maio de 2021 e 14 de março de 2022, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 131.º do CPPT, aplicável ex vi artigo 137.º, n.º 2, do CIRC, reclamações graciosas contra os referidos atos de autoliquidação de IRC dos exercícios de 2018 e 2019, nas quais requereu que fossem consideradas deduções à coleta, a título de RFAI, nos montantes de € 262 490,02 e de € 203 074.83, respetivamente.
  39. As reclamações graciosas n.ºs ...2021..., referente ao exercício de 2018 e ...2022..., referente ao exercício de 2019, foram objeto de decisões de indeferimento, conforme as notificações emitidas pela Direção de Finanças do Porto através de ofícios de 10 de agosto de 2022, expedidas à Requerente por ViaCTT.
  40. A fundamentação de cada uma das decisões de indeferimento das reclamações graciosas apresentadas pela Requerente contra as autoliquidações de IRC dos exercícios de 2018 e de 2019, no que respeita à análise do benefício fiscal do RFAI, foi a seguinte:

 

 

 

 

 

41. Em 23 de Novembro de 2022, a Requerente apresentou o pedido arbitral na origem dos presentes autos.

 

  1. Factos não provados:

Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.

 

C. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada:

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Os factos dados como provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos ao PPA e ao PA, bem como das posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados.

 

 

III.2 DO DIREITO

  1. As questões decidendas

 

A principal questão a decidir nos presentes autos, no que ambas as Partes concordam, centra-se na análise da (i)legalidade das decisões de indeferimento das reclamações graciosas deduzidas pela Requerente contra as autoliquidações de IRC dos exercícios de 2018 e de 2019, à luz do regime previsto nos artigos 22.º, n.º 1, in fine, e 2.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, do Código Fiscal do Investimento (CFI), aprovado pelo D.L. 162/2014, de 31 de outubro, assim como das mesmas autoliquidações, cuja anulação vem peticionada.

 

Invoca ainda a Requerente, como causa da ilegalidade daqueles atos decisórios e das autoliquidações de IRC que lhes subjazem, a inconstitucionalidade da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, que procede à definição dos códigos CAE relativos às atividade em que se integram os projetos de investimento considerados elegíveis para efeitos dos benefícios fiscais previstos no CFI, por violação dos artigos 199.º, alínea c), 103.º, n.º 2, 165.º, n.º 1, alínea i), e 112.º, n.ºs 5 e 7, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

 

Cumpre apreciar e decidir, de acordo na mesma ordem indicada pela Requerente.

 

 

  1. Da (i)legalidade das decisões de indeferimento das reclamações graciosas e das autoliquidações sobre que incidiram
    1. O Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI). Normativo nacional e Direito da União Europeia.

 

Através da Lei n.º 44/2014, de 11 de julho, a Assembleia da República concedeu autorização legislativa ao Governo “para aprovar um novo Código Fiscal do Investimento, revogando o Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, e adaptando os regimes de benefícios fiscais ao investimento e à capitalização das empresas às novas regras europeias aplicáveis em matéria de auxílios de Estado para o período 2014 -2020, tendo em vista a promoção da competitividade da economia portuguesa (…)” (artigo 1.º).

A mencionada autorização legislativa teve por sentido e extensão, no que à matéria dos autos interessa, a aprovação de um novo Código Fiscal do Investimento que permitisse, designadamente, “Adaptar o regime às disposições europeias em matéria de auxílios de Estado para o período 2014 -2020”, nomeadamente às disposições constantes do Regulamento geral de isenção por categoria (RGIC - Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 16 de junho de 2014, publicado no Jornal Oficial da União Europeia L 187, de 26 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE)), bem como, “Aprovar, no âmbito do novo Código Fiscal do Investimento, um novo Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI)”, adaptando o regime às disposições europeias em matéria de auxílios de Estado para o período 2014-2020 (as OAR – “Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020”, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia C 209, de 23 de julho de 2013) e às regras previstas no mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional (artigo 2.º, n.º  1, alíneas a) e c), n.º 2, alíneas a) a e) e n.º 3, alínea a), da Lei n.º 44/2014, de 11 de julho).

Em concretização desta autorização legislativa, viria a ser publicado o Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro, que aprovou o novo Código Fiscal do Investimento, com o propósito de, nos termos do respetivo Preâmbulo, “promover a revisão global dos regimes de benefícios ao investimento e à capitalização” tendo em vista a adaptação  “ao novo quadro legislativo europeu aplicável aos auxílios estatais para o período 2014-2020 e, por outro lado, reforçar os diversos regimes de benefícios fiscais ao investimento, em particular no que se refere a investimentos que proporcionem a criação ou manutenção de postos de trabalho e se localizem em regiões menos favorecidas”.

Inserido nos artigos 22.º a 26.º, do CFI, o RFAI, enquanto benefício fiscal, consubstancia um regime de auxílio estatal com finalidade regional (artigo 1.º, n.º 2, do CFI), aplicável “aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.” (artigo 22.º, n.º 1, do CFI).

De entre os setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, que definem o âmbito objetivo de aplicação do RFAI, constam, na sua alínea a), as atividades da indústria transformadora.

Contudo, a definição concreta das atividades suscetíveis de beneficiar do RFAI até 31 de dezembro de 2020 relativamente a projetos de investimento cujas aplicações relevantes sejam de montante igual ou superior a € 3 000 000,00, respeitando o âmbito sectorial de aplicação das “Orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020” (OAR) e do RGIC, foi remetida, pelo n.º 3 do citado artigo 2.º, do CFI, para portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia, em que seriam definidos os códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades referidas no número anterior.

Ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 2.º do CFI, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro e, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 2.º do mesmo Código, foi publicada a Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, que, para além de definir o âmbito setorial de aplicação do RFAI, “[a]tendendo à necessidade de observar as normas e demais atos emanados das instituições, órgãos e organismos da União Europeia em matéria de auxílios estatais, nomeadamente as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014 -2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209/1, de 27 de julho de 2013 e o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, que aprovou o Regulamento Geral de Isenção por Categoria, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187/1, de 26 de junho de 2014”, define igualmente os setores de atividade excluídos da concessão de benefícios fiscais.

Nesta sequência, o artigo 1.º, da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, declara não elegíveis para a concessão de benefícios fiscais, entre os quais o RFAI, “os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas dos setores siderúrgico, do carvão, da pesca e da aquicultura, da produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, da silvicultura, da construção naval, das fibras sintéticas, dos transportes e das infraestruturas conexas e da produção, distribuição e infraestruturas energéticas”.

De referir que tanto a atividade prosseguida, a título principal, pela sociedade dominada pela Requerente, ou seja, a produção de vinhos comuns e licorosos, a que corresponde o código 11021 da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3 (CAE-Rev.3), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14 de novembro, assim como a atividade secundária de organização de atividades de animação turística, a que corresponde o código 93293 da mesma CAE-Rev.3, se incluem na lista de atividades cujos projetos de investimento são elegíveis para os benefícios fiscais regulados pelo CFI,  conforme o artigo 2.º, alíneas a) e j), respetivamente, da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro.

Também a Portaria n.º 297/2015, de 21 de setembro, que regulou o regime fiscal de apoio ao investimento (RFAI), visou assegurar “a aplicação integral das regras previstas no Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º L 187, de 26 de junho de 2014 (adiante Regulamento Geral de Isenção por Categoria ou RGIC), ao abrigo do qual foram aprovados e, quando aplicável, das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014 -2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (adiante OAR).”.

2.2. Dos fundamentos das decisões de indeferimento das reclamações graciosas

A fundamentação das decisões de indeferimento das reclamações graciosas que tiveram por objeto as autoliquidações de IRC dos exercícios de 2018 e de 2019, no que ao RFAI diz respeito, centrou-se, exclusivamente, na análise do enquadramento da atividade prosseguida pelo sujeito passivo.

Aí se afirma que, tendo em conta os normativos nacionais e de Direito da União Europeia acima citados, designadamente o disposto no “Considerando (11) e [n]as definições presentes nos pontos 9) a 11) do artigo 2.º do Regulamento Geral de Isenção por Categoria (RGIC), e do âmbito de aplicação previsto no ponto 10. das Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional (OAR) para 2014-2020, bem como da legislação nacional suprarreferida, resulta que quando está em causa a atividade de «transformação de produtos agrícolas», apenas pode beneficiar do RFAI a transformação destes produtos desde que o produto final dela resultante não seja um produto agrícola de acordo com a definição prevista no art.º 38.º do TFUE e, como tal, não integre a lista constante do Anexo I do Tratado.” (…)

Ora, o Anexo I do tratado refere, na sua coluna (1) diversos Capítulos respeitantes aos Números da Nomenclatura de Bruxelas, os quais têm por base o Regulamento (CEE) n.º 2658/87, do Conselho, de 23 de julho de 1987, que instituiu a nomenclatura de mercadorias (Nomenclatura combinada ou NC), o qual veio a ser sucessivamente alterado e cujo Anexo I veio a ser substituído (numa versão completa e atualizada da NC) pelo Anexo I do Regulamento de Execução (UE) 2017/1925, da Comissão, de 12 de outubro de 2017, o qual, por sua vez, está na origem do documento designado por Nomenclatura Combinada, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).” , tendo concluído que:

“… o enquadramento em sede de RFAI, da atividade em causa e, consequentemente, dos projetos de investimento que a ela se destinem é o seguinte:

  1. Atividades NÃO ELEGÍVEIS para efeitos de RFAI:
  1. Produção de vinhos comuns e licorosos (CAE 11021)
  1. Enquadra-se no Capítulo 22 – Bebidas, líquidos alcoólicos e vinagres da NC, integrando-se ambos na atual posição 2204.

Resulta de todo o exposto que o montante do benefício fiscal solicitado no âmbito do RFAI, não pode ser validado por incumprimento do requisito legal de elegibilidade da atividade.”.

Nos termos dos artigos 7.º a 12.º da sua Resposta, veio a Requerida defender, que “a AT não validou o preenchimento dos demais requisitos cumulativos de que depende a concessão do benefício fiscal do RFAI, designadamente i) a elegibilidade das despesas de investimento – em razão da sua qualificação como “aplicações relevantes” e integração no conceito de “investimento inicial” – ii) a criação de postos de trabalho e, ainda, iii) os limites de intensidade do benefício.”, que “Estando a verificação dos demais requisitos dentro daquilo que são as atribuições e deveres da Requerida, logo a Requerida não poderá ser condenada no restante do pedido da Requerente, uma vez que a sua apreciação encontra-se dependente da realização de valorações próprias do exercício da função administrativa e tributária.” e que “não existindo elementos para se decidir neste processo da validação dos demais requisitos de que depende a aplicação do benefício fiscal RFAI (…) tais requisitos devem ser verificados e reconhecidos pela Requerida, em sede de execução de julgado, que é o meio processual adequado para os definir, quando não há elementos para esse efeito no processo declarativo (artigo 609.º, n.º 2, do CPC).”.

Por seu turno, a Requerente, no exercício do contraditório, afirma concordar com a Requerida quanto ao facto de a matéria em dissídio se reportar à elegibilidade da atividade por si prosseguida, para efeitos do RFAI, mas apenas por ter sido esse o único fundamento que suportou o indeferimento das reclamações graciosas contra as autoliquidações de IRC dos exercícios de 2018 e de 2019, o que não se relaciona com uma (alegada) não «validação» dos demais requisitos do benefício por parte da AT, que as não colocou em causa ou curou de fazer constar dos atos decisórios sob contenda qualquer palavra sobre «a [alegada] não validação dos demais requisitos», nem sequer teceu quaisquer considerações sobre os mesmos, ao menos para referir que a sua apreciação ficou prejudicada.

Porque a questão suscitada pelas Partes quanto à validação dos restantes requisitos dos quais depende a aplicabilidade do RFAI ao caso concreto dos autos releva para efeitos do disposto nos artigos 77.º, da LGT e 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, passar-se-á de imediato à sua apreciação.

A autoliquidação é um dever imposto aos sujeitos passivos de IRC pela alínea a) do artigo 89.º, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), nas declarações a que se referem os artigos 120.º (Declaração periódica de rendimentos) e/ou 122.º (Declaração de substituição), do mesmo Código.

Diversas têm sido as teorias avançadas quanto à natureza jurídica da autoliquidação, entre as quais a de que esta consubstanciaria um ato jurídico provisório, a carecer sempre de confirmação expressa ou tácita do credor tributário por não poder qualificar-se como aplicação do direito “toda e qualquer operação lógica pela qual se procede à subsunção dos factos à norma, seja qual for o sujeito que a realiza”, pois uma coisa é a aplicação do direito e outra é a mera conformação ou adequação ao modelo legal por parte do contribuinte, embora para tal este deva proceder a operações idênticas às que praticaria a Administração Tributária[1].

Assim sendo, e embora a autoliquidação de que resulte imposto a pagar seja um ato lesivo do contribuinte, equiparado à liquidação (cfr. o artigo 95.º, n.º 2, alínea a), da LGT)[2], o certo é que o verdadeiro ato tributário, enquanto ato administrativo praticado pela Administração Tributária, é o ato de confirmação, ou não, da autoliquidação efetuada.

Daí que, em caso de erro na autoliquidação, o artigo 131.º, do CPPT, imponha, nos casos previstos no seu n.º 1, a reclamação necessária como conditio sine qua non da sua impugnação contenciosa, reclamação a dirigir ao diretor de finanças competente (artigo 137.º, n.ºs 2 e 4 do Código do IRC).

Deste modo, também a fundamentação da reclamação necessária que, indeferindo-a, confirme a autoliquidação efetuada pelo contribuinte, como ocorreu o caso vertente, equivalerá à fundamentação do ato da liquidação administrativa.

Ora, como tem vindo a ser reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, a fundamentação deve ser contemporânea do ato e, no contencioso de mera legalidade, como é o contencioso tributário, “o tribunal tem de limitar-se à formulação do juízo sobre a legalidade do ato sindicado tal como ele ocorreu, apreciando a respetiva legalidade em face da fundamentação contextual integrante do próprio ato, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, seja por iniciativa oficiosa do tribunal, seja por meio de novos argumentos que tenham sido invocados pelas partes na pendência do processo impugnatório[3].

Razão pela qual este Tribunal Arbitral deve apreciar a (i)legalidade das decisões de indeferimento das reclamações necessárias e das autoliquidações de IRC dos exercícios de 2018 e de 2019 sobre que incidiram, exclusivamente à luz da fundamentação expressa naqueles atos decisórios, ou, seja, com fundamento no “incumprimento do requisito legal de elegibilidade da atividade”, não lhe cabendo analisar tal legalidade tendo por base fundamentos invocados a posteriori pela Requerida.

 

  1. Da exclusão do benefício fiscal do RFAI, por aplicação do RGIC

A Portaria n.º 297/2015, de 21 de setembro, que regulou o regime fiscal de apoio ao investimento (RFAI) estabelecido nos artigos 22.º a 26.º, do Código Fiscal do Investimento aprovado pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro, determina no n.º 1 do seu artigo 2.º que “Para efeitos da determinação do âmbito sectorial estabelecido na Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, aplicável ao RFAI por remissão do n.º 1 do artigo 22.º do Código Fiscal do Investimento, aplicam -se as definições relativas a atividades económicas estabelecidas no artigo 2.º do RGIC”.

De acordo com o Considerando (11), do RGIC, este “deve aplicar-se à transformação e comercialização de produtos agrícolas, desde que se encontrem reunidas determinadas condições. Para efeitos do presente regulamento, nem as atividades de preparação dos produtos para a primeira venda efetuadas nas explorações agrícolas, nem a primeira venda por um produtor primário a revendedores ou a transformadores, nem qualquer atividade que prepare um produto para uma primeira venda devem ser consideradas atividades de transformação ou de comercialização.”.

Nos termos do artigo 1.º, do RGIC – âmbito de aplicação –, este Regulamento é aplicável aos “auxílios com finalidade regional” (n.º 1, alínea a)), como é o caso do RFAI; todavia, ficam excluídos do seu âmbito de aplicação os auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas sempre que: “(i) o montante do auxílio for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa; ou ii) sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários.” (n.º 3, alínea c)).

Os n.ºs 8, a 11 do artigo 2.º, do RGIC, contêm as definições dos conceitos de “Comercialização de produtos agrícolas”, “Produção agrícola primária”, “Transformação de produtos agrícolas” e “Produto agrícola”, respetivamente, como sendo, respetivamente:

8) «Comercialização de produtos agrícolas», a detenção ou a exposição com vista à venda, a colocação à venda, a entrega ou qualquer outra forma de colocação no mercado, exceto a primeira venda por um produtor primário a revendedores e transformadores e qualquer atividade de preparação de um produto para a primeira venda; a venda por um produtor primário aos consumidores finais deve ser considerada comercialização quando efetuada em instalações específicas reservadas a tal fim;

9) «Produção agrícola primária», a produção de produtos da terra e da criação animal, enumerados no anexo I do Tratado, sem qualquer outra operação que altere a natureza de tais produtos;

10) «Transformação de produtos agrícolas», qualquer operação realizada sobre um produto agrícola de que resulte um produto que continua a ser um produto agrícola, com exceção das atividades realizadas em explorações agrícolas necessárias à preparação de um produto animal ou vegetal para a primeira venda;

11) «Produto agrícola», um produto enumerado no anexo I do Tratado, exceto os produtos da pesca e da aquicultura constantes do anexo I do Regulamento (UE) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013”.

A alínea b) do artigo 13.º, do RGIC, inserido no Capítulo III, Secção I, Subsecção A – Auxílios regionais ao investimento e ao funcionamento, exclui do seu âmbito de aplicação os auxílios com regimes orientados para um número limitado de setores específicos de atividade económica, mas inclui a comercialização e transformação de produtos agrícolas no âmbito de aplicação dos auxílios com finalidade regional, por não serem “considerados orientados para setores específicos da atividade económica”.

Da leitura conjugada destas disposições, conclui-se que embora os projetos de investimento efetuados pela Requerente tenham sido direcionados à sua atividade principal (o que a Requerida não contesta) – a produção de vinhos comuns e licorosos, a que corresponde o código 11021 da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3 (CAE-Rev.3), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14 de novembro –, e essa atividade respeite à transformação e comercialização de produtos agrícolas, aqueles investimentos apenas seriam excluídos do âmbito de aplicação do RGIC, caso se verificasse alguma das condições indicadas na alínea c) do n.º 3 do seu artigo 1.º, ou seja, que  i) o montante do auxílio fosse fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa; ou ii) o auxílio fosse subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários.

Ora as condições de aplicação do RFAI constam do artigo 22.º do CFI, nos termos seguintes:

Artigo 22.º- Âmbito de aplicação e definições

1 - O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.

2 - Para efeitos do disposto no presente regime, consideram-se aplicações relevantes os investimentos nos seguintes ativos, desde que afetos à exploração da empresa:

a) Ativos fixos tangíveis, adquiridos em estado de novo, com exceção de:

i) Terrenos, salvo no caso de se destinarem à exploração de concessões mineiras, águas minerais naturais e de nascente, pedreiras, barreiros e areeiros em investimentos na indústria extrativa;

ii) Construção, aquisição, reparação e ampliação de quaisquer edifícios, salvo se forem instalações fabris ou afetos a atividades turísticas, de produção de audiovisual ou administrativas;

iii) Viaturas ligeiras de passageiros ou mistas;

iv) Mobiliário e artigos de conforto ou decoração, salvo equipamento hoteleiro afeto a exploração turística;

v) Equipamentos sociais;

vi) Outros bens de investimento que não estejam afetos à exploração da empresa;

b) Ativos intangíveis, constituídos por despesas com transferência de tecnologia, nomeadamente através da aquisição de direitos de patentes, licenças, «know-how» ou conhecimentos técnicos não protegidos por patente.

3 - No caso de sujeitos passivos de IRC que não se enquadrem na categoria das micro, pequenas e médias empresas, tal como definidas na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003, as aplicações relevantes a que se refere a alínea b) do número anterior não podem exceder 50 % das aplicações relevantes.

4 - Podem beneficiar dos incentivos fiscais previstos no presente capítulo os sujeitos passivos de IRC que preencham cumulativamente as seguintes condições:

a) Disponham de contabilidade regularmente organizada, de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respetivo setor de atividade;

b) O seu lucro tributável não seja determinado por métodos indiretos;

c) Mantenham na empresa e na região durante um período mínimo de três anos a contar da data dos investimentos, no caso de micro, pequenas e médias empresas tal como definidas na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003, ou cinco anos nos restantes casos, os bens objeto do investimento ou, quando inferior, durante o respetivo período mínimo de vida útil, determinado nos termos do Decreto Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de setembro, alterado pelas Leis n.os 64-B/2011, de 30 de dezembro, e 2/2014, de 16 de janeiro, ou até ao período em que se verifique o respetivo abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização, observadas as regras previstas no artigo 31.º-B do Código do IRC;

d) Não sejam devedores ao Estado e à segurança social de quaisquer contribuições, impostos ou quotizações ou tenham o pagamento dos seus débitos devidamente assegurado;

e) Não sejam consideradas empresas em dificuldade nos termos da comunicação da Comissão - Orientações relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldade, publicada no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 249, de 31 de julho de 2014;

f) Efetuem investimento relevante que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período mínimo de manutenção dos bens objeto de investimento, nos termos da alínea c).

5 - Considera-se investimento realizado o correspondente às adições, verificadas em cada período de tributação, de ativos fixos tangíveis e ativos intangíveis e bem assim o que, tendo a natureza de ativo fixo tangível e não dizendo respeito a adiantamentos, se traduza em adições aos investimentos em curso.

6 - Para efeitos do disposto no número anterior, não se consideram as adições de ativos que resultem de transferências de investimentos em curso transitado de períodos anteriores, exceto se forem adiantamentos.

7 - Nas regiões elegíveis para auxílios nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 107.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia constantes da tabela do artigo 43.º, no caso de empresas que não se enquadrem na categoria das micro, pequenas e médias empresas, tal como definidas na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003, apenas podem beneficiar do RFAI os investimentos que respeitem a uma nova atividade económica, ou seja, a um investimento em ativos fixos tangíveis e intangíveis relacionados com a criação de um novo estabelecimento, ou com a diversificação da atividade de um estabelecimento, na condição de a nova atividade não ser a mesma ou uma atividade semelhante à anteriormente exercida no estabelecimento.”

Não dependendo a aplicação do RFAI ao caso concreto de qualquer das condições referidas na alínea c) do n.º 3 do seu artigo 1.º, do RGIC, tem de se concluir que tal aplicação não é afastada por este instrumento do Direito da União Europeia.

 

  1. Da exclusão do benefício fiscal do RFAI, por aplicação das OAR 2014-2020

As “Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020” (OAR), publicadas no Jornal Oficial da União Europeia C 209, de 23 de julho de 2013, constituem um instrumento no qual “a Comissão enuncia as condições ao abrigo das quais os auxílios com finalidade regional podem ser considerados compatíveis com o mercado interno, definindo os critérios para a identificação das regiões que preenchem as condições previstas no artigo 107.º, n.º 3, alíneas a) e c), do Tratado”, no período temporal indicado.

Respeitante à matéria em análise, dispõe o ponto 10 das OAR o seguinte:

10. A Comissão aplicará os princípios estabelecidos nas presentes orientações aos auxílios com finalidade regional em todos os setores de atividade económica (9), com exceção da pesca e da aquicultura (10), da agricultura (11) e dos transportes, que estão sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações. A Comissão aplicará estas orientações à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas. As presentes orientações aplicam-se a medidas de auxílio em apoio de atividades fora do âmbito do artigo 42.º do Tratado, mas abrangidas pelo regulamento relativo ao desenvolvimento rural, e cofinanciadas pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural ou concedidas como um financiamento nacional em suplemento dessas medidas cofinanciadas, salvo previsão em contrário das regras setoriais.”.

Mais se esclarece, na nota de rodapé (11), que “Os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola.”.

Como bem refere a Requerida, os produtos resultantes da atividade de produção de vinhos comuns e licorosos estão incluídos no Capítulo 22 da Nomenclatura de Bruxelas (atual posição 2204) a que se refere o Anexo I do TFUE (Capítulo 22 – “Vinhos de uvas frescas”), pelo que integram o conceito de "transformação de produtos agrícolas", em que o produto final continua a ser um produto agrícola enumerado no Anexo I do Tratado.

Contudo, a norma contida no ponto 10 das OAR é uma norma não autónoma[4], uma vez que contém a remissão do regime de apoio à transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado para as “regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações outro diploma” e que, de acordo com a nota de rodapé 11, seriam as regras que constavam das “Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola” em vigor em 23 de julho de 2013, data da publicação das OAR.

À data da publicação do Código Fiscal do Investimento, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro, haviam já sido publicadas no Jornal Oficial da União Europeia C 204, de 1 de julho de 2014, as novas Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020, em que se contêm as seguintes disposições:

a. “PARTE I. DISPOSIÇÕES COMUNS

Capítulo 2. Âmbito de aplicação e definições

(…)

2.3. Regras horizontais e instrumentos de auxílio aplicáveis aos setores agrícola e florestal e às zonas rurais

(…)

(33) Em virtude das especificidades do setor, não se aplicam aos auxílios à produção de produtos primários as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020. Aplicam-se, no entanto, à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas presentes orientações.

(…)

2.4. Definições

(35) Para efeitos das presentes orientações, entende-se por:

(…)

10. «Produção agrícola primária», a produção de produtos da terra oriundos da agricultura e da criação animal, enumerados no anexo I do Tratado, sem qualquer outra operação que altere a natureza desses produtos;

11. «Transformação de produtos agrícolas», qualquer operação realizada sobre um produto agrícola de que resulte um produto que continue a ser um produto agrícola, com exceção das atividades necessárias à preparação de um produto animal ou vegetal para a primeira venda;

12. «Comercialização de produtos agrícolas», a detenção ou a exposição com vista à venda, colocação à venda, entrega ou qualquer outra forma de colocação no mercado, exceto a primeira venda de um produtor primário a revendedores ou transformadores e qualquer atividade de preparação de um produto para essa primeira venda; a venda por um produtor primário aos consumidores finais é considerada comercialização de produtos agrícolas quando efetuada em instalações específicas reservadas a tal fim;

(…)

  1. PARTE II. CATEGORIAS DE AUXÍLIOS

Capítulo 1. Auxílios a favor de empresas ativas na produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas

1.1.1.4. Auxílios aos investimentos relacionados com a transformação e a comercialização de produtos agrícolas

(…)

(168) Os Estados-Membros podem conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio:

(a) Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado (53).

(b) Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020;

(c) As condições estabelecidas na presente secção.

(…)”

Das disposições transcritas, em especial as incluídas no parágrafo 33 do Capítulo 2 da Parte I e na PARTE II. CATEGORIAS DE AUXÍLIOS, parágrafo 168, das “Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020”, nas quais se remete para o RGIC e para as OAR para 2014-2020, assim como das definições de comercialização e transformação de produtos agrícolas, resulta que a atividade de comercialização e transformação de produtos agrícolas, ainda que continuem a ser considerados produtos agrícolas, de acordo com o Anexo I ao TFUE, se encontra abrangida pelo ponto 10 das OAR, não obstante o teor da sua nota de rodapé 11, à data em que foram publicadas.

De facto, não só as “Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020”, por regularem um setor específico constituem lex specialis relativamente às OAR para 2014-2015, derrogando a lei general referente aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, como é reconhecido no ponto 10 das OAR acima transcrito, como para elas remetem explicitamente na alínea b) do ponto 168, acima transcrito.

Pelos motivos que acabam de se expor, se chega à mesma conclusão também já alcançada em outras decisões arbitrais, designadamente no Acórdão proferido em 12 de outubro de 2020 no processo n.º 220/2020-T, citado pela Requerente, de que “a actividade da Requerente, de transformação e comercialização de produtos agrícolas, designadamente de vinhos comuns e licorosos, não é uma das «actividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR's» a que se refere a parte final, do artigo 22.º do CFI, e, pelo contrário, desde que satisfaçam as condições previstas no RGIC [o Regulamento (UE) n.º 651/2014, referido na alínea (a)], ou nas OAR, ou na secção em que se insere este ponto (168) [das Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020], são permitidos os auxílios estatais.”.

Assim, e contrariamente ao entendimento expresso pela AT nas decisões de indeferimento das reclamações graciosas, do “incumprimento do requisito legal de elegibilidade da atividade”, conclui este Tribunal Arbitral que a atividade de produção de vinhos comuns e licorosos prosseguida pela Requerente e no âmbito da qual foram efetuados os investimentos tendentes ao aumento da sua capacidade produtora, não se encontra excluída do âmbito de aplicação setorial das OAR 2014-2020, estando, bem pelo contrário, abrangida por este instrumento.

 

  1. Da inconstitucionalidade da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, por violação dos artigos 199.º, alínea c), 103.º, n.º 2, 165.º, n.º 1, alínea i), e 112.º, n.ºs 5 e 7, da Constituição da República Portuguesa.

Adere-se, a este propósito, à fundamentação perfilhada no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 496/2020, Processo n.º 385/20 - 2.ª Secção, de 6 de outubro de 2020, nos excertos que, com a devida vénia, se transcrevem:

II. Fundamentação

(…)

  1. (…) O que o recorrente pretende, em suma, é que este Tribunal confronte aquela norma regulamentar [estava em causa o artigo 2.º, n.º 2, da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro] com os preceitos legais habilitantes, no sentido de apreciar se a norma sindicada viola estes últimos – isto é, se padece do vício de ilegalidade – para, considerando verificado tal vício, concluir que há violação das normas constitucionais que estabelecem uma relação hierárquica entre lei e regulamento nos termos de a primeira preceder necessariamente e preferir aos segundos.

Ora, esta legalidade-limite relativamente ao direito infralegal decorre da Constituição (cf. os artigos 199.º, alíneas c) e e), 112.º, n.º 7, e 266.º, n.º 2, todos da Constituição; v. o ponto 4 da decisão sumária reclamada). A mesma constitui o pressuposto da própria ilegalidade; daí ela não ser direta e imediatamente afrontada pela ocorrência de violações de leis por atos infralegais. É-o apenas indiretamente, ou seja, por via da violação do ato legislativo por ato que, em razão da preferência inerente àquela dimensão de limite, o deveria respeitar. Fala-se, então, de simples inconstitucionalidade indireta. 

  1. Por outro lado, e conforme resulta do respetivo teor, o artigo 112.º, n.º 5, da Constituição constitui uma norma de ação dirigida exclusivamente ao legislador, não à Administração. Consequentemente, a Portaria n.º 282/2014 jamais poderia violar tal preceito (…)
  2. (…) o problema de constitucionalidade colocado pela recorrente assenta na circunstância de o artigo 2.º da citada Portaria, ao indicar os CAE correspondentes às atividades económicas previstas no n.º 2 do artigo 2.º do CFI, omitir a indicação do CAE referente ao sector das telecomunicações e, em face disso, segundo a recorrente, “alterar/restringir/revogar”, por via regulamentar, as atividades elegíveis para efeitos de concessão de benefício fiscal, uma vez que o sector das telecomunicações se encontra previsto, para esse efeito, na alínea g) do mencionado preceito do CFI.

Contudo, e como demonstrado supra no ponto 3, a invocada violação dos artigos 103.º, n.º 2, 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição decorrente de tal omissão só existiria porque, previamente, segundo a perspetiva da ora reclamante, a lei incluiu a atividade económica omitida entre aquelas que deveriam beneficiar de um tratamento fiscal mais favorável.

A invocada inconstitucionalidade decorre, assim, imediata e necessariamente da (alegada) contradição com a lei.

Sucede que, por força do princípio constitucional da primazia ou prevalência da lei (Vorrang des Gesetzes) – a já mencionada legalidade-limite –, nenhuma lei pode ser desrespeitada por um regulamento. Por isso, a contradição direta entre o “direito infralegal” e o “direito da lei” resolve-se exclusivamente com base no princípio da hierarquia (não há “espaço” para a intervenção do princípio da competência nas suas diferentes modalidades).

(…)

Atenta a diferença de grau hierárquico entre atos legislativos e atos regulamentares, o artigo 2.º da Portaria n.º 282/2014 não pode ser considerado isoladamente e, em função da matéria em causa, diretamente confrontado com os parâmetros constitucionais que estabelecem uma reserva de lei parlamentar, desconsiderando a norma legal vinculativa do poder regulamentar ao abrigo da qual a mesma Portaria foi emanada.”.

 

A norma cujo vício de inconstitucionalidade vem invocado nos presentes autos é o artigo 1.º, da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, na medida em que considera não elegíveis para a concessão do benefício fiscal do RFAI os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no Anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, não obstante a atividade principal da sociedade dominada ser a “produção de vinhos comuns e licorosos”, com o CAE 11021, incluído no artigo 2.º, n.º 2, alínea a) do CFI, enquanto norma habilitante, por remissão do artigo 22.º, n.º 1 – segmento final, do mesmo Código, bem como no artigo 2.º, alínea b) daquela Portaria, se bem que com ressalva das restrições previstas no artigo anterior.

Por seu turno, o Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro, que aprovou o Código Fiscal do Investimento, tem como lei habilitante a Lei de autorização legislativa n.º 44/2014, de 11 de julho.

Tanto um como o outro dos diplomas legislativos acabados de mencionar foram emitidos após publicação das “Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020”, no Jornal Oficial da União Europeia C 204, de 1 de julho de 2014 e remetem, em bloco e sem quaisquer restrições, para as OAR – “Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020”, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia C 209, de 23 de julho de 2013, que aquelas complementam.

As “Orientações” tal como as “Recomendações”, carecem de caráter vinculativo, por consubstanciarem “actos da Comissão dirigidos (…) aos Estados-membros (…) exprimindo-lhes o respectivo ponto de vista sobre determinadas questões, apontando-lhes as medidas ou soluções reclamadas pelo interesse comunitário, sugerindo-lhes os comportamentos a adoptar.”, “concebidas como um instrumento de acção indirecta da Autoridade comunitária, visando frequentemente à aproximação de legislações nacionais ou à adaptação de uma dada regulamentação interna ao regime comunitário.”.[5]

Ainda que o n.º 3 do artigo 2.º, da Lei de autorização legislativa n.º 44/2014, de 11 de julho, tivesse fixado o sentido e extensão da autorização contida na alínea c) do seu n.º 1 – de aprovar, no âmbito do novo Código Fiscal do Investimento, um novo Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI) –, designadamente a autorização para “Adaptar o regime às disposições europeias em matéria de auxílios de Estado para o período 2014-2020, nomeadamente: i) Às disposições constantes do Regulamento geral de isenção por categoria, que define as condições sob as quais certas categorias de auxílios podem ser consideradas compatíveis com o mercado interno; ii) Às regras previstas no mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional”, nada indica que essa “adaptação” passasse pela restrição do âmbito de aplicação daqueles normativos do Direito da União Europeia.

Por outro lado, embora o Governo não pudesse, no Decreto-Lei autorizado n.º 162/2014, de 31 de outubro, exceder a extensão da autorização parlamentar, sempre poderia ter expressamente excluído do âmbito de aplicação do RFAI a atividade de comercialização e transformação de produtos agrícolas, que continuem a ser considerados produtos agrícolas, de acordo com o Anexo I ao TFUE[6], não o tendo feito.

Assim como não se detetam indícios de que o Governo tenha aposto alguma reserva às “Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020” que – por via da remissão que para elas é feita na nota de rodapé 11 do parágrafo 10 das OAR para 2014-2020 e, reciprocamente, da remissão contida nos seus parágrafos 33 do Capítulo 2 da Parte I e 168 da PARTE II. CATEGORIAS DE AUXÍLIOS, para as OAR para 2014-2020, permitem a derrogação daquele parágrafo 10, no que respeita às atividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no Anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e a sua inclusão no âmbito de aplicação das OAR para 2014-2020.

Assim sendo e no pressuposto de que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), não resta outra conclusão senão a de que não sendo a atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas uma das atividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR, o artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, é ilegal, por desrespeito do grau hierárquico entre atos legislativos (artigos 2.º, n.º 2 e 22.º, n.º 1, do CFI) e atos regulamentares (cfr. ponto 6 do citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 496/2020, acima transcrito), ao restringir o âmbito setorial de aplicação do RFAI, ilegalidade normativa cuja declaração compete, “nos termos gerais, às diferentes ordens jurisdicionais[7].

Ilegalidade esta que se transmite aos atos praticados ao abrigo da norma ilegal, como é o caso das decisões de indeferimento das reclamações graciosas das autoliquidações de IRC dos exercícios de 2018 e de 2019, bem como das mesmas autoliquidações, que justifica as respetivas anulações (parciais), nos termos do artigo 163º, do CPA, aplicável ao processo arbitral tributário por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT.

3.  Do pedido de juros indemnizatórios

Determina a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária

a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse

 sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que incluiu “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”.

De igual modo, o n.º 1 do artigo 100.º, da LGT, aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º, do RJAT, estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”.

O restabelecimento da situação que existiria se o ato tributário objeto do pedido de pronúncia arbitral não enfermasse de erro imputável aos serviços, obriga, por um lado, à restituição do imposto indevidamente pago pela Requerente e, por outro, ao pagamento de juros indemnizatórios, sendo caso disso.

O regime dos juros indemnizatórios consta do artigo 43.º, da LGT, cujo n.º 1 estabelece que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”.

Ao imposto indevidamente pago equivale o recebimento de reembolso inferior ao legalmente devido, por tanto num caso como no outro se estar perante situações de “Pagamento indevido da prestação tributária”, conforme a epígrafe do artigo 43.º, da LGT.

No caso concreto em apreço e, como já acima foi referido, dada a natureza da autoliquidação efetuada pelo contribuinte, a que não pode ser imputado qualquer erro dos serviços, apenas é reconhecido o direito da Requerente a juros indemnizatórios a partir da data da notificação das decisões de indeferimento das reclamações graciosas das autoliquidações de IRC respeitantes aos exercícios de 2018 e de 2019, como, aliás, vem peticionado.

 

 

IV. DECISÃO

Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide-se em, julgando inteiramente procedente o pedido de pronúncia arbitral:

 

  1. Declarar a ilegalidade das decisões de indeferimento das reclamações graciosas n.ºs ...2021... e ...2022..., que mantiveram na ordem jurídica as autoliquidações de IRC efetuadas pela Requerente para os exercícios, respetivamente, de 2018 e de 2019;
  2. Declarar a ilegalidade e determinar a consequente anulação parcial das autoliquidações de IRC dos exercícios de 2018 e de 2019, pelas quantias de € 262 490,02 e de € 203 074.83, respetivamente;
  3. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios desde a data da notificação das decisões de indeferimento das reclamações graciosas, até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 465 564,85 (quatrocentos e sessenta e cinco mil, quinhentos e sessenta e quatro euros e oitenta e cinco cêntimos), indicado no pedido de pronúncia arbitral e não contestado pela AT.

 

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 7 344,00 (sete mil, trezentos e quarenta e quatro euros), a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 26 de Julho de 2023

 

Os Árbitros,

 

 

Carla Castelo Trindade

(Presidente)

(Vencida, conforme declaração em anexo)

 

 

Armando Oliveira

(Vogal)

 

 

Mariana Vargas

(Vogal)

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

1. Com a devida vénia pelo presente colectivo, voto vencida por discordar do entendimento do Tribunal que fez vencimento quanto à apreciação do mérito da causa.

2. Ao contrário do defendido pelo Tribunal, considero que a actividade de produção de vinhos comuns e licorosos (CAE 11021) desenvolvida pela C..., encontra-se excluída do âmbito sectorial de aplicação das Orientações relativas aos Auxílios Estatais com finalidade regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de Julho de 2013 (“OAR para 2014-2020”).

3. Esta exclusão é operada pelo ponto 10 das OAR para 2014-2020, que na nota de rodapé número 11 remetem para a aplicação das Orientações relativas aos Auxílios Estatais nos sectores Agrícola e Florestal e nas Zonas Rurais para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 204, de 1 de Julho de 2014 (“OAR do Sector Agrícola, Florestal e Zonas Rurais para 2014-2020”).

4. No ponto 138 das OAR do Sector Agrícola, Florestal e Zonas Rurais para 2014-2020, determina-se que os Estados-Membros podem conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas, desde que estejam preenchidos os requisitos constantes (i) do RGIC ou (ii) das OAR para 2014-2020 ou (iii) as condições estabelecidas na secção em que se insere aquele ponto 138.

5. Apesar de se concordar com o Tribunal Arbitral quanto ao preenchimento pela C... das condições previstas no RGIC, a verdade é que o legislador nacional não fez uso da faculdade de extensão da concessão de auxílios com finalidade regional ao sector da transformação de produtos agrícolas em produtos cujo resultado final continua a ser um produto agrícola.

6. É este o sentido que se retira da leitura conjugada do artigo 2.º, n.º 3, alínea c) da Lei de Autorização Legislativa n.º 44/2014, de 11 de Julho; do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de Outubro que aprovou o CFI; do artigo 2.º, n.º 2 do CFI, aplicável na redacção à data dos factos ex vi artigo 22.º, n.º 1 do mesmo código; do preâmbulo da Portaria n.º 297/2015, de 21 de Setembro que procede à regulamentação do RFAI e do preâmbulo e do artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 Setembro, para onde remete o n.º 3, do artigo 2.º do CFI.

7. Em nenhum dos dispositivos legais enunciados surge qualquer menção ou referência à utilização pelo legislador nacional da faculdade conferida pelas OAR do Sector Agrícola, Florestal e Zonas Rurais para 2014-2020, de conceder às actividades de transformação de produtos agrícolas noutros produtos agrícolas, o conjunto de auxílios estatais de finalidade regional previstos e permitidos pelas OAR para 2014-2020.

            8. De facto, em momento algum se define e determina em que medida é que estas últimas orientações são derrogadas, nem qual o âmbito de aplicação que devem ter. Em bom rigor, em momento algum se remete para aquele “bloco normativo”. O que não é despiciendo, já que a concessão de auxílios estatais para o sector agrícola nos termos das OAR do Sector Agrícola, florestal e zonas rurais para 2014-2020, está sujeita a condições de elegibilidade ou compatibilidade e intensidades de auxílio mais estritas, que têm de ser comunicadas à Comissão, e que o regime português do RFAI não acautelou.

            9. Conforme sublinhou a Requerida a este respeito, ao citar em tradução livre Herwig C.H. Hofmann e Claire Micheau, State Aid Law of the European Union, Oxford University Press, 2016, p. 242: “A compatibilidade dos auxílios regionais é avaliada com base nas regras dos auxílios regionais (OAR 2014 ou disposições relativas aos auxílios regionais no RGIC), a menos que existam regras sectoriais específicas, como as aplicáveis à agricultura, silvicultura, aquicultura, pesca, transporte e sector de energia. Essas regras específicas do sector derrogam as regras de compatibilidade consagradas nas OAR 2014 ou no RGIC, estipulando, por exemplo, intensidades de auxílio superiores ou inferiores ou condições de elegibilidade ou compatibilidade mais estritas. (...) Assim, devido às políticas comuns da UE nos domínios da agricultura, silvicultura, pesca e aquicultura, os auxílios estatais a esses sectores são regidos exclusivamente por regras específicas que são avaliadas pela Comissão à luz das disposições específicas do Tratado. Contudo, para o apoio aos produtos agrícolas [que constam do Anexo I do Tratado] que não se enquadram no âmbito do artigo 42.º do Tratado (como a comercialização e a transformação de produtos agrícolas e as pescas abrangidas por programas de desenvolvimento rural co‑financiados pela Comissão), os Estados-Membros podem escolher entre as regras dos auxílios regionais e as regras específicas do sector da agricultura (ou seja, orientações relativas aos auxílios estatais à agricultura) ou regulamentos de isenção por categoria agrícola emitidos com base no artigo 107.º do Tratado.”.

            10. Em suma, considero que da aplicação concatenada de todas as disposições de Direito da União Europeia e de direito interno anteriormente enunciadas, resulta que as actividades de transformação de produtos agrícolas apenas podem beneficiar do benefício fiscal RFAI previsto no artigo 22.º, n.º 1 do CFI quando o resultado final da transformação não for um produto agrícola que integre a lista constante do anexo I do TFUE a que alude o n.º 3, do artigo 38.º daquele tratado – o que é precisamente o caso da C... .

            11. A idêntica conclusão chegou também o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 18 de Novembro de 2021, no processo n.º 307/2021‑T.

            12. Perante o exposto, julgaria improcedente o vício invocado pela Requerente a este respeito.

            13. Quanto ao vício relativo à inconstitucionalidade da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, decorrente da alegada violação dos artigos 199.º, alínea c), 103.º, n.º 2, 165.º, n.º 1, alínea i), e 112.º, n.ºs 5 e 7, da CRP, também não concordo com a posição do Tribunal que fez vencimento.

            14. A temática da constitucionalidade da remissão operada pelo CFI para a Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 496/2020, de 6 de Outubro de 2020, proferido no âmbito do processo n.º 385/20, onde se concluiu pela inexistência de violação dos princípios da legalidade, da primazia ou prevalência da lei e da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República. O que também sucede no caso dos presentes autos.

            15. No que concerne ao disposto no artigo 112.º, n.º 5, da CRP, conforme sublinhou o Tribunal Constitucional, esta é norma que se encontra dirigida ao legislador e não à administração, pelo que se encontra afastada a possibilidade de violação daquele preceito pela Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, que não procedeu a qualquer “deslegalização”.

            16. A este respeito, vejam-se as considerações às quais se adere feitas pelo Tribunal Arbitral no acórdão proferido no processo n.º 218/2019-T, em 19 de Dezembro de 2019, que desenvolveu o tema com maior profundidade.

            17. Quanto à alegada violação do princípio da legalidade, nas suas dimensões de reserva de lei formal e de tipicidade da lei fiscal, que se extrai dos artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP, não considero, ao contrário do que defende a Requerente e o Tribunal Arbitral, que o artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro consagre uma restrição inovatória do âmbito de aplicação do RFAI, cujo objecto, sentido e extensão se encontram devidamente definidos no CFI.

            18. Pelo contrário, aquela Portaria tem uma natureza meramente regulamentar/executória, que se limita a densificar o regime jurídico do RFAI, tendo em conta os parâmetros definidos no CFI e no quadro normativo de Direito Europeu aplicável, designadamente o TFUE, o RGIC e as OAR.

            19. Assim o entendeu também o Tribunal Arbitral no acórdão n.º 307/2021‑T, proferido em 18 de Novembro de 2021, a que já se fez referência, e para onde se remetem maiores desenvolvimentos.

            20. Em suma, entendo que a remissão feita no CFI para a Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro não implica qualquer inconstitucionalidade decorrente de uma alegada violação do princípio da legalidade, nem tampouco qualquer ilegalidade por violação da norma habilitante que constitui o parâmetro de validade da norma regulamentar, já que a exclusão da concessão do benefício fiscal RFAI aos sectores de actividade de transformação de produtos agrícolas em produtos que continuem a ser agrícolas, resulta da aplicação dos princípios e regras contidos nos actos legislativos de Direito Europeu, de que aquela Portaria é mero instrumento de execução.

            21. Perante o exposto, também julgaria improcedente o vício invocado pela Requerente a este respeito.

 

 

 

(Carla Castelo Trindade)

           

 



[1] Neste sentido, cfr. Alberto P. Xavier, “Conceito e Natureza do Ato Tributário”, Livraria Almedina, Coimbra, 192, pág. 57.

[2] Cfr. Jorge Lopes de Sousa, “Código de Procedimento e de Processo Tributário – Anotado e Comentado”, Áreas Editora, Lisboa, 6.º Edição, 2011, pág. 406.

[3] Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27 de junho de 2016, Processo n.º 043/16.

[4] Cfr. José de Oliveira Ascensão, in “O Direito – Introdução e Teoria Geral”, 13.ª Edição Refundida, Almedina, Coimbra, setembro de 2017, págs. e ss., “As normas não autónomas terão de ser por natureza proposições normativas, com as características gerais de toda a norma jurídica; mas o seu sentido completo só se obtém por comparação com outras normas jurídicas.”. De entre as normas não autónomas destaca o Autor as regras remissivas, cujo “sentido completo só se obtém através do exame de outro preceito, para que a regra remissiva aponta”.

Também J. Baptista Machado, in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, Coimbra, 1995, págs. 105 e ss. esclarece que “São normas remissivas (ou indirectas), de uma maneira geral, aquelas em que o legislador, em vez de regular directamente a questão de direito em causa, lhe manda aplicar outras normas do seu sistema jurídico, contidas no mesmo ou noutro diploma (…)”.

[5] Cfr. João de Mota Campos, “Manual de Direito Comunitário”, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2000, pág. 321.

[6] Tal como foi decidido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 556/03, Processo Proc. n.º 188/03

3ª Secção “[se] o legislador habilitado não esgotou o conteúdo da lei autorizativa, […] isso não significa desconformidade, mas um conteúdo menor que o permitido.”.

[7] Cfr. o ponto 4 do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 496/2020.