Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 222/2023-T
Data da decisão: 2023-11-27  Selo  
Valor do pedido: € 8.547,27
Tema: Imposto do Selo – Aquisição por usucapião.
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SUMÁRIO:

 

A aquisição por usucapião resulta na posse pelo adquirente no ato da justificação e não de qualquer negócio jurídico, seja ele oneroso ou gratuito, pelo que o valor tributável nas aquisições de usucapião, é o valor patrimonial tributário do prédio adquirido, no momento em que se opera a transmissão, conforme artigo 13.º, n.º 1, do CIS, e consequente nascimento da obrigação tributária.

 

DECISÃO ARBITRAL

A árbitra, Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral Singular, constituído a 06.06.2023, decide o seguinte:

  1. RELATÓRIO
  1. A..., com o número de identificação fiscal ... e, B..., com o número de identificação fiscal ..., ambos com domicílio em Rua..., n.º ..., ...-... Porto (doravante “Requerentes”), vieram, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), 10.º, n.º 1, al. a), 15.º e segs., do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante “RJAT”), requerer a constituição do Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos de liquidação de Imposto do Selo (doravante “IS”) n.º..., no valor de €6.560,93 (seis mil quinhentos e sessenta euros e noventa e três cêntimos), de 01.02.2022 e n.º..., no valor de €1.986,34 (mil novecentos e oitenta e seis euros e trinta e quatro cêntimos), de 01.02.2022, respetivamente.
  2. Os Requerentes terminam a sua petição com a formulação do seguinte pedido: “Nestes termos, deve: a) proceder a presente impugnação dos atos de liquidação de imposto de selo n.º ..., no valor de €6.560,93, de 2022/02/01 e n.º ..., no valor de €1.986,34, de 2022/02/01, devendo ser liquidados os valores de €19.487,60 e de €6.012.10, respetivamente, a pagar pelos impugnantes, emitindo-se a respetiva demonstração de acerto de contas, entre o valor a pagar e o que já foi por eles pago; b) subsidiariamente, reconhecer-se o vício de forma por falta de audição prévia do impugnante A... .” e juntaram 8 (oito) documentos.
  3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à Requerida em 30.03.2023.
  4. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 6.º e da alínea a), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitra do Tribunal Arbitral Singular, a qual comunicou a aceitação do cargo no prazo aplicável.
  5. Em 19.05.2023, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação de árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.
  6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 06.06.2023.
  7. Em 07.09.2023, foi a Requerida notificada, nos termos do artigo 17.º, do RJAT, para, no prazo de 30 (trinta) dias, apresentar resposta, remeter ao Tribunal Arbitral a cópia do processo administrativo e, querendo, solicitar a produção de prova adicional.
  8. A Requerida não apresentou resposta. 
  9. Em 31.08.2023, o Tribunal Arbitral proferiu despacho, cujo teor se transcreve:

À luz do princípio do inquisitório, consagrado no artigo 411.º, do CPC, o Tribunal Arbitral considera relevante para o apuramento da verdade e justa composição do litígio, a junção aos autos: (i) dos pedidos de revisão apresentados pelos Requerentes que, posteriormente, foram convolados pela Administração Tributária em reclamações graciosas; (ii) do projeto de decisão, notificado ao(s) Requerente(s), para efeitos de audição prévia; (iii) da participação da declaração Modelo-1 de Imposto do Selo; (iv) da notificação dos atos de liquidação de imposto do selo n.º..., no valor de €6.560,93, de 01.02.2022 e n.º..., no valor de €1.986,34, de 01.02.2022 e, ainda, (v) do processo administrativo.

            Assim, notifique-se:

a)    Os Requerentes para, no prazo de 10 (dez) dias, virem aos autos juntar os documentos identificados nos pontos (i)(ii)(iii) e (iv) supra;

b)    A Requerida para, no prazo de 10 (dez) dias, vir aos autos juntar o processo administrativo, conforme já peticionado.

  1. Em 08.09.2023, a Requerida juntou aos autos o processo administrativo.
  2. Em 12.09.2023, os Requerentes procederam à junção aos autos dos documentos solicitados pelo Tribunal Arbitral, em cumprimento do despacho referido em 9., com exceção da notificação do projeto de decisão para efeitos de audição prévia ao Requerente filho, por, alegadamente, não a ter recebido. 
  3. Em 13.09.2023, o Tribunal Arbitral proferiu despacho, no qual: (i) dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e a apresentação de alegações finais escritas; (ii) indicou o prazo limite para proferir a decisão final arbitral e; (iii) notificou os Requerentes para procederem ao pagamento da taxa arbitral subsequente.
  4. No dia 26.09.2023, os Requerentes juntaram aos autos o comprovativo de pagamento da taxa de justiça subsequente.
  1. SANEAMENTO
  1. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
  2. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
  3. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
  4. O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas exceções, nem questões prévias, com exceção da coligação de autores, que de seguida se decidirá.

II.1 Questão Prévia – Da Coligação de Autores –

Os Requerentes alegam que se verificam os pressupostos do n.º 1, do artigo 3.º, do RJAT, para que se possa deduzir o presente pedido de pronúncia arbitral em regime de coligação, argumentando que “os impugnantes são mãe e filho, o facto tributário é o mesmo, resultando da liquidação de Imposto do Selo da mesma aquisição por usucapião”.

Dispõe o artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, que: “a cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos e a coligação de autores são admissíveis quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.

Resulta do citado artigo que a coligação de autores é admissível quando estamos perante a apreciação de idênticas circunstâncias de facto e a aplicação dos mesmos princípios e regras de direito, o que é o caso no presente processo arbitral, porquanto, o facto tributário é o mesmo, resultando as liquidações de Imposto do Selo da mesma aquisição por usucapião e a solução de direito a dar será a mesma em ambas as situações. 

Pelo que se admite a coligação de autores, ao abrigo do disposto nos artigos 3.º, n.º 1, do RJAT, 104.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante “CPPT”) e 36.º, do Código de Processo Civil (doravante “CPC”).

III. MATÉRIA DE FACTO

III.1. FACTOS PROVADOS

  1. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
  1. Em 13.12.2021, foi celebrada, no Cartório Notarial do Dr. C..., escritura pública de justificação, para aquisição por usucapião do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da Freguesia de ..., concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto, sob o n.º ... (Cfr. Escritura Pública de Justificação para Reatamento do Trato Sucessivo junta ao PPA). 
  2. Da aludida escritura ficou a constar, para além do mais: “(...) Que, nestes termos os aqui primeiros outorgantes, A..., a sua representada B... e D... são os únicos interessados nas referidas heranças sucedendo-lhes assim na indicada posse e fruição do mencionado prédio, e portanto há mais de sessenta anos, administrando-o, conservando-o, pagando os respetivos impostos, tudo isto ininterruptamente, sem violência ou oposição de quem quer que seja e à vista de toda a gente.

Esta posse, contínua, pacífica e pública conduziu à aquisição do direito de propriedade plena do mencionado prédio, por usucapião, pretendendo-se assim o registo, em comum e sem determinação de parte ou direito, a seu favor. (...)” (Cfr. Escritura Pública de Justificação para Reatamento do Trato Sucessivo junta ao PPA).  (sublinhado nosso)

  1. Na referida escritura pública de justificação ficou, ainda, exarado que ao aludido imóvel (com o valor patrimonial de €195.022,11) foi atribuído o valor de €590.000,00 (quinhentos e noventa mil euros) (Cfr. Escritura Pública de Justificação para Reatamento do Trato Sucessivo junta ao PPA). 
  2. Os Requerentes procederam, em 20.01.2022, à participação e submissão da declaração Modelo-1 do Imposto do Selo, tendo declarado a aquisição do referido imóvel por usucapião, a Requerente mãe na quota parte transmitida de 33/324 (correspondente a 33,64% da propriedade do dito prédio urbano) e o Requerente filho na quota parte transmitida de 109/324 (correspondente a 10,19% da propriedade do dito prédio urbano) (Cfr. Participações de Modelo 1 do Imposto do Selo juntos ao PPA, em 12.09.2023). 
  3. Nesta sequência, foram os Requerentes – filho e mãe –, notificados dos atos de liquidação de IS n.º..., no valor de €6.560,93, de 01.02.2022 e n.º..., no valor de €1.986,34, de 01.02.2022, respetivamente, que fizeram incidir o imposto sobre o valor patrimonial do prédio (Cfr. Liquidações do Imposto do Selo juntos ao PPA, em 12.09.2023). 
  4. Os Requerentes procederam, em 29.04.2022, ao pagamento do imposto dentro do prazo legal, tendo beneficiado da redução do valor pelo pagamento imediato, previsto no artigo 45.º, do Código do Imposto do Selo (doravante “CIS”) (Cfr. Comprovativos de pagamento das liquidações sindicadas juntos ao PPA, em 12.09.2023). 
  5. Em momento anterior à celebração da dita escritura pública de justificação, os Requerentes haviam já celebrado, em 29.10.2021, um contrato promessa de compra e venda, o qual tinha por objeto o imóvel melhor descrito em A., tendo as partes acordado que o preço global de venda ascenderia a €590.000,00 (quinhentos e noventa mil euros) (Cfr. Contrato Promessa de Compra e venda junto ao PPA). 
  6. Por escritura pública de compra e venda celebrada, em 28.01.2022, no Cartório Notarial do Dr. C..., os Requerente procederam, conjuntamente com D..., à venda do dito prédio urbano, pelo valor supra referido de €590.000,00 (quinhentos e noventa mil euros), tendo os compradores pago o Imposto sobre as Transmissões onerosas de Imóveis (doravante “IMT”) sobre esse valor (Cfr. Escritura Pública de Compra e Venda junta ao PPA).
  7. Os Requerentes requereram, em 04.05.2022, a revisão oficiosa das liquidações de IS aqui em crise, nos termos do artigo 78.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (doravante “LGT”), por considerarem que as aludidas liquidações de IS padeciam de erro na sua base de incidência, porquanto, “o imposto de selo deveria ter sido liquidado com base de incidência no valor real do prédio, €590.000,00 e não com base no valor patrimonial tributário.” (Cfr. Revisões oficiosas juntas ao PA). 
  8. Tais revisões oficiosas foram, posteriormente, convoladas pela AT em reclamações graciosas, com os n.ºs ...2022... e ...2022... (Cfr. Revisões oficiosas juntas ao PA). 
  9. A Requerente mãe foi notificada do projeto de indeferimento da reclamação graciosa e para efeitos de audição prévia, nos termos do artigo 60.º, da LGT, através do ofício 2022..., de 23.11.2022, com o registo RH...PT (o qual foi entregue, em 25.11.2022, a F... e por ela assinado) e o seu mandatário, através do ofício 2022..., de 23.11.2022, com o registo RH...PT (o qual foi entregue, em 25.11.2022, a E... e por ela assinado) (Cfr. PA).
  10. O Requerente filho foi notificado do projeto de indeferimento da reclamação graciosa e para efeitos de audição prévia, nos termos do artigo 60.º, da LGT, através do ofício 2022..., de 23.11.2022, com o registo RH...PT (o qual foi entregue, em 25.11.2022, a F... e por ela assinado) (Cfr. PA).
  11. Os Requerentes não exerceram o seu direito de audição prévia, nos termos do citado artigo, tendo sido notificados da decisão final de indeferimento das reclamações graciosas, a Requerente mãe, através do Ofício n.º 2023..., de 27.12.2022, com o registo RH...PT (o qual foi entregue, em 09.01.2023, a ... e por ele assinado), e o seu mandatário, através do ofício n.º 2023..., de 27.12.2022, com o registo RH...PT (o qual foi entregue, em 09.01.2023, a G... e por ela assinado) e o Requerente filho, através do ofício n.º 2023..., de 27.12.2022, com o registo RH...PT (o qual foi entregue, em 09.01.2023, a ... e por ele assinado) (Cfr. PA).
  12.  As decisões finais de indeferimento das aludidas reclamações graciosas tiveram por base os fundamentos já aduzidos nos projetos de indeferimento, para onde aquelas remetem:

(...)

5. A aquisição por usucapião é considerada uma transmissão gratuita, quando recaia, sobre imóveis, conforme o consignado no artigo 1º, n.º 3, alínea a) do I.Selo e previsto no artigo 1287 do Código Civil, sendo por conseguinte uma verdadeira aquisição originária, em que a mesma só ocorre no momento em que o documento que a titula se torna definitivo, ou seja, a celebração da Escritura de Justificação, conforme artigo 5º, alínea r), do CIS.

6. Assim, a aquisição por usucapião resulta na posse pelo adquirente no ato da justificação e não de qualquer negócio jurídico, seja ele oneroso ou gratuito, pelo que o valor tributável nas aquisições por usucapião, é o valor patrimonial tributário do prédio adquirido no momento em que se opera a transmissão conforme artigo 13º, n.º 1 do Imposto de Selo, e consequente nascimento da obrigação tributária.” (Cfr. PA).

  1. Não se conformando com as decisões finais de indeferimento das reclamações graciosas, os Requerentes apresentaram, em 29.03.2023, o presente pedido de pronúncia arbitral (Cfr. Sistema informático do CAAD). 

III.2 FACTOS NÃO PROVADOS

  1. Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

 

III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA FIXAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão, discriminar a matéria que julga provada e declarar, se for o caso, a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

O Tribunal arbitral considera provados, com relevo para a decisão da causa, os factos acima elencados e dados como assentes, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, dos factos alegados pelas partes que não foram impugnados e, a adequada ponderação dos mesmos à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum, e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

Conforme resulta da factualidade exposta, a questão controvertida consiste em saber se as liquidações de IS aqui sindicadas padecem de erro na sua base de incidência.

 

Consideram os Requerentes que: “a liquidação de imposto do selo, cuja impugnação se deduz, está errada na sua base de incidência”, porquanto, “o imposto de selo deveria ter sido liquidado com base de incidência no valor real do prédio, €590.000,00 e não com base no valor patrimonial tributário.

 

Para tanto, sustentam, em síntese, os Requerentes, que:

  1. Na data da celebração da escritura de justificação notarial, data da aquisição da propriedade e data do facto tributário, com o consequente nascimento da obrigação tributária, os impugnantes já tinham celebrado, em 29 de Outubro de 2021, contrato-promessa de compra e venda do referido prédio urbano, pelo valor de €590.000,00 (quinhentos e noventa mil euros); ou seja, à data do facto tributário, o valor real e de mercado do prédio urbano era de €590.000,00;
  2. O prédio esteve à venda, de forma pública e através de mediação formalizada por contrato de mediação com a H..., Lda., e consignada nos atos jurídicos a ela respeitantes, desde Maio de 2020, durante mais de um ano, sendo, assim, esse valor de €590.000,00 obtido pelo livre funcionamento do mercado (Cfr. Contrato de mediação imobiliária e respetiva adenda ao mesmo juntos ao PPA).
  3. O Imposto de Selo deveria ter sido liquidado com base de incidência no valor real do prédio, €590.000,00 e não com base no valor patrimonial tributário.
  4. O valor declarado é superior ao valor de avaliação (que deu origem ao valor patrimonial tributário), pelo que o Imposto de Selo deveria ter incidido sobre o valor declarado, de €590.000,00, nos termos do n.º 2, do artigo 13.º, CIS; tal facto é um corolário do princípio da prevalência da substância sobre a forma e dos princípios constitucionais da tributação do lucro real e da real capacidade contributiva.
  5. O imposto deve incidir sobre €198.476,00 (33,64% de €590.000,00), no caso do impugnante A..., e € 60.121,00 (10,19% de €590.000,00), no caso da impugnante B... .
  6. Aplicando-se a taxa de 10%, prevista na verba 1.2 da tabela do Imposto do Selo, os impugnantes terão de pagar o imposto no valor de €19.487,60, no caso do impugnante A..., e € 6.012,10, no caso da impugnante B... .

 

Vejamos, então, se assiste razão aos Requerentes.

 

IV.1 APRECIAÇÃO

O artigo 1.º, do CIS, sob a epígrafe “incidência objetiva”, estipula que o IS recai sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, livros, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstas na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens.

A tabela Geral do IS prevê, no seu n.º 1.2, como factos incidentes de IS as “aquisições gratuitas de bens, incluindo por usucapião”.

A usucapião traduz-se na posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, que, salvo disposição em contrário, faculta ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação. A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (Cfr. artigos 1251.º e 1287.º do Código Civil).

A usucapião, uma vez invocada, determina a aquisição originária do direito correspondente à posse exercida, pelo que há que concluir que não estamos perante uma transmissão do direito anteriormente incidente sobre a coisa e correspondente ao adquirido por usucapião. A usucapião é uma forma de constituição de direitos reais e não uma forma de transmissão. Daí que os direitos que nela tenham a sua origem não sofrem em nada com os vícios de que pudessem eventualmente padecer os anteriores direitos sobre a mesma coisa, v.g a falta de título ou a falta de registo. Na aquisição por usucapião estamos perante uma forma de aquisição de direito que se funda na posse (poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real), quando esta reveste certas caraterísticas e desde que se mostrem verificados alguns requisitos, relativos, nomeadamente, ao seu tempo de duração, sendo certo que a usucapião tem sempre na sua base uma situação possessória e essa posse ter sido constituída ex novo pelo sujeito a quem a usucapião aproveita ou pode derivar da transmissão, a favor desse sujeito, de posse anterior. A invocação dessa posse apta à usucapião, tanto pode ser feita judicial como extrajudicialmente (como no presente caso aconteceu).

Contudo, na interpretação sistemática das normas do CIS (Cfr. artigo 9.º, do Código Civil), o legislador sentiu necessidade de consagrar a equivalência das aquisições por usucapião às transmissões gratuitas (Cfr. artigos 1.º, n.º 3, al. a)[1] e 2.º, n.º 2, al. b)[2], do CIS), apesar da diferente natureza jurídica de ambas as situações.

Neste sentido, veja-se a jurisprudência uniformizada ínsita no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (doravante “STA”), proferido no processo n.º 0746/11, de 02.05.2012, em que é sumariado o entendimento seguinte:

I. Quando o legislador veio no artigo 1.º, n.º 3, do CIS, dizer que para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral são consideradas transmissões gratuitas, designadamente a aquisição por usucapião, não ignorava que a usucapião não consubstancia uma aquisição translativa da propriedade, nem quis alterar essa natureza, visando apenas alargar a base de incidência, equiparando a usucapião às transmissões gratuitas, o que equivale a uma ficção legal para efeitos fiscais.

II. É, portanto, irrelevante o momento da aquisição do direito de propriedade para efeitos do nascimento da obrigação tributária, pois esta se constituiu com a transmissão gratuita operada por via da escritura de justificação notarial (al. r) do artigo 5.º[3] do CIS), incluindo o imposto sobre o ato de aquisição por usucapião. (...)”. (negrito nosso)

Assim, e conforme referiu a AT, na fundamentação por si aduzida nos projetos de indeferimento das ditas reclamações graciosas: “A aquisição por usucapião é considerada uma transmissão gratuita, quando recaia sobre bens imóveis, conforme consignado no artigo 1.º, n.º 3, alínea a), do I.Selo e previsto no artigo 1287 do Código Civil, sendo por conseguinte uma verdadeira aquisição originária, em que a mesma só ocorre no momento em que o documento que a titula se torna definitivo, ou seja, a celebração da escritura de justificação, conforme artigo 5.º, alínea r) do CIS.

E, é a aquisição originária do imóvel por usucapião, operada por via da escritura de justificação notarial celebrada pelos Requerentes, que está em causa nos autos e cuja tributação se discute (designadamente, a sua base de incidência) e não quaisquer outros negócios jurídicos celebrados pelos Requerentes quanto ao mesmo imóvel (contrato promessa de compra venda e escritura pública de compra e venda).

Pelo que considera o Tribunal Arbitral que é irrelevante para apreciação da questão aqui sindicada, o facto de os Requerentes, em momento anterior à escritura de justificação, terem celebrado um contrato promessa de compra e venda do aludido imóvel, pelo valor de €590.000,00 e, posteriormente, terem celebrado a escritura pública definitiva pelo mesmo montante, porquanto, as liquidações de IS aqui em crise visam tributar a aquisição por usucapião do referido prédio urbano, operada por via da escritura de justificação notarial, e não, repita-se, outros negócios jurídicos.

Neste sentido, há que chamar à colação o artigo 13.º, do CIS, que prevê a determinação do valor tributável dos imóveis para efeitos de liquidação do imposto do selo nas transmissões gratuitas, estabelecendo, para o que aqui releva, que tal valor será:

  1.  O valor patrimonial tributários dos prédios, urbanos e rústicos, que conste da respetiva matriz predial ou o valor determinado por avaliação, no caso de prédios omissos ou de prédios inscritos na matriz sem valor patrimonial (n.ºs 1 e 4), sendo facultada aos interessados que fundamentalmente considerem excessivo o valor patrimonial tributário inscrito na matriz, a possibilidade de requerer a avaliação dos prédios (n.º 5);
  2.  O valor declarado ou resultante de avaliação, no caso de imóveis e direitos sobre eles incidentes, não suscetíveis de inscrição matricial ou cujo valor não possa ser determinado por aplicação do CIMI (n.º 2).

 

 O n.º 1, do citado artigo estabelece aquela que será a regra geral, determinando que o valor tributável dos prédios é o seu valor patrimonial tributário constante da matriz à data da transmissão. Tratando-se de prédios não inscritos nas matrizes, ou que nestas constem sem valor patrimonial, o valor tributável é, igualmente, o valor patrimonial tributário, determinado por avaliação.

Já o n.º 2, do artigo 13.º, do CIS, de que os Requerentes se socorrem para tentar fazer valer a sua pretensão, refere-se “aos imóveis, e direitos sobre eles incidentes, cujo valor não seja objeto de inscrição na matriz ou cujo valor não possa ser determinado por aplicação das regras do CIMI. Tratar-se-á de hipóteses residuais, já anteriormente consideradas no CIMSISD (...).” (Cfr. J. Silvério Mateus, L. Corvelo de Freitas, “Os Impostos sobre o Património Imobiliário, O Imposto do Selo, Anotados e Comentados”, 1ª Edição, Engifisco – 2005, página 611) (negrito nosso).

Resulta inequivocamente dos autos que o imóvel aqui em apreço não se enquadra em nenhuma das hipóteses do no n.º 2, do artigo 13.º, do CIS, porquanto, trata-se de um prédio urbano cujo valor patrimonial estava inscrito na matriz (€195.022,11) à data da transmissão (aquisição por usucapião), conforme consta da escritura pública de justificação para reatamento do trato sucessivo junta ao PPA, pelo que será de aplicar à situação aqui descrita a regra geral ínsita no n.º 1, do artigo 13.º, do CIS, ao contrário do que entendem os Requerentes.

Neste sentido, fazemos nossa a conclusão da Requerida de que a aquisição por usucapião: “(...) resulta na posse pelo adquirente no ato da justificação e não de qualquer negócio jurídico, seja ele oneroso ou gratuito, pelo que o valor tributável nas aquisições de usucapião, é o valor patrimonial tributário do prédio adquirido, no momento em que se opera a transmissão, conforme artigo 13.º, n.º 1, do Código do Imposto de Selo, e consequente nascimento da obrigação tributária.”  (negrito nosso)

Assim, face ao supra exposto, julga-se improcedente o pedido arbitral formulado pelos Requerentes a este respeito.

***

Por outro lado, vieram, ainda, os Requerentes alegar, a título subsidiário, que o Requerente filho não foi notificado do direito de audição prévia, o que consubstancia um vício de forma, verificando-se, assim, uma nulidade processual.

Do PA junto aos autos consta o ofício n.º 2022..., de 23.11.2022, com o assunto: “Notificação de Audição Prévia” (dirigido ao sujeito passivo – Requerente filho – e para a morada por ele indicada – Rua..., n.º ..., ...-... Porto), acompanhado do formulário dos CTT (Correio Registado/Talão de Aceitação), devidamente preenchido, e do registo RH...PT, o qual foi entregue, em 25.11.2022, na referida morada, e assinado por F... .

Conforme dispõe o n.º 3, do artigo 39.º do CPPT, “havendo aviso de receção, a notificação considera-se efetuada na data em que ele for assinado e tem-se por efetuada na própria pessoa do notificando, mesmo quando o aviso de receção haja sido assinado por terceiro presente no domicílio do contribuinte, presumindo-se neste caso que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário”.

Como é bom de ver, não existem nos autos motivos para se considerar que tal presunção não operou, porquanto, a aludida notificação foi remetida para a morada indicada pelo sujeito passivo e o aviso de receção entregue e assinado, nessa mesma morada, não tendo o Requerente filho alegado quaisquer factos que permitissem ilidir tal presunção, ónus que só sobre ele recaía, limitando-se a referir que não a recebeu.

Aliás, muito se estranha que tal ofício não tenha chegado ao seu conhecimento, pois, a notificação para o exercício do direito de audição prévia dirigida à Requerente mãe (ofício 2022..., de 23.11.2022, com o registo RH...PT), e que os Requerentes assumem ter recebido, foi dirigida para a mesma morada, tendo o aviso de receção sido entregue na dita morada e assinado no mesmo dia e pela mesma pessoa (F...), ou seja, em tudo idêntico à notificação do Requerente.

Daí que tenha sido dado como assente, o facto indicado no ponto L., dos factos provados: “O Requerente filho foi notificado do projeto de indeferimento da reclamação graciosa e para efeitos de audição prévia, nos termos do artigo 60.º, da LGT, através do ofício 2022..., de 23.11.2022, com o registo RH...PT (o qual foi entregue, em 25.11.2022, a F... e por ela assinado) (Cfr. PA).

Dito isto, não há qualquer vício de forma a apreciar, por ter o Requerente filho sido notificado para efeitos de audição prévia, nos termos do artigo 60.º, da LGT, pelo que se dispensa o Tribunal Arbitral de se pronunciar sobre as consequências jurídicas decorrentes de um eventual vício de forma, ao abrigo da proibição da prática de atos no processo inúteis e desnecessários, prevista no artigo 130.º, do CPC, subsidiariamente aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

Face a todo o exposto, falece, também, este segmento argumentativo dos Requerentes, devendo os atos de liquidação do IS aqui sindicados manter-se na ordem jurídica. 

V. DECISÃO

Termos em que se decide julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelos Requerentes e, em consequência, absolver a Requerida do pedido.

VI. VALOR DA CAUSA

Fixa-se ao processo o valor de €8.547,27 (oito mil quinhentos e quarenta e sete euros e vinte sete cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

VII. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €918,00 (novecentos e dezoito euros), nos termos da tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo dos Requerentes.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 27 de novembro de 2023

 

(Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT)

 

A Árbitra,

Susana Mercês de Carvalho

 



[1] Para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral, são consideradas transmissões gratuitas designadamente, as que tenham por objeto: a) Direito de propriedade ou figuras parcelares desse direito sobre bens imóveis, incluindo a aquisição por usucapião.

[2] Nas transmissões gratuitas, são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares para quem se transmitam os bens, sem prejuízo das seguintes regras: b) Nas demais transmissões gratuitas, incluindo as aquisições por usucapião, o imposto é devido pelos respetivos beneficiários.

[3] A obrigação tributária considera-se constituída: r) Nas aquisições por usucapião, na data em que transitar em julgado a ação de justificação judicial, for celebrada a escritura de justificação notarial ou no momento em que se tornar definitiva a decisão proferida em processo de justificação nos termos do Código do Registo Predial.