Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 195/2023-T
Data da decisão: 2023-11-28  IRS  
Valor do pedido: € 16.924,72
Tema: IRS - mais-valias; reinvestimento; empréstimo contraído para a aquisição do imóvel; encargos e despesas dedutíveis ao valor da realização;
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Sumário:

I - Não há fundamento para negar relevância anulatória à violação do direito a ser ouvido se a observância do prazo legal pudesse conduzir à caducidade do direito à liquidação, por não se poder demonstrar, nessas hipóteses, que o fim visado pela exigência procedimental foi plenamente alcançado através do procedimento de reclamação graciosa, e por não se comprovar, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.

II – De acordo com o artigo 10, n.º 5, a) do CIRS, há lugar à dedução, para efeitos de cálculo do valor da realização, da amortização de empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, não estando tal requisito verificado quando o imóvel alienado tenha sido adquirido a título gratuito, mediante doação, mesmo que, na sequência de tal negócio jurídico, o sujeito passivo tenha contraído um empréstimo com o propósito de financiar obras de remodelação.

III – Entende-se que o conceito da valorização dos bens a que se reporta a alínea a) do n.º 1 do artigo 51 do CIRS deverá abarcar todos os encargos que apresentem um nexo causal com a valorização económica dos bens objeto de alienação, sob pena de, assim não se considerando, se poder desvirtuar uma tributação que deve, tanto quanto possível, assentar sobre o rendimento líquido resultante de tal incremento patrimonial.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

1. A... e B..., titulares do n.º de identificação fiscal..., com domicílio fiscal na Rua ..., ...-..., ...-... Caparica (doravante, Requerentes), apresentaram, em 21-03-2023, pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2, n.º 1, al. a), e 10, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa.

 

2. No pedido de pronúncia arbitral, os Requerente pedem:

(i) a anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa com o n.º ...2022...;

(ii) a anulação da liquidação de IRS com o n.º 2021..., com referência ao ano de 2017, emitida em 14-12-2021, bem como da liquidação de juros compensatórios;

(iii) a condenação da AT no reembolso das quantias pagas indevidamente, acrescidas de juros indemnizatórios. 

 

3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida).

 

4. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 22-03-2023.

 

5. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6, n.º 2, alínea a) e do artigo 11, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo devido.

 

6. Foram as partes, no mesmo dia, notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6 e 7 do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11 do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído no dia 30-05-2023.

 

7. Em 31-05-2023, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional (cf. artigo 17.º do RJAT). O Despacho foi notificado na mesma data.

 

8. A Requerida veio apresentar resposta, em 27-06-2023, remetendo o Processo Administrativo, na sequência do qual foram as partes notificadas, por Despacho prolatado no dia 28-06-2023, de que poderiam, no prazo de 10 (dez) dias, apresentar alegações escritas, facultativas e simultâneas, de harmonia com o preceituado no artigo 120, n.º 1 do CPPT, aplicável ex vi do artigo 29, n.º 1, al. c) d RJAT.

 

9. A Requerente apresentou alegações escritas no dia 14-07-2026, reiterando o que constava do pedido de pronúncia arbitral. A Requerida apresentou as suas alegações escritas no dia 07-07-2023, reiterando o teor da resposta.

 

II. Síntese da posição das partes

10. A posição das partes pode ser sintetizada da seguinte forma:

(a) Os Requerentes pugnam pela anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa e da liquidação de IRS referente ao ano de 2017, bem como da liquidação de juros compensatórios. Estas liquidações resultaram de um procedimento de gestão de divergências, no qual a AT concluiu pela necessidade de corrigir os campos 4 e 5 do anexo G da declaração de IRS relativa a 2017, nomeadamente os valores referentes a “encargos e despesas” na aceção do artigo 51, n.º 1, a) do CIRS, e o valor inserido no campo 5005 do quadro 5 relativo à dívida do empréstimo à data da alienação.

(b) Alegam os Requerentes que a referida liquidação é ilegal, por preterição do direito de audiência prévia a que alude o artigo 60, n.º 1, a) da LGT. Entendem, com efeito, que, apesar de terem podido pronunciar-se, em 14-12-2021, sobre o projeto de decisão de correção dos elementos declarados, não foi (nem poderia) tal pronúncia tida em conta na liquidação que agora impugnam, que data de 14-12-2021. Não há lugar à aplicação do princípio do aproveitamento do ato, que se extrai do artigo 163, n.º 5 do CPTA, nem à sanação do vício originado pela falta de audição prévia, por não estarem verificados os seus requisitos.

(c) Finalmente, os Requerentes alegam que a liquidação é ilegal, por violação do disposto no artigo 10, n.º 5, a) do CIRS, porquanto errou a AT ao não permitir a dedução, ao valor da realização, do valor (residual) do empréstimo contraído junto do C... AG em 2011, nem a dedução dos encargos com obras realizadas no imóvel, que se enquadram nos “encargos com a valorização dos bens”, na aceção do artigo 51, n.º 1, a) do mesmo Código e que, segundo os Requerentes, foram devidamente comprovados.

(d) A Requerida (AT) concede que houve preterição do direito de audiência prévia do ato de liquidação. Contudo, tendo sido dada aos Requerentes a faculdade de se pronunciarem aquando do procedimento de reclamação graciosa, entende a Requerida que o vício de preterição de formalidade legal se encontra sanado, em linha com o artigo 163, n.º 5 do CPTA (princípio do aproveitamento do ato), tal como interpretado pela jurisprudência do STA.

(e) Entende a Requerida (AT) que a liquidação não está ferida de ilegalidade uma vez que, estando em causa mais-valias provenientes da alienação de imóveis adquiridos gratuitamente (doação), não pode haver dedução, ao valor da realização, de amortização de empréstimos com a aquisição do imóvel. Por outro lado, considera a Requerida que a correção do valor de despesas e encargos constante da declaração apresentada pelos contribuintes – de €103.751,03 para €20.501,15 – não merece censura, porquanto as despesas relativas a obras efetuadas na fração alienada não foram devidamente comprovadas pelos Requerentes.

(f) Isto por uma série de razões: (i) as faturas apresentadas não discriminam nem identificam os serviços realizados no imóvel, remetendo genericamente para o orçamento; (ii) os serviços listados no orçamento demonstram que não está em causa uma intervenção de “valorização” da fração, mas antes a realização de despesas que visam a transformação e a conservação do imóvel; (iii) o orçamento remete para a aquisição de eletrodomésticos, que, constituindo coisas móveis na aceção da lei civil, não integram o conceito de encargos com a valorização do imóvel; (iv) o preenchimento das faturas apresentadas não cumpriu o preceituado no artigo 36, n.º 5, b) do CIVA, aplicável por força das regras gerais da hermenêutica jurídica (artigo 11, n.º 1 LGT) e, a fortiori, tendo em conta o disposto no artigo 78, n.º 6, b), i) do CIRS, aplicável à comprovação de despesas para efeitos de dedução à coleta.

(g) Mesmo que não vingue a tese da sanação do vício de preterição de formalidade legal por ausência de audição prévia, e que o ato de liquidação seja anulado, não há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43 da LGT. Em linha com a jurisprudência constante do STA, não são devidos juros indemnizatórios quando a impugnação do ato de liquidação procede com fundamento em vício de forma, como sucede nos casos de preterição de formalidade essencial como o direito de audição prévia, por se considerar que nessas hipóteses não existe “erro imputável aos serviços”.

 

III – Saneamento

11. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2, n.º 1, a) e 5 do RJAT).

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10, n.º 1, a), do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4 e 10, n.º 2 do RJAT e artigo 1 da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março, na redação da Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro).

 

12. O processo não enferma de nulidades.

 

Cumpre, pois, apreciar e decidir.

 

IV – Matéria de facto

§1. Factos provados

13. Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

1.º - No dia 11-05-2011, a Requerente adquiriu, por doação, a fração autónoma designada pela letra “N” do artigo urbano n.º ... da freguesia de ..., situada na Rua..., n.º ..., ...-..., Lisboa (cf. escritura pública sob o doc. 18).

2.º - Foi atribuído ao imóvel o valor de €114 200, 00 (cf. doc. 37).

3.º - No dia 26-07-2017, os Requerentes alienaram a referida fração urbana pelo valor de €325 000 (cf. escritura pública sob o doc. 19).

4.º - A fração urbana referida nos n.ºs 1.º e 2.º foi, entre a data da aquisição e a data da alienação, a habitação própria e permanente dos Requerentes (cf. doc. 31).

5.º - Em 19-05-2011, a Requerente contraiu um empréstimo junto do C..., S.A., no montante de €107 500, mediante constituição de hipoteca sobre a fração autónoma designada pela letra “N” do artigo urbano n.º... da freguesia de ..., cujo valor residual, à data da alienação, era de €91 005, 29 (conforme declaração do C..., S.A sob o doc. 30). O empréstimo foi contraído com o propósito de financiar obras de remodelação do imóvel (cf. doc. 16, com a pronúncia dos Requerentes), que foram realizadas (cf. o orçamento identificado sob o doc. 28 e as faturas identificadas sob os docs. 24, 25, 26 e 27).

6.º - No dia 11-08-2017, os Requerentes adquiriram uma fração urbana inscrita na matriz predial urbana da União de freguesias da ... sob o artigo urbano n.º ..., por €300 000 (cf. escritura pública sob o doc. 20). 

7.º - Para a aquisição da fração urbana identificada no número anterior, os Requerentes receberam, a título de empréstimo do D..., S.A, a importância de €90 000, em favor do qual constituíram uma hipoteca.

8.º - A fração urbana mencionada no n.º anterior destina-se a habitação própria e permanente dos Requerentes.

9.º - Com referência ao ano de 2017, os Requerentes apresentaram declaração periódica de rendimentos, onde fizeram constar, dos quadros 4 e 5 anexo G, o seguinte:

 

10.º - Para suporte dos montantes inseridos no quadro 4 do Anexo G, os Requerentes juntaram fatura referentes às despesas notariais no valor de €446,00, fatura relativa à certificação energética no valor de €67,65, fatura referente às despesas de mediação imobiliária no valor de €19 987,50, e ainda quatro (4) faturas emitidas pela E..., Lda. referentes a obras realizadas no imóvel alienado, no total de €83 249,88, e o respetivo orçamento (cf. doc. 21 a 28).

11.º - A Direção de Finanças de Setúbal instaurou um procedimento de gestão de divergências com o n.º ...2018..., corrigindo os quadros 4 e 5 do anexo G da declaração apresentada pelos Requerentes:

 

Comparando com a declaração apresentada pelos Requerentes, foram corrigidos os campos referentes ao valor em dívida do empréstimo à data da alienação, que deixou de estar preenchido, e o campo referente às despesas e encargos com o imóvel alienado, de onde passou a constar o montante de €20 501, 15 e não já o valor de €103 751,03. Este valor resulta da desconsideração, pela AT, dos montantes despendidos em obras (€83 249,88). Sobre este ponto, consta da fundamentação do procedimento de divergências, concluído em 15-12-2021, o seguinte: “É, assim, de concluir pelas razões aduzidas, que as reparações levadas a cabo no prédio em causa não se subsumem ao conceito de “encargos com a valorização dos bens”, na medida em que não se encontra demonstrado o nexo causal entre as obras efetuadas e o imóvel alienado quanto ao valor intrínseco incorporado no imóvel e, por conseguinte, não devem tais despesas serem (sic) adicionadas ao valor de aquisição do imóvel” (cf. processo administrativo junto pela Requerida).

12.º - Por Ofício n.º ..., de 25-11-2011, foram os Requerentes notificados para, ao abrigo do artigo 60 da LGT, e no prazo de 15 dias, exercerem o direito de audição sobre o projeto de decisão e decisão de correção dos elementos declarados na declaração de IRS do ano de 2017, no âmbito do processo de gestão de divergências (doc. 13).

13.º - Os Requerentes exerceram o seu direito de audiência, por escrito, através de documento remetido à Direção de Finanças de Setúbal no dia 14-12-2021.

14.º - Em 26-01-2022, sob o Ofício n.º ..., foram os Requerentes notificados da fundamentação das correções aritméticas efetuadas ao rendimento de 2017 (cf. doc. 15).

15.º - Em 14-12-2021, foi emitida a liquidação de IRS n.º 2021... . Em 17-12-2021, foram os Requerentes notificados da liquidação de juros compensatórios e da demonstração de acerto de contas (cf. doc. 4 e 5).

16.º - O documento escrito de onde conta a audição prévia dos Requerentes não foi tido em conta no ato de liquidação de IRS de 14-12-2021.

17.º - Os Requerentes pagaram o IRS em 25-01-2022.

18.º - Em 23-05-2022, os Requerentes apresentaram reclamação graciosa (identificada sob o n.º ...2022..., ao abrigo do artigo 68 CPPT, requerendo a anulação da liquidação de IRS com fundamento em violação do direito de audiência prévia (artigo 60, n.º 1, a) da LGT) e em violação do artigo 10, n.º 5, a) do CIRS, por a AT ter desconsiderado, na determinação do valor da realização, o empréstimo contraído junto do C..., S.A (doc. 30) e os montantes despendidos em obras no imóvel alienado (doc. 38). 

19.º - No contexto desse procedimento, os Requerentes foram notificados, em 29-11-2022, para exercerem o seu direito de audição prévia, ao abrigo do artigo 60, n.º 1, a) da LGT – o que não fizeram.

20.º - Em 22-12-2022, foi proferido despacho de indeferimento de reclamação graciosa.

21.º - Em 21-03-2023, os Requerentes apresentaram o pedido de pronúncia arbitral que agora se aprecia.

22.º - Os requerentes não apresentaram a declaração a que alude o artigo 13, n.º 1 do CIMI (cf. doc. 16).

§2. Factos não provados

14. Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.

§3. Fundamentação da matéria de facto

15. O Tribunal arbitral fundou a sua convicção quanto aos factos provados com base na prova documental produzida, constante do processo administrativo junto aos autos.

 

16. Não é contestado pela AT que o direito de audiência prévia referente à liquidação emitida em 14-12-2021 foi preterido, isto é, que a liquidação foi emitida antes de o documento escrito enviado pelos Requerentes em 14-12-2021 chegar ao conhecimento da AT (15-12-2021), o qual foi, portanto, absolutamente desconsiderado (ponto 48 da Resposta da Requerida).

 

17. O Tribunal arbitral não tem de se pronunciar, por hora, sobre se as despesas realizadas em obras no imóvel alienado se subsumem no conceito “encargos com a valorização dos bens”, a que alude o artigo 51, n.º 1, a) do CIRS, que é um conceito jurídico, cujo teor deverá ser analisado aquando da fundamentação de direito. Em todo o caso, este Tribunal Arbitral fundou a convicção de que o orçamento apresentado sob o doc. 28 tem por objeto obras a realizar no imóvel alienado (que aí surge identificado) e que as faturas emitidas pela E..., Lda. (doc. 24, 25, 26 e 27), que remetem para o mencionado orçamento, identificam a adquirente dos bens e serviços como sendo um dos Requerentes. O Tribunal não dá relevo, neste juízo, ao facto de uma das faturas (doc. 21) ter sido emitida antes da data de elaboração do orçamento (26-05-2011), porquanto é evidente que a fatura remete para uma obra referenciada sob o número 005.2011, constituindo tal obra aquela a que o orçamento se refere. A corroborar a conexão entre tais obras e o imóvel em causa está a circunstância de este ter sido alienado por um valor substancialmente superior ao VPT que lhe foi atribuído em 2011, para efeitos da liquidação de IMI.

 

18. Tão-pouco é controvertido entre as partes que o imóvel alienado, gerador das mais-valia, foi adquirido gratuitamente, por doação. Os Requerentes argumentam, contudo, que o artigo 10, n.º 5, a) do CIRS deve ser interpretado no sentido de permitir a dedução do valor residual de empréstimo contraído para o financiamento de obras em imóvel adquirido gratuitamente. Mas, como se compreende, esta é uma questão de direito e não de facto, que será tratada infra.

 

V – Fundamentação de direito

19. Confrontado o pedido de pronúncia arbitral e a resposta apresentada pela AT, assim como as alegações de ambas as partes, constata-se que são quatro as questões de direito a decidir no âmbito do presente processo: (i) da ilegalidade do ato de liquidação de IRS e respetivos juros compensatórios, por preterição do direito de audiência prévia dos Requerentes (a matéria de facto subjacente a tal questão não é controvertida entre as partes, como se concluiu supra em §3. Fundamentação da matéria de facto); (ii) da ilegalidade do ato de liquidação de IRS e respetivos juros compensatórios, por violação do artigo 10, n.º 5, a) do CIRS, por a AT ter corrigido a declaração de IRS dos Requerentes em termos que desconsideram, no apuramento do valor da realização, o empréstimo contraído em 2011 junto do C..., S.A. (“valor em dívida do empréstimo à data da alienação”); (iii) da ilegalidade do ato de liquidação de IRS e respetivos juros compensatórios por violação do artigo 51, n.º 1, a) do CIRS, na medida em que, nas correções efetuadas, a AT desconsiderou os montantes despendidos pelos Requerentes em obras no imóvel alienado, que estes entendem ser “encargos com a valorização do imóvel”; (iv) caso se conclua que o ato de liquidação não deve manter-se na ordem jurídica, se são devidos juros indemnizatórios pela AT aos Requerentes e em que termos.

 

§A. Da ilegalidade da liquidação por preterição do direito de audiência prévia dos Requerentes

 

20. De acordo com o artigo 60, n.º 1, a) da LGT [princípio da participação], o contribuinte tem o direito de ser ouvido antes da liquidação. A audição do contribuinte constitui uma formalidade essencial, tida como indispensável e cuja preterição ou omissão gera a invalidade do ato de liquidação. De acordo com o artigo 163, n.º 1 do CPA, são anuláveis os atos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra sanção. Visto que a preterição do direito de audiência prévia não afeta o conteúdo essencial de um direito fundamental (exceção feita aos procedimentos administrativos sancionatórios, por efeito do disposto no n.º 10 do artigo 32 da CRP), a omissão dessa formalidade é geradora de um vício de forma, sancionável com anulabilidade.

 

21. A preterição do direito de audiência é suprível, isto é, não produz o efeito anulatório que lhe está associado, se verificada alguma das hipóteses em que há lugar ao aproveitamento do ato, nos termos do n.º 5 do artigo 163 do CPA (“5. Não se produz o efeito anulatório quando: a) o conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível; b) O fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via; c) Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo”).

 

22. Uma das situações em que, nos termos deste dispositivo, se admite a não cominação de efeito anulatório ocorre, precisamente, quando “o fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via” (cf. artigo 163, n.º 5, b) do CPA). Ora, no domínio tributário, a participação do contribuinte no processo de tomada de decisão assume uma finalidade sobretudo garantística. Ou seja, do que se trata é de permitir que o contribuinte aprecie a legalidade da decisão projetada, contribuindo para a descoberta da verdade material e minorando o risco de decisões ilegais desvantajosas para a sua esfera patrimonial (cf. Rui Duarte Morais, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2012, p. 34).

 

23. Como resulta da jurisprudência consolidada do STA, em especial do acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário de 26-09-2018, processo 01506/17.8BALSB, “[e]ntre as situações em que se admite que não se produza o efeito anulatório de preterição do direito de audiência prévia, a par daquelas em que se demonstre que o exercício desse direito não poderia influenciar de modo algum a decisão, contam-se também aqueles em que, tendo sido omitida a audiência de procedimento de primeiro grau, o interessado teve oportunidade de se pronunciar em procedimento de 2.º grau”. Nestas hipóteses, quer o ato de primeiro grau tenha sido mantido na ordem jurídica quer tenha sido revogado, a decisão administrativa final acaba por ser o ato de 2.º grau (através da qual foi decidido, por exemplo, um procedimento de reclamação graciosa), pelo que será este o ato a ter em consideração para efeitos de saber se o contribuinte pôde, ou não, exercer o seu direito de audição (cf., neste sentido, Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário - Volume I - Anotado e Comentado, Áreas, 2011, pp. 438-441). 

 

24. Este entendimento conhece alguns desvios, igualmente reconhecidos pela doutrina e pela jurisprudência, designadamente quando o contribuinte não lança mão dos mecanismos de reação administrativa (impugnando judicialmente o ato de liquidação); quando há lugar a indeferimento tácito da reclamação graciosa, uma vez que nestas hipóteses a AT não chega verdadeiramente a pronunciar-se sobre o teor da reclamação sendo, por essa razão, impossível garantir que as finalidade associadas à audiência do contribuinte foram plenamente cumpridas; ou quando se demonstre que a observância do prazo legal de audição do contribuinte – e a necessidade de a AT tomar em conta os elementos de facto e de direito constantes dessa pronúncia – poderiam conduzir à caducidade do direito à liquidação (cf. acórdão do STA, 2.ª secção, processo 0764/18.5BEPRT, 13-09-2023, de cujo sumário consta o seguinte: “II - Não há fundamento para negar relevância anulatória à violação do direito a ser ouvido se a observância do prazo legal pudesse conduzir à caducidade do direito à liquidação”).

 

25. Ora, não há dúvidas de que, ao apresentar o pedido de reclamação graciosa, os Requerentes puderam reiterar as considerações vertidas no documento enviado à AT no dia 14-12-2021, que as pôde ter em conta na decisão desse procedimento de 2.º grau (que foi de indeferimento expresso). Contudo, não está este Tribunal arbitral convencido de que essa fosse, in casu, a única finalidade do exercício do direito de audição pelos Requerentes. Nem tão-pouco que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo, na aceção da al. c) do n.º 5 do artigo 163 do CPA.

 

26. Interessava, com efeito, à AT efetuar a liquidação de IRS o mais rapidamente possível, de modo a obstar à caducidade do direito de liquidar nos termos do artigo 45, n.º 1 da LGT. O prazo normal de caducidade, que é de quatro anos, conta-se, nos impostos periódicos como é o IRS, “a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário”, ou seja, a partir de 31 de dezembro de 2017 (in casu). Nenhuma das causa de suspensão do prazo de caducidade referidas no artigo 46, n.ºs 1, e 3 da LGT se aplica no caso concreto e o artigo 95 do CIRS (Prazo de caducidade) não se afasta da regulação geral prevista naquele normativo. Daqui resulta que o prazo para corrigir a liquidação terminaria em 31 de dezembro de 2021.

 

27. Ora, in casu, ao praticar o ato de liquidação sem aguardar pela pronúncia dos contribuintes, a AT não se limitou a preterir uma formalidade essencial do procedimento tributário, mas obstou – igualmente – a que a observância da tramitação devida pudesse conduzir à caducidade do direito à liquidação, que é uma garantia dos contribuintes, na medida em que o decurso do prazo de caducidade conduz à preclusão do direito do Estado de promover a liquidação dos impostos que lhe sejam eventualmente devidos (cf., neste sentido, o acórdão TC n.º 557/2018, Processo n.º 418/18, tirado em Plenário em 23-10-2018). Neste sentido, não só o fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida não foi integralmente alcançado a posteriori, como tão-pouco é possível garantir, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo. A comprová-lo está a circunstância de a fundamentação das correções aritméticas efetuadas no rendimento obtido no ano de 2017 só ter sido notificada aos contribuintes em 26-01-2022 (doc. 15).

 

28. É mister concluir, portanto, que não estão reunidos os requisitos para a não cominação de efeito anulatório ao ato de liquidação, que, porque ilegal, deverá ser removido da ordem jurídica. Tratando-se de uma ilegalidade que afeta o ato na sua integralidade, mostrar-se-ia desnecessário proceder à apreciação dos demais vícios imputados ao ato de liquidação. Contudo, atenta a circunstância de a procedência do pedido relativo a juros indemnizatórios poder depender do tipo de vício imputado ao ato de liquidação, o Tribunal arbitral entende dever apreciar as demais ilegalidades apontadas pelos Requerentes no PPA.

 

§B. Da ilegalidade do ato de liquidação de IRS e respetivos juros compensatórios, por violação do artigo 10, n.º 5, a) do CIRS

 

29. Num segundo momento do PPA, os Requerentes impugnam a legalidade do ato de liquidação de IRS e respetivos juros compensatórios, efetuada ao arrepio do artigo 10, n.º 5, a) do CIRS, por a AT ter corrigido a declaração de IRS dos Requerentes em termos que desconsideram, no apuramento do valor da realização, o empréstimo contraído em 2011 junto do C..., S.A. (“valor em dívida do empréstimo à data da alienação”).

 

30. As mais-valias, enquanto rendimento integrado na categoria G (artigo 9, n.º 1, a) CIRS), constituem incrementos patrimoniais não associados à realização de uma atividade produtiva com caráter periódico e regular. Aliás, o artigo 10, n.º 1 do CIRS, ao estatuir que só são consideradas mais-valias os ganhos não integráveis nas categorias B (rendimentos profissionais e empresariais), F (prediais) e E (capitais), reforça que estão em causa, sobretudo, atos de gestão patrimonial levados a cabo pelo sujeito passivo com caráter ocasional e fortuito – os apelidados “windfall gains”. 

 

31. Uma mais-valia imobiliária consiste na diferença positiva (ganho) entre o valor obtido com a transmissão do imóvel (valor da realização) e o valor da aquisição. Para apuramento da mais-valia imobiliária, o legislador, focado no apuramento do ganho obtido pelo contribuinte com a transação patrimonial, permite que ao valor da realização se deduza, não só o valor da aquisição, como também os encargos e despesas necessários à obtenção do rendimento (artigo 51, n.º 1, a) CIRS), onde se incluem os “encargos com a valorização dos bens” e as “despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação”, entre outras. Trata-se de uma dedução alicerçada no princípio da igualdade tributária e da capacidade contributiva (artigo 13 CRP), uma vez que constituindo as mais-valias ganhos não imputáveis a uma atividade económica levada a cabo pelo contribuinte, não faz sentido integrar no conceito de mais-valia a valorização incorrida pelo bem às custas de despesas por este realizadas (sob pena de o ganho deixar de ser “fortuito”).

 

32. Ora, com o procedimento por divergências, a AT corrigiu o quadro 5005 do anexo G submetido pelos Requerentes com a declaração de IRS de 2017, suprimindo o montante de 91 005, 29€ que dele constava. Na fundamentação das correções aritméticas (sob o doc. 15), lê-se o seguinte: “No que respeita ao empréstimo, refere-se que a dedução prevista na alínea a) do n.º 5 do artigo 10 do CIRS aplica-se apenas às situações em que o imóvel alienado tenha sido adquirido com recurso ao crédito; ora, na situação em análise, o imóvel veio à posse do contribuinte por doação e por isso livre de qualquer encargo; o empréstimo foi contraído para obras, ocorridas em fase posterior à aquisição, logo tal despesa não é elegível para efeitos desta dedução”.

 

33. Assiste razão, neste ponto, à AT. A Declaração do C..., S.A, que os Requerentes juntaram ao processo sob o doc. 30, prova efetivamente que foram mutuados certos montantes e que, por causa deles, foi constituída uma hipoteca sobre o imóvel alienado. No entender dos Requerentes, se a dedução do empréstimo seria admitida em caso de aquisição onerosa, então também de ser admitida em causo de aquisição gratuita, sob pena de tratamento discriminatório (cf. doc. 16).

Contudo, há que recordar que o STA tem recusado interpretar a norma do artigo 10, n.º 5, a) no sentido de permitir a dedução de empréstimo contraído para a construção do imóvel. Entende o STA que “quando o legislador refere empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, este termo aquisição a que o legislador se refere não pode igualar-se em termos de significado jurídico ao conceito de aquisição referida no artº 46º nº 3 do CIRS que conduziu à incorporação do prédio na esfera jurídica do interessado por via da construção por conta do próprio interessado, na consideração primeira de que, ainda que a lei para efeitos fiscais integre no conceito de aquisição tanto o imóvel adquirido a terceiros como a imóvel construído pelo próprio, a mesma norma ao efetuar uma definição concreta para efeitos de cálculo do valor de aquisição, acaba por limitar a possibilidade de deduzir um qualquer empréstimo hipotecário contraído para a construção do imóvel” (acórdão do STA de 18-01-2017, processo n.º 0774/14). Se é assim para o empréstimo contraído para a construção do imóvel, a mesma interpretação normativa terá de valer para a hipótese de empréstimo contraído para a realização de obras de remodelação no imóvel adquirido gratuitamente.

 

34. Neste sentido, andou bem a AT quando corrigiu o quadro 5005 do anexo G da declaração de IRS de 2017, eliminando o montante que dele constava, pelo que deve julgar-se improcedente a ilegalidade do ato de liquidação no que a este segmento do pedido diz respeito.

 

§C. Da ilegalidade do ato de liquidação de IRS e respetivos juros compensatórios por violação do artigo 51, n.º 1, a) do CIRS

 

35. Os Requerentes peticionam, ainda, a ilegalidade do ato de liquidação de IRS e respetivos juros compensatórios por violação do artigo 51, n.º 1, a) do CIRS, na medida em que, nas correções efetuadas, a AT desconsiderou os montantes despendidos pelos Requerentes em obras no imóvel alienado, que estes entendem ser “encargos com a valorização do imóvel” na aceção daquele normativo.

 

36. A AT não contestou, nem contesta, que as despesas com a certificação energética, bem como as despesas suportadas com a intervenção de uma sociedade de mediação imobiliária e com emolumentos notariais são subsumíveis ao conceito de “despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação”, razão pela qual não corrigiu os respetivos montantes nem obstou à sua dedução. Rejeita, todavia, que as despesas evidenciadas nas faturas emitidas pela E..., Lda. sejam enquadráveis no conceito “encargos com a valorização dos bens” e que tais despesas tenham sido “comprovadamente realizadas” pelo sujeito passivo, para efeitos do preceituado no artigo 51, n.º 1, a) do CIRS.

 

37. Em primeiro lugar, argumenta a Requerida que as faturas apresentadas não discriminam nem identificam os serviços realizados no imóvel, nem obedecem aos requisitos em matéria de emissão de faturas previstos no artigo 36, n.º 5 do CIVA. Segundo a AT, as regras previstas naquele dispositivo do CIVA são aplicáveis às situações previstas no artigo 51, n.º 1, a) do CIRS, não só em razão do elemento sistemático da hermenêutica jurídica, como por via de um argumento lógico a fortiori, formulado no seguintes termos: se o legislador exige, para efeitos de deduções à coleta, que a comprovação das despesas suscetíveis de dedução seja feita por intermédio de faturas ou recibos emitidos nos termos do CIVA (artigo 78, n.º 6, b), i) do CIRS), então, por maioria de razão, idênticas exigências formais têm de valer para a comprovação de deduções específicas, como são as do artigo 51, n.º 1, a) do CIRS.

 

Vejamos.

 

37. A doutrina e a jurisprudência assinalam, a propósito do conceito de “encargos com a valorização dos bens” constante do artigo 51, n.º 1, a) do CIRS, que é necessária não apenas a comprovação de que a despesa foi efetivamente suportada pelo contribuinte vendedor, como também que há ligação ou nexo entre o encargo suportado e a valorização do imóvel alienado (cf. Paula Rosado Pereira, Manual de IRS, 5.ª ed., Almedina, 2023, p. 268; Acórdão do TCAN, de 30.03.2017, proferido no processo n.º 00543/04.7BEPNF). Neste sentido, não bastará a mera junção de faturas ou vendas a dinheiro, antes se revela necessária a demonstração de que as importâncias cuja dedução se pretende foram efetivamente efetuadas naquele imóvel e às custas dos contribuintes alienantes.

 

38. Como se disse na fundamentação da matéria de facto, em face do acervo probatório constante do processo – concretamente, um orçamento de obra que identifica a fração urbana objeto de intervenção e quatro faturas emitidas pela empresa autora do orçamento remetendo para a obra orçamentada – entende o Tribunal arbitral que os Requerentes lograram provar o que lhes competia. A saber, lograram demonstrar que as sobreditas faturas correspondem a materiais e serviços fornecidos para as obras de remodelação do imóvel alienado, e que tais despesas foram suportadas pelos contribuinte alienantes.

 

39. Quanto à questão de as faturas não obedecerem às regras previstas do CIVA, cumpre adiantar que a argumentação a fortiori gizada pela Recorrida está longe de ser convincente. Na verdade, entende o Tribunal arbitral que a forte associação entre as deduções específicas e o princípio da tributação pelo rendimento líquido (enquanto concretização do princípio da capacidade contributiva) pode justificar maior flexibilidade probatória. É verdade que as deduções à coleta também têm ligação ao princípio do rendimento líquido. Mas é também inegável que estas deduções têm subjacentes outros princípios constitucionais, tais como a consideração fiscal da família (artigo 104, n.º 1 CRP), o princípio do Estado social (artigos 2 e 81, f) da CRP) ou o combate à evasão fiscal. Portanto, nada impede que para umas e outras valha um regime de prova diferente.

 

40. Depois, o legislador não impõe, a respeito da comprovação das despesas efetivamente realizadas com a valorização do imóvel, um regime de limitação da prova ou de prova vinculada, ao contrário do que sucede com a comprovação de despesas suscetíveis de dedução à coleta. Não o fazendo, a hermenêutica jurídica das normas fiscais, que é idêntica à das demais normas jurídicas (artigo 11, n.º 1 LGT), aponta para a convocação da regra geral em matéria de prova constante do artigo 128 do CIRS, onde se faz referência à prova documental sem obstar a que, não podendo aquela realizar-se, o sujeito passivo possa convocar outros meios de prova (artigo 128, n.ºs 1 e 4 CIRS). É à luz deste normativo que deve interpretar-se e compreender-se o sentido normativo do conceito “comprovadamente realizados” constante do artigo 51, n.º 1, a) CIRS, que o Tribunal arbitral entende ter sido preenchido pelo acervo probatório trazido ao processo pelos Requerentes.

 

41. Outro argumento invocado pela Requerida na Resposta é o de que os serviços listados no orçamento sob o documento n.º 28 (10.º de Factos provados) demonstram que não está em causa uma intervenção com a valorização da fração, mas antes a realização de despesas que visam a transformação e a conservação do imóvel (ponto 79 da Resposta). Como se lê na resposta, “numa intervenção desta envergadura, inserem-se operações que podem valorizar o imóvel, mas também muitas que respeitam à sua conservação” (ponto 80), como é o caso do derrube de paredes, a substituição de canalizações ou a renovação da loiça da casa-de-banho ou da cozinha, que são intervenções que não aumentam a dimensão do imóvel e, portanto, não o valorizam. De onde conclui: “Reportando-se também o orçamento a intervenções que constituem operações de conservação da fração, também por este motivo a mera remissão para ele, constante das faturas, não permite a sua utilização como elemento definidor das tarefas efetuadas (e colocadas a pagamento) através de cada uma dessas faturas” (ponto 84).

 

42. Em sentido próximo, pode ler-se, na fundamentação da decisão do procedimento de reclamação graciosa, o seguinte: “Já quanto aos encargos com a valorização dos bens a lei prevê, no entanto, um requisito de natureza substantiva, que é o de se tratar de um encargo com a valorização do bem alienado (...). Quer isto dizer que não estão em causa obras destinadas a eliminar ou prevenir um dano, que têm por escopo a mera preservação do valor do bem ou visem dotar o imóvel das condições de habitabilidade exigidas por lei (despesas de manutenção ou conservação), mas sim as que se destinam a aumentar o valor físico e material do bem. Estão afastadas assim da norma a realização de despesas que não aumentem o valor intrínseco do bem, ainda que influenciem o seu valor de mercado (como exemplo uma indemnização paga a um inquilino residente no imóvel alienado) bem como aquelas que não integram de modo definitivo o imóvel (como, por exemplo, mobiliário ou eletrodomésticos) e, ainda as obras de conservação ordinária (por exemplo substituições de lâmpadas ou pintura anual da fachada do imóvel) e as de conservação extraordinária, decorrentes de situações pontuais ou esporádicas, mas igualmente necessárias, como a substituição de janelas, portas, telhados danificados, ou a substituição do pavimento”.

 

43. Esta argumentação não foi, em parte, contrariada pelos Requerentes que, no documento escrito através do qual exerceram o seu direito de audição (13.º de Factos provados), procuraram demonstrar que as obras realizadas no imóvel não geraram o dever de apresentação da declaração a que alude o artigo 13 do CIMI, em especial a sua alínea d). Argumentaram, para tanto, que “as obras tiveram por fim evitar a perda, destruição e deterioração do imóvel”, tratando-se, assim, de benfeitorias necessárias para efeitos do artigo 216, n.º 3 do Código Civil.

 

Vejamos.

 

44. O não preenchimento da declaração a que se refere o artigo 13, n.º 1 do CIMI é questão que não integra o objeto do presente processo arbitral. Como tal, de tal circunstância não há que extrair quaisquer consequências automáticas sobre o modo como deve ser interpretado o artigo 51, n.º 1, a) do CIRS nem sobre o propósito efetivamente subjacente às obras realizadas pelos Requerentes na fração urbana alienada. O legislador poderia, é certo, ter estabelecido uma relação entre aqueles dois normativos, condicionando a dedução dos encargos com a valorização à apresentação da declaração do artigo 13 do CIMI. Não o tendo feito, não pode este Tribunal arbitral reescrever tal opção nem muito menos passar por cima de tal circunstância, atento o princípio da tipicidade fiscal nas normas que regulam os elementos essenciais dos impostos.

 

45. Esclarecido este ponto, importa ter em conta que nem a doutrina nem a jurisprudência parecem partir de uma conceção de “encargos com a valorização do bem” tão estrita como a da AT. Lê-se, com efeito, no acórdão do STA de 21 de março de 2012, processo n.º 0587/11, que “a referida al. a) do art. 51º do CIRS não restringe os encargos com a valorização dos bens, comprovadamente realizados (...) às valorizações materiais ou físicas, abrangendo ainda os encargos efetivamente suportados que os valorizem economicamente”.

A interpretação mais correta, na senda do já suportado por Xavier de Basto (autor que o aresto mencionado transcreve), é aquela que compreende o bem “não como uma coisa em sentido meramente jurídico, mas como uma fonte de rendimento, com um aspeto económico que não pode ser desprezado. E nessa perspetiva, tudo o que possa contribuir para a valorização económica do bem, necessariamente deve ser considerado como “encargo de valorização”» sob pena de se cometer «uma injustiça», por se tributar «uma capacidade contributiva inexistente: a “capacidade contributiva” equivalente ao valor da indemnização paga que, em contrapartida, não foi considerada encargo. (Boletim APECA nº 121, 2º trimestre de 2005, Jurisprudência Fiscal, p. 60.)”.

Também no acórdão do CAAD de 17-11-2020, processo n.º 722/2019, a propósito de questão semelhante, pode ler-se o seguinte: “no esteio da jurisprudência dos tribunais superiores, deste CAAD e doutrina vindas de citar, entende-se que o conceito da valorização dos bens a que se reporta a alínea a) do artigo 51º do CIRS deverá abarcar os encargos que apresentem um nexo causal com a valorização económica dos bens objeto de alienação, sob pena de, assim não se considerando, se poder desvirtuar uma tributação que deve, tanto quanto possível, assentar sobre o rendimento líquido resultante de tal incremento patrimonial”.

 

46. Esta é, em síntese, a interpretação normativa em conformidade com o princípio da capacidade contributiva – que o princípio da tributação pelo rendimento líquido procura assegurar – e, logo, com a teleologia das normas fiscais. Trata-se, além disso, de uma interpretação perfeitamente cabível na letra do preceito. Com efeito, se a ideia é apurar o ganho ou a diferença positiva que afluiu à esfera jurídica do contribuinte por efeito da alienação do imóvel, então esse ganho deverá ser expurgado dos investimentos que aumentam o valor económico do bem, conferindo-lhe um valor de mercado superior àquele que existiria caso não tivessem sido realizados (cf. Paula Rosado Pereira, Manual de IRS, 5.ª ed., Almedina, 2023, p. 268). Isso inclui, também, eletrodomésticos, mobiliário e outros bens móveis, destacando-se que, ao contrário do que sucede no quadro das deduções específicas de rendimentos prediais (artigo 41, n.º 1 CIRS), não existe uma norma que expressamente os exclua, nem isso se pode inferir a partir de um conceito de valorização económica do bem, como o que se adota.

 

47. A interpretação normativa perfilhada pela AT sobre o que são “encargos com a valorização do bem” deixa de fora praticamente tudo. Deixa de fora, não só as obras que conservação, como também quaisquer obras das quais não resulte um aumento da dimensão ou da área do imóvel. E, mesmo reconhecendo que algumas das intervenções realizadas pelos Requerentes corresponderiam a despesas de valorização (e não de conservação), a decisão da AT passou por rejeitar a dedução de todas as despesas com obras, mesmo com obras de valorização, cuja ocorrência a própria reconhece (ponto 80 da Resposta).

 

48. Tudo a demonstrar que AT incorreu em erro nos pressupostos de direito e de facto, razão pela qual há que declarar a ilegalidade do ato de liquidação impugnado, eliminando-o da ordem jurídica.

 

§D. Do pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios

 

49. A par do pedido de anulação do ato de liquidação, e do consequente reembolso da quantia que indevidamente pagou em excesso, os Requerente pedem ainda que se lhes seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43 da LGT. Dispõe o n.º 1 deste normativo que “[S]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

50. Tal como a Requerida invoca, existe jurisprudência constante no sentido de que “[A] anulação de um ato de liquidação fundamentada em vício formal de preterição da formalidade essencial do direito de audição prévia, não implica a existência de erro de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, para o efeito de atribuir o direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, pelo que inexiste, nesse caso, direito a juros indemnizatórios” (cf., entre outros, acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA, proferido 11-12-2019, processo n.º 0847/14.0BEVIS). O racional desta jurisprudência pode descrever-se da seguinte forma: (i) o propósito dos juros indemnizatórios é ressarcir o contribuinte pelo dano causado pelo pagamento de imposto superior ao devido; (ii) se o ato de liquidação é ilegal, não por dele ter resultado o pagamento de imposto superior ao devido, mas exclusivamente por preterição de formalidade essencial, então a conclusão só pode ser a de que, nestas hipóteses, não há erro imputável aos serviços do qual tenha resultado prestação tributária acima do devido.

51. Das questões analisadas resulta que o ato de liquidação, praticado no dia 14-12-2021, está ferido de um vício de forma, por preterição (insanável) do direito de audição, e de um vício de erro nos pressupostos de facto e de direito, por errada interpretação e aplicação do artigo 51, n.º 1, a) do CIRS, ambos geradores de anulabilidade. Não vale, portanto, a jurisprudência assinalada, uma vez que, quanto ao segundo vício imputado, existiu erro imputável aos serviços do qual resultou pagamento de imposto (e de juros compensatórios) superior ao devido. Tal como dispõe o n.º 5 do artigo 61 do CPPT, os juros indemnizatórios são devidos desde a data do pagamento indevido do imposto (25-01-2022) até à data do processamento da nota de crédito pela AT, em que são incluídos. Procede, assim, a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios aos Requerentes.

 

VI – Decisão

Termos em que o Tribunal Arbitral decide:

a) Julgar procedente o pedido arbitral;

b) Anular o indeferimento expresso do procedimento de reclamação graciosa n.º ...2022...;

c) Anular o ato de liquidação de IRS n.º 2021..., de 14-12-2021, bem como a liquidação de juros compensatórios nele integrada;

d) Condenar a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago;

e) Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios, devidos desde 25-01-2022.

f) Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.

 

VII – Valor do processo

Em conformidade com o disposto no artigo 306, n.º 2 do CPC, no artigo 97-A, n.º 1, a) do CPPT [« 1- Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as ações que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes: a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende (...)]», e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária [«O valor da causa é determinado nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário»], fixa-se o valor do processo em €16.924,72, sem contestação da Autoridade Tributária.

 

VIII – Custas

Nos termos do disposto nos artigos 12, n.º 2 e 22, n.º 4 do RJAT, no artigo 4, n.º 4 e na Tabela I (anexa) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante de custas é fixado em €1 224,00, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

Porto, 28 de novembro de 2023.

 

 

 

 

Marta Vicente

(Árbitro singular)