Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 207/2023-T
Data da decisão: 2023-11-30  IRC  
Valor do pedido: € 476.288,09
Tema: IRC - Ónus da prova. Imparidades. Diligências para cobrança de créditos sobre clientes.
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SUMÁRIO

 

  1. Havendo divergências quanto à imputação de um custo a um determinado exercício económico, e tendo o sujeito passivo relevado tal custo, nesse exercício, na sua Contabilidade, goza este da presunção de veracidade e de boa-fé das suas declarações, de acordo com o princípio-base consagrado no nº. 1 do artigo 75º da LGT e, em conformidade, não terá que provar o facto a que essa presunção conduz, nos termos do nº. 1 do artigo 350º CC.
  2. A avaliação da indispensabilidade de um custo, enquanto questão de direito que é, compete ao julgador. Nessa tarefa de qualificação jurídica, exige-se do contribuinte que colabore, dando, para tal, a conhecer as razões pelas quais considerou relevante esse custo e os objectivos que se propôs atingir com essa decisão e da Administração Fiscal que evidencie todos os indícios e pressupostos que possam pôr em causa a existência e a veracidade de tais custos, por forma a que se possa concluir com a máxima segurança e certeza possíveis que tais custos são ou não indispensáveis à obtenção de proveitos.
  3. E, assim, no caso de provisões para créditos de cobrança duvidosa[i] ou perdas por imparidades em dívidas a receber de clientes, quando se refiram a créditos resultantes da actividade da empresa, ao contribuinte competirá explicitar a contabilização desses custos, de modo a que, da sua decisão de constituição de provisões ou imparidades, se possa avaliar o risco de cobrabilidade de tais créditos e o momento em que a empresa percebeu e assumiu esse risco e, também, se possa ajuizar da extensão em que tais custos são ou não consideráveis para efeitos fiscais e não comprometam a situação patrimonial da empresa, no respeito pelo princípio da justiça,  da prudência e da capacidade contributiva.
  4.  A pretexto da busca da relação de causalidade económica com o escopo societário a Administração Tributária, na sua actuação, não poderá pôr em risco o princípio da liberdade de gestão e da autonomia da vontade do sujeito passivo.
  5. E, quanto às diligências para a cobrança dos créditos sobre clientes, e segundo as regras da experiência comum, são admissíveis todos os meios de prova, pois, as mais das vezes, os credores encontram dificuldades acrescidas quando procuram cobrar os seus créditos junto dos devedores em mora que se furtam a quaisquer contactos.

 

  1. A constituição de provisões para riscos e encargos ou perdas por imparidades é a consequência lógica e directa da aplicação dos princípios da especialização dos exercícios e da prudência, pelo que, na sua concretização, sempre rodeada de algum grau de subjectividade por parte da empresa, mormente na apreciação dos factos que, segundo os critérios de gestão, possam, na prática, gerar perdas, deverá orientar-se pela necessidade de relevar e imputar a cada exercício económico todos aqueles factos ou acontecimentos susceptíveis de afectar o património e a actividade da empresa na sua obtenção de proveitos.
  2. Não se imporá, por isso, que as provisões ou imparidades resultantes de créditos sobre clientes sejam constituídas no exercício em que os créditos entrem em mora, mas bastando-lhe que a sua incobrabilidade seja evidenciada na escrituração comercial do contribuinte.

 

 

Acordam os Árbitros Conselheiro Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Árbitro Presidente), Dr. Manuel da Fonseca Benfeito (Árbitro Vogal) e Dr. Fernando Marques Simões (Árbitro Vogal) designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral constituído em 6-6-2023, na seguinte:

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1. A sociedade A..., SA [...], com sede na Rua ..., ..., ...-... Lisboa, doravante designada por Requerente, foi notificada das liquidações adicionais de IRC nº. 2022... e nº. 2022 ..., respectivamente no valor de 865 661,15 € e 143 445,94 €, das quais resultaram as demonstrações de acerto de contas para pagar a importância de 833 427,97 €, com data-limite de pagamento voluntário até 26-12-2022 e a importância de 89 963,71 €, com data limite para pagamento voluntário até 9-1-2023.

 

2. Estes actos tributários resultaram do Relatório de Inspecção Tributária [RIT] que procedeu à correcção do lucro tributável da Requerente, para os anos de 2018 e 2019, respectivamente nos montantes de 3 268 054,17 € e 636 231,57 €, conforme se explicita:

 

LUCRO TRIBUTÁVEL CORRIGIDO - €

Descrição

2018

2019

1. Lucro Tributável

279 711,59

338 317,49

2. Correcções Técnicas - IRC

2 988 342,58

297 914,08

Lucro Tributável corrigido

3 268 054,17

636 231,57

 

3. Essas correcções técnicas, em sede de IRC, são as que constam do quadro seguinte extraído do Relatório de Inspecção Tributária realizado pela Requerida AT, ao abrigo das Ordens de Serviço nº. OI 2021 ... e nº. OI 2021..., para os aludidos exercícios económicos de 2018 e 2019 (pág. 40 do citado RIT).

 

 

 

4. Do total das correcções técnicas, em sede de IRC, efectuadas pela requerida AT, no montante de 3 286 256,66 € [2 988 342,58 €, relativas ao ano de 2018, e 297 914,08 € relativa ao ano de 2019], a Requerente apenas impugna, no presente processo arbitral, as seguintes:

 

  1. Ano de 2018 – Adiantamentos para Despesas – 11 488,03 €

                       - Reversão de Perdas por Imparidades – Mod. 22 – 1 395 522,66 €

  1. Ano de 2019 – Perdas por Imparidades

                         Gastos não elegíveis – artº. 28º-A e 29º – 88 561,92 €

                        Gastos não devidamente documentados – 55 506,48 €.

 

totalizando a importância de 1 551 079,09 €.

 

5. A requerente apresentou, em 24-3-2023, pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas do artigo 3º, nº. 1 e artigo 10º, nº.1, alínea a) e nº. 2, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária [RJAT], na sua versão actual, visando a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação adicional de IRC, relativos aos anos de 2018 e 2019, e a sua consequente anulação parcial, por vicio de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito, com fundamento no artigo 23º, nº1 e nº. 2, alínea h) do Código do IRC e do artigo 74º, nº. 1 da LGT, bem como por violação do princípio da justiça material na tributação, de acordo com o artigo 266º, nº. 2 da CRP e artigo 5º, nº. 2 e artigo 55º da LGT.

 

6.  Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese:

 

  1. Quanto à correcção da liquidação de IRC de 2018

O valor de “Adiantamentos para Despesas” de 11 488,03 € seria imputável ao exercício de 2014, por força do disposto nos artigos 17º e 18º do CIRC, não podendo ser tributado como foi, em 2018, pelo que essa tributação, ora impugnada, realizada pela requerida AT viola o prazo legal de caducidade fixado no artigo 45º, nº.1 da LGT.

  1. Quanto à correcção efectuada pela AT e que consta do RIT, no valor de 1 395 523,66 € - “Reversão de Perdas por Imparidades – Mod. 22”

A correcção efectuada constitui um erro grosseiro praticado pela requerida, porquanto esse valor levado a proveitos pela Requerente, em 2018, não poderia manter-se na sua contabilidade, teria que ser deduzido, simetricamente, no Quadro 07 da Modelo 22 de 2018, o que, cabendo à Requerida o ónus de prova consignado no artigo 74º da LGT, conduz a que aquela verba tenha sido ilegalmente acrescida à matéria colectável de IRC, por não aceitação da sua dedutibilidade fiscal.

  1. Quanto à liquidação de IRC – 2019, num total de 144 068,40 €

Esta correcção de imparidades registadas, em 2019, (“gastos não elegíveis”- art.º 28-A e 29º - 88 561,92 € - e “gastos não devidamente documentados” – 55 506,48 € -) deverá ser considerada fiscalmente dedutível nos termos da alínea h) do nº. 2 do artigo 23º do CIRC,

 

o que, ao não ter sido, em seu entender, configura uma errada interpretação por parte da Requerida do direito aplicável, ou seja, a alínea h) do nº. 2 do artigo 23º e o artigo 28º-A, ambos do CIRC e artigo 5º, nº2, artigo 55º, artigo 45º, nº. 1 e artigo 74º, nº.2 da LGT.

 

7. No dia 27-3-2023, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT [Requerida].

 

8. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

9.  Em 17-5-2023, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

10.  Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 6-6-2023.

 

11. No dia 10-7-2023, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação e fez a apresentação junto deste Tribunal Arbitral do Processo Administrativo.

 

12. Tendo sido manifestado interesse na produção de prova testemunhal foi proferido despacho arbitral, em 21 de Julho de 2023, no sentido de se proceder à realização da reunião a que se refere o artigo 18º do RJAT, designando-se, para esse efeito, o dia 10 de Outubro de 2023, pelas 10:00 horas.

 

13. A reunião foi realizada na data agendada.

 

14. Devido à não possibilidade técnica de participação nessa reunião de um dos árbitros-vogais, e depois de prévia articulação de agendas de todas as partes, foi designado o dia 30 de Outubro de 2023, pelas 10:00 horas.

 

15. Nesta data foi realizada a referida reunião e decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas sucessivas no prazo de 10 dias, contando-se o prazo para a requerida a partir da notificação da junção das alegações do Requerente ou do termo do prazo concedido a esta. Foi fixado, para a prolação da decisão arbitral, o dia 6 de Dezembro de 2023.

 

16. Em 9 de Novembro de 2023 foi proferido despacho arbitral fixando o valor do presente processo em 476 288,09 €.

 

17. O sujeito passivo apresentou alegações escritas a 7 de Novembro de 2023.

 

18. A AT apresentou as suas alegações em 21 de Novembro de 2023.

19. Por despacho arbitral de 9 de Novembro de 2023, o tribunal notificou a Requerente para se pronunciar quanto à possível alteração do valor da causa, tendo em consideração que, atento o disposto no artigo 97º-A, nº1, alínea a) do CPPT, o valor da causa deverá ser de 476 288,09 €, correspondente ao valor na proporção da impugnação (1 009 107,09 € x 47,2% = 476 288,09 €).

20. Por requerimento de 13 de Novembro seguinte, a Requerente declarou nada ter opor à alteração do valor da causa.

 

21. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos do RJAT [artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do artigo 5º. e artigo 6.º, n.º 1].

 

22. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos do artigo 4.º e do artigo 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

23. A apresentação do pedido, por parte da Requerente, é tempestiva, porquanto, contando os 90 dias a que se refere o artigo 10º do RJAT, a partir de 27-12-2022 (primeiro dia de prazo a partir da primeira data-limite anunciada para pagamento voluntário das liquidações efectuadas pela requerida -26-12-2022, para a liquidação de 2018 e 9-1-2023, para 2019), o último dia de prazo ocorreria a 26-3-2023, que, por ter sido Domingo, passaria para 27-3-2023. Ora, tendo a Requerente apresentado o seu pedido de pronuncia arbitrária a 24-3-2023 – e sido aceite a 27-3-2023 -, manifestamente que o fez em prazo.

 

24. O processo não enferma de nulidades.

 

25. Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II - DECISÃO

 

A - MATÉRIA DE FACTO

 

A - 1 - Factos dados como provados

 

1. A Requerente iniciou a sua actividade em 25-08-1964 com o objecto social de "quaisquer assuntos relacionados com a propriedade industrial, comércio de representações", estando, actualmente, registada para a seguinte CAE - 69101 - "Actividades Jurídicas", presta serviços jurídicos no âmbito da propriedade intelectual (Propriedade Industrial e Direitos de Autor) e tem a natureza jurídica de sociedade anónima com um capital social de 750.000,00 €.

 

2. A Requerente foi alvo de um procedimento de inspecção tributária a coberto das Ordens de Serviço OI2021... e OI2021..., levado a cabo pelos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Lisboa e, tempestivamente, foi notificada do conteúdo do Relatório dessa Acção Inspectiva [RIT],  aos anos de 2018 e 2019,  nos termos do artigo 62.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira [RCPITA], por carta registada dirigida ao seu mandatário, sob o Registo RH ... PT, através do Ofício sob a referência DFI Lisboa..., de 31 de Outubro de 2022.

 

3. Nos termos do nº. 2 do artigo 40º do CPPT, foi comunicado à Requerente que a requerida procedeu à notificação do Relatório de Inspecção Tributária ao seu mandatário, através do Ofício sob a referência DFI Lisboa ..., de 31 de Outubro de 2022, por carta registada sob o Registo RH ... PT.

 

4. O Relatório de Inspecção Tributária consta do documento n.º 2 junto ao pedido arbitral, que aqui se dá como reproduzido.

 

5. A Requerida AT procedeu à demonstração do acerto de contas, em sede de IRC, corrigindo a Liquidação de IRC de 2018 e 2019, da Requerente, respectivamente, pelo valor de 865 661,15 € e de 143 445,94 €, resultando dessas operações de acerto, as importâncias a pagar, até ao dia 26 de Dezembro de 2022 de 833 427, 97 € e de 89 963,71 € até ao dia 9 de Janeiro de 2023. 

 

A - 2. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, competindo-lhe antes selecionar os factos relevantes para a decisão da causa, recortados em função da sua pertinência jurídica e adequada às várias soluções plausíveis da questão de Direito a decidir, nos termos da aplicação conjugada do n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e do  n.º 1 do  artigo 596.º e n.º 3 do artigo 607.º, estes do CPC, aplicáveis por força da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, como aliás o admite o Tribunal Central Administrativo Sul, no seu Acórdão, proferido em 25-6-2019, no Processo nº. 2459/14.0BESNT e disponível em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/1b5cfb9fdf24abb08025842400486a8b?OpenDocument, que, no seu sumário, refere:

 

“1. Relativamente à matéria de facto, o juiz não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar apenas a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor (cfr.artºs. 596, nº.1 e 607, nºs. 2 a 4, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6) e consignar se a considera provada ou não provada (cfr.artº.123, nº.2, do C.P.P.Tributário).

 

2. Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas (cfr. artº.607, nº.5, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6).

Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - cfr. artº.371, do C. Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação”.

                                             

                                                                                                                              [itálico nosso].

 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo [PA] juntos aos autos, consideraram-se provados com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

Como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13, “o (...) relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

 

Ora, certo é que na petição inicial e nas suas alegações, a Requerente impugna, no presente pedido de pronúncia arbitral, as correcções constantes do RIT, na parte que se refere à matéria corrigida pela AT, por “adiantamentos para despesas”, no valor de 11 488,03 € e “Reversão de perdas por imparidades – Mod. 22” – 1 395 522,66 €, ambas imputadas ao ano de 2018 e “Perdas por imparidades – Gastos não elegíveis – artº. 28º-A e 29º” - 88 561,92 € e “Gastos não devidamente documentados” – 55 506,48 € - ambas imputadas ao ano de 2019, tudo, num total de 1 551 079,09 €, considerando, que, na outra parte, ou seja, no valor de 1 735 174,57 €[1], conforme se explicita no quadro seguinte, não há dissenso. 

 

 

CORRECÇÕES NÃO IMPUGNADAS - €

Descrição

2018

2019

Total

1. Adiantamentos para despesas

 

153 845,68

 

2. Divergências entre imparidades

 

 

 

e valor documentado

9 818,67

 

 

3. Imparidades já consideradas em

 

 

 

exercícios anteriores

1 558 245,93

 

 

4. Gastos não devidamente

 

 

 

documentados

13 264,29

 

 

Total

1 581 328,89

153 845,68

1 735 174,57

 

 

 

B - DO DIREITO

 

A situação sub judice reconduz-se, em suma, a determinar o enquadramento jurídico-fiscal, em sede de IRC, da sujeição ou não a tributação, de parte do valor das correcções técnicas efectuadas pela AT.

 

  1. Quanto ao “adiantamento para despesas”, no valor de 11 488,03 €, referente a 2018.

 

1.  Segundo o RIT, a páginas 10 e 11, a Requerente, no âmbito da sua atividade, “suportou encargos relacionados com o registo de marcas e patentes, por conta dos seus clientes, efetuando as diligências junto de entidades oficiais que prestam estes serviços, quer nacionais quer estrangeiras. Estes encargos foram pagos pelo sujeito passivo, mas por conta dos clientes, a quem, previamente, faturou os referidos valores.”

….

“Quando estes valores eram faturados a clientes nacionais, contabilisticamente, eram registados a crédito na conta # 27822 - "Adiantamento para despesas" e, à medida que os serviços iam sendo realizados, os encargos suportados eram contabilizados como gastos, pelo sujeito passivo.

“Contudo, no âmbito da ação de inspeção tributária efetuada ao sujeito passivo, que incidiu sobre os exercícios de 2015, 2016 e 2017, verificou-se que estes adiantamentos, efetuados pelos clientes nacionais e contabilizados na conta # 27822 - "Adiantamento para despesas", após a realização dos serviços associados e dos gastos terem sido contabilizados, não estavam a ser regularizados nem reconhecidos como um rédito do exercício. Nessa altura, o sujeito passivo, voluntariamente, promoveu o reconhecimento dos rendimentos desta natureza, através de regularizações extra-contabilisticas efetuadas nas declarações de rendimentos Modelo 22, de substituição, submetidas”

                                                                                   [itálico nosso].

                       

2. Estes adiantamentos, que foram reconhecidos como réditos em 2015, 2016 e 2017, perfizeram um valor global de 1 579 173,96 €, mas o valor regularizado pela Requerente, em 2018, por contrapartida de resultados transitados (crédito da conta #5619), foi de 1 590 173,96 €, o que deu causa a uma divergência ou diferença, no montante de 11 488,03 € que os serviços tributários propõem que seja considerada no apuramento do lucro tributável, como um rendimento ou ganho do exercício, nos termos do nº. 1 do artigo 20º do CIRC.

 

3. Porém, se buscarmos essa diferença, na contabilidade da requerente e nos esclarecimentos prestados no âmbito da acção inspectiva, tal diferença, que é de 11 488,03 €, resulta do saldo da conta #27822 a 31.12.2014 e “não tem a ver com os exercícios de 2018 e 2019”, enquanto a diferença assinalada pela AT é apenas de 11 000,00 €, pela subtracção da quantia de 1 579 173,96 € à quantia de 1 590 173,96 €, nos termos do RIT.

 

4. A requerida AT, quanto a essa diferença de 11 488,03 €, diz que a considerará como um rendimento ou ganho do exercício de 2018, nos termos do artigo 20º do CIRC, no seguimento, aliás, da proposta constante do RIT, a página 12, que se transcreve:

.

(…) “propõe-se que a diferença em apreço, € 11 488,03 €, seja considerada no apuramento do lucro tributável, como um rendimento ou ganho do exercício, nos termos do nº. 1 do artº. 20º do CIRC”

                                                                                   [itálico nosso]

 

e, por isso, a imputará ao lucro tributável de 2018, não obstante, na contabilidade da Requerente, tal importância resulte do saldo da conta # 27822, à data de 31.12.2014, e como tal estar evidenciada no Balancete do exercício económico de 2014 - saldo final da conta “Clientes – Adiantamentos para Despesas -”.

 

 

 

5. A Requerente, no seu pedido de pronúncia arbitral, admite que esse montante de 11 488,03 €, possa ser considerado como rendimento ou ganho, para efeitos de tributação, em sede de IRC, mas defende que tal ganho teria que ser imputado ao exercício económico de 2014, nos termos dos artigos 17º e 18º do CIRC, ou seja, nos termos da sua organização contabilística e do princípio da periodização económica.

 

6. Todavia tal eventual ganho de 11 488,03€, que deveria ter sido registado na sua contabilidade, em 2014, só poderia ser tributado dentro do prazo legal de 4 anos, prazo esse que terminara a 31.12.2018, e não como o defende a AT, em 2022, porque, a ser assim, sairia violado o prazo legal de caducidade estabelecido no nº.1 do artigo 45º da LGT.

 

7. Face ao dissenso exposto quanto àquela diferença e ao período económico de imputação, se 2014, como alega a Requerente, ou 2018, no entender da requerida AT, haverá que decidir.

 

8. Está assente que aquela diferença de 11 488,03 € resulta do saldo da conta # 27822, à data de 31.12.2014 e que esse valor está relevado na contabilidade da Requerente e evidenciado como saldo final da conta “Clientes – Adiantamentos para Despesas”, no Balancete a Dezembro de 2014. Por outro lado, o sujeito passivo, instado pela AT a cumprir o seu dever de esclarecimento quanto a essa divergência, informou e provou, pelos registos contabilísticos efectuados na sua escrituração comercial, que tal divergência de 11 488,03 € resultou do saldo da conta # 27822, em 31/12/2014 e assim evidenciada no Balancete do final do exercício de 2014 e que, por isso, não tem a ver com o exercício de 2018, sendo este ano tão-só o ano da regularização contabilística do saldo da conta #27822 – adiantamentos para despesas – por contrapartida da conta #5619 – Resultados Transitados -.

 

9. O Acórdão do TCA-Sul de 11.02.2021, proferido no processo n.º 157/17.1BC LSB e disponível emhttp://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/fb19a075935177ae8025867d003e92f3?OpenDocument, no seu sumário, refere:

 

“I. O art. 75.º, n.º 1, da LGT estabelece uma presunção de veracidade das declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal;

II. Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (cf. n.º 1, do art. 350.º do C.C.);

III. Aquela presunção não se verifica nas situações previstas nas várias alíneas do n.º 2 daquele preceito legal, cabendo à AT demonstrar qualquer das situações elencadas naquele n.º 2, que obstam à verificação da presunção;

IV. Anulada a liquidação impugnada por falta de fundamentação formal e substancial, verifica-se o erro sobre os pressupostos de facto e de direito verificando-se o direito a juros indemnizatórios nos termos do art. 43.º, n.º 1 da LGT.

                                                                       [itálico e realce nossos].

 

10. Assim, por força daquela presunção de veracidade dos dados e apuramentos relevados na contabilidade do sujeito passivo, sempre que este disponha de contabilidade organizada segundo a lei fiscal e comercial, aquele saldo [2]de 11 488,03 €, registado na sua contabilidade no exercício económico de 2014, não poderá ser imputado ao lucro tributário de períodos futuros, mas antes ao ano de 2014, porquanto essa presunção vincula a  Administração Fiscal à realização da liquidação com base nas declarações do contribuinte -  art.º 59.º do CPPT -, sem prejuízo do direito que lhe é concedido de proceder ao controlo dos factos declarados, para além de que, por força do disposto n.º 1 do art.º 74º da LGT, no procedimento de liquidação por iniciativa da Administração Fiscal, esta terá que demonstrar a ocorrência dos factos de que derive o direito à liquidação, bem como os pressupostos da sua existência, a qualificação e a quantificação do facto tributário.

 

11.  Ora, nesta divergência de posições entre a Requerente e Requerida, quanto à origem e ao ano de imputação - para a requerente, 2014, e para a requerida, 2018 -, a primeira goza da presunção de veracidade e de boa-fé das suas declarações contabilísticas e dos dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade, cabendo à AT o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais vinculativos e legitimadores da sua actuação.

 

12. Deste modo, aquele saldo de 11 488,03 €, como foi relevado e evidenciado na escrituração comercial da Requerente, não poderá ser imputável ao lucro tributável de 2018, mas antes ao ano de 2014, como atrás referido. Salienta-se, ainda, que, pelo princípio da periodização económica consagrado no nº. 1 do artigo 18º CIRC, que determina que os elementos positivos – rendimentos – ou negativos – gastos – do lucro tributável sejam imputáveis ao período em que os mesmos foram obtidos ou suportados, é obrigatório observar, na determinação do lucro tributável, essa periodização económica ou especialização dos exercícios.

 

13. Tal vale por dizer que uma componente, positiva ou negativa, do lucro tributável só pode ser imputada a um período de tributação posterior se for manifestamente desconhecida ou imprevisível, funcionando o nº. 2 desse artigo 18º do CIRC, como uma excepção a esse princípio de periodização, em benefício do princípio da solidariedade de exercícios, o que no caso dos presentes autos, não se verifica.

 

“Artigo 18.º

 Periodização do lucro tributável

1 - Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.

2. As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deveriam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.

(…)”

                                                                       [itálico nosso].

 

14. Ora, não tendo a requerida AT logrado ilidir aquela referida presunção, e, também, pelo princípio da repartição do ónus da prova estabelecido no artigo 350º do CC, inevitável se torna para a AT suportar a consequência legal fixada no artigo 45º, nº. 1 da LGT, ou seja, também, por aqui, a Requerente vê a sua posição jurídica fortalecida.

 

“Artigo 45.º
Caducidade do direito à liquidação

1 - O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro”.

15.  E, embora esse prazo de caducidade possa suspender-se,  com a notificação ao contribuinte do início da acção inspectiva, nos termos do nº1 do artigo 46º da LGT, e como a acção inspectiva durou mais de seis meses – iniciou a 20-9-2021 e foi concluída a 17-10-2022 com a notificação do Relatório final a 31-10-2022 -, então o prazo de caducidade já precludiu.

 

“Artigo 46º.

Suspensão do prazo de caducidade

1 - O prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da ação de inspeção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo desde o seu início, caso a duração da inspeção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação, acrescido do período em que esteja suspenso o prazo para a conclusão do procedimento de inspeção”.

 

 

ii. Quanto à correcção de 1 395 522,66 € - Reversão de Perdas por Imparidades - Mod. 22 -, referente a 2018.

 

1. Nos termos do Relatório de Inspecção Tributária, de 17 de Outubro de 2022, anexo aos presentes Autos, a página 37, in fine, os serviços da AT referem que “Em 2018, foi contabilizada uma reversão de perdas por imparidades de dívidas de clientes na conta # 762111 – “Reversões em perdas por imparidades em dívidas a receber”, em contrapartida do débito da conta # 219111 – “Perdas por imparidade acumuladas em clientes, no valor de €1 395 522,66. Posteriormente, aquando da entrega da declaração Modelo 22, o sujeito passivo efetuou uma regularização extra contabilística, inscrevendo o valor total no campo 781, do quadro 07, da referida declaração [“perdas por imparidade tributadas em períodos de tributação anteriores (art.°s 28°, 28°-A, n.° 1 e 31°- B, n.° 7)”], deduzindo este montante ao resultado líquido do exercício, no apuramento do lucro tributável” e que a Requerente esclareceu que tais “perdas por imparidade deduzidas no campo 781 do Q07 da declaração modelo 22 de 2018 respeitam à reversão que foi feita, referente às imparidades não aceites e tributadas decorrentes da fiscalização anterior, em anexo reversões".

 

2. Segundo defende a Requerente, a correcção de 1 395 522,66 € a que os serviços da AT procederam, no exercício de 2018, no pressuposto de que se trataria de uma dedução à matéria colectável, supostamente em duplicado, foi feita com base na fundamentação de que “o valor deduzido no campo 781, do quadro 07, da declaração de rendimentos Modelo 22, no montante de € 1.395.522,68, corresponde à correção efetuada por estes Serviços de Inspeção Tributária, que foi revertida, na sequência da execução da sentença proferida no âmbito do processo 722/2020-T do CAAD”.

 

3. A AT, naquele RIT, página 42, quanto a essa correcção, defende que “o sujeito passivo tinha contabilizado nos exercícios de 2016 e 2017, gastos com perdas de imparidades no montante de 1 395 522,68 € para efeitos contabilísticos e fiscais” e que tais gastos foram desconsiderados pelos serviços tributários, no âmbito de uma acção inspectiva a esses exercícios, e, em conformidade, a AT procedeu às correcções consequentes e posteriores liquidações adicionais.

 

4. Porém, a Requerente impugnou tal correcção e liquidações junto do CAAD que deu total provimento à pretensão da Requerente, no âmbito do Processo nº. 722/2020-T.

 

5. Face a esse ganho de causa, entende a requerida AT que “se o sujeito passivo pretendia efetuar a reversão dos valores considerados como gastos fiscais naqueles exercícios [2016 e 2017], não poderia deduzir ao quadro 07 da declaração de rendimentos modelo 22 de IRC”.

 

6. A Requerente, face àquela correcção feita pela AT – e antes de ter sido proferido o Acórdão Arbitral no sobredito processo, que ocorreu a 10/9/2021 -, procedeu, em 31-12-2018, à reversão daquelas imparidades, como consta da sua Contabilidade, através da nota de lançamento nº. 9520, levando tal montante a débito da conta #21911 – Perdas por Imparidade – Clientes C/C – por crédito da conta de proveitos #76211 – “Reversão – De Perdas por Imparidades – Clientes”, como consta dos registos e elementos contabilísticos trazidos aos presentes Autos pela Requerente e que espelhou no Balancete acumulado a Dezembro de 2018.

 

7. Aqui chegados haverá que averiguar se a Requerente haveria que anular tal reversão, cujo valor houvera incluído, em 2018, como proveitos, deduzindo-o à matéria coletável, na perspectiva de erro na duplicação de tributação dos mesmos na conta de Proveitos, e, também, com o ganho de causa no Processo Arbitral nº. 722/2020-T, de 10-9-2021, que determinou que tais imparidades deveriam ser deduzidas nos exercícios de 2016 e 2017.

 

8. Ora, fruto da contabilização de Reversões de Perdas por Imparidade, no exercício de 2018, e tal como consta da Demonstração de Resultados que os serviços tributários evidenciam, no RIT, através do quadro dado a seguir, o Resultado Líquido desse exercício de 2018 seria, assim, de 1 307 829,05 €, pelo acréscimo da verba em apreciação, de 1 395 522,66 €, a crédito da conta #76211.

 

 

 

9. Ao ter procedido à correcção do IRC – 2018, no montante de 1 558 245,93 € e cumulativamente a verba de 1 395 522,66 €, nesse mesmo ano de 2018 [Quadro seguinte],  a AT poderá estar a duplicar uma daquelas verbas, fazendo com que o total das imparidades que, a 31-12-2018, era de 1 873 902, 92 € [saldo da conta #65 do Doc. 4] - dos quais 1 581 331, 89 € se referem a dívidas a receber de clientes, de acordo com os registos contabilísticos espelhados no Balancete Acumulado da Requerente, a Dezembro de 2018 -, passasse, sem qualquer suporte e fundamentação para 2 953 768,59 € [1 558 245,93 € +1 395 522,66 € = 2 953 768,59 €], o que contrariaria, claramente, aquele saldo de 1 873 902,92 , na conta #65, à data de 31.12.2018.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

10. E a ser assim, essas correcções efectuadas pelos serviços da AT - a de 1 558 245,93 € e a de 1 395 522,66 € -, acrescendo à matéria coletável do ano de 2018, por aquele montante de 2 953 768, 59 €, dariam lugar a um valor de proveitos, inexplicavelmente elevado, no valor de 2 953 768,59 € e a um lucro tributável injustificável de 3 268 054,17 €.

 

11. E tal lucro seria, assim, para aquele exercício de 2018, não sustentado em qualquer operação económica da Requerente, e, por isso, anormal e desadequado, tendo em conta a actividade regular que a Requerente exerce, violando, nesse contexto, o princípio da capacidade contributiva do sujeito passivo e o princípio constitucional e legal, constantes do nº. 2 do artigo 266º da CRP e do artigo 55º da LGT, o que, in casu, impediria a requerente de ver reconhecido um custo significativo com perdas com clientes, sem respaldo probatório e legal, com forte impacto na sua situação económico-financeira e fiscal, a qual daí sairia, forte e irremediavelmente, abalada e sem nada que o fizesse esperar, por não ter aderência económica.

 

12. É de salientar, ainda, que, daquelas duas correcções feitas pela AT, a de 1 558 345,93 € e a de 1 395 522,66 €, à primeira, não a reconheceu a Requerente como imparidade, porquanto, nos presentes Autos, desses valores corrigidos pela AT, para o ano de 2018, a requerente não impugnou tal verba, como aliás fez notar, na sua petição:

 

“De todas as referidas correções, no total de 3.286.256,66 euros, a Requerente (apenas) contesta, no presente pedido arbitral, as seguintes: 2018 - Adiantamentos para despesas: 11.488,03 - Reversão de perdas por imparidade – Mod. 22: 1.395.522,66”.

 

- Do princípio da Justiça

 

13. Invoca a Requerente, na defesa da sua posição de anulação daquela reversão de 1 395 522,66 €, o princípio da justiça, enquanto princípio orientador do ordenamento jurídico tributário, por forma a evitar um acréscimo tributável, que não teve.

 

14. A esse propósito, o Supremo Tribunal Administrativo, no Processo 0214/07, de 19-5-2010, considera que “ainda que o princípio da justiça tenha o seu campo de aplicação predominante no exercício de poderes discricionários, não é de descartar, a sua aplicação no exercício de poderes vinculados”, como seja o caso em que a Administração Fiscal desconsidera “custos de determinado exercício, em que, em tal circunstancialismo, deve dar-se proeminência ao princípio da justiça, em desvalor do princípio da legalidade”, como decorre do respectivo sumário:

 

“I - Ainda que o princípio da justiça tenha o seu campo de aplicação predominante no exercício de poderes discricionários, não é de descartar, ictu oculi, a sua aplicação no exercício de poderes vinculados.

II - É o que sucede quando a AF, desconsiderando custos de determinado exercício – facturas falsas -, desconsidera igualmente o concomitante acréscimo de proveitos efectuados pelo contribuinte no exercício seguinte.

III - Em tal circunstancialismo, deve dar-se proeminência ao princípio da justiça, em desvalor do princípio da legalidade.

IV - Sendo, todavia, devidos juros compensatórios, por retardamento da liquidação, por facto imputável ao contribuinte, pois que diminuiu, intencional e ilegalmente, o lucro tributável do exercício anterior”.

 

 

e que, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº. 363/01, de 12 de Julho de 2001, proferido pela 2ª. Secção, no Processo nº. 667/2000 e relatado pela Senhora Conselheira, Maria Fernanda Palma, a propósito deste princípio da justiça, vem dizer:

 

“O princípio da justiça, como parâmetro aferidor da conformidade constitucional das normas jurídicas, pressupõe, porém, que esteja em causa uma solução normativa absolutamente inaceitável (…), que afecte uma dada dimensão do núcleo fundamental dos interesses essenciais da pessoa humana e que colida com os valores estruturantes do ordenamento jurídico (cf. Maria Fernanda Palma, ob.cit., p. 28)”.  

 7. A questão de constitucionalidade normativa em apreciação, tal como a recorrente a define, funda-se no entendimento segundo o qual a solução normativa impugnada consubstancia uma afectação dos interesses do contribuinte, vedada pelos princípios da justiça resultante dos preceitos constitucionais em matéria fiscal.

 

 

15. Ponderando o resultado a que chega a AT, no que se refere àquela correcção de 1 395 522,66 €, e, por força do volume das imparidades, assim obtidas - 2 953 768,59 €, contra o saldo registado na sua contabilidade de 1 873 902,92 e espelhado na conta #65, à data de 31.12.2018 - daí resultaria um acréscimo infundado do lucro tributável, que, pelo princípio da justiça não deveria ser atendível, pois:

 

  1. A imputação dessa verba de 1 395 522,66 €, não resultou de uma prática de manipulação desse mesmo valor do lucro tributável, por adiamento ou concentração em exercícios em que uma tributação pudesse ser mais favorável,
  2. A única forma de repor a verdade material e eliminar uma eventual dupla tributação, será o expurgo dessa verba.

 

16. Daqui resulta, portanto, que haja que dar provimento à petição da Requerente quanto à correcção da liquidação feita, pelo montante de 1 395 522,66 €, em obediência aos princípios da justiça, da igualdade e da legalidade, que a administração tributária tem de observar na globalidade da sua actividade e que, in casu, conduziria a um montante de imposto injustificado, por decorrer de uma situação manifestamente injusta.

 

- Da Fundamentação do acto tributário

 

17. Apreciando, agora, a dita correcção, pelo lado da fundamentação do acto tributário, começar-se-á por dizer que esta deve ser de molde a permitir a apreensão do itinerário cognoscitivo percorrido pela Administração. Assim, estando em causa a liquidação baseada no Relatório dos serviços tributários, o que se impõe para determinar se o acto está ou não fundamentado, é a análise da prova que permita que os seus destinatários concretos fiquem em condições de reconstituir o itinerário cognoscitivo e valorativo da entidade decidente, avaliando se a Administração Fiscal deu a conhecer os motivos que levaram a actuar como actuou, as razões em que fundou a sua actuação - fundamentação formal – e se, no âmbito da validade substancial do acto, esses motivos correspondem à realidade e são suficientes para legitimar aquela concreta actuação administrativa.

 

18. Ora, a AT ao sustentar, na sua decisão de desconsideração daquela verba de 1 395 522, 66 €, que “se o sujeito passivo pretendia efectuar a reversão dos valores considerados como gastos fiscais naqueles exercícios [2016 e 2017], não poderia deduzir no quadro 07 da declaração de rendimentos modelo 22 de IRC” não explica, concretamente, a motivação do acto, até porque admite que tal reversão de valores poderia ocorrer, mas de outra forma, que não a indica, o que consubstancia uma insuficiência de fundamentação.

 

19. Deste modo, nesta parte, deverá considerar-se o acto como não fundamentado, por não cumprir a sua função exógena e que é a de dar ao administrado-destinatário o conhecimento das razões da decisão e, também, a função endógena, que consiste numa ponderação criteriosa da decisão da parte do decisor.

 

Assim, e em conformidade, a correcção à matéria colectável sob exame padece do vício de insuficiente fundamentação, que equivale à inexistência de fundamentação, nos termos do preceituado no CPA (cfr. artº.125, nº.2, do C.P.A., antigo CPA; artº.153, nº.2, do novo C.P.A.).

 

- Da indispensabilidade de custos

 

20. Alega, ainda, a requerida AT, no articulado 54 da sua resposta, que, numa linha de interpretação seguindo o critério da indispensabilidade de custos e de forma a impedir a consideração fiscal de gastos que não se inscrevem no âmbito da actividade da empresa sujeita a IRC, tais gastos deverão respeitar, cumulativamente, dois princípios:

 

  1. Estarem devidamente documentados, tendo-se presente, no entanto, que nem todos os gastos, pela sua própria natureza, terão de estar suportados, como sejam os gastos por depreciação e amortização dos activos da empresa, “em que existirá apenas documentação de origem interna” ou “gastos com remunerações tituladas pelos próprios documentos relativos ao processamento dos vencimentos, entre outros”.

 

  1. Serem incorridos no interesse da empresa na prossecução da sua actividade, ou seja, só serão custos indispensáveis, neste âmbito, apenas os gastos contraídos ou suportados no interesse da empresa.

 

Vejamos o que, por aqui, decorre.

 

21. O Acórdão do TCA-Sul, proferido, em 8-7-2021, no Processo nº. 311/03.3BTLRS, disponível em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/e6fb8785a771d3728025870d00418b57?OpenDocument fixa que:

 

“I. Cabe à AT pôr em causa a indispensabilidade de um determinado “custo” (gasto), através da evidenciação de indícios sólidos e consistentes da sua dispensabilidade “para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora” (art. 74.º, n.º 1, da LGT), face à presunção de veracidade de que goza as declarações dos contribuintes e os dados inscritos na sua contabilidade (art. 75.º, n.º 1 da LGT);

II. O requisito de indispensabilidade do “custo” (gasto) do art. 23.º do CIRC tem de ser aferido através de um juízo casuístico, não podendo associar-se ao êxito de gestão, não se confundindo com a sua oportunidade ou conveniência, não abrangendo apenas custos que direta e imediatamente conduzam à obtenção de ganhos ou à manutenção da unidade produtiva (nexo causal), antes abarcando igualmente custos que mediatamente visam esse fim”.

 

[itálico nosso].

 

E, também, o Acórdão do STA, proferido no Processo nº. 627/16, de 28-6-2017, sobre a desconsideração de menos-valias resultante da venda de participações, sustenta:

 

“I - No entendimento que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a adoptar para efeito de averiguar da indispensabilidade de um custo (cfr. art. 23.º do CIRC na redacção em vigor em 2001), a AT não pode sindicar a bondade e oportunidade das decisões económicas da gestão da empresa, sob pena de se intrometer na liberdade e autonomia de gestão da sociedade.

II - Assim, um custo ou perda será aceite fiscalmente caso, num juízo reportado ao momento em que foi efectuado, seja adequado à estrutura produtiva da empresa e à obtenção de lucros, ainda que se venha a revelar uma operação económica infrutífera ou economicamente ruinosa, e a AT apenas pode desconsiderar os que não se inscrevem no âmbito da actividade do contribuinte e foram contraídos, não no interesse deste, mas para a prossecução de objectivos alheios (quando for de concluir, à face das regras da experiência comum que não tinha potencialidade para gerar proveitos).

III - Não pode a AT desconsiderar na formação do lucro tributável a menos-valia resultante da venda de participações sociais duma sociedade que se dedica à mesma actividade do sujeito passivo, se não põe em causa que a aquisição e venda dessas participações se insere no escopo societário e se não põe em causa a realidade dos preços de aquisição e de venda nem a sua conformidade aos valores de mercado. Não pode, designadamente, desconsiderar essa menos-valia com fundamento na falta de demonstração da indispensabilidade (cfr. art. 23.º do CIRC na referida redacção) baseada numa inexigível e até impossível falta de identificação dos “proveitos futuros decorrentes dessa menos-valia”.

IV - Ademais, esse entendimento da indispensabilidade reconduz-se à exigência de uma relação de causalidade necessária e directa entre custos e proveitos há muito recusada pela doutrina e pela jurisprudência”.

 

[itálico da nossa responsabilidade].

 

22. E, sobre a questão do ónus da prova, no âmbito do princípio plasmado no artigo 74º. da LGT, sobre a AT recai o ónus de verificação dos indícios ou pressupostos de tributação. E, assim, os encargos e gastos estarão devidamente documentados quando contiverem os elementos essenciais da operação que titulam, por forma a possibilitar à Administração Tributária o controle da legalidade da dedução dos gastos, para efeitos fiscais, e da respetiva tributação.

 

23. Ora, como a contabilidade organizada goza da presunção de veracidade, caberá à AT o ónus de ilidir essa presunção, demonstrando que os factos contabilizados não são verdadeiros e que, quanto à qualificação das verbas contabilizadas como custos dedutíveis, ao contribuinte caberá o ónus de provar a sua indispensabilidade para a obtenção dos proveitos ou para a manutenção da força produtiva, se a AT questionar essa indispensabilidade, como, aliás, o sustenta o Tribunal Central Administrativo-Norte, no seu Acórdão, de 11-1-2018, prolatado no Processo 0810/10.9BEBRG :

           

                             “(…)

II. Por força do artigo 74.º n.º 1 da LGT, compete à Administração Fiscal o ónus de suscitar e comprovar a dispensabilidade do custo visado, em ordem a exercer o seu direito de corrigir as pretendidas deduções dos montantes respetivos a título de custos fiscais.

III. É sobre a Administração Fiscal que incide o ónus de provar a existência de todos os pressupostos que a determinaram a efetuar correções ao declarado pelo contribuinte, incumbindo-lhe, por isso, indagar sobre a verificação do facto tributário que afirma ter existido, através da realização de todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material.

IV. Tendo a Administração Fiscal, posto em dúvida a necessidade dos custos contabilizados pela Recorrente, competia-lhe provar a existência da indispensabilidade de tais despesas, o que não logrou fazer”.

 

24. A requerente, no Processo CAAD nº. 722/2020-T, já havia impugnado aquela verba de 1 395 522,66 € e o Tribunal Arbitral, em 10-9-2021 julgou tal pedido inteiramente procedente. Por isso, a requerente procedeu à sua dedução no quadro 07 da Declaração Mod. 22 de 2018, porque, antes da pronúncia arbitral, a tinha levado a proveitos.

 

25. O nº. 1 do artigo 23º do CIRC, na sua redacção actual, dispõe que “para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”, fornecendo o seu número 2 uma enumeração exemplificativa dos gastos ou custos com relevância fiscal, ou seja, para o apuramento do lucro tributável, em sede de IRC e no que, para o presente caso, interessa, “h) perdas por imparidades; i) provisões”, sendo, também, relevante conhecer a redacção anterior a 1 de Janeiro de 2014, e que era:

 

“Artigo 23º.

Gastos

  1. Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos proveitos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente:

(…)

h) Ajustamentos em inventários, perdas por imparidade e provisões”.

 

                                               [itálico e realce e sublinhado da nossa responsabilidade].

 

26. Ambas as formulações da lei, a antiga e a actual, encerram uma cláusula geral ou conceito indeterminado, onde os gastos subsumíveis a esse conceito terão que destinar-se à realização de rendimentos sujeitos a IRC ou à manutenção da fonte produtora do sujeito passivo, expressões estas que não deverão ser entendidas em sentido estático, de mera conservação da empresa, tal como ela existe, mas antes em sentido dinâmico, em que a empresa siga e prossiga o curso normal de crescimento e de desenvolvimento da sua actividade, pois só assim se garantirá a sua estabilidade e sustentabilidade económica e financeira a longo prazo.

 

27. A Jurisprudência e a doutrina têm interpretado este conceito indeterminado como de preenchimento casuístico e em resultado de uma análise de perspectiva económica e empresarial, numa relação de causalidade económica entre a assumpção de um encargo e a sua realização no interesse da empresa e de acordo com  objecto social da empresa em causa, ficando, por isso, vedadas à Administração Fiscal actuações que coloquem em crise o princípio da liberdade de gestão e de autonomia da vontade do sujeito passivo, pelo que, se os serviços tributários duvidarem, fundadamente, da inserção de determinada despesa no interesse societário, impenderá sobre o contribuinte o ónus de provar que tal operação se insere no seu escopo societário.

 

28. Neste contexto, a Jurisprudência e a Doutrina têm vindo a assumir, aquando da aplicação daquele normativo do artigo 23º do CIRC, que deva recorrer-se a três questões e que são:

 

 

  1. A Administração Fiscal não pode avaliar a indispensabilidade dos custos à luz de critérios de oportunidade e mérito da despesa. E, assim, um custo é indispensável quando se relacione com a actividade da empresa, sendo estranhos à actividade da empresa apenas aqueles em que não seja possível vislumbrar qualquer nexo com os proveitos ou ganhos, entendido como de normalidade, necessidade, congruência e racionalidade económica. A indispensabilidade do custo há de resultar tão só da sua ligação à actividade empresarial, pelo que, se o custo se relaciona com a actividade normal da empresa, independentemente de ser maior ou menor o seu grau de proximidade com tal actividade e se se aceita a sua existência, o custo será indispensável. E, por isso, será possível a imputação de custos a exercícios anteriores quando os mesmos não tenham resultado de omissões voluntárias e intencionais do sujeito passivo, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios e quando a omissão de tal possibilidade possa colocar em causa o princípio da justiça.
  2. Um custo indispensável não tem de ser um custo de que, directamente, resulte uma obtenção de proveitos, pois custos haverá que só mediatamente cumprem essa função e que nem por isso deixam de ser considerados indispensáveis, nos termos do artigo 23º do CIRC. Um custo para ser relevante, em termos fiscais, terá, pois, que ser avaliado, tendo em consideração as condições normais de mercado e de risco da actividade da empresa, na sua adequação económica à obtenção maximalista de resultados.
  3. A questão do ónus da prova da indispensabilidade do custo passa ao lado da presunção de veracidade da escrita correctamente organizada (cfr.artº.75, nº.1, da L.G.T.) pois não se questiona a veracidade da despesa contabilizada mas a sua relevância,  para efeitos fiscais, no caso, da sua qualificação como custo dedutível.

 

29. A propósito desta questão, o Tribunal Arbitral, no processo CAAD - 60/2013-T, de 27-12-2013, esclarece que “a indispensabilidade de determinado custo, nos termos do art.º 23.º do CIRC, depende de uma tarefa de qualificação jurídica desses custos, correlacionando-os com o escopo social da contribuinte”, e, apoiando-se na Doutrina mais proeminente, cita Moura Portugal, na parte em que este Autor explica que “a invocação do ónus da prova, em questões relacionadas com a necessidade do custo, não tem qualquer pertinência, dado que o que está em discussão é uma questão de qualificação de um gasto como indispensável”, ao concluir que “Trata-se de um juízo ou operação de qualificação (questão de direito) que os Tribunais têm de decidir, sem que para tal possam repousar apenas no papel mais ou menos activo do contribuinte”.

 

30. Nessa tarefa de qualificação jurídica da indispensabilidade de custos, que cabe ao julgador, salienta-se, exige-se do contribuinte que colabore, dando a conhecer a motivação inerente à realização do custo e aos objectivos que se propõe atingir com ele. E, assim é que, se as amortizações são o processo contabilístico de distribuir, de forma racional e sistemática, o custo de um activo, que se deprecia, pelos diferentes exercícios abrangidos pela sua vida útil (económica), e que a contabilidade regista, de acordo com uma regra económica e fiscal de temporização, também as provisões para créditos de cobrança duvidosa, ou perdas por imparidades em dívidas a receber de clientes, devem ser consideradas como custos ou perdas de determinados exercícios, quando se refiram a créditos resultantes da actividade normal da empresa, de acordo com o grau ou risco da sua incobrabilidade, que o adequado documento da empresa evidenciará. Para tal, o suporte do movimento de contabilização dessas provisões ou imparidades deverá conter, para além da informação relativa ao crédito sobre clientes e às imparidades que tenham, ou não, sido registadas, a descrição da situação que lhe deu origem, seja ela uma situação de gestão ou de efectiva  incobrabilidade judicial, bem como o momento em que o órgão de gestão da empresa concluiu por essas imparidades de clientes, pois, mesmo que se trate de dívidas de vários anos, é essencial  perceber-se que o risco de cobrabilidade só agora se verificou.

 

31. A tal propósito o CAAD, no Processo nº. 554/2020-T, de 15-11-2021, sustenta:

 

“O que importa, na decisão de constituição de imparidades, é avaliar se o risco é “normal”, ou se, em determinado momento (quando do encerramento de cada exercício), se tornou “excessivo”. Existindo factos que evidenciem a existência de um risco anormalmente elevado, há que criar imparidades, pois de outra forma a contabilidade não espelharia a realidade patrimonial da empresa (trata-se de uma concretização do princípio contabilístico da (sã) prudência)”.

Assim, encontrando-se imparidade corretamente registada do ponto de vista contabilístico e sendo indubitável que se está perante uma situação que cumpre com todos os requisitos estatuídos no Código do IRC para a sua consideração fiscal, a mesma deve operar”.

 

32. E no que se refira às diligências para cobrança dos créditos sobre clientes, face às regras da experiência comum de que os credores sempre diligenciam para cobrar os seus créditos, particularmente, nos casos em que os mesmos possam assumir um valor elevado, são admissíveis todos os meios de prova, incluindo a testemunhal, pois as mais das vezes os credores deparam-se com dificuldades, as mais diversas, quando procuram recuperar os seus créditos junto dos devedores em mora, os quais usam todos os meios para se furtarem a receber as comunicações formais. É, portanto, frequente, na vivência diária das empresas não ser fácil a comprovação de que o destinatário de tais diligências delas haja tomado o devido conhecimento.

 

33. Por isso, uma liquidação adicional feita com o fundamento da não existência de prova de diligências de cobrança, enfermará de erro sobre os pressupostos de direito, por erro de interpretação da alínea c) do n. 1 do artigo 28.º-B do CIRC, o que justifica, por isso, a sua anulação, nos termos artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável (cfr. artigo 2.º, alínea c), da LGT).

 

34. Acerca da linha de interpretação que se fundamente no critério de indispensabilidade dos custos e no que se refira à sua comprovação pelo sujeito passivo, admite a AT que os gastos por depreciação e amortização dos activos da empresa, possam sustentar-se apenas em documentação de origem interna. Ora, mutatis mutandis, o mesmo se aplicará aos gastos com provisões para créditos de cobrança duvidosa ou imparidades, onde, também, deverá ser suficiente a existência de documentação interna que os considere e discrimine, já que tais custos ou perdas, óbvio  é que são incorridos no interesse da empresa, o que, a não ser assim, poria em causa a sua existência, a médio e longo prazo, caso desconsiderasse tais gastos como componentes negativas do seu lucro, o que valeria por dizer que a Fiscalidade apenas se orientaria pela angariação de receitas, sem cuidar dos meios e recursos para as obter e sustentar.

 

35. Sustenta a AT, no articulado 70 da sua resposta, que a regularização contabilística efectuada pela Requerente, quando inscreveu o valor em dissídio no quadro 781 da Declaração Modelo 22 – Perdas por imparidades tributadas em períodos de tributação anteriores (art.º. 28º, 28º.A, nº.1 e 31-B, nº.7) -, deduzindo-o ao resultado líquido do exercício, no apuramento do lucro tributável, tal montante de 1 395 522,66 €, tem por base duas realidades distintas, que são:

 

  1. O ajustamento extracontabilístico por Reversão de perdas por Imparidades tributadas em períodos de tributação anteriores – 1 395 522,66 € -,
  2. O desreconhecimento de uma imparidade – 1 558 245,93 € -.

 

36. Ao primeiro, a requerida AT não o aceita e quanto ao desreconhecimento da imparidade no montante de 1 558 245,93 €, não se pronuncia, alegando, apenas, que “se o sujeito passivo pretendia efetuar a reversão dos valores considerados como gastos fiscais naqueles exercícios [2016 e 2017], não poderia deduzir no quadro 07 da declaração de rendimentos modelo 22 de IRC”, pois, assim, tal movimento de reversão, efectuado em 2018, não permitirá assegurar que tal verba, de 1 395 522,66 €, padece ou não de vicio de duplicação, como o defende a Requerente, na sua petição.

 

37. Ao decidir, assim, a questão, a requerida AT não indagou da descoberta da verdade material que a legitimasse a fazer a correcção que fez à declaração apresentada pelo sujeito passivo, evidenciando todos os indícios e pressupostos que pudessem pôr em crise a existência de tais custos - que os mesmos não eram verdadeiros - e que, assim, levassem a que os mesmos não eram indispensáveis à obtenção de proveitos da empresa, no exercício da sua actividade.

 

38. Por isso, também por aqui, decai a requerida.

 

 

iii. Quanto à liquidação de IRC – 2019 – Por imparidades – gastos não elegíveis – 88 561,92 € - Gastos não devidamente documentados - 55 506,48 € - num total de 143 068,40 €.

 

 

1. A página 33 do RIT, os serviços da AT imputam à Requerente, no ano de 2019, um gasto de 141 068,40 €, obtido pela soma da verba 88 561,92 €, como “não elegíveis – art.º 28º.A e 28º.B – e da verba de 55 058,48 €, como “não devidam. Doc.”, nos termos do quadro a seguir e retirado desse Relatório.

 

 

 

2. A Requerida AT, na sua resposta, nos presentes Autos, como questão prévia, no seu articulado 6, admite que aquele valor de 141 068,40 € é, por lapso de escrita, de 144 068,40 €, dando, assim e nessa parte, razão à requerente, pelo que irá corrigir, oficiosamente, o lucro tributável a favor do sujeito passivo, pela importância de 3 000,00 €, ou seja, a diferença entre 144 068,40 € e 141 068,40 €[3], o que aqui se regista.

 

3. Nos termos do que consta a fls. 167 do RIT, como Anexo 6 – Mapas de Apoio às Imparidades contabilizadas em 2018 e 2019 enviado pelo SP – e da discriminação feita a fls 168 e 174, que se reproduz, o total das imparidades registadas pela Requerente, em 2019, foi de 141 068,40 €.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

4. Os serviços da AT, na página 32 do RIT, e tendo por base o mapa que elaboraram, consideram que tais valores padecem de irregularidades no registo contabilístico, porque o saldo final das contas correntes cujas dívidas em atraso suportam imparidades constituídas traduzem o valor total da dívida, incluindo, se for o caso, os montantes classificados como de cobrança duvidosa e considerados como gastos fiscais do exercício.

 

E, partindo do quadro que elaboraram para o exercício de 2019, que se reproduz, referem que, dos créditos considerados no exercício de 2019, cerca de 63% - [88.561,92 €/141.068,40 € = 63%]  - desse montante tem por base dívidas de clientes que não constam da contabilidade apresentada  ou o seu saldo é nulo, para daí concluir que “(…), se o saldo final da conta de cliente é nulo ou a entidade não surge identificada como cliente, então não fica demonstrado que o valor em apreço está, à data, efectivamente, em dívida”.

 

[itálico e realce nossos].

 

5. Mas se o saldo final da conta de clientes é nulo, isso apenas significa que o cliente já não é mais devedor à empresa, seja por já ter pago a sua dívida, seja porque essa mesma dívida se extinguiu e não é, portanto, cobrável.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

6. E, assim, aquele valor total de 141 068,40 €, na parte de 88 561,92 €, é considerado pela AT como não legitimado à dedução para efeitos fiscais, por irregularidade de registo contabilístico, pois o saldo final das contas de clientes, em seu entender, deveria traduzir o valor total ainda em dívida, incluindo os montantes classificados como de cobrança duvidosa, o que não permite ajustar o valor em dívida do cliente por crédito do montante considerado como imparidade e a parcela de 55 056,40€ (não será 55 506,48 €?) por não se encontrar devidamente documentada.

 

No entender da AT, aquelas imparidades deveriam ter sido previamente registadas como créditos de cobrança duvidosa e algumas delas já deveriam ter sido deduzidas em anos anteriores, mas, quanto a estas, não as especifica.

 

7. Quanto àquelas perdas por imparidade, em 2019, os serviços tributários defendem que, em ambas as situações, – «gastos não elegíveis» e «gastos não devidamente documentados» – as mesmas não podem ser fiscalmente dedutíveis, porque não cumprem os requisitos previstos nos artigos 28º-A e 28º-B do CIRC, máxime, porque não foram previamente registadas, nas contas de clientes, como créditos de cobrança duvidosa e que, em alguns casos, as contas correntes de clientes apresentam valores em dívida diferentes das imparidades e que a  contabilização dessas imparidades deveria já ter ocorrido em anos anteriores. Por isso, procedeu à correcção da matéria colectável, no exercício de 2019, no valor de 144 068,40 €, montante esse superior em 3 000,00 € ao das imparidades registadas – 141 068,40 € - e constante do RIT, mas que, no articulado da sua resposta, assume que tal diferença é, de facto, um erro material, que, agora, corrige.

 

8. Por sua vez, a Requerente defende-se, dizendo que fez a contabilização das imparidades, na conta de imparidade e não na conta de créditos de cobrança duvidosa porque tratou, contabilisticamente, os créditos em mora há mais de 24 meses, na sua totalidade e após a verificação das respectivas evidências objectivas para a sua cobrabilidade, fazendo notar que os serviços tributários recusaram todas as imparidades registadas pela requerente em 2019 e sem que a AT tenha comprovado que as dívidas em causa não seriam de cobrança duvidosa nem que se encontravam em mora há mais de 24 meses, nem que não foram realizadas diligências para o seu recebimento, para além de que essa invocação tinha já sido feita pelos serviços de inspecção tributária para os anos de 2016 e 2017, mas que o Tribunal Arbitral recusou ao dar integral provimento à Requerente no citado Processo nº. 722/2020-T.

 

9. Aqui chegados, cumpre apreciar e decidir.

 

10. A Requerente, no anexo 5 da sua petição, apresenta uma listagem de 25 clientes - clientes esses que a seguir se identificam - de entre os que constam do Quadro, a fls. 32 e 33 do RIT, comprovando que o saldo final dessas contas não é nulo, pelo que a invocação de tal fundamento não é bastante para que que as imparidades constituídas não possam ser consideradas como fiscalmente relevantes e não suportem a constituição de imparidades.

 

Nº. Ordem

Conta

Identificação do cliente

1

#21111054548

... Decorações, SA

2

#21112052810

... IP

3

#21113056403

... Bebidas, Ldª

4

#21111052868

Associação ...

5

#21111043204

... Marketing, SA

6

#21111056987

..., Ldª

7

#21111058747

... Martins

8

#21111056141

... - Unipessoal, Ldª

9

#21111005130

...Vestuário, SA

10

#21111005377

... Informação, SA

11

#21113006148

...

12

#21111004961

... Alimentares, SA

13

#21112057257

... Srls

14

#21111054455

... Marques

15

#21111054154

... Brás

16

#21112055625

... IP Limited

17

#21111005031

... Filhos, Ldª

18

#21113057588

... Teixeira

19

#21111003017

...- Indústria de

20

#21111057098

... , SA

21

#21111057021

...

22

#21111005514

... Reciclagem de

23

#21111053918

..., Unipessoal, Ldª

24

#21111055397

... Distribuição, Ldª

25

#21113058078

... Sarl

 

 

11. Vejamos agora a fundamentação apresentada para aquelas imparidades, no valor de 141 068,40 €, e que não devam ser fiscalmente dedutíveis por não terem sido, previamente, registadas, a débito de cada uma das contas de clientes, como créditos de cobrança duvidosa e que não se encontravam em mora há mais de 24 meses, nem que não foram realizadas as diligências para o seu recebimento.

 

12. Estabelecem os artigos 28º-A e 28º-B do CIRC, no que aqui interessa, o seguinte:

 

"Artigo 28.º-A
Perdas por imparidade em dívidas a receber

 

1 - Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes perdas por imparidade, quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores:


a) As relacionadas com créditos resultantes da atividade normal, incluindo os juros pelo atraso no cumprimento de obrigação, que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade”.

 

“Artigo 28.º-B
Perdas por imparidade em créditos

1 - Para efeitos da determinação das perdas por imparidade previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, consideram-se créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos:


a) O devedor tenha pendente processo de execução, processo de insolvência, processo especial de revitalização ou procedimento de recuperação de empresas por via extrajudicial ao abrigo do Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE) (…)”.

 

b) Os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral;

 

c) Os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento e existam provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento.


2 - O montante anual acumulado da perda por imparidade de créditos referidos na alínea c) do número anterior não pode ser superior às seguintes percentagens dos créditos em mora:


a) 25 % para créditos em mora há mais de 6 meses e até 12 meses;

b) 50 % para créditos em mora há mais de 12 meses e até 18 meses;

c) 75 % para créditos em mora há mais de 18 meses e até 24 meses;


d) 100 % para créditos em mora há mais de 24 meses”.

 

 

13. A AT efectuou correcções relativamente a perdas por imparidades, pelas razões que constam de fls. 34 e 35 do RIT, e que se salientam:

 

“O sujeito passivo, ao não relevar contabilisticamente os montantes que são considerados de cobrança duvidosa, no final de cada período, inviabiliza que sejam conhecidos quais os clientes e respetivos créditos que já foram reconhecidos nas perdas por imparidade consideradas anteriormente bem como validar situações em que se possa impor ajustamentos, como a reversão de imparidades.

E de facto, verifica-se que, no exercício em análise, o sujeito passivo veio considerar novamente como perdas por imparidade valores, que já tinha considerado em exercícios anteriores, como ficou demonstrado, tomando como exemplo os clientes ... GLOBAL. Por outro lado, se a contabilidade do sujeito passivo tivesse a evidência dos créditos de cobrança duvidosa, inviabilizaria que os valores das perdas por imparidade fossem superiores aos valores das dívidas dos clientes, como se constatou e que se encontra demonstrado neste relatório. De facto, parece-nos que o legislador, ao estabelecer esta norma, pretendia garantir um certo controlo, nomeadamente através da identificação do cliente e crédito em conta de dívidas em cobrança duvidosa e evitar a prática de irregularidades com impacto direto e relevante no resultado fiscal (…).

                       

                        Depois de verificada a exigência relacionada com a evidência contabilística dos créditos considerados em cobrança duvidosa que, como se referiu, tal não se encontra relevado na contabilidade do sujeito passivo, estabelece no disposto no art.° 28.° - B, do CIRC as condições em que o risco de incobrabilidade se considera devidamente justificado.         

 

Na situação em análise, o sujeito passivo justifica o risco de incobrabilidade, para a maioria dos créditos, nos termos do disposto no n.° 1 da al. c) do art.° 28° - B e, da análise aos documentos de suporte, verificaram-se as situações a seguir mencionadas:

 

  1. Créditos em mora há mais de seis meses

 

Na amostragem efetuada, foram identificadas faturas de clientes datadas desde 1993, cujos valores foram relevados em gastos dos exercícios em análise, ou seja, mais de 25 anos depois. Por outro lado, tendo em atenção a data de vencimento daquelas faturas, que evidenciam prazos de pagamento de 30/60 dias, é evidente que a data de vencimento das mesmas seria em momento muito anterior àquele em que os gastos foram considerados, sem que se tenha verificado qualquer justificação para tal facto.

 Atendendo ao princípio da especialização dos exercidos, previsto no art.º. 18.° do CIRC, tais gastos deveriam ter sido considerados naqueles exercidos e, ainda que, nesses mesmos exercidos, tivessem sido apurados prejuízos fiscais em resultado da contabilização dos gastos relacionados com as perdas por imparidade, nos termos do art.° 52.° do CIRC, o reporte nunca poderia influenciar os exercidos em análise.

 

Verificou-se também que, apesar de notificado para o efeito, o sujeito passivo não apresentou documentos de suporte que justificassem os valores considerados em gastos com perdas por imparidade, nomeadamente, a relação com o detalhe das faturas que permitisse identificar os clientes, data da fatura, número, data de vencimento, cliente, valor, valor considerado como perda por imparidade acumulada em anos anteriores, data em que foram efetuadas as diligências e o valor considerado em perda por imparidade no próprio exercício.

 

De facto, sem a relação mencionada anteriormente, não é possível validar o valor relevado em gastos com perdas por imparidade, em particular atendendo aos procedimentos contabilísticos adotados pelo sujeito passivo que são significativamente distintos dos previstos para estas situações, nomeadamente nas Normas Contabilísticas e de Relato Financeiro do Sistema de Normalização Contabilística.

 

  1. Diligências efetuadas para a cobrança de créditos

 

Da análise aos documentos comprovativos das diligências efetuadas para a cobrança dos créditos, verifica-se que as mesmas não discriminam quais as faturas em causa, tendo por base, em alguns casos, documentos datados com data muito posterior á data da fatura para o qual se pretende justificar a diligência. Em todas as situações analisadas, as diligências apresentadas foram efetuadas em períodos anteriores ao exercício em que o gasto foi considerado que demonstra que a incobrabilidade se verificou, mesmo na ótica do próprio sujeito passivo, nessa altura, que a contraria o princípio da especialização dos exercidos transposto para o CIRC, através do seu art.° 18°.”.

 

                                                           [itálico e sublinhado nossos].

 

Em síntese, são os seguintes os fundamentos para a não aceitação da relevância fiscal destas perdas por imparidades, por parte da requerida AT:

 

  1. Os créditos não estarem devidamente evidenciados na escrituração comercial da Requerente em conta própria, como sendo de cobrança duvidosa.
  2. A não observância do princípio da especialização dos exercícios, por as imparidades não serem reconhecidas logo que o risco de incobrabilidade estava justificado por reclamação judicial ou por mora há mais de seis meses.
  3. A conta corrente não reflectir as imparidades registadas, sendo detectados casos em que os valores em dívida são inferiores às imparidades contabilizadas.

 

14. Porém, a AT não questiona a verificação dos outros requisitos necessários, designadamente, que se trate de créditos em mora há mais de 24 meses e que tenha havido provas objectivas para o seu recebimento, pelo que só os fundamentos invocados serão os considerados para apreciar a legalidade das correcções, não sendo atendível, nomeadamente, a eventual falta de diligências de cobrança, que, aliás, a AT reconhece que foram efectuadas, mas que não discriminam as facturas em causa, para além de que a mesma AT não identifica qual a conta em que, em seu entender, deveriam estar evidenciados os créditos de cobrança duvidosa.

 

15. No que se refere à falta de identificação dos créditos de cobrança duvidosa, estabelece a alínea a) do nº. 1 do artigo 28º-A do CIRC que “podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes perdas por imparidade, quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores: a) as relacionadas com créditos resultantes da atividade normal, incluindo os juros pelo atraso no cumprimento de obrigação, que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade”.

 

16. Assim, o princípio fundamental para que não sejam aceites perdas por imparidades é o de que não exista na contabilidade qualquer conta onde estejam identificados os créditos considerados como de cobrança duvidosa, como aliás o refere o Acórdão do STA, proferido no Processo nº. 1091/03, de 13-1-2004, disponível em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/d7d702c8baa63a3e80256e210058408:

           

I- O CIRC no artigo 23 alínea h) [i)] considera como custo, entre outros, as provisões;

II- Mas o artigo 33 [28º-A] determina de modo taxativo as provisões que podem ser deduzidas para efeitos fiscais;

III- Entre elas estão as que se destinam à cobertura de créditos resultantes da actividade normal que no fim do exercício possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade;

IV- O recorrente estando sujeito a IRS por rendimentos da categoria «C»- hoje «B» mas não estando obrigado a ter contabilidade organizada «ex vi» do artigo 109 do CIRS nem por isso estava impedido de poder provisionar créditos da natureza dos referidos em III;

V- É que preceituando o artigo 31 do CIRS que à determinação da matéria colectável das actividades como aquela exercida pelo recorrente se aplicam as regras do CIRC com as necessárias adaptações deve o mesmo critério ser usado para efeitos de qualificação de determinado montante como provisão dedutível;

VI- Tendo a AF em sede de fiscalização com base em elementos colhidos no sujeito passivo reconhecido a existência de um crédito de cobrança duvidosa no fim do exercício e resultante da actividade normal da mesma (…) não pode deixar de considerar como provisão a dotação feita pelo sujeito passivo com tal finalidade só pelo simples facto de não haver contabilidade onde esse crédito fosse evidenciado;

VII- É que a prova em sede de IRC é feita através de todos os meios de prova admitidos na lei em obediência ao principio da verdade material e (…) a AF constatou que a provisão feita ocorreu no exercício a que o crédito respeita não demonstrando que tal incobrabilidade fosse verificada ou ocorresse em anteriores exercícios; Ou seja, tendo a AF comprovado que a provisão feita naquele exercício se destinava igualmente a crédito resultante da actividade normal que no fim do exercício foi considerado de cobrança duvidosa não pode deixar de relevar a provisão como custo já que comprovou embora sem recurso à contabilidade não haver aqui ofensa do princípio da especialização dos exercícios que a exigência da evidenciação na contabilidade prevista no artigo 33 do CIRC visa acautelar.

VIII- O facto de o montante da provisão ser inferior ao legalmente permitido em nada contende com a possibilidade do sujeito passivo proceder àquela dotação pois a lei apenas traça limites máximos e não mínimos cfr. artigo 34/2 do CIRC a tais montantes”.

                  

17. Assim, neste âmbito, afigura-se que à requerente não seria exigível outra evidência dos créditos de cobrança duvidosa na sua contabilidade que não fosse a que consta da sua escrituração comercial, porquanto a constituição de provisões para créditos de cobrança duvidosa ou perdas por imparidades em dívidas a receber, assenta, na sua base, no respeito pelo princípio contabilístico da prudência, que impõe que, no apuramento dos resultados dos exercícios económicos, os sujeitos passivos devam tomar em consideração os riscos previsíveis e as perdas derivadas de um facto que tenha ocorrido, sendo certo que a criação de provisões envolve, sempre, por parte do sujeito passivo, algum grau de subjectividade na apreciação que faz desse facto, do qual resulte que, no futuro, possam surgir perdas, não se impondo, por isso, que a provisão para créditos de cobrança duvidosa seja constituída no exercício em que esses créditos entraram em mora, mas bastando-lhe que a incobrabilidade desses créditos seja evidenciada na contabilidade do contribuinte, como o refere o STA, no Processo 0101/03, de 30-4-2003, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/0/70bf7d398fd7a1fb80256d21002bba2eOpenDocument&ExpandSection=1 :

 

I - Os artigos 34º [28º.-A] nº1 alínea a) e 18º nº1 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas não exigem que a provisão para créditos de cobrança duvidosa seja constituída no exercício em que esses créditos entrem em mora.

II - Para que a provisão seja recusada como custo fiscal não basta, pois, invocar que os créditos já estavam em mora há mais de seis meses aquando da constituição da provisão, importando que a Administração afirme, e isso se prove no processo de impugnação judicial, que a incobrabilidade dos créditos foi verificada em exercícios anteriores àquele em que ocorreu essa constituição, e isso evidenciado na contabilidade do contribuinte, pois, só neste caso, há ofensa do princípio da especialização dos exercícios, a justificar o não atendimento da provisão como custo fiscal do exercício”

 

                                                  [itálico e realce nossos].

 

17. Sobre o conceito de provisões é esclarecedor o que a nossa jurisprudência superior e a doutrina mais relevante têm vindo a fixar.

 

Assim, no Processo nº. 0652/14, de 28-1-2015, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/97c9be2295c7de7e80257ddd003b3187?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1, o STA refere:

                       

“As provisões são registos contabilísticos de verbas destinadas a fazer face a um encargo imputável ao exercício, mas de comprovação futura, ou já comprovado, mas de montante incerto”,

 

sustentando a Doutrina que as provisões se destinam a criar uma conta onde se reservam determinadas quantias que, em obediência ao princípio da prudência, servem para fazer face a despesas ou perdas, cuja ocorrência futura é certa e conhecida, mas cujo «quantum» não é possível de determinar com precisão, sendo por isso incerto.

 

18. E sobre a prova das diligências para receber os créditos de cobrança duvidosa, o CAAD, no Processo 387/2020-T, de 19-11-2021, admite que possam ser usados todos os meios que possam evidenciar e comprovar as diligências de cobrança feitas pela empresa:

 

 

I. As provas de terem sido efetuadas diligências para o recebimento de créditos de cobrança duvidosa não têm de ter natureza documental, pelo que se aceitam contactos telefónicos, bem como contactos através de meios informáticos ou de visitas pessoais aos devedores.

 

II. As perdas por imparidade em créditos em mora há mais de seis meses podem, excecionalmente, ser consideradas, para efeitos fiscais, num exercício fiscal diferente ao exercício em que foi identificado o risco de incobrabilidade, desde que não se prove que o registo em exercício subsequente resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.

 

19. O que leva uma empresa a constituir provisões [ou imparidades], não é a incerteza da ocorrência futura de despesas ou perdas, mas antes a incerteza da sua exacta quantificação: é a impossibilidade de determinar, num dado exercício fiscal, aquele em que teve conhecimento da ocorrência da perda, despesa ou encargo - princípio da especialização dos exercícios -, o montante exacto dessa mesma despesa, perda ou encargo, que apenas será determinado e concretizado no exercício ou exercícios fiscais  seguintes.

 

20. Segundo a doutrina invocada naqueles Acórdãos, o que é relevante, neste âmbito, é que:

 

  • A constituição de uma provisão não implica que esteja, directamente, em causa a criação de uma reserva monetária, mas antes a consideração de um custo, que terá como consequência imediata que o lucro apurado e o lucro distribuível seja menor;
  • A consideração de uma provisão como custo de um determinado exercício dá concretização prática a dois dos sãos princípios da contabilidade:

 

  1. O princípio da prudência, pelo qual se toma em consideração, no apuramento dos resultados do exercício, os riscos previsíveis e as perdas eventuais derivadas de um facto nele ocorrido.
  2.  O princípio da especialização dos exercícios, segundo o qual se imputa ao exercício em que o facto ocorreu o seu possível custo, pelo que a não constituição da provisão num dado exercício, ou a sua constituição por valor insuficiente, pela Gestão da empresa poderá afectar, no futuro, o valor dessa mesma empresa, bem como a sua sustentabilidade económica e financeira e quiçá a sua permanência no mercado.

 

21. Daqui decorre que a constituição de provisões seja rodeada de um elevado grau de subjectividade por parte da direcção da empresa, mormente, na apreciação dos factos que, segundo os seus critérios de gestão, possam, no futuro, gerar perdas, assumindo-se como previdente que uma empresa bem gerida possa criar provisões, determinando, para isso, quais os factos que as devem legitimar e o respectivo montante, mas aceitando-se que o legislador fiscal, nesta matéria, possa ser mais restritivo, criando regras que levem a que  provisões registadas na contabilidade não sejam totalmente aceites como custo fiscal, e, assim, o resultado final seja diferente do resultado contabilístico.

 

22. Em síntese, dir-se-á, então, que a constituição de provisões ou imparidades para riscos e encargos é a consequência lógica e directa da aplicação dos princípios contabilísticos da especialização dos exercícios e da prudência, e, por isso, a sua concretização prática, deverá orientar-se pela necessidade de relevar e imputar a cada exercício todos os factos ou acontecimentos susceptíveis de afectar, no futuro, o património e os resultados da empresa.

 

23. As imparidades que, anteriormente, eram inseridas num conceito mais global de provisões, e ainda hoje existente, consistem em registos contabilísticos de verbas destinadas a fazer face a um encargo imputável ao exercício, mas de comprovação futura, ou já comprovado, mas de montante incerto – perdas potenciais nos elementos do Activo da empresa -, são, hoje, gastos estimados do exercício, sofridos por um elemento do activo da empresa mas cuja perda se traduz numa quantia incerta, de verificação futura.

 

24. Face ao exposto, afigura-se que se encontram preenchidos os requisitos para que se possa concluir pela natureza duvidosa dos créditos e que as provisões ou imparidades constituídas não o foram com o propósito de um planeamento fiscal da parte da Requerente, mas antes, para fazer face a despesas ou perdas de ocorrência futura certa e conhecida, mas cujo quantum não é possível determinar com precisão e por isso incerto, seguindo um critério prudencial de apuramento de resultados do exercício que teve em conta os riscos previsíveis e as perdas derivadas do exercício da actividade económica da empresa e, que, por isso, a imputação temporal feita de custos referentes a períodos anteriores não violará o disposto no artigo 18º da CIRC, porque tal não resultou da prática de omissões voluntárias e intencionais com vista a fazer transferências de resultados entre exercícios.

 

25.Acresce, ainda, que, no Processo nº. 722/2020-T, de 10-9-2021, a Requerente impugnou, as correcções feitas pela AT, na sequência de processo inspectivo, desconsiderando perdas por imparidades em dívidas a receber de clientes, os montantes de 201 230,89 € e 1 194 291,79 €, num total de 1 395 522, 68 €, por contabilização, respectivamente, em 2016 e 2017, como perdas por imparidades, tendo -lhe sido dado total provimento com fundamento em erro de interpretação do artigo 28º-A do CIRC e violação do princípio de especialização dos exercícios, enunciado no artigo 18º do CIRC, limitado à luz do princípio da justiça. Ora, sendo, aqui, a questão a decidir, em substância, a mesma e com a mesma construção argumentativa, impõe-se, também, a mesma coerência decisória, e por isso, dar provimento à pretensão da Requerente, na consideração e reconhecimento da verba de 143 068,40 €, como perdas por imparidades.

 

26. Nestes termos, conjugando-se o artigo 18º, nº. 1 do CIRC com o nº. 1 do artigo 23º do mesmo CIRC, impõe-se que as perdas por imparidades contabilizadas pela Requerente, enquanto componentes negativas do lucro tributável do exercício em que foram reconhecidas, devam se reconhecidas no exercício em que o sujeito passivo deixou de ter expectativas fundadas de que aqueles valores viriam a ser pagos, in casu 2019,atribuindo-lhe aí relevância fiscal, para além de que a  requerida AT não logrou demonstrar que a aqui Requerente teve qualquer vantagem em atrasar ou diferir a relevância fiscal dessas perdas por imparidades, pois, como consta do RIT, na Demonstração de Resultados dos anos de 2017, 2018 e 2019, a requerente evidenciou resultados líquidos positivos para cada um desses exercícios económicos.

 

27. Assim, a correcção feita pela AT, relativamente às imparidades no montante de 141 068,40 €, enferma de vício de violação de lei por erro na interpretação do artigo 28º-A, do nº. 1 do artigo 18º e nº. 1 do artigo 23º, todos do CIRC, o que justifica a anulação das liquidações adicionais efectuadas para o exercício de 2019, naquele montante.

                                                                                   

 

Termos em que se acorda, neste Tribunal Arbitral, na seguinte Decisão:

 

a) Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente.

 

b) Anular as liquidações adicionais nº. 2022 ...  e nº. 2022 ..., de 865 661,15 € e 143 445,94 €, decorrentes das correcções técnicas efectuadas pela requerida AT, em sede de IRC, no total de 3 286 256,66 €, para os anos de 2018 e 2019, na parte impugnada de 1 551 079,09 €, com todos os efeitos legais.

 

d) Condenar a Requerida AT nas custas do processo, abaixo fixadas.

 

 

III - VALOR DO PROCESSO

 

 

De harmonia com o disposto nos artigos 315.º n.º 2, do Código do Processo Civil e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de 476 288,09 €, calculado por aplicação da percentagem das correcções impugnados no total das correcções feitas pela requerida – 47,2% -.

  

IV- CUSTAS

 

Tendo em conta o valor da causa acima fixado, e nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 12.º e n.º 4 do artigo 22.º do RJAT e Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código do Processo Civil, por força da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, o montante das custas é fixado em 7 650,00 € (sete mil seiscentos e cinquenta euros), a cargo da requerida AT, pelo decaimento.

 

Lisboa, 30 de Novembro de 2023.

 

O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro [RJAT], regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, com excepção das citações.

 

O Árbitro Presidente

 

(Conselheiro Carlos Alberto Fernandes Cadilha)

 

O Árbitro Vogal

 

(Dr. Manuel Fonseca Benfeito - Relator)

 

O Árbitro Vogal

 

(Dr. Fernando Marques Simões)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1]  Existe uma diferença de 3,00 € no valor constante do Mapa da AT, a fls. 40 do RIT. Com efeito, o total das correcções inscritas, em 2018, é de 2 988 342,58 €, enquanto, para esse ano, a soma do total das correcções é de 2 988 339,58 €. Tendo em conta que a impugnação da requerente é sobre a quantia de 1 551 079,09 €, então o valor não impugnado será a diferença entre 3 286 256,66 € e 1 551 079, 09 €, ou seja, 1 735 177,57 €. Como não é possível determinar a origem desta diferença de 3,00 €, desprezaremos esta diferença.

[2] Na contabilidade consta a relevação na conta #27822, cujo saldo era, exactamente, o montante de 11 488,03 €, não tendo sido movimentada nenhuma conta de proveitos da classe 7. Ora, ao não ter sido registado qualquer proveito, em 2018, tal facto levou a que a requerida AT tivesse entendido que deveria corrigir essa importância por contrapartida de proveitos. Mas ao fazê-lo, em 2018, e como o rédito era de 2014, nessa altura, estava já para além do prazo de caducidade do direito à liquidação a que se refere o artigo 45º a LGT.

 

[3] Porém, somando as duas parcelas do mapa da página 33 do RIT, respectivamente de 88 561, 92 € e de 55 058,48 €, a soma é de 143 620,40 € e não a assumida pela AT de 141 068,40 €. Será que tal divergência resulta de erro de escrita, devendo considerar-se, no aludido mapa, 55 506,48 € e não 55 056,48 € [88 561,92 € - 55 506,48 € = 144 068,40 €]?



[i] Com a entrada em vigor do SNC as antigas provisões do POC passaram a denominar-se imparidades. Porem, como das citações feitas consta o termo provisões, passaremos a usar ambas as expressões, referindo-se aos montantes deduzidos por créditos de cobrança duvidosa ou por dívidas a receber de clientes.