Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 202/2023-T
Data da decisão: 2024-01-15  IRC  
Valor do pedido: € 1.319.751,07
Tema: IRC. Incompetência do Tribunal em função do valor da causa.
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SUMÁRIO

 

  1. No caso de existir liquidação de imposto, o valor da causa é o da importância cuja anulação se pretende obter, reportando-se ao imposto liquidado; caso não haja liquidação de imposto, o valor da causa é correspondente ao próprio montante da matéria tributável corrigida, que é necessariamente superior ao imposto que seria apurado se houvesse lugar a liquidação.
  2. Esta diferenciação de critérios tem relevância, quer no cálculo das custas, que são fixadas em função do valor da causa, quer na competência do tribunal arbitral.
  3. Assim sendo, o valor da causa é o valor que foi determinado como imposto a pagar, no acto de liquidação adicional de IRC, pelo que o Tribunal Arbitral deveria ter sido constituído com árbitro singular e não colectivo, dado o valor do pedido não ultrapassar duas vezes o valor da alçada do Tribunal Central Administrativo.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

  1. A contribuinte A... S.A., NIPC..., doravante “a Requerente”, apresentou, no dia 23 de Março de 2023, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
  2. A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade da Liquidação Adicional de IRC e Juros compensatórios com o n.º 2022..., referente ao exercício de 2018, na importância total a pagar de € 386,26 (resultante da fixação da matéria colectável num valor de € 1.319.751,07), pedindo a anulação dessa liquidação adicional e o reembolso desse montante pago, acrescido de juros indemnizatórios.
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
  4. O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
  5. As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.
  6. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 6 de Junho de 2023; foi-o regularmente, e é competente em razão da matéria.
  7. Por Despacho de 8 de Junho de 2023, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.
  8. A AT apresentou a sua Resposta em 11 de Julho de 2023, juntamente com o Processo Administrativo.
  9. Por Despacho de 17 de Julho de 2023, foi a Requerente notificada para responder à matéria de excepção suscitada na Resposta da Requerida, e para elucidar a matéria da prova testemunhal.
  10. A Requerente tomou posição sobre esses dois pontos em Requerimento de 28 de Julho de 2023.
  11. Por Despacho de 9 de Outubro de 2023, determinou-se a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT.
  12. No dia 16 de Novembro de 2023 realizou-se essa reunião, tendo sido recolhido o depoimento das testemunhas arroladas pela Requerente, notificando-se ainda as partes para a apresentação de alegações, e designando-se o dia 6 de Fevereiro de 2024 para a prolação e comunicação da decisão arbitral.
  13. A Requerente apresentou alegações em 27 de Novembro de 2023.
  14. A Requerida apresentou alegações em 12 de Dezembro de 2023.
  15. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.
  16. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
  17. O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente é uma sociedade anónima que se insere no Grupo B..., encabeçado pela holding C... SGPS, S.A.
  2. A Requerente declarou o início de actividade, para efeitos fiscais, em 5 de Agosto de 1993, e tem como actividade principal a “Promoção Imobiliária (Desenvolvimento Projectos Edifícios)” – CAE 41100, e como actividade secundária a “Compra e Venda de Bens Imobiliários” - CAE 068100», estando enquadrada, em sede de IRC, no regime geral de tributação.
  3. Em 2018, a Requerente era subsidiária da sociedade D... S.A., com um controlo accionista de 100% por parte desta.
  4. Por sua vez, a D..., S.A. era subsidiária da sociedade E..., S.A., com um controlo accionista de 100% por parte desta.
  5. A holding C... SGPS, S.A. contraiu, em Dezembro de 2009, um financiamento no montante máximo de cerca de 2,482 milhões de euros, junto do Novo Banco, destinado ao financiamento do serviço de dívida das participadas da A... (F..., S.A. e G..., S.A.), na proporção do capital detido à data (2/3), tendo sido oferecido como garantia o penhor dos suprimentos e prestada garantia pessoal pelos accionistas da holding.
  6. Desde 2014 que a A... apresentava um capital próprio inferior a metade do seu capital social, e, para além da situação patrimonial negativa (nas contas de 2018, € 274.445,54 de activo para € 8.352.902,49 de passivo - docs. 20 e 23 anexos ao PPA), e à semelhança de diversas outras sociedades participadas do Grupo B..., experimentava dificuldades de tesouraria, sendo objecto de opiniões desfavoráveis dos auditores nas certificações legais de contas (prova testemunhal de H...).
  7. A reestruturação do passivo do Grupo B... iniciou-se em 2015 e culminou, em 2017, na formalização de um Acordo de Participação com a Banca, implicando múltiplas operações de transmissão das participações financeiras e créditos, envolvendo diversas empresas e activos do Grupo, entre eles a Requerente, e diversos projectos e empreendimentos de que a Requerente era directa titular (nomeadamente empreendimentos imobiliários no município de Vila Franca de Xira, sociedades F... , S.A. e G..., S.A.) (prova testemunhal de I..., J... e K...).
  8. Em 2021, ao abrigo da ordem de serviço n.º OI2021..., a Requerente foi objecto de uma acção inspectiva externa, de âmbito parcial, em sede de IRC e de IVA, relativamente ao exercício de 2018, nos termos do art. 14º, 1, b) do RCPITA, procurando em particular verificar os valores declarados no quadro 07 do modelo 22 de 2018.
  9. No RIT, propõe-se uma correcção técnica à matéria colectável do regime geral da Requerente, em sede do IRC, porque a Requerente teria considerado perdas relativas a operações de venda de participações financeiras detidas em determinadas empresas, e de créditos que detinha sobre as mesmas, no valor total de € 1.319.749,75, registando-as na subconta “6862 – Gastos e perdas nos restantes investimentos financeiros – Alienações”; quando, no entender da AT, o montante de € 1.319.751,07 tinha influenciado o resultado de 2018, mas em nada tinha contribuído para a obtenção ou garantia dos rendimentos sujeitos a IRC declarados pela Requerente nesse exercício, pelo que os referidos gastos não seriam dedutíveis, ao abrigo do disposto no art. 23º, n.º1 do CIRC. Em síntese (valores em euros):

1. Prejuízo Fiscal (1)

-1.314.314,49

2. Correcções propostas

1.319.751,07

3. Resultado fiscal corrigido (1+2)

5.436,58

4. Prejuízos fiscais dedutíveis (70% do lucro)

3.805,61

5. Matéria colectável corrigida (3-4)

1.630,97

6. Liquidação adicional

386,26

 
  1. As operações em causa reportavam-se a movimentos do Grupo B... com o FIAE – L..., fundo de investimento alternativo especializado, gerido pela L..., Sociedade de Capital de Risco, S.A., na qualidade de Entidade Gestora – uma solução encontrada para lidar com os objectivos de reestruturação e pagamento da dívida bancária do Grupo B... (doc. 12 anexo ao PPA, prova testemunhal de M... e K...).
  2. Solução nos termos da qual a E... deixou de ser formalmente uma SGPS, embora continuasse a sê-lo, de facto, em relação à D..., sua participada, e, através desta, à A..., a agora Requerente); e solução nos termos da qual os activos detidos, directamente ou indirectamente, pela E..., entre eles a A..., foram dados em garantia do financiamento obtido junto da Banca.
  3. Nomeadamente, a Requerente transmitiu ao FIAE a participação que detinha no capital social da sociedade F... e no capital social da sociedade G..., bem como, em ambos os casos, os créditos detidos e correspondentes a empréstimos efectuados – transmissão de créditos feita a valores que determinaram a já mencionada perda de € 1.319.751,07, registada na subconta “6862 Gastos e perdas nos restantes investimentos financeiros -alienações”.
  4. E os SIT consideraram que, atento o interesse económico subjacente às operações de transmissão das participações financeiras e créditos, se podia concluir que os gastos de € 1.319.751,07, apresentados pela Requerente, não se enquadravam na disciplina do art. 23.º do CIRC, não sendo, pois, dedutíveis, por respeitarem a gastos realizados tendo em conta o interesse económico da E... (controladora da D..., que controlava a A...), e não os da própria A..., a ora Requerente (nomeadamente, as referidas perdas, suportadas na transmissão de créditos da “F...” e da “G...”, teriam tido em vista a satisfação de interesses alheios à A..., interesses de terceiros e não da Requerente).
  5. Tratando-se, com a A... e a E..., de duas entidades distintas, ainda que pertencentes a um mesmo grupo de empresas, não estaria demonstrada a existência de uma relação de causalidade económica entre os rendimentos gerados no exercício e os gastos suportados, aquando da alienação das participações e créditos, além de que não resultaria comprovado qual o interesse económico daquelas operações para a realização dos rendimentos, e para o desenvolvimento da actividade, da Requerente.
  6. A resultante liquidação adicional de IRC e juros, com o n.º 2022..., referente ao exercício de 2018, perfez a importância total a pagar de € 386,26 (doc. 1 anexo ao PPA).
  7. Em 17 de Novembro de 2022 a Requerente pagou a quantia de € 386,26 correspondente à liquidação adicional de IRC e juros (doc. 30 anexo ao PPA).
  8. Em 23 de Março de 2023 a Requerente apresentou no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.
  9. Sendo o valor a impugnar o da liquidação adicional de IRC e juros, no valor de € 386,26, a Requerente entendeu que o valor económico do Pedido Arbitral devia corresponder a um total de € 1.319.751,07, o valor das correcções efectuadas em sede da inspecção tributária.

 

II. B. Matéria de facto não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, nada ficou por provar.

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

  1. Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo, e na prova testemunhal.
  2. Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).
  3. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  4. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  5. Nos termos do art. 396º do Código Civil, a força probatória da prova testemunhal é livremente apreciada pelo tribunal.
  6. Nos termos do art. 393º do Código Civil, havendo documentos, a prova testemunhal (ou, subalternamente, as declarações de parte) cingir-se-á à interpretação do contexto desses documentos, não podendo incidir nos factos que esses documentos provam.
  7. Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

III. Matéria de Direito

 

III. A. A excepção de incompetência do Tribunal Arbitral Colectivo em razão do valor

 

  1. Na sua Resposta apresentada em 11 de Julho de 2023, a Requerida suscita, em sua defesa, matéria de excepção, e nomeadamente o problema da incompetência, em razão do valor, do Tribunal Arbitral Colectivo.
  2. Lembra que o objecto da acção arbitral é a anulação do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2022..., emitido em 7 de Novembro de 2022, correspondente à demonstração de acerto de contas n.º 2022..., que determina imposto a pagar no valor total de € 386,26, não obstante a Requerente ter indicado como valor da acção o montante de € 1.319.751,07, correspondente às correcções à sua matéria tributável.
  3. E lembra que o que foi expressamente peticionado no PPA que deu origem ao presente processo é a anulação do acto de liquidação adicional de IRC e juros compensatórios, e nada mais.
  4. Invoca a Requerida os arts. 296º, 1 do CPC e 32º, 1 e 2, do CPTA para definir o que se entende por “valor da causa”.
  5. E recorda que é expressamente aplicável ao caso a alínea a) do nº 1 do art. 97º-A do CPPT: “Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as acções que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes: a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende”.
  6. Convocando a Requerida a jurisprudência dos tribunais administrativos, nomeadamente um acórdão do TCAS de 17 de Janeiro de 2019 (proc. n.º 62/18.4BCLSB), que estabeleceu: “3. Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A, do CPPT, o valor da causa corresponde ao valor da liquidação ou ao valor da parte impugnada desta, consoante se peça, respectivamente, a sua anulação total ou parcial, isto é, a quantia certa e líquida que na procedência da impugnação o impugnante deixará de pagar ou lhe será devolvida. […] 5. Esta norma pressupõe que a liquidação determine um montante de imposto a pagar superior a zero e que a liquidação seja impugnada, não consentindo qualquer outra interpretação, designadamente uma interpretação que faça depender o valor da causa de critérios subjectivos do impugnante.”. Um entendimento que foi mantido pelo STA em recurso de revista (Acórdão de 14 de Outubro de 2020, proc. n.º 062/18.4BCLSB): “[…] quanto às situações abrangidas pela alínea a) do nº1 do artigo 97º-A do CPPT, é pacífico que as mesmas se atêm à expressão monetária da “utilidade económica imediata do pedido”
  7. Em apoio da sua defesa por excepção, a Requerida invoca ainda algumas decisões arbitrais, como a proferida no Proc. n.º 579/2018-T: “Havendo liquidação de imposto, o valor da causa é o da importância cuja anulação se pretende obter, reportando-se ao imposto liquidado; não havendo liquidação de imposto, mormente por virtude de o sujeito passivo reportar prejuízos fiscais relativamente ao período de tributação em causa, o valor da causa é correspondente ao próprio montante da matéria colectável corrigida que é necessariamente superior ao imposto que seria apurado se houvesse lugar a liquidação. Esta diferenciação de critérios tem, por outro lado, um impacto directo quer no cálculo das custas, que são fixadas em função do valor da causa, quer na competência do tribunal arbitral […]”; ou a proferida no Proc. n.º 649/2021-T: “o montante que importa para definir o valor da ação arbitral é o valor controvertido e submetido a juízo”.
  8. Assim, sustenta a Requerida, o Tribunal Arbitral deveria ter sido constituído com árbitro singular e não colectivo, dado o valor do pedido não ultrapassar duas vezes o valor da alçada do Tribunal Central Administrativo, isto é € 60.000,00, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 5.º do RJAT.
  9. Verificando-se, pois, uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso e insusceptível de ser sanada nos termos do artigo 13.º do CPTA, aplicável ex vi art. 29.º, 1, d) do RJAT, que determina que “O âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria.”.
  10. Essa excepção dilatória impede o conhecimento do mérito da causa e determina a absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 576.º, 2, e 577.º, a) do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, 1, e) do RJAT.
  11. Em alegações, a Requerida retoma, sumariamente, estes argumentos em favor da procedência da defesa por excepção.

 

III. B. Posição da Requerente quanto à excepção de incompetência do Tribunal Arbitral Colectivo em razão do valor

 

  1. Tendo sido notificada, por Despacho de 17 de Julho de 2023, para responder à matéria de excepção suscitada na Resposta da Requerida, a Requerente, em Requerimento de 27 de Julho de 2023, pronunciou-se sobre essa matéria.
  2. Alega que é ilegal a correcção à matéria tributável que se apurou em sede de inspecção tributária, e que resultou da desconsideração do gasto na importância de € 1.319.751,07.
  3. E alega que se impõe reconhecer que a Requerente, ao longo do PPA, contestou não só a liquidação adicional, mas também a ilegalidade da correcção à sua matéria tributável; ou seja, que se tratou não somente de questionar o resultado de uma quantia a pagar, mas também a correcção operada pelos serviços da IT que provocou aquele resultado – constituindo causa de pedir o reconhecimento da dedutibilidade daquele gasto de € 1.319.751,07, e não apenas a liquidação de € 386,26.
  4. Lembra as regras de determinação do valor da causa nas situações em que, não tendo havido liquidação, há impugnação do acto de fixação da matéria tributável – para daí inferir que pode haver violação do princípio da igualdade das partes, previsto no art. 16º do RJAT
  5. E a Requerente acrescenta que, a prevalecer o valor da causa determinado em função do valor da liquidação, ficará privada de algumas garantias processuais, seja de possibilidades de recurso da decisão para instâncias superiores, seja de pronúncia por um tribunal colectivo, presidido nos termos previstos no art. 7º, 4 do RJAT. Sustentando que a sua definição do valor do pedido visou garantir a adequada protecção dos direitos e garantias das partes em diferendo, ao promover a análise do tema por um colectivo, e não unicamente por um tribunal singular.
  6. Entende que é ainda nesse sentido que o art. 10º, 2, e) do RJAT comete à Requerente a indicação do valor da utilidade económica do pedido, e que o disposto do art. 5º do RJAT deve subordinar-se directamente a essa indicação.
  7. Invoca, em seu apoio, doutrina que defende que a incompetência de um tribunal colectivo em razão do valor seria sanável na medida em que se reconhecesse que um tribunal colectivo pode decidir questões da competência de um tribunal singular, conferindo-lhes até maior segurança. E entende que se coenvolve, na questão, uma violação do princípio da igualdade, dada essencialmente a disparidade de soluções entre as alíneas a) e b) do nº 1 do art. 97º-A do CPPT.
  8. E fornece vários exemplos de decisões arbitrais nas quais, não obstante ter havido liquidação, os tribunais mandam atender a outros valores que não o da liquidação impugnada – desconsiderando a aplicação única da alínea a) do nº 1 do art. 97º-A do CPPT –: decisões nos Procs. n.º 322/2017-T, n.º 636/2017-T, n.º 124/2021-T, n.º 419/2019-T. Além disso, invoca também o Acórdão do TCAS, Proc. n.º 07125/13, de 13 de Março de 2014.
  9. Assinala ainda aquilo que ela entende ser um comportamento contraditório da Requerida, que teria defendido junto do CAAD, no Proc. n.º 281/2018-T, o entendimento oposto àquele que subscreve para invocar a excepção – o entendimento de que a aplicação da alínea a) do nº 1 do art. 97º-A do CPPT poderia ser complementada por outros critérios de determinação do valor da causa.
  10. Em alegações, a Requerente retoma, sumariamente, estes argumentos em favor da improcedência da defesa por excepção apresentada pela Requerida.

 

IV. Fundamentação da decisão

 

IV.A. Prioridade da apreciação da excepção de incompetência do Tribunal Arbitral Colectivo em razão do valor.

 

Na sentença, há que tomar em primeiro lugar, por imperativo legal e até lógico, posição quanto à competência do próprio tribunal, se a questão for suscitada por qualquer das partes, ou oficiosamente o tribunal dela se aperceber. Isso decorre ao art. 13º do CPTA (aplicável ex vi art. 29º, 1, c) do RJAT):

O âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria.”

Compreende-se que assim seja: verificada a incompetência, há que pôr termo imediato à instância, e o julgador deve abster-se de formular qualquer juízo sobre o mérito da causa, seja por uma questão de princípio – porque a lei o tem por incompetente para exercer o seu poder jurisdicional –, seja por razões pragmáticas, a primeira das quais a tutela dos interesses de quem, tendo interposto uma acção junto de um tribunal incompetente, não deve de modo algum ver perturbado, ou prejudicado, o seu direito de propor outra acção, sobre o mesmo objecto, junto de um tribunal competente.

É o que resulta do CPC (aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT), no seu art. 608º:

“1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 278.º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.”

E no seu art. 279º:

A absolvição da instância não obsta a que se proponha outra ação sobre o mesmo objeto.

A ressalva do art. 608º, 1 do CPC refere-se à hipótese de sanação de uma excepção dilatória, mas é manifesto que não se aplica a casos de incompetência do tribunal, porque a esses casos se aplica a ressalva do nº 2 do mesmo art. 608º:

Cessa o disposto no número anterior quando o processo haja de ser remetido para outro tribunal e quando a falta ou a irregularidade tenha sido sanada.” (o que se coaduna com o disposto no art. 105º, 1 e 3, do CPC)

Sucede que os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD não estão estruturados desse modo: extinta a instância, o tribunal dissolve-se (art. 23º do RJAT), e a interposição de um novo pedido de pronúncia acarreta a constituição de um novo tribunal, para que se inicie um novo processo (art. 15º do RJAT).

Muito simplesmente, um tribunal arbitral a funcionar no CAAD não pode remeter para outro – porque não existe esse outro tribunal, e só existirá em resultado de um procedimento iniciado com a apresentação de um novo pedido de pronúncia.

 

IV.B. O valor da causa

 

Não oferece dúvidas, a este tribunal, que o valor da causa, para efeitos de se apurar a sua competência, é o de € 386,26, o valor que foi determinado como imposto a pagar, no acto de liquidação adicional de IRC n.º 2022..., emitido em 7 de Novembro de 2022, correspondente à demonstração de acerto de contas n.º 2022... .

Foi esse o acto impugnado – uma liquidação.

Foi esse o valor controvertido e submetido a juízo, e só esse valor poderia ser objecto de uma anulação, caso procedesse o pedido de pronúncia, tal como ele foi formulado.

Foi esse, especificamente, o valor que a Requerente pagou em resultado da liquidação adicional (ver doc. 30 anexo ao PPA), e foi com base nesse valor que a Requerente reclamou juros indemnizatórios (arts. 228º a 233º do PPA).

Não houve, no presente processo, qualquer cumulação de pedidos.

Nos termos do art. 97º-A, 1, a) do CPPT:

Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as acções que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes: a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende”.

Devendo sublinhar-se que a hipótese de se levar em conta, para cálculo do valor da causa, o montante resultante de um acto de fixação da matéria tributável, previsto na alínea b) do nº 1 do art. 97º-A do CPPT, depende da circunstância de não ter sido impugnada a liquidação, pois, tendo havido impugnação da liquidação – e houve no presente processo – aplica-se a alínea a), e só esta.

Entender de outro modo seria, em primeiro lugar, ilógico, porque tornaria totalmente inútil a dicotomia entre as alíneas a) e b) do nº 1 do art. 97º-A do CPPT: se a impugnação da liquidação abarcasse a impugnação da fixação da matéria tributável, não seriam necessárias duas alíneas separadas, bastando a referência conjunta aos dois valores, e eventualmente o critério de se atender ao mais elevado desses dois valores.

E entender de outro modo seria, em segundo lugar, ilegal, por violação directa do disposto no art. 97º do CPPT, que reserva a impugnação da fixação da matéria tributável à hipótese de não ter havido liquidação – o que não é o caso no presente processo:

1 - O processo judicial tributário compreende: a) A impugnação da liquidação dos tributos […]; b) A impugnação da fixação da matéria tributável, quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo” (sublinhado nosso)

Vale a pena lembrar que a mesma dicotomia está consagrada no próprio âmago das normas que definem a competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária que funcionam no CAAD. Com efeito, estabelece o art. 2º do RJAT:

1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões: a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos […]; b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo […]” (sublinhado nosso)

Em suma: tendo havido liquidação, a fixação da matéria tributável não pode ser o objecto principal da acção; e, portanto, não é com base no montante resultante dessa fixação da matéria tributável que pode calcular-se o valor da causa.

Aproveitemos para afastar o argumento de que a dicotomia entre as alíneas a) e b) do nº 1 do art. 97º-A do CPPT (ou a do art. 2º, 1 do RJAT que a reproduz) poderia constituir uma afronta ao princípio da igualdade: longe de representar um atentado a esse princípio da igualdade, a disparidade de soluções entre as alíneas a) e b) do nº 1 do art. 97º-A do CPPT (ou do nº 1 do art. 2º do RJAT) resulta, linear e transparentemente, da circunstância de, na alínea a), se ter em vista a impugnação de uma liquidação; e, na alínea b), se referir aqueles casos em que, não tendo havido liquidação, está disponível a solução sucedânea da impugnação directa do acto de fixação da matéria tributável – são duas situações distintas, que se apresentam em alternativa (por força do art. 97º do mesmo CPPT), não podendo conceber-se a sua convergência numa solução única, em nome de um “princípio de igualdade”, sem se destruir a diferença necessária para que estas duas vias operem complementarmente, como o impõe o referido art. 97º do CPPT.

 

IV.C. Procedência da excepção. A questão do tribunal colectivo.

 

Um valor de € 386,26 não fecha a possibilidade de se constituir um tribunal arbitral colectivo no CAAD, bastando, a um qualquer Requerente, que opte por designar árbitro, o que torna imediatamente aplicável o art. 5º, 3, b) do RJAT, conduzindo à constituição de um tribunal colectivo independentemente do valor da causa.

Essa possibilidade, aberta pela simples opção pela designação de árbitro, inutiliza a argumentação que pretenderia apresentar o tema da incompetência em razão do valor como uma questão sanável através da manipulação do próprio conceito de “valor da causa”: se essa incompetência fosse sanável por essa outra via, e apenas por se reconhecer que um tribunal colectivo pode decidir quaisquer questões da competência de um tribunal singular, conferindo-lhes até maior segurança, cabe perguntar por que razão subsistiriam, então, tribunais singulares, na medida em que qualquer Requerente passaria a dispor da faculdade de, por fixação subjectiva do valor do pedido (empolando esse valor), assegurar sempre a intervenção de um tribunal colectivo.

Temos por não-sanável a questão da incompetência em razão do valor, em especial em tribunais arbitrais, atenta a sua especial natureza. Como se estabeleceu lapidarmente na decisão proferida no processo n.º 17/2012-T: “O recorte constitucional dos tribunais arbitrais, a sua natureza facultativa (para o legislador e para as partes), a circunstância de não serem tribunais comuns, nem dotados de competência residual, torna particularmente relevante a demarcação ratione materiae. Na ausência de norma atributiva de competência haverá de concluir-se, sem mais, pela procedência da excepção”.

Assim, como a Requerente optou, no presente processo, por não designar árbitro, o Tribunal Arbitral deveria ter sido constituído com árbitro singular, e não colectivo, dada a circunstância de o valor do pedido não ultrapassar duas vezes o valor da alçada do Tribunal Central Administrativo, isto é € 60.000,00, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 5.º do RJAT.

Nos termos do art. 102º do CPC:

A infração das regras de competência fundadas no valor da causa […] determina a incompetência relativa do tribunal.”

E nos termos do art. 104º, 2, do CPC:

A incompetência em razão do valor da causa é sempre do conhecimento oficioso do tribunal, seja qual for a ação em que se suscite.”

Verifica-se, portanto a excepção dilatória prevista na alínea a) do art. 577º do CPC (e art. 89º, 4, a) do CPTA), com a consequência do art. 576º, 2, do CPC:

As exceções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal.” (também art. 89º, 2 do CPTA).

Como, pelas razões já aduzidas, não há lugar a remessa para outro tribunal, a consequência única da procedência da excepção dilatória de incompetência do Tribunal Arbitral Colectivo em razão do valor é a absolvição da instância.

Com a consequência de que, não podendo exercer o seu poder jurisdicional, o Tribunal não pode pronunciar-se sobre o mérito de quaisquer outras questões submetidas à sua apreciação, nem retirar quaisquer consequências do que ficou provado.

Na procedência de uma excepção dilatória, estabelece o art. 278º, 1 do CPC que:

O juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância”.

 

V. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar procedente a excepção dilatória da incompetência do Tribunal em razão do valor do litígio, o que o impede de exercer o seu poder jurisdicional;
  2. Absolver da instância a Requerida;
  3. Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.

 

VI. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 386,26 (trezentos e oitenta e seis euros e vinte e seis cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A, 1, a) do CPPT (“Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as ações que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes: a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende”), aplicável ex vi art.º 29.º, 1, a), do RJAT e art.º 3.º, 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VII. Custas

 

No presente processo o tribunal depara-se com dois valores para efeitos do cálculo das custas a suportar pela Requerente: o primeiro, correspondente ao atribuído no pedido de pronúncia arbitral; e o segundo, determinado nesta decisão.

Adere-se ao que se entendeu no Acórdão n.º 151/2013-T, de 15 de Novembro, sobre a situação da existência de valores diferentes para efeitos de custas: “O facto de o valor do litígio, para efeitos de determinação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ser o que resulta da aplicação subsidiária do CPPT, não obsta a que seja outro o valor para efeitos de custas, pois trata-se de matéria que tem a ver exclusivamente com as receitas do CAAD, que é uma entidade privada”.

As custas são, neste âmbito, o equivalente a uma Taxa de Arbitragem, e o art. 2º, 1 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), estabelece que:

As custas do processo arbitral, genericamente designadas como taxa de arbitragem, compreendem todas as despesas resultantes da condução do processo arbitral e os honorários dos árbitros.”

Tendo a Requerente apresentado o seu Pedido de Pronúncia Arbitral com a indicação de que o respectivo valor de utilidade económica seria de € 1.319.751,07, tendo-se constituído o presente tribunal com base nessa indicação de valor, e tendo decorrido o processo no mesmo pressuposto, é a partir desse valor que se calculam as custas.

Custas no montante de € 17.748,00 (dezassete mil, setecentos e quarenta e oito euros) a cargo da Requerente (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, 2 e 22.º, 4, do RJAT).

 

Lisboa, 15 de Janeiro de 2024

 

Os Árbitros

 

Fernando Araújo

 

Cláudia Rodrigues

 

Clotilde Celorico Palma