Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 99/2021-T
Data da decisão: 2021-10-22  IRS  
Valor do pedido: € 130.112,86
Tema: IRS. Mais-valias. Regime Transitório. Partilha da herança. Tornas. Momento da aquisição.
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DECISÃO ARBITRAL  (consultar versão completa no PDF)

 

                Os árbitros Dr. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente, designado pelo Conselho Deontológico do CAAD), Dr. Manuel Lopes da Silva Faustino e Prof. Doutor Manuel Pires, designados pela Requerente e pela Requerida, respectivamente, para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 03-08-2021, acordam no seguinte:

               

                1. Relatório

 

A..., contribuinte n.º..., com domicílio fiscal no ..., ..., ...-... Sintra (doravante designada como “Requerente”), veio ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante “RJAT”, apresentar pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a declaração de  ilegalidade e anulação da liquidação adicional de IRS n.º 2020..., relativa ao ano de 2016, no montante de € 130 112,86, com data limite de pagamento em 04-01-2021.

                É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 04-05-2021.

Os signatários comunicaram a aceitação do exercício das funções no prazo aplicável.

Em 24-06-2021, as Partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo manifestado vontade de recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT,  o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 13-07-2021.

A AT apresentou resposta, em que defendeu que o pedido de pronúncia arbitral deve improceder.

Por despacho de 27-09-2021, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

A)           A Requerente declarou no campo 5 do anexo G1 (mais valias não tributadas) da declaração de rendimentos modelo 3 de IRS, do ano de 2016, a alienação de um imóvel rústico e um imóvel urbano, excluídos de tributação, nestes termos:

 

B)           No âmbito da acção inspectiva com a OI n.º OI2019... (para controlo declarativo no tocante à alienação onerosa de imóveis suscetíveis de produzir rendimentos sujeitos a IRS, no ano de 2016), a R. foi notificada, para apresentar a escritura pública de aquisição a título oneroso ou gratuito ou, qualquer outro documento que titule a respetiva aquisição bem como o respetivo documento de alienação referente ao imóvel alienado inscrito no referido quadro 5 do anexo G1 da modelo 3 de IRS (anexo II ao relatório de inspecção);

C)           Em resposta ao solicitado, a Requerente veio dizer que herdou o aludido prédio por óbito do seu pai B..., em 12/11/87, juntando:

- a respectiva certidão de óbito;

- a escritura de partilha celebrada em 29/01/1993;

- a escritura de compra e venda celebrada em 2016 (Anexos III e IV ao relatório de inspecção);

D)           Nos termos da escritura de partilha, a Requerente pagou tornas aos restantes herdeiros;

E)            Foi elaborado pela Autoridade Tributária e Aduaneira um projecto de correcção ao rendimento colectável com fundamento na tributação das mais-valias relativas à alienação de 4/5 do prédio, com fundamento no facto de que esta quota-parte foi adquirida, com a escritura de partilha, após a entrada em vigor do CIRS, sendo excluídas de tributação as mais-valias decorrentes da parte do prédio correspondente à quota ideal da Requerente, isto é, seja, 1/5, foram excluídas de tributação e inscritas no Anexo G1 da declaração Modelo 3/IRS, ano de 2016 (documento de correcção);

F)            Na sequência da correcção do emitida a liquidação adicional de IRS n.º 2020..., relativa ao ano de 2016, no montante de € 130 112,86, com data limite de pagamento em 04-01-2021 (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

G)           Em 16-02-2021, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e no processo administrativo.

Não há controvérsia sobre a matéria de facto.

 

 

3. Matéria de direito

 

O artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, que aprovou o CIRS, estabeleceu o seguinte «regime transitório da categoria G», no que aqui interessa:

 

Artigo 5.º

Regime transitório da categoria G

1 - Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 673, de 9 de Junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afectos ao exercício de uma actividade agrícola ou da afectação destes a uma actividade comercial ou industrial, exercida pelo respectivo proprietário, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código (Redacção do Decreto-Lei n.º 141/92, de 17 de Julho)

(...)

 

A Requerente foi herdeira de um prédio por óbito do sue pai, falecido em 12-11-1987, sendo a qua quota de 1/5.

Por escritura de partilha celebrada em 29-01-1993, a Requerente ficou com a totalidade do prédio, pagando tornas aos outros herdeiros.

A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que, relativamente a 1/5 do prédio que correspondia à sua quota hereditária não havia lugar a tributação em IRS, por a aquisição ter ocorrido antes da entrada em vigor do CIRS, mas tal não sucede em relação aos 4/5 adquiridos na sequência da escritura de partilha.

A Requerente defende, em primeira linha, que os referidos 4/5 do prédio também devem ser abrangidos pela exclusão de tributação referida, por, em suma, os efeitos da partilha retroagirem à data da abertura da herança.

Em segundo lugar, a Requerente defende a liquidação viola o princípio da boa-fé, por a Autoridade Tributária e Aduaneira estar vinculada, por força do preceituado no artigo 68.º-A da LGT, pelo decidido na Circular n.º 21, de 19-10-1992, que se mantém em vigor.

Em terceiro lugar, a Requerente defende que a liquidação impugnada viola o princípio da legalidade pois não há, para efeitos de IRS, nenhum valor que possa ser considerado como valor de aquisição de um específico imóvel (ou de parte desse imóvel).

Subsidiariamente, a Requerente defende ainda que ocorreu errado apuramento da mais-valia.

A Autoridade Tributária e Aduaneira mantém a posição assumida no Relatório da Inspecção Tributária quanto à primeira questão.

No que concerne à 2ª questão, a Autoridade Tributária e Aduaneira defende que a Circular n.º 21/92, emitida há cerca de 30 anos, não tem a virtualidade de afastar o regime que decorre do direito vigente para o qual releva o preenchimento in casu do tipo legal (cfr. art. 10º do CIRS), e que o entendimento adoptado no Relatório da Inspecção Tributária, tem sido adoptado em Informações Vinculativas.

Quanto à ofensa do princípio da legalidade a Autoridade Tributária e Aduaneira defende que «uma vez que não existem normas expressas sobre o procedimento a seguir para efeitos de apuramento dos valores a considerar como de aquisição, haverá que proceder a uma imputação proporcional do excesso a apurar para cada um dos imóveis atribuídos, uma vez que a imputação é absolutamente necessária para que se possa apurar o valor a considerar como de realização a fazer constar no anexo G».         

No que respeita ao apuramento das mais-valias, a Autoridade Tributária e Aduaneira defende que «as mais-valias que resultam da alienação do imóvel têm naturalmente de incidir sobre 80% do prédio porquanto essa foi a quota-parte adquirida em 1993, contra os 20% que, por terem sido adquiridos antes do CIRS, não estão sujeitos a este imposto, nos termos da norma transitória».

 

3.1. Questão da aplicação do regime transitório previsto o artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro

 

Esta questão tem sido controvertida na jurisprudência dos Tribunais Superiores tendo sido proferidas decisões no sentido propugnado pela Requerente e decisões no sentido defendido pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Na sequência dessas decisões contraditórias foi interposto um recurso para uniformização de jurisprudência que foi decidido pelo Pleno do Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 24-02-2021, proferido no processo n.º 05/09.6BESNT, por maioria de 109 votos contra 1.

Refere-se neste aresto, além do mais, o seguinte:

 

«A sucessão (mortis causa) corresponde ao chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais (excetuadas as que devam extinguir-se por morte do respetivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei) de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam, a qual, por determinação, expressa do art. 2031.º do Código Civil (CC), se abre no momento (dia e hora) da morte do seu autor e no lugar do seu derradeiro domicílio.

A partilha, que qualquer co-herdeiro (ou o cônjuge meeiro) tem o direito de pedir, quando quiser, após a abertura da sucessão respetiva, pode ser concretizada por acordo de todos os interessados, nas conservatórias ou por via notarial, e/ou, por meio de inventário, nos casos de desacordo, ausência ou incapacidade de facto permanente de algum dos herdeiros e de aceitação beneficiária, é o ato destinado a pôr termo, fazer cessar a indivisão de um património, em resultado da qual, dos seus diversos momentos, diligências, operações, cada interessado vem a ser encabeçado na titularidade dos bens e/ou direitos (e, sendo caso, nas dívidas) a que tem direito (ou de que é responsável), como resultado do funcionamento, aplicação, das diversas e pertinentes regras de direito das sucessões/sucessório. Entre estas, para os termos deste recurso, cumpre destacar a que se mostra inscrita no art. 2119.º do CC, sob as epígrafes, geral, dos efeitos da partilha e específica, da sua retroatividade: “Feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, sem prejuízo do disposto quanto a frutos” (Não se olvide, igualmente, que os efeitos da aceitação (da herança) se retrotraem ao momento da abertura da sucessão - art. 2050.º n.º 2 do CC.).

Com apoio nesta imposição, legislativa, do efeito retroativo da partilha, a doutrina dominante, bem como, a jurisprudência maioritária, tem afirmado, há longo tempo, a natureza, preponderantemente, declarativa (e não constitutiva ou translativa) da partilha de bens, no sentido de que “se limita a determinar ou materializar os bens que compõem o quinhão hereditário de cada herdeiro na herança até então indivisa, quinhão esse adquirido com a aceitação, cujos efeitos retroagem ao momento da abertura da sucessão”. Por outras palavras, não existindo reservas em afirmar que, enquanto uma herança permanecer indivisa (não for objeto de liquidação e partilha) (Por força do art. 2101.º n.º 2 do CC, “Não pode renunciar-se ao direito de partilhar, mas pode convencionar-se que o património se conserve indiviso por certo prazo, que não exceda cinco anos; é lícito renovar este prazo, uma ou mais vezes, por nova convenção”. Ver, ainda, art. 2074.º do mesmo compêndio legal.), cada um dos herdeiros, somente, é titular de um direito a uma quota-parte (ideal) de uma massa de bens, constituindo um património autónomo, e não de um direito, subjetivo, sobre cada um dos bens integrantes da mesma, já, por efeito da partilha, o herdeiro torna-se titular, em pleno, dos direitos que lhe couberem, sendo, se a herança integrar a propriedade de bens imóveis, a partir de então, que, conforme (na proporção) lhe forem atribuídos, passa a ser proprietário de cada um deles e, nessa qualidade, pode exercer os direitos correspondentes. Relativamente à aquisição do direito de propriedade (de coisas corpóreas), é preciso ter, sempre, presente, ainda, o princípio de que o mesmo se adquire, entre outros modos, por sucessão mortis causa, no momento da sua abertura (Artigos 1316.º e 1317.º alínea b) do Código Civil (CC).); e não pelo modo de partilha.

Não se nos colocando nenhuma entropia em, deste modo, entender, quando se trata do preenchimento certo (rigorosa e aritmeticamente, correspondente à quota-parte de cada interessado) dos quinhões hereditários, também, no âmbito tributário, em cédula de IRS (mais-valias/regime transitório), julgamos ser de adoptar e retirar consequências (especificamente, sobre o momento da aquisição), da mera natureza declarativa da partilha, nas situações, como a presente, em que um herdeiro preenche o seu quinhão em medida excedente, com concreta expressão monetária, do que, no confronto com os direitos dos demais, lhe era devido, por lei.

Obviamente, é verdade que o excesso de quinhão hereditário, para efeitos tributários, como, paradigmaticamente, sucede, na atualidade, com o imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT), consubstancia uma realidade equiparada às transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis, pelo que, está sujeito a tal tributo, “O excesso da quota-parte que ao adquirente pertencer, nos bens imóveis, em acto de divisão ou partilhas, bem como a alienação da herança ou quinhão hereditário;” (Cf. art. 2.º n.º 5 alínea c) do CIMT.). Contudo, desta norma de incidência, não podemos, como no acórdão recorrido, retirar suporte para afirmar e concluir « … que, não obstante o carácter declarativo da partilha, para efeitos tributários, ela assume-se como facto constitutivo na parte em que as adjudicações excedam o valor do quinhão hereditário, ou seja, no referente a bens e direitos que passem para a titularidade dos herdeiros além dos necessários ao preenchimento dos respectivos quinhões. …, “na parte que excede a quota hereditária, o herdeiro não adquire por efeito da sucessão, antes realiza uma aquisição a título oneroso. «Esta diferença, sujeita a tornas, é suficiente para concretizar a onerosidade da transmissão nesta parte, a qual reveste a natureza de uma verdadeira compra e venda, assim não reportando os seus efeitos ao momento da abertura da sucessão e antes se devendo ter por concretizada a aquisição da respectiva propriedade no momento da celebração do contrato, no caso concreto a escritura de partilha lavrada em … (cfr. artigos 408 e 1317, alínea a), do C.Civil)».

Como o acima exposto deixa antever, a partilha, na nossa perspetiva, tem, sempre e univocamente, natureza declarativa e não, destacadamente, translativa, em particular, do direito de propriedade sobre imóveis, pelo que, em conformidade, qualquer aquisição, que por ela se materialize, tem de, independentemente da data da concretização/formalização do negócio jurídico (de partilha), retroagir ao dia e hora da abertura da correspondente sucessão por morte. Ademais, muito menos acolhemos o entendimento de que a partilha possa ter uma natureza, digamos, mista, bígama, nas situações, como a que nos ocupa, em que um herdeiro adquire (é encabeçado) em bens cujo valor, com tradução monetária, excede o do seu quinhão hereditário, isto é, declarativa e com a aquisição a ser reportada ao momento da morte do de cuius, quanto ao preenchimento certo da sua quota-parte na massa de bens a partilha e translativa (compra e venda), em relação à aquisição excedentária (da sua quota-parte), considerando-se esta efetivada na data da partilha (Nas palavras, pertinentes, do acórdão fundamento: “(…) A impugnante adquiriu o bem que vendeu no momento em que ocorreu o decesso da pessoa de quem o herdou, sem que tal sofra qualquer alteração por a partilha da herança ter decorrido em momento posterior, ou pela circunstância de nessa partilha lhe ter cabido o bem cujo valor excedia a sua quota hereditária. (…) O momento de aquisição do imóvel é um e um único, o momento da morte do autor da sucessão, sendo a partilha apenas uma forma de distribuir os bens pelos herdeiros em conformidade com a lei, a vontade do de cujus e os interesses dos herdeiros, em preenchimento dos respectivos quinhões hereditários, sempre, em todas as situações, com efeitos retroagidos àquele momento inicial da sucessão hereditária.”).

Efetivamente, por um lado, o art. 2119.º do CC, estatui que feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, sem qualquer destrinça dos que preenchem ou excedem o respetivo quinhão (quota-parte da universalidade de bens e direitos constitutivos da herança) (Com esta disposição legal visou o legislador “evitar hiatos na titularidade das relações jurídicas que são objeto da sucessão. De modo que há uma única transmissão, a sucessória, e não transmissões entre co-herdeiros”. Nas palavras do acórdão fundamento: ). Outrossim, um negócio jurídico de partilha de bens não é confundível com o contrato (nominado) de compra e venda, pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço (Artigo 874.º segs. do CC.), porquanto, desde logo, quanto a este último, o pagamento de tornas (forma privativa e específica de, numa partilha, o herdeiro que recebe bens/direitos em excesso cobrir a diferença - de valor monetário - aos demais) não tem a natureza de preço (correspondente à parte excedente, por exemplo, de uma parcela de um imóvel), mas sim, consubstancia uma forma de compensação, aos outros herdeiros/interessados, pelo excesso de quota-parte.

Neste ponto, cumpre questionar se razões como a afirmativa de que o “objecto de tributação é eminentemente económico e não jurídico”, podem levar-nos a infletir, no sentido do precedente pronunciamento.

Hodiernamente, a tributação visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas, bem como, a promoção da(s) justiça social, igualdade de oportunidades e necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, impondo-se-lhe que respeite os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material. Por outro lado, não é questionável que, nas situações de dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, se deve atender à substância económica dos factos tributários (Cf., arts. 5.º e 11.º n.º 3 da Lei Geral Tributária (LGT).). Porém, não obstante a sinalização e recurso, pelo legislador, a conceitos que projetam uma matriz com particular atenção e valoração de aspetos respeitantes à vertente económica das realidades sujeitas a tributação (relações jurídico-tributárias), temos de pensar e operar o direito tributário numa ordem jurídica global, integrada, estabelecendo as pontes necessárias e adequadas, com os demais ramos do direito, para ser alcançado um resultado equilibrado, no sentido de capaz de satisfazer os fins, gerais e abstratos, da tributação, sem criar discriminações de cariz circunstancial, dirigido a certos e determinados movimentos com repercussões económico-financeiras, a coberto de uma pretensa legitimação derivada da maior coleta de impostos. Em suma, a tributação (e, em especial, o respetivo controle judicial), sem prejuízo da atenção que tem de devotar aos aspetos económicos das realidades sobre que pretende incidir, não pode, em casos contados, assumir uma atitude autista e obnubilar os contributos doutrinários, consensuais para a esmagadora maioria, conformadores e explicativos de institutos jurídicos, conceitos, características privativas, de outros complexos normativos, do nosso ordenamento jurídico, com ligações ao direito tributário.»

 

Na parte decisória deste aresto, em que de uniformiza a jurisprudência, refere-se o seguinte:

«na aplicação do regime transitório, da categoria G, do IRS, previsto no art. 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 de 30 de novembro, nos casos de ganhos (mais-valias) decorrentes da alienação, a título oneroso, de prédios urbanos, rústicos e/ou mistos, o momento que releva, como o da aquisição dos bens ou direitos envolvidos, incluindo na parte em que, eventualmente, exceda o(s) quinhão(ões) hereditário(s), é o dia e hora da morte do(s) de cuiús»

 

É inequívoco, assim, que a jurisprudência foi uniformizada no sentido defendido pela Requerente, sendo aplicável o regime transitório previsto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 aos ganhos obtidos com a alienação onerosa de bens objecto de  partilha de herança, desde que o momento da morte do autor da herança tenha ocorrido antes da entrada em vigor do CIRS, mesmo que os bens adquiridos excedam o quinhão hereditário.

Assim, apesar de ser discutível o sentido da jurisprudência uniformizada (como se vê, desde logo, pelo douto voto de vencido), o facto de este acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo ter sido proferido com 10 votos a favor e 1 contra leva a concluir que se está perante jurisprudência que se poderá considerar consolidada, para efeitos do n.º 3 do artigo 284.º do CPPT, pelo menos enquanto não for alterada consideravelmente a composição do Pleno, como vem sendo jurisprudência corrente do Supremo Tribunal Administrativo.

Visando o regime legal dos recursos para uniformização de jurisprudência obstar a que se produzam decisões jurisdicionais divergentes sobre as mesmas questões de direito, assim concretizando "uma interpretação e aplicação uniformes do direito" (artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil), postulada pelo princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), os tribunais arbitrais, como tribunais que julgam em 1.ª instância, devem aplicar a jurisprudência uniformizada, quando não se entrevê, com objectividade, a possibilidade de ela ser alterada, como já fez o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 04-07-2021, proferido no processo n.º 077/17.0BEPDL.

Aliás, em matéria tributária, a Autoridade Tributária e Aduaneira está obrigada a rever as suas orientações genéricas quando conflituam com acórdão de uniformização de jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo [artigo 68.º-A, n.º 4,  alínea b] da LGT], o que revela uma acentuada intenção legislativa de implementação da jurisprudência uniformizada.

Pelo exposto, aplicando esta jurisprudência uniformizada, conclui-se que a liquidação enferma de vício de violação de lei, por erro de interpretação do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, conjugado com o artigo 2119.º do Código Civil.

Este erro justifica a anulação da liquidação impugnada, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

 

3.2. Questões de conhecimento prejudicado

 

Resultando do exposto a declaração de ilegalidade das liquidações que são objecto do presente processo, por vício que impede a renovação dos actos, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento dos restantes vícios que lhes são imputados pela Requerente.

 Na verdade, o artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer uma ordem de conhecimento de vícios, pressupõe que, julgado procedente um vício que assegura a eficaz tutela dos direitos dos impugnantes, não é necessário conhecer dos restantes, pois, se fosse sempre necessário apreciar todos os vícios imputados ao acto impugnado, seria indiferente a ordem do seu conhecimento.

 Pelo exposto, não se toma conhecimento dos restantes vícios imputados pela Requerente.

 

4. Decisão

 

Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

A)           Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

B)           Anular liquidação adicional de IRS n.º 2020..., relativa ao ano de 2016, no montante de € 130 112,86.

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 130 112,86, valor indicado pela Requerente, sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 22-10-2021

Os Árbitros

 

(Jorge Lopes de Sousa)

(Manuel Faustino)

(Manuel Pires)

Vencido conforme declaração de voto junta

 

 

 

 

Declaração de Voto

 

Não teria decidido o caso como o presente Acórdão, porque decidiu o caso conforme teoria declarativa da partilha, não consagrando a orientação constitutiva ou translativa. Atentando-se em que podem existir ou não tornas, deparam-se situações bem distintas: onerosidade, no caso de pagamento de tornas e gratuitidade na sua ausência (é eliminada a indivisão da herança), bem como trilateralidade e bilateralidade, respectivamente. Estamos perante situações bem diferentes e compreensivelmente implicando tratamento não igual, na parte excedente a quota. Abstraindo da análise do aspecto económico, o aspecto temporal do pressuposto objectivo é díspar: sucessão e título do pagamento das tornas, conduzindo a regras impositivas diversas – não tributação e tributação das mais-valias, respectivamente – regras que deverão ser consideradas na aplicação da disposição do artigo 5.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 442-A, de 30 de novembro de 1988, quanto a mais-valias e estabelecida para evitar a retroactividade da correspondente nova tributação. No sentido escrito importa mencionar a relevante Declaração de Voto no Acórdão do STA, processo 05/09.6BESNT.

 

22 de outubro de 2021

Manuel Pires