Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 751/2019-T
Data da decisão: 2020-11-17  IVA  
Valor do pedido: € 107.333,57
Tema: IVA; Contrato de prestação de serviços intragrupo; Preços de transferência
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Sumário:

I - Só a título excepcional são taxativamente permitidas, de acordo com o Direito da União Europeia, correcções de IVA em casos de “preços de transferência” praticados entre entidades que mantêm entre si relações especiais;

II – Tendo sido celebrado entre uma sociedade holding e uma empresa sua participada um contrato de prestação de serviços intragrupo segundo o qual a entidade beneficiária da prestação poderia ficar isenta de qualquer pagamento quando a sua situação económica-financeira o justifique, e tendo sido aplicada essa estipulação contratual num certo período de tributação, ocorre uma prestação de serviços a título gratuito;

III – Nessa circunstância, não se verifica qualquer um dos requisitos previstos na lei para a respectiva qualificação como uma prestação de serviços assimilada a uma prestação de serviços efectuada a título oneroso, nem os requisitos que permitem accionar a cláusula especial anti–abuso prevista no n.º 10 do artigo 16.º do CIVA.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., n.o..., ...-..., Porto, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos actos de liquidação de Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA) e correspondentes liquidações de juros compensatórios, referentes ao ano de 2015, no valor global € 92 929,88, requerendo ainda  a condenação da Autoridade Tributária em indemnização por prestação de garantia indevida.

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente foi alvo de ação inspectiva ao exercício de 2015, que determinou a correcção de IVA a pagar relativamente a imposto não liquidado, no valor global € 92 929,88.

 

O fundamento das liquidações reside no ajuste à matéria colectável em sede de IRC, operada com recurso ao disposto no artigo 63.º do Código do IRC, no âmbito de prestação de serviços entre a Requerente e a sociedade B..., constantes do contrato de prestação de serviços intragrupo, nos termos do qual, ao abrigo da cláusula 2.7. do Anexo 1, não é cobrado qualquer valor quando «por razões económico-financeiras ou outras objectivamente consideradas, atinentes à Empresa, a A... [Requerente] delibere a não cobrança de preço pelos serviços prestados».

A B... é uma entidade sujeita a IVA e dele não isenta e desde a sua constituição que a Requerente presta serviços a essa entidade ao abrigo, à data dos factos, de um contrato de prestação de serviços intragrupo que vigorava desde 1 de junho de 2008.

O referido contrato de prestação de serviços intragrupo tem em vista regular a imputação dos valores a pagar pelas entidades participadas da Requerente que beneficiam de um conjunto de serviços de gestão efetuados pela Requerente, visando potenciar sinergias intragrupo e ganhos de eficiência.

De acordo com a cláusula 2.7 do Anexo 1 ao contrato de prestação de serviços intragrupo, em vigor em 2015, a entidade beneficiária da prestação de serviços poderá ficar isenta de qualquer pagamento, não lhe sendo imputado qualquer preço, quando a sua situação económico-financeira o justifique.

Em 2015, a B... encontrava-se numa fase deficitária e com necessidade de apoio a nível financeiro, pelo que a Requerente optou por não imputar qualquer montante à B... e, em consequência, não debitar qualquer valor referente a prestação de serviços.

Assim, de acordo com a vontade comum de ambas as partes e nos termos contratuais estabelecidos, no ano de 2015, a Requerente não recebeu, nem era credora de qualquer montante da B... razão pela qual não havia fundamento para emitir qualquer fatura .

Ora, o valor da operação, para efeitos de IVA, é o valor que as partes subjetivamente determinaram, e não o valor normal de mercado e, nesse sentido, a aplicação conjugada dos artigos 4.º, n.º 1, e 16.º, n.º 1, do Código do IVA, no que respeita às prestações de serviços efetuadas pela Requerente à B... deverão conduzir à ausência de IVA em dívida, uma vez que não houve qualquer valor a pagar à Requerente no exercício em causa.

Acontece que, como resulta do Relatório de Inspecção Tributária, o que a Autoridade Tributária e Aduaneira pretendeu foi ajustar a matéria colectável da Requerente em sede de IRC com base nas normas de preços de transferência e projetar tal ajuste no âmbito do IVA.

No entanto, os ajustes à matéria colectável de IRC com base na aplicação das normas de preços de transferência (de IRC) não constituem uma operação tributável para efeitos de IVA.

Nem a Diretiva IVA nem o Código do IVA admitem a consideração como prestação de serviço sujeita a IVA, ajustes à matéria colectável em IRC decorrentes da aplicação das regras de preços de transferência. Pelo que, na medida em que as liquidações de IVA em crise se fundamentam em ajustamentos primários à matéria colectável de IRC da Requerente, são ilegais (e inconstitucionais) por falta de norma de incidência.

 

Por outro lado, à luz do princípio geral da irrelevância genérica do preço objectivo para efeitos de IVA, só em situações excepcionais, taxativamente previstas no artigo 80.º da Diretiva e 16.º, n.º 10, do Código do IVA, poderá o valor objectivo indiciado por ajustes primários ser relevante para efeitos de IVA, sendo que, no caso, atenta a circunstância de tanto a Requerente como a B... serem sujeitos passivos de IVA não isentos, nenhuma das referidas exceções ao regime regra do preço subjetivo têm aplicação.

 

Acresce que, ao abrigo do princípio da neutralidade do IVA, e ainda que se admitisse os pretendidos ajustes primários em sede de IVA, tal sempre exigiria o ajuste correlativo na esfera da B... (exercício pleno do direito à dedução) e impediria a liquidação de juros compensatórios ou qualquer outra penalidade aplicável.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que a Requerente, em 2015, prestou serviços à B... cuja contraprestação, acordada pelas partes, correspondia a um montante sobre o volume de negócios, que nesse ano, era o que constava do dossier de preços de transferência e se encontrava referenciado no artigo 2.º do contrato de prestação de serviços, sendo que esse montante não foi facturado pela Requerente nem sobre ele liquidado IVA.

Por outro lado, o que consta do contrato de prestação de serviços é que a Requerente podia deliberar pela não cobrança de preço, mas não foi junta qualquer prova documental de tal deliberação tenha vindo a ser adoptada.

 

Acresce que a não cobrança dos serviços prestados não releva para a liquidação do imposto e apenas pode gerar o direito a regularizar o imposto que tenha sido a antes liquidado a seu favor, dentro do circunstancialismo previsto nos artigos 78.º e ss. do CIVA.  

 

Conclui no sentido da improcedência do pedido arbitral.

 

2. No seguimento do processo, foi realizada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, também destinada à produção de prova testemunhal indicada pela Requerente, tendo-se determinado, na sequência, a apresentação de alegações escritas facultativas por prazo sucessivo.

 

Em alegações, as partes mantiveram as suas anteriores posições.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 3 de Fevereiro de 2020.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

4. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

a)            A Requerente foi alvo de ação inspetiva (“Ação Inspetiva”) ao exercício de 2015, credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2017... (“Ordem de Serviço”), emitida pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças do Porto, iniciada com âmbito parcial (IRC) e alargada para âmbito Geral, através de notificação efetuada a 28 de fevereiro de 2019.

b)           A Ação Inspetiva terminou com a notificação à Requerente do Relatório de Inspeção Tributária, através do Ofício n.º 2019..., de 2 de julho de 2019 (“RIT”), recebido pela Requerente a 4 de julho de 2019.

c)            Em sede de inspecção, apuraram e concluiram os SIT, em relação ao IVA, o seguinte:

(…)

III.5 Serviços intragrupo prestados à participada B..., S. A.- IVA não liquidado

A prestação de serviços intragrupo realizadas pela “A...” junto das suas participadas, atendendo à natureza residual e, consequentemente, ampla do conceito de prestação de serviços previsto no art.º 4.º, n.º 1 do CIVA, são, desde logo, operações sujeitas a imposto e dele não isentas.

E foi assim que a “A...” procedeu relativamente a todas as prestações de serviço intragrupo realizadas junto das suas participadas, com exeção da B..., S. A., isto é, o sujeito passivo emitiu fatura onde liquidou o correspondente IVA em cumprimento no disposto no art.º 4.º, n.º 1 do CIVA, tendo nessa sequência procedido à sua declaração nas respetivas Declarações Periódicas de IVA.

A justificação apresentada pelo sujeito passivo para a não faturação e consequentemente para a não liquidação de IVA é a mesma que deu para o não reconhecimento de rendimentos, e que passamos a transcrever: “A B... continua numa fase deficitária e com necessidade de apoio ao nível financeiro, optando-se por não debitar qualquer valor em 2015. Do ponto de vista fiscal, uma vez que ambas as empresas estão no mesmo RETGS, o efeito é nulo”.

III.5.1 Apuramento do IVA não liquidado

Assim, face ao exposto no ponto anterior, a “A...”, por força do disposto no art.º 1.º n.º 1, alínea a) e no art.º 4.º, ambos do CIVA, deveria ter liquidado IVA, no período de 2015, pela prestação de serviços intragrupo realizados por si à sua participada B..., S. A..

Considerando-se o valor tributável, nos termos do art.º 16.º, n.º 1 do CIVA o valor da contraprestação a obter determinado pelo sujeito passivo no Dossier de Preços de transferência de 2015.

Nos Contratos de Prestação de Serviços Intragrupo, em vigor no período de tributação 2015, é referido que “o preço devido será pago em prestações trimestrais, nos meses de Março, Junho, Setembro e Dezembro”, sendo que “o preço deverá ser liquidado no prazo de 30 dias a contar da emissão da respetiva fatura”. Assim, a “A...” para efeitos da exigibilidade do imposto, em conformidade com o disposto nos art.ºs 7.º e 8.º do CIVA, deveria ter emitido as respetivas faturas em 2015-03-01, 2015-05-31, 2015- 08-31 e 2015-12-01. Pelo que considerando que à prestação de serviços se aplica a taxa normal prevista no art. 18.º, n.º 1, alínea c) do CIVA, a “A...” deveria ter liquidado IVA em cada um dos períodos da emissão da fatura, conforme quadro resumo seguinte:

 

d)           O fundamento das liquidações reside no ajuste à matéria coletável em sede de IRC, operada com recurso ao disposto no artigo 63.º do Código do IRC, em particular, operações com a entidade B..., S.A. (“B...”);

e)           Entre outras correções, objeto de impugnação autónoma, de acordo com o RIT, a Requerente não liquidou IVA, no ano de 2015, no valor global EUR 92 929,88.

f)            Em consequência foram emitidas as Liquidações (constantes do quadro em baixo):

 

g)            A Requerente, é um sujeito passivo de IVA, enquadrado no regime normal de periodicidade mensal.

h)           A B... é uma entidade sujeita a IVA e dele não isento.

i)             Desde a sua constituição, a Requerente presta serviços intragrupo à B...;

j)             Em 2002, existia um outro contrato de prestação de serviços intragrupo em que Requerente e B... eram partes.

k)            O contrato de prestação de serviços intragrupo, em vigor à data dos factos, iniciou a sua vigência em 1 de junho de 2008.

l)             O referido contrato de prestação de serviços intragrupo tem em vista regular a imputação dos valores a pagar pelas entidades participadas da Requerente que beneficiam de um conjunto de serviços de gestão efetuados pela Requerente, visando potenciar sinergias intragrupo e ganhos de eficicência.

m)          A Requerente prestou à B... serviços previstos na cláusula primeira do contrato de prestação de serviços.

n)           De acordo com a cláusula 2.7 do Anexo 1 ao contrato de prestação de serviços intragrupo, em vigor em 2015, em conformidade com a vontade das partes no contrato, a entidade beneficiária da prestação poderá ficar isenta de qualquer pagamento, i.e., não lhe é imputado qualquer preço, quando a sua situação económico-financeira o justifique.

o)           Em 2015, a B... encontrava-se numa fase deficitária e com necessidade de apoio a nível financeiro, pelo que a Requerente optou por não imputar qualquer montante à B... e, em consequência, não debitar qualquer valor referente a prestação de serviços.

p)           Assim, de acordo com a vontade comum da Requerente e da B..., e com os termos contratuais estabelecidos em 2015, a Requerente não recebeu qualquer montante da B...

 Factos não provados

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral.

Fundamentação da matéria de facto

Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Coletivo e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.os 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

Matéria de direito

 

5. Regra geral, apenas as transmissões de bens e as prestações de serviços efectuadas a título oneroso são sujeitas a IVA. De acordo com o disposto no artigo 4.º, n.º 1, do CIVA, são qualificadas como prestações de serviços todas as operações realizadas a título oneroso que não se qualificam como transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens. Embora a regra seja a da tributação das prestações de serviços efectuadas a título oneroso, o Código assimila determinadas operações efectuadas a título gratuito a prestações de serviços efectuadas a título oneroso, contudo, a situação em apreço não e subsume em nenhum dos casos taxativamente enunciados em conformidade com as regras do Direito da União Europeia.

 

O valor tributável das operações é o valor sobre o qual vai incidir o imposto, tendo regras especiais para efeitos do IVA.

 

Assim, regra geral, nos termos do artigo 16.º, n.º 1, do CIVA, o valor tributável será o valor da contraprestação obtida ou a obter pelo alienante ou pelo prestador de serviços. De acordo com o entendimento do TJUE, a contraprestação deverá ser real e efectiva, susceptível de avaliação pecuniária e de apreciação subjectiva, devendo incluir-se todos os benefícios obtidos de uma forma directa, independentemente de terem natureza monetária ou consistirem numa transmissão de bens ou numa prestação de serviços.

 

Quanto às características específicas, uma prestação de serviços é sempre, do ponto de vista jurídico, um contrato bilateral e, em princípio, para efeitos de IVA, oneroso. Significa isto que, tal como preconiza o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), para que se possa falar de uma prestação de serviços a título oneroso (e, como tal, tributável), deve “existir entre o prestador e o beneficiário uma relação jurídica durante a qual são transaccionadas prestações recíprocas, constituindo a retribuição recebida pelo prestador o contravalor efectivo do serviço fornecido ao beneficiário”.  Ou, noutra formulação, significa que esta noção há-de pressupor “a existência de um nexo directo entre o serviço prestado e o contravalor recebido”.  

 

Decorre daqui que não existe prestação de serviços tributável em IVA se não existir bilateralidade ou sinalagma (prestação e contraprestação) ou se houver mera correspectividade indirecta.

 

Como diz o TJUE, não estão preenchidas as condições de uma prestação de serviços efectuada a título oneroso, se não existir “contrapartida que tenha valor subjectivo e nexo directo com o serviço prestado” .

 

Isto é, em linhas gerais, poderemos concluir que para que exista uma contraprestação para efeitos de IVA é necessário que, em simultâneo, exista um nexo de ligação ou vínculo directo entre o bem entregue ou o serviço prestado e a contrapartida recebida , ou seja, deve verificar-se uma dependência das prestações e estas não devem ser, necessariamente, autónomas, devendo a contraprestação ser avaliável em dinheiro e ter um valor subjectivo, dado que o IVA deverá incidir sobre a remuneração efectivamente recebida, e não num valor apurado com base em critérios objectivos.

 

Neste contexto o TJUE firmou com clareza a sua jurisprudência no Caso Hotel Scandic  , concluindo expressamente que: “21. A este propósito, importa recordar que, de acordo com a regra geral enunciada no artigo 11.°, A, n.° 1, alínea a), da Sexta Directiva, a matéria colectável na entrega de um bem ou na prestação de um serviço, efectuadas a título oneroso, é constituída pela contrapartida realmente recebida para o efeito pelo sujeito passivo. Esta contrapartida constitui, portanto, um valor subjectivo, ou seja, realmente recebido, e não um valor calculado segundos critérios objectivos (v. acórdãos de 5 de Fevereiro de 1981, Coöperatieve Aardappelenbewaarplaats, 154/80, Recueil, p. 445, n.° 13; de 23 de Novembro de 1988, Naturally Yours Cosmetics, 230/87, Colect., p. 6365, n.° 16; de 27 de Março de 1990, Boots Company, C-126/88, Colect., p. I-1235, n.° 19; de 16 de Outubro de 1997, Fillibeck, C-258/95, Colect., p. I-5577, n.° 13; e de 29 de Março de 2001, Comissão/França, C-404/99, Colect., p. I-2667, n.° 38). Além disso, essa contrapartida deve poder ser expressa em dinheiro (acórdãos, já referidos, Coöperatieve Aardappelenbewaarplaats, n.° 13; Naturally Yours Cosmetics, n.° 16, e Fillibeck, n.° 14)”.

 

Mas importa em especial salientar que o valor da contraprestação deve ter um valor subjectivo e só a título excepcional se atenderá ao valor objectivo. Ou seja, regra geral, o valor da operação, para efeitos de IVA, é o valor que as partes subjetivamente determinaram e não o valor normal de mercado.

 

A consideração de um valor objectivo a título excepcional vem prevista nas situações pontualmente previstas na Directiva IVA e que se subsumem a casos de fraude ou evasão fiscais, entre nós acolhidas no n.º10 do artigo 16.º do CIVA, nas quais o legislador vem permitir correcções considerando como valor tributável o valor normal das operações.

 

Assim, em conformidade com o previsto no artigo 80.º da Directiva IVA, “Artigo 80.º

1. A fim de evitar a fraude ou evasão fiscais, os Estados-Membros podem tomar medidas para que, relativamente às entregas de bens e prestações de serviços que envolvam laços familiares ou outros laços pessoais próximos, laços organizacionais, patrimoniais, associativos, financeiros ou jurídicos, definidos pelo Estado-Membro, o valor tributável seja o valor normal, nos seguintes casos:

a) Quando a contraprestação seja inferior ao valor normal e o destinatário da operação não tenha direito a deduzir totalmente o IVA ao abrigo dos artigos 167.ºa 171.º e 173.º a 177.º;

b) Quando a contraprestação seja inferior ao valor normal e o fornecedor dos bens ou prestador dos serviços não tenha direito a deduzir totalmente o IVA ao abrigo dos artigos 167.º a 171.º e 173.º a 177.º e a operação esteja isenta ao abrigo dos artigos 132.o, 135.o, 136.o, 371.o, 375.o, 376.o, 377.o, do n.º 2 do artigo 378.º, do n.º 2 do artigo 379.º ou dos artigos 380.º a 390.º;

c) Quando a contraprestação seja superior ao valor normal e o fornecedor dos bens ou prestador dos serviços não tenha direito a deduzir totalmente o IVA ao abrigo dos artigos 167.º a 171.º e 173.º a 177.º.”

 

Por sua vez, nos termos do disposto no n.º 10 do artigo 16.º do CIVA, “10 – O disposto no n.º 1 não tem aplicação nas transmissões de bens ou prestações de serviços efetuadas por sujeitos passivos que tenham relações especiais, nos termos do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC, com os respetivos adquirentes ou destinatários, independentemente de estes serem ou não sujeitos passivos, caso em que o valor tributável é o valor normal determinado nos termos do n.º 4, quando se verifique qualquer uma das seguintes situações:

a) a contraprestação seja inferior ao valor normal e o adquirente ou destinatário não tenha direito a deduzir integralmente o imposto;

b) a contraprestação seja inferior ao valor normal e o transmitente dos bens ou o prestador dos serviços não tenha direito a deduzir integralmente o imposto e a operação esteja isenta ao abrigo do artigo 9.º;

c) a contraprestação seja superior ao valor normal e o transmitente dos bens ou o prestador dos serviços não tenha direito a deduzir integralmente o IVA.”

 

Acresce que, em conformidade com o previsto no n.º11 da citada norma, se determina que a derrogação prevista no número anterior não será aplicada sempre que seja feita prova de que a diferença entre a contraprestação e o valor normal não se deve à existência de uma relação especial entre o sujeito passivo e o adquirente dos bens ou serviços.

 

Como ensina Xavier de Basto, "Não há, em IVA, que presumir valores, como pode ter de suceder em impostos de tipo monofásico. Aí, com efeito, razões de neutralidade impõem, por vezes, que se ficcione o valor de certas transacções, para garantir que a sua realização a montante do ponto de impacto do tributo não permite obter vantagem fiscal. (...) A própria natureza do IVA, tipo consumo, descendo ao estádio retalhista, vocacionado para atingir o consumo final, afasta a necessidade de fixar, como princípio geral, valores normais ou presumidos. "

 

Saliente-se que, tal como sublinha a Requerente, em conformidade com a jurisprudência constante do TJUE, as excepções à fixação subjectiva do valor da transacção para efeitos de IVA quando estão em causa entidades relacionadas, estão taxativamente previstas no artigo 80.º da Directiva IVA, como resulta claramente das conclusões do Caso Balkan and Sea Properties ADSITS e da jurisprudência que lhe seguiu .

 

Neste Caso o TJUE conclui que “o artigo 80.º, n.º 1, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, deve ser interpretado no sentido de que os requisitos de aplicação que enuncia são taxativos e que, portanto, uma legislação nacional não pode prever, com fundamento nesta disposição, que o valor tributável seja o valor normal da operação em casos diferentes dos enumerados na referida disposição, nomeadamente quando o sujeito passivo beneficie do direito de deduzir integralmente o imposto sobre o valor acrescentado, o que compete ao órgão jurisdicional nacional verificar. Em circunstâncias como as que estão em causa nos processos principais, o artigo 80.º, n.º 1, da Diretiva 2006/112 confere às sociedades em causa o direito de o invocarem diretamente com o objectivo de se oporem à aplicação de disposições nacionais incompatíveis com esta disposição. Caso não possa proceder a uma interpretação da legislação interna em conformidade com este artigo 80.º, n.º 1, o órgão jurisdicional de reenvio deve deixar de aplicar qualquer disposição desta legislação que lhe seja contrária”.

 

Isto é, neste contexto, como salienta Alexandra Martins, salvo algumas excepções, as variações de valor ao longo da cadeia de transacções são irrelevantes para efeitos do IVA arrecadado: “Concebido o IVA como um imposto sobre o consumo, que constitui encargo do consumidor final, as transferências indirectas de lucros resultantes da manipulação dos preços, por parte dos grupos multinacionais, devem ser neutrais entre sujeitos passivos e desprovidas de impacto nas receitas fiscais. O mecanismo subtractivo, através do método do crédito de imposto ou da dedução, permite, em princípio, a recuperação total do imposto incorrido nas aquisições de bens e serviços efectuadas por sujeitos passivos. Assim, quer as transações estejam sobrevalorizadas, quer subvalorizadas, o valor, maior ou menor, do IVA apurado é, à partida, neutro para os contribuintes e indiferente para o Estado” .

 

Conclusões

 

Só a título excepcional são taxativamente permitidas, de acordo com o Direito da União Europeia, correcções de IVA em casos de “preços de transferência” praticados entre entidades que mantêm entre si relações especiais.

 

Como vimos, de acordo com o disposto na cláusula 2.7 do Anexo 1 ao contrato de prestação de serviços intragrupo, em vigor em 2015, em conformidade com a vontade das partes no contrato, a entidade beneficiária da prestação poderá ficar isenta de qualquer pagamento, i.e., não lhe é imputado qualquer preço, quando a sua situação económico-financeira o justifique. Por outro lado, em 2015, a B... encontrava-se numa fase deficitária e com necessidade de apoio a nível financeiro, tendo a Requerente optado por não lhe imputar qualquer montante não debitando qualquer valor referente a título de prestação de serviços.

 

Ou seja, estamos perante uma prestação de serviços a título gratuito, não se verificando qualquer um dos requisitos previstos na lei para a respectiva qualificação como uma prestação de serviços assimilada a uma prestação de serviços efectuada a título oneroso, nem tão pouco os requisitos para que, concluindo que, antes de mais, estaríamos perante uma situação de fraude ou evasão fiscais, pudéssemos accionar a cláusula especial anti–abuso prevista no n.º10 do artigo 16.º do CIVA.

 

Com efeito, desde logo nem tão pouco se equaciona que as entidades em apreço actuaram em termos ilícitos, por outro lado, a B... é uma entidade sujeita a IVA e dele não isenta. Quer a Requerente quer a B... são sujeitos passivos de IVA e não isentos, liquidando IVA nas suas operações activas e tendo direito à dedução do IVA suportado.

 

Este facto é, de per si, determinante para que, como vimos, a AT não possa sequer vir a fazer correcções em sede de preços de transferência nos termos do aludido preceito constante do n.º 10 do artigo 16.º do CIVA.

 

O pedido mostra-se ser, pois, procedente.

 

Indemnização por prestação indevida de garantia

 

6. A Requerente veio ainda requerer o pagamento da correspondente indemnização por prestação de garantia indevida, invocando o disposto nos artigos 171.º do CPPT e 53.º da LGT, tendo para o efeito alegado que procedeu à constituição de garantia bancária para obter a suspensão do processo de execução fiscal.

 

Sem dúvida que o artigo 171.º do CPPT garante a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada, que poderá ser requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda, havendo de entender-se que o processo arbitral é também o meio processual próprio para deduzir esse pedido visto que poderá ter por objecto a apreciação de pretensões relativas à declaração de legalidade de actos de liquidação de tributos (artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).

 

O artigo 53.º da LGT admite ainda que o devedor que ofereça garantia bancária ou equivalente para suspender a execução fiscal será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior  a três anos, salvo quando se verifique na impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, caso em que a indemnização não está dependente do prazo pelo qual vigorou a garantia.  

 

No entanto, a Requerente limitou-se a juntar ao pedido arbitral, como documento n.º 4, um requerimento dirigido ao Chefe de Finanças do Porto, com data de 3 de Outubro de 2019, pelo qual solicita a suspensão do processo de execução fiscal para que havia sido citada e declara apresentar, para o efeito, a garantia bancária n.º..., prestada pelo Banco C... a favor da Autoridade Tributária. Esse documento não se encontra, no entanto, junto aos autos, pelo que se não encontra feita a prova da efectiva prestação da garantia bancária.

Improcede, nestes termos, o pedido de condenação da Autoridade Tributária a pagar à Requerente a indemnização pelas despesas que alegou ter suportado com a prestação da garantia bancária, sem prejuízo de poder ser obtida em execução de julgado.

 

III – Decisão

Termos em que se decide:

a)            Julgar procedente o pedido arbitral e anular os actos de liquidação de IVA e de juros compensatórios, referentes ao ano de 2015, no valor global € 92 929,88;

b)           Julgar improcedente o pedido de condenação da Autoridade Tributária em indemnização por prestação de garantia indevida.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 107.333,57, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

Lisboa, 17 de Novembro de 2020

  

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

A Árbitro vogal

Clotilde Celorico Palma

 

O Árbitro vogal

Nuno Cunha Rodrigues