Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 505/2020-T
Data da decisão: 2021-04-26  IRC  
Valor do pedido: € 443.294,26
Tema: SGPS. Mais-valias. Benefício fiscal. Revogação. Encargos dedutíveis. Vinculação da AT à Circular n.º 7/2004
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Decisão Arbitral

 

                Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof. Doutor Vasco António Branco Guimarães e Dra. Raquel Franco (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 23-12-2020, acordam no seguinte:

 

               

1. Relatório

 

A… – SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS, S.A., com sede na …, …, …, titular do número único de identificação fiscal e de pessoa coletiva … (doravante designada por “Requerente”), apresentou, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”) pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a declaração de ilegalidade do despacho de indeferimento do Recurso Hierárquico n.º …2018… apresentado pela Requerente da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa do acto de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2015 …, respeitante ao exercício de 2014, bem como a anulação desta autoliquidação de 2014, na parte em que não foram considerados como gastos os encargos financeiros suportados pela Requerente nos exercícios de 2009 a 2013 com a aquisição de participações sociais da sociedade B..., S.A..

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 06-10-2020.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 20-11-2020 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 23-12-2020.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu que os pedidos devem ser julgados improcedentes.

Por despacho de 13-04-2021, foi decidido dispensar reunião e alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:

 

A)           A Requerente é uma sociedade anónima de direito português, constituída em Janeiro de 2008, cujo objeto social consiste na gestão de participações sociais noutras sociedades como forma indireta do exercício de actividades económicas;

B)           Em Junho de 2009, a Requerente recorreu a um financiamento bancário para a aquisição da participação na sociedade B..., S.A., que integra o seu grupo;

C)           Dando cumprimento ao preceito previsto no referido n.º 2 do artigo 32.º do EBF, nos exercícios compreendidos entre 2009 e 2013, a Requerente acresceu para efeitos do apuramento do seu lucro tributável os encargos financeiros incorridos com a aquisição daquela participação, os quais ascenderam ao montante global de € 443.294,26, conforme quadro que segue

 

 

(Documentos n.ºs 2 a 6 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

D)           A referida participação na sociedade B..., S.A, mantinha-se no património da Requerente desde a aquisição até à data em que foi apresentado o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo;

E)            A Requerente entendeu que relativamente a partes de capital que ainda se encontravam no seu balanço a 31 de Dezembro de 2013, como é o caso da participação que detém no capital social da B..., S.A., deverão ser considerados fiscalmente dedutíveis na sua esfera, por via de uma dedução para efeitos do apuramento do seu lucro tributável referente ao período de tributação de 2014;

F)            Em 16-05-2017, a Requerente apresentou uma reclamação graciosa do acto de autoliquidação de IRC relativa ao período de tributação de 2014, com o objetivo de deduzir neste período a totalidade dos montantes acrescidos a título de encargos financeiros nos exercícios compreendidos entre 2009 e 2013 (documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

G)           A reclamação graciosa referida foi indeferida, nos termos que constam do documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;

H)           A Requerente interpôs recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, nos termos que constam do documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;

I)             O recurso hierárquico foi indeferido nos termos que constam do documento n.º 1, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais o seguinte:

5.2. Apreciação da matéria.

O presente sujeito passivo vem alegar que, com a revogação pela Lei nº 32-B/2002 de 30 de Dezembro (OE para 2003 ), do anterior artigo 31.º do EBF (com a entrada em vigor do Decreto - Lei nº 108/2008 de 26 de Junho este regime passou a constar do artigo 32.º), o nº 2, ao abrigo do qual os encargos financeiros suportados nos anos de 2009 a 2013 com a aquisição da sociedade " B..., SA ", no montante total de 443.294,26 €, foram desconsiderados fiscalmente, não lhe permitiu usufruir da contrapartida que lhes estava associada ou seja, a exclusão de tributação da mais - valia no âmbito desse regime.

Assim solicita que, o referido montante seja aceite como custo fiscal na determinação do resultado tributável do exercício de 2014.

Não nos parece que o presente pedido possa ser aceite.

Isto porque, com a revogação do regime fiscal das SGPS, pelo artigo 210.º da Lei n.º 83 - C/2013, de 31 de Dezembro, (OE de 2014 ), que revogou o artigo 32 º do EBF, não pode afirmar - se que estas sociedades deixaram de poder aproveitar da não tributação das mais - valias fiscais.

Deixou isso sim de existir um regime específico para estas sociedades, com a revogação do já referido artigo 32.º do EBF, e passou a aplicar - se - lhes o regime geral.

Regime geral que resulta da entrada em vigor da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, aplicável aos períodos de tributação de 2014 e seguintes, e que procedeu à reforma da tributação das sociedades.

Este diploma introduziu no Código do IRC o denominado regime de participation exemption que visava, verificadas certas condições e requisitos, a não tributação em sede de IRC de lucros e reservas auferidos, e ainda de mais-valias realizadas com a alienação onerosa de partes sociais, por sujeitos passivos de IRC com sede ou direção efetiva em território português.

Assim às SGPS, bem como às restantes sociedades, passou a aplicar-se os artigos 23.º - A e 51.º - C do CIRC, bem como o artigo 67.º na parte relativa à limitação à dedutibilidade de gastos de financiamento.

Ora, nos termos do nº 2 do referido artigo 23.º - A do CIRC, " Não concorrem para a formação do lucro tributável as menos-valias e outras perdas relativas a instrumentos de capital próprio, na parte do valor que corresponda aos lucros ou reservas distribuídos ou as mais-valias realizadas com a transmissão onerosa de partes sociais da mesma entidade que tenham beneficiado, no próprio período de tributação ou nos quatro períodos anteriores, da dedução prevista no artigo 51.º, do crédito por dupla tributação económica internacional prevista no artigo 91 º - A ou da dedução prevista no artigo 51.º - C." De acordo com o n.º 3 do mesmo artigo, não são aceites como gastos do período de tributação os suportados com a transmissão onerosa de instrumentos de capital próprio, qualquer que seja o título por que se opere, de entidades com residência ou domicílio em pais, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças.

Relativamente às mais-valias e menos-valias realizadas com a transmissão onerosa de partes sociais podemos verificar no n.º 1 do artigo 51.º - C que não concorrem para a determinação do lucro tributável dos sujeitos passivos do IRC com sede ou direção efetiva em território português, qualquer que seja o título por que se opere e independentemente da percentagem da participação transmitida, as partes sociais detidas ininterruptamente por um período não inferior a 24 meses, desde que, na data da respetiva transmissão, se mostrem cumpridos os demais requisitos previstos na norma.

Como vimos com a revogação do artigo 32.º do EBF não deixaram as mais-valias realizadas pelas SGPS, com a transmissão onerosa de partes sociais, de serem excluídas da determinação do lucro tributável, desde que observados os requisitos para a sua exclusão.

Em relação aos encargos financeiros suportados com a aquisição das partes sociais deixaram os mesmos de ser excluídos da formação do lucro tributável, como determinava o revogado artigo 32.º do EBF, e a sua dedução passou a enquadrar-se nas limitações aos gastos de financiamento previstas no artigo 67.º do CIRC.

Na situação em apreço, estamos perante uma situação de sucessão de leis no tempo, decorrente da revogação do regime fiscal das SGPS e da entrada em vigor da Lei da Reforma do IRC.

Atender ao preconizado pela recorrente, só seria possível se o legislador tivesse resolvido este problema de sucessão de leis no tempo mediante disposições transitórias, o que, como é patente não aconteceu.

E, se o legislador não o fez é porque entendeu que aos encargos financeiros suportados por SGPS com a aquisição de partes sociais não lhes deveria ser aplicável qualquer disposição transitória

É que a Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, que procedeu à reforma da tributação das sociedades, e cujas normas ternos vindo a analisar, contém no seu artigo 12.º um conjunto de disposições finais e transitórias, mas que é omisso relativamente à matéria em causa.

Registe-se que a Comissão para a Reforma do IRC de 2013, cujo relatório final e propostas está na origem da referida lei, em momento algum refere a necessidade de um regime transitório para tratar os encargos financeiros suportados pelas SGPS na aquisição de partes sociais em balanço à data de 31 de Dezembro de 2013.

Das várias referencias às SGPS, retiramos a páginas 109, do relatório final, "uma vez que o novo regime (participation exemption) também consome o regime fiscal previsto para as SGPS, e atendendo a que estas não lograram atingir o objetivo originariamente proposto de se afirmarem como veículo de investimento fiscalmente competitivo no piano internacional, propõe-se a eliminação do artigo 32.º do EBF, recomendando ainda que seja extinto o regime jurídico - societário destas entidades, hoje previsto no Decreto-lei n.º 495/88, de 30 de dezembro".

E mais adiante, a páginas 183, a propósito da despesa fiscal relacionada com a exclusão de tributação aplicável às mais-valias e menos-valias obtidas por SGPS, entende a Comissão que "...a eliminação deste regime não se traduziria na captação de um montante equivalente de receita fiscal, na medida em que, na sua ausência, um número elevado das operações que dele beneficiam não seriam concretizadas, ou o seriam por vias que, usando configurações alternativas, produziriam resultados idênticos". Acrescenta ainda a Comissão que "a criação de um regime de participation exemption, justificada neste relatório ... traduzir-se-á na transposição para o Código do IRC de um modelo de tributação dos rendimentos de partes de capital que mantém, no essencial, as vantagens que o Estatuto dos Benefícios Fiscais concedia a este tipo de entidades ".

Por tudo o exposto afigura-se-nos que não poderá ser atendida a pretensão da recorrente de ver deduzidos os encargos financeiros suportados e acrescidos no passado (no total 443.294,26 € ), relativamente às partes de capital detidas a 31 de Dezembro de 2013, ao seu lucro tributável com referência ao período de tributação de 2014, e assim sendo, deve o presente recurso hierárquico ser indeferido.

 

J)            Em 30-03-2004, a Direcção de Serviços do IRC emitiu a Circular n.º 7/2004, disponível em: https://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/informacao_fiscal/legislacao/instruções_administrativas/Documents/circular_7-2004_de_30_de_marco_da_dsirc.pdf

K)           Nos pontos 6 e 7 desta Circular refere-se o seguinte:

«Exercício em que deverão ser feitas as correcções fiscais dos encargos financeiros

 

6.Relativamente ao exercício em que deverão ser desconsiderados como custos, para efeitos fiscais, os encargos financeiros, dever-se-á proceder, no exercício a que os mesmos disserem respeito, à correcção fiscal dos que tiverem sido suportados com a aquisição de participações que sejam susceptíveis de virem a beneficiar do regime especial estabelecido no n.º 2 do art.º 31º do EBF, independentemente de se encontrarem já reunidas todas as condições para a aplicação do regime especial de tributação das mais-valias. Caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores.

 

Método a utilizar para efeitos de afectação dos encargos financeiros às participações sociais

 

7. Quanto ao método a utilizar para efeitos de afectação dos encargos financeiros suportados à aquisição de participações sociais, dada a extrema dificuldade de utilização, nesta matéria, de um método de afectação directa ou específica e à possibilidade de manipulação que o mesmo permitiria, deverá essa imputação ser efectuada com base numa fórmula que atenda ao seguinte: os passivos remunerados das SGPS e SCR deverão ser imputados, em primeiro lugar, aos empréstimos remunerados por estas concedidos às empresas participadas e aos outros investimentos geradores de juros, afectando-se o remanescente aos restantes activos, nomeadamente participações sociais, proporcionalmente ao respectivo custo de aquisição».

L)            Em 24-02-2011, foi proferido despacho pelo Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira sobre a Informação Vinculativa referente ao processo n.º 39/2011 (   ), cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais o seguinte:

12. No que respeita aos encargos financeiros suportados pela SGPS com a aquisição das partes de capital, foi-lhes aplicável o regime previsto no nº 2 do artigo 32º do EBF e na circular 7/2004, não concorrendo estes encargos para a formação do lucro tributável dos exercícios de 2007 a 2009.

13. Passando as partes de capital em questão a ser valorizadas ao justo valor e relevando as variações de justo valor para efeitos fiscais, embora em 50% no caso das perdas, deixa de ser aplicável o regime previsto no artigo 32.º, n.º 2 do EBF e, nomeadamente, a limitação relativa à dedutibilidade dos encargos financeiros suportados com a aquisição das partes de capital.

14. Assim, os encargos financeiros que não foram aceites como gastos em períodos anteriores, passam a ser dedutíveis, nos termos gerais, para efeitos de determinação do lucro tributável. No entanto, não sendo tal dedução indissociável dos efeitos nos capitais próprios decorrente da adopção, pela primeira vez, das NCRF, deve o reconhecimento de tais encargos financeiros ser efectuado também no âmbito do regime transitório e aceites como gasto do período de tributação de 2010 e dos quatro períodos seguintes.

M)          Em 01-10-2020, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente e os que constam do processo administrativo.

Quanto ao montante dos encargos financeiros não deduzidos pela Requerente nos exercícios de 2009 a 2013, consideram-se provados pelas declarações modelo 22 juntas aos autos e pelo afirmado pela Requerente na reclamação graciosa e no recurso hierárquico, sem que a Autoridade Tributária e Aduaneira, nas decisões dessas impugnações administrativas, tivesse suscitado qualquer objecção ou aventado qualquer dúvida sobre a natureza ou montante desses encargos.

É certo que, no presente processo, a posteriori, a Autoridade Tributária e Aduaneira vem dizer que «a Requerente não demonstra os factos que invoca diferentes das suas declarações periódicas».

Mas, a Autoridade Tributária e Aduaneira não esclarece quais os factos das declarações periódicas que entende que estão em divergência com o afirmado. Por outro lado, os valores indicados pela Requerente constam das declarações periódicas como encargos, apesar de não identificada a sua origem, mas não é invocada a falsidade do afirmado pela Requerente quer quanto a natureza quer quanto aos montantes indicados, nem é sequer aventado que se trate de encargos de qualquer outro tipo.

Para além disso, os valores de encargos indicados em declarações modelo 22, presumem-se verdadeiros, por força do preceituado no artigo 75.º, n.º 1, da LGT, pelo que, quanto ao montante dos encargos, vale esta presunção, já que não foi apontada à Requerente qualquer irregularidade ou deficiência de escrita, nem é invocada qualquer razão para duvidar que correspondam à realidade.

Quanto à natureza dos encargos que foram desconsiderados nas declarações de 2010 a 2013, afiguram-se críveis as afirmações da Requerente, pois, sendo a regra a dedutibilidade da generalidade dos encargos suportados pelas sociedades para desenvolverem a sua actividade, não se vê nem foi aventada pela Autoridade Tributária e Aduaneira qualquer outra razão diferente da invocada pela Requerente para eles não terem sido considerados com gastos naqueles anos de 2010 a 2013.

Aliás, as decisões da reclamação graciosa e do recurso hierárquico, ao indeferirem a pretensão da Requerente com fundamento na análise que fizeram do regime do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, têm ínsito que a Autoridade Tributária e Aduaneira aceitou como verdadeiras as afirmações da Requerente de que estava em causa uma situação fáctica em que se colocava a questão da aplicação daquele regime.

Pelo exposto, é convicção do Tribunal Arbitral que os montantes dos encargos e sua natureza são os invocados pela Requerente.

 

 

 

3. Matéria de direito

 

A questão de mérito que é objecto deste processo é de saber se a Requerente tem ou não o direito de considerar como gastos do exercício de 2014 os encargos financeiros excluídos de dedução nos exercícios anteriores, de 2009 a 2013, ao abrigo do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, complementado pela Circular n.º 7/2004.

 

3.1. Posições das Partes

 

A Requerente defende o seguinte, em suma:

 

– o artigo 32.º, n.º 1, do EBF instituiu uma exclusão de tributação das mais-valias obtidas por sociedades gestoras de participações sociais, relativamente a partes de capital de que fossem titulares, que tinha como contrapartida directa a não dedutibilidade dos encargos financeiros que se encontrassem associados;

– a eliminação desse benefício fiscal deve determinar a dedutibilidade dos encargos financeiros relativos a participações que não foram transmitidas na vigência do artigo 32.º do EBF e, consequentemente, não deram origem a qualquer mais ou menos-valia que pudessem ser excluídas de tributação;

– o ponto 6.º da Circular n.º 7/2004 aponta para a possibilidade de ser revertido o princípio da não dedutibilidade dos encargos financeiros quando se conclua, no momento da alineação das participações sociais, que não se verificam todos os requisitos para a aplicação do benefício fiscal;

– aliás, é unicamente com base no pressuposto de que os encargos financeiros acrescidos pudessem ser deduzidos caso não fosse apurada qualquer mais ou menos-valia com a alienação de partes de capital que o Tribunal Constitucional no âmbito do Processo n.º 564/12, refere a propósito da solução acolhida pela Circular n.º 7/2004, que “não se reputa de excessivo e intolerável regime que pondere e faça atuar a indedutibilidade de encargos financeiros ex ante, em cada período de tributação em que são incorridos, por referência à medida que a equilibra, tendo em atenção a preservação da possibilidade de (efetiva e futura) realização de mais valias”;

– não tendo a Requerente obtido as mais ou menos-valias associadas aos encargos financeiros incorridos, registados nos exercícios fiscais correspondentes aos anos de aquisição das participações sociais, com a revogação da norma em análise com efeitos a 1 de janeiro de 2014, o anterior regime específico das SGPS deixou de produzir efeitos, não podendo ser aplicável à Requerente, no futuro, isto é, aquando da verificação das condições anteriormente previstas no n.º 2 do artigo 32.º do EBF;

– esta situação será equiparável àquela em que, no momento da alienação, se concluísse pela impossibilidade de aplicação do regime previsto n.º 2 do artigo 32.º do EBF: a diferença apenas reside no facto de a impossibilidade de aplicação do regime resultar, neste caso, de facto imputável ao legislador (revogação do regime) e, no outro caso, de facto imputável ao sujeito passivo (não verificação das condições de que depende a aplicação do regime);

– e se, no caso em que não fosse aplicável o regime de exclusão de tributação das mais-valias por facto imputável ao sujeito passivo, este poderia recuperar, para efeitos fiscais, os encargos financeiros acrescidos em períodos anteriores relativamente a essas participações sociais, então, e por maioria de razão, o mesmo deveria suceder no caso em que a impossibilidade de aplicação do regime de exclusão de tributação das mais-valias realizadas por SGPS resulta da revogação do regime pelo próprio legislador;

– a interpretação do n.º 6 da Circular nº 7/2014 permitia concluir que, por um lado, a desconsideração dos encargos financeiros estava dependente da verificação, no momento da alienação das participações sociais, das condições para aplicação daquele regime, pelo que, até esse momento ocorrer, estava sempre em aberto a possibilidade de relevância daqueles encargos como gastos do exercício em que se viesse a ocorrer a alienação”;

– seriam materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da tutela da confiança que se retira do artigo 2.º da Constituição (princípio do Estado de Direito), que engloba os princípios da boa-fé e da segurança jurídica, a interpretação pretendida pela AT e a norma do n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT, se interpretadas como dispensando a Autoridade Tributária e Aduaneira da observância do ponto 6 da Circular n.º 7/2004 na sua totalidade, designadamente, mantendo os efeitos negativos antecipados para o contribuinte antes da verificação dos requisitos para aplicação do regime previsto no artigo 32.º, n.º 2, do EBF, sem a paralela aplicação dos efeitos positivos que aí se anunciavam para a hipótese de se vir a concluir «que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime;

– o regime do participation exemption e o regime de limitação aos gastos de financiamento líquidos, apesar de cronologicamente sucedâneos do artigo 32.º do EBF, em nada a si se assemelham., pelo que a instituição destes dois regimes nunca poderá ser entendida como uma continuação do regime constante do artigo 32.º do EBF, mas sim como novos regimes jurídicos, completamente independentes entre si e de aplicação autónoma;

– a possibilidade de serem deduzidos num só exercício a totalidade dos gastos incorridos em diversos períodos não deve ser posta em causa com recurso ao argumento da especialização dos exercícios;

– tendo deixado de se verificar a razão que justificou o acréscimo daqueles gastos deixou de se verificar, será devida a sua recuperação, pois o seu afastamento implicaria clara injustiça tributária e violação do princípio da igualdade constitucionalmente garantido, pois a Requerente encontrar-se-ia numa situação desfavorável face a sociedades que, não tendo adotado a forma de SGPS, venham a apurar igual mais-valia com referência a participações sociais, na medida em que aquelas não acresceram no passado quaisquer encargos financeiros associados à aquisição de tais participações, mas poderão igualmente ver excluídas de tributação as mais-valias fiscais por si realizadas;

– o regime do participation exemption e o regime de limitação aos gastos de financiamento líquidos, apesar de cronologicamente sucedâneos do artigo 32.º do EBF, em nada a si se assemelham;

– enquanto que o regime do art.º 32.º, n.º 2 do EBF constituía um verdadeiro benefício fiscal, o regime de participation exemption passou a fazer parte do regime geral do IRC, deixando de revestir o carácter excecional, instituído para tutela de interesses públicos extrafiscais, postulado pela qualidade de benefício fiscal, e passado a ser uma norma genérica, aplicável a todos os sujeitos passivos de IRC;

– a possibilidade de serem deduzidos num só exercício a totalidade dos gastos incorridos em diversos períodos não deve ser posta em causa com recurso ao argumento da especialização dos exercícios;

– o princípio da tutela da confiança suporta a pretensão da Requerente;

– não foi consagrado um regime de transição concomitante à revogação do artigo 32.º do EBF;

– é precisamente no momento da revogação da norma em análise, que se tornou impossível o objeto que justificara, exclusivamente para as SGPS, a não-dedução de tais encargos;

– o regime de «participation exemption» não tem associada qualquer contrapartida equiparável àquela que se encontrava refletida ao nível do artigo 32.º do EBF;

 – a não recuperação dos encargos financeiros não considerados, dissociada da não obtenção do benefício fiscal que lhe estava associada configura violação do princípio da igualdade.

 

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende o seguinte, em suma:

– do ponto 6 da Circular referida resulta que «caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores»;

– em 2014, a Lei n.º 2/2014, de 16.01, que procedeu à reforma da tributação das sociedades (comummente designada "reforma do IRC”), introduziu no nosso ordenamento jurídico o denominado regime de participation exemption;

– no tocante às mais-valias e menos-valias realizadas com a transmissão onerosa, expandiu o método da isenção anteriormente aplicável às SGPS e previsto no artigo 32.º do EBF a todos os sujeitos passivos de IRC que exerçam a título principal uma atividade comercial industrial ou agrícola, desde que cumpridos todos os pressupostos de aplicação estabelecidos no artigo 51.º-C do Código do IRC;

– o início do regime de participation exemption determinou assim a revogação do regime fiscal das SGPS (cf. artigo 210.º da Lei n.º 83-C), em virtude de o mesmo ter passado a abranger todas as sociedades independentemente da natureza jurídica que apresentem;

– no tocante aos encargos financeiros que se encontravam limitados quanto à sua dedutibilidade na previsão legal do artigo 32.º do EBF, na reforma do IRC, por uma questão de simplicidade o legislador optou por reforçar a restrição à dedutibilidade de gastos de financiamento prevista no artigo 67.º do Código do IRC, evitando, assim, a criação de mais regras especiais limitativas da respetiva dedutibilidade;

– com a revogação do artigo 32.º do EBF, não foi introduzida qualquer norma transitória que previsse a possibilidade de dedução dos encargos financeiros anteriormente acrescidos pelas SGPS;

– o novo regime de participation exemption continua a preservar a possibilidade da efetiva e futura realização de mais-valias, em moldes idênticos, aos antes previstos para as SGPS no artigo 32.º do EBF;

– em substância, para as SGPS, no período de tributação de 2014 e seguintes, mantêm-se os princípios e os fundamentos do então artigo 32.º do EBF, mas agora noutro normativo legal, o artigo 51.º-C do Código do IRC, o qual se apresenta como uma Lei Nova para os outros sujeitos passivos de IRC, mas não propriamente para as SGPS que já usufruíam das vantagens fiscais agora definidas no artigo 51.º-C;

– por força da natureza do regime especial de tributação das SGPS qualificado como benefício fiscal estrutural, i.e., não abrangido pela regra de caducidade quinquenal (cf. n.º 3 do artigo 3.º do EBF), entendeu o legislador que, à luz do disposto no artigo 11.º do EBF, não subsistiam direitos adquiridos a salvaguardar;

– nem sequer o respeito do princípio da tutela da confiança impunha a atribuição de carácter retroativo à dedução dos encargos financeiros suportados com a aquisição das participações sociais detidas em 01-01-2014, na medida em que o regime designado por participation exemption não se revela penalizador – ao contrário – às SGPS que beneficiaram do artigo 32.º do EBF;

– tratamento diferenciado a que se encontravam sujeitas as SGPS relativamente a outras sociedades detentoras de participações sociais não permite considerar que se encontrassem, em 01-01-2014, em posição de partida equivalente, na medida em que as SGPS sempre beneficiaram de um tratamento mais vantajoso em matéria de dividendos (até à alteração introduzida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31/12) e de mais-valias;

– com a eliminação deste regime especial de tributação, o legislador apenas repôs a igualdade formal no tratamento tributário das mais-valias e menos valias geradas com a transmissão de partes de capital;

– se a invocada injustiça decorre da revogação do regime especial das SGPS e da ausência de um regime transitório, tratou-se de uma opção de política fiscal, no uso dos poderes conferidos pela Constituição ao legislador para proceder à conformação legal do sistema;

– o entendimento da AT vertido na Ficha Doutrinária, processo n.º 39/2011, cujo teor foi sancionado por Despacho do Diretor-geral, de 24-02-2011, aplica-se apenas o regime transitório previsto no art.º 5.º do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho;

– na Circular n.º 7/2004 a data da recaptura situava-se no exercício da alienação das partes sociais;

– a não aplicação do regime do artigo 32.º, mn.º2. do EBF não afecta os princípios da confiança e da segurança jurídica;

– é materialmente inconstitucional a interpretação que a Requerente faz do artigo 32.º do EBF, por violação dos princípios da igualdade e da legalidade tributária, por violação do princípio do Estado de Direito democrático, da reserva da lei fiscal, e da separação de poderes, com a consequente subordinação dos tribunais à lei, os quais decorrem, nomeadamente, do disposto nos artigos 2.º, 103.º, 165.º e 202.º da CRP;

– é materialmente inconstitucional o artigo 32.º do EBF e a norma do n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT quando interpretados no sentido de que este último preceito consagra carácter vinculativo às orientações genéricas e impõe a observância da interpretação que a Autoridade Tributária e Aduaneira adotou no referido ponto 6 da Circular n.º 7/2004, por violação dos princípios da legalidade tributária, da reserva da lei fiscal, e da separação de poderes com a consequente subordinação dos tribunais à lei, os quais decorrem, nomeadamente, do disposto nos artigos 103.º, 165.º e 202.º da CRP;

– o desiderato da Requerente consubstancia-se numa aplicação retroativa da lei;

– a interpretação da Requerente afecta o princípio constitucional da capacidade contributiva e tributação do lucro real (artigo 104.º, n.º 2 da CRP);

– a Requerente não demonstra os factos que invoca, diferentes dos constantes das suas declarações periódicas, as quais gozam da presunção de veracidade, de acordo com o disposto no art. 74º da LGT.

 

 

3.2. Apreciação da questão

 

3.2.1. Objecto do processo nos casos de impugnação de autoliquidação, subsequente a impugnação administrativa

 

Em princípio, a fundamentação dos actos tributários a atender nos processos arbitrais é a que consta desses actos, pois está-se perante um contencioso de mera anulação com fundamento em ilegalidade (artigos 99.º e 124.º do CPPT), em que se visa apreciar a legalidade da actuação da Administração Tributária tal como ela ocorreu, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos. (   ) Por isso, não pode a Administração Tributária, após a prática do acto, justificá-lo por razões diferentes das que constem da sua fundamentação expressa.

Quando dois actos têm por objecto definir a posição da Administração Tributária sobre a mesma situação jurídica, o segundo, quando não é confirmativo, é revogatório por substituição. (   )

Os actos que indeferem impugnações administrativas podem ser confirmativos, não alterando a ordem jurídica, quando «se limitem a reiterar, com os mesmos fundamentos, decisões contidas em atos administrativos anteriores» (artigo 53.º, n.º 1, do CPTA).

Mas, nomeadamente nos casos de reclamação graciosa e recurso hierárquico de actos de liquidação, se a respectiva decisão mantém o acto impugnado com diferente fundamentação, deverá entender-se que se opera revogação por substituição daquele acto (que será ratificação-sanação se a fundamentação inicial era ilegal) (   ), passando a subsistir na ordem jurídica um novo acto que, apesar de manter o mesmo conteúdo decisório, terá a nova fundamentação.

Nos casos em que a decisão fundamentada da impugnação administrativa aprecia um acto sem fundamentação expressa (como sucede nos casos de impugnação de autoliquidação), não se está perante uma situação em que o acto seja confirmativo, à face do preceituado no artigo 53.º, n.º 1, do CPTA, pelo que se está perante uma situação de revogação por substituição, em que a fundamentação do acto que subsiste na ordem jurídica após a decisão é a que consta desta, como está ínsito no artigo 173.º do Código do Procedimento Administrativo de 2015. (   )

Mas, também neste caso, não é relevante a fundamentação posterior ao acto que decidir a impugnação administrativa.

Se o acto que decide a impugnação administrativa alterar o conteúdo decisório do acto impugnado, nomeadamente anulando-o parcialmente, estar-se-á perante uma situação de reforma da liquidação (   ), prevista no art. 79.º, n.º 1, da LGT, em que também se opera substituição do acto inicial, só permanecendo na ordem jurídica o acto inicial na parte não revogada, com a fundamentação que resultar do acto que aprecia a impugnação.

Por isso, nestas situações, é a apreciação da legalidade da autoliquidação com os fundamentos que foram invocados na decisão da impugnação administrativa, neste caso a decisão do recurso hierárquico, que é o objecto do processo arbitral.

A esta luz, para além do que se referiu sobre prova positiva da não consideração dos efeitos da determinação do lucro tributável dos encargos financeiros referentes aos anos de 2009 a 2013, constata-se que nas decisões da reclamação graciosa e do recurso hierárquico em nenhum momento a Autoridade Tributária e Aduaneira aludiu à falta de prova desses encargos como fundamento do indeferimento.

Por isso, o que a Autoridade Tributária e Aduaneira invoca no presente processo sobre tal prova, constitui fundamentação a posteriori, irrelevante com fundamento do acto no âmbito de um contencioso de mera anulação.

 

 

3.2. Questão da vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira pelas orientações genéricas

 

3.2.1. Regime aplicável e posições das Partes

 

O artigo 31.º, n.º 2, do EBF, na redacção da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, vigente em 2007, estabelece o seguinte:

 

«2 - As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS e pelas SCR mediante a transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere, de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim os encargos financeiros suportados com a sua aquisição, não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades».

 

Com a Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, esta norma passou a ter a seguinte redacção:

«2 - As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS, pelas SCR e pelos ICR de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição, não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades».

 

Com a renumeração operada pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26 de Junho, o artigo 31.º do EBF passou a ser o artigo 32.º.

Na sua última redacção, introduzida pela da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, este n.º 2 do artigo 32.º estabelece o seguinte:

 

«2 - As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades».

 

O regime geral de relevância das mais-valias e menos-valias e encargos financeiros para a formação do lucro tributável de entidades sujeitas a IRC, traduzia-se no concurso das mais-valias realizadas e encargos financeiros, na totalidade [artigos 20.º, n.º 1, alínea h), e 23.º, n.º 1, alínea a), do CIRC na redacção resultante do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho), e no concurso das menos-valias realizadas em 50% [nos termos dos artigos 23.º, n.º 1, alínea l) e 45.º, n.º 3, do mesmo Código].

Para as SGPS, o artigo 32.º, n.º 2, do EBF (para além de outras situações previstas no seu n.º 3), estabelecia um regime especial, que não se reconduzia necessariamente a benefício fiscal, que se traduzia, em geral, na irrelevância para a formação do lucro tributável das SGPS das mais-valias e menos-valias realizadas de partes de capital detidas há pelo menos um ano, acompanhada do não concurso dos encargos financeiros suportados com a sua aquisição.

Este n.º 2 do artigo 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais foi revogado pelo artigo 210.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, com entrada em vigor em 01-01-2014 (artigo 260.º desta Lei).

Posteriormente, em 16 de Janeiro de 2014, foi publicada a Lei n.º 2/2014, que concretizou a reforma do IRC, estabelecendo no seu artigo 14.º que «a presente lei aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014».

Assim, por força desta disposição transitória da Lei n.º 2/2014, o artigo 32.º, n.º 2, deixou de poder ser aplicado à determinação da matéria tributável de IRC do período de 2014 e seguintes.

A Requerente defende, em suma, que no período de 2009 a 2013, foi detentora de participações sociais abrangidas pelo regime referido, tendo nas declarações modelo 22 de IRC relativas aos anos referidos acrescido para a formação do lucro tributável os montantes de encargos financeiros suportados com a sua aquisição, aplicando o regime referido nos termos em que foi definido no ponto 6 da Circular n.º 7/2004, da Direcção de Serviços do IRC.

Não podendo já ser aplicado o regime do artigo 32.º, n.º 2, a Requerente entende que é de considerar como gastos do exercício em que cessou essa aplicação os encargos financeiros que não foram deduzidos, em sintonia também com o referido ponto 6 da Circular n.º 7/2004 e os princípios da tutela da confiança que se retira do artigo 2.º da Constituição (princípio do Estado de direito) e do n.º 2 do artigo 268.º da Constituição (princípios da justiça e da boa-fé).

A Requerente defende que será inconstitucional a interpretação pretendida pela AT e a norma do n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT, se interpretada como dispensando a Autoridade Tributária e Aduaneira da observância das referidas orientações genéricas, designadamente a Circular n.º 7/2004.

A Autoridade Tributária e Aduaneira pronuncia-se no sentido de não serem violados aqueles princípios e a interpretação da Requerente violar outros princípios constitucionais.

 

3.2.2. A vinculatividade externa de circulares emitidas e publicadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira

 

Independentemente da interpretação correcta do alcance do regime do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, afigura-se ser de relevância decisiva a interpretação que a Administração Tributária adoptou na Circular n.º 7/2004 e o carácter vinculativo que lhe atribui o artigo 68.º-A, n.º 1, da LGT, na redacção da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, bem como a correspondente alínea b) do n.º 4 do artigo 68.º, na redacção inicial da LGT.

Por força do disposto no n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT, «a administração tributária está vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias». (   )

Por isso, mesmo que seja errada a interpretação da lei que se faz na referida Circular, constituirá vício de violação de lei (deste artigo 68.º-A da LGT) a não observância da interpretação a que a Administração Tributária publicamente se vinculou.

Trata-se de uma opção legislativa expressa no sentido da prevalência dos princípios da boa-fé e da segurança jurídica sobre o princípio da legalidade, como reconheceu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 583/2009, de 18-11-2009, processo n.º 873/08: «é certo que o administrado pode invocar, no confronto com a administração, o conteúdo da orientação administrativa publicitada e, se for o caso, fazê-lo valer perante os tribunais, mesmo com sacrifício do princípio da legalidade (...). Mas é ao abrigo do princípio da boa-fé e da segurança jurídica, não pelo seu valor normativo, que o conteúdo das circulares prevalece». (   )

A Circular n.º 7/2004, foi emitida pelo Director-Geral dos Impostos em 30-03-2004 e encontra-se publicada em

https://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/informacao_fiscal/legislacao/instruções_administrativas/Documents/circular_7-2004_de_30_de_marco_da_dsirc.pdf.

No seu ponto 6 refere-se o seguinte:

 

Exercício em que deverão ser feitas as correcções fiscais dos encargos financeiros

6.Relativamente ao exercício em que deverão ser desconsiderados como custos, para efeitos fiscais, os encargos financeiros, dever-se-á proceder, no exercício a que os mesmos disserem respeito, à correcção fiscal dos que tiverem sido suportados com a aquisição de participações que sejam susceptíveis de virem a beneficiar do regime especial estabelecido no n.º 2 do art.º 31º do EBF, independentemente de se encontrarem já reunidas todas as condições para a aplicação do regime especial de tributação das mais-valias. Caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores.

 

Neste ponto 6, a Autoridade Tributária e Aduaneira definiu o seu entendimento sobre a aplicação do princípio da especialização quanto aos encargos financeiros que tenham sido suportados com a aquisição de participações sociais, nas situações potencialmente enquadráveis no artigo 32.º, n.º 2, do EBF.

Entendeu a Administração Tributária que, mesmo antes de se saber se o regime virá a ser globalmente aplicável, ele aplica-se imediatamente na parte que onera os contribuintes, sendo os encargos indedutíveis, desde logo, em cada exercício em que são suportados, apenas por haver a possibilidade de virem a ser considerados indedutíveis se o regime vier a ser aplicado, na parte favorável aos contribuintes.

Trata-se, assim, de uma indedutibilidade provisória, cuja consolidação depende da verificação dos «requisitos para aplicação daquele regime».

Na verdade, por este ponto 6, constata-se que a Autoridade Tributária e Aduaneira interpretou o regime do artigo 32.º, n.º 2, do EBF como constituindo um regime aplicável globalmente, estando a aplicação da regra da não dedutibilidade dos encargos financeiros prevista na parte final, dependente da aplicação às mais-valias do regime especial previsto na primeira parte (naquele ponto da Circular n.º 7/2004, a Autoridade Tributária e Aduaneira não faz referência às menos-valias).

Para a Autoridade Tributária e Aduaneira, embora, à face do referido regime previsto no artigo 32.º, n.º 2, do EBF, as mais-valias só fossem desconsideradas para efeitos de formação do lucro tributável no exercício em que fossem realizadas, os encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital deveriam ser desconsiderados como gastos (custos) no exercício em que os mesmos fossem suportados, acrescendo ao lucro tributável de cada um desses exercícios, independentemente de se encontrarem já reunidas todas as condições para a aplicação do regime especial de tributação das mais-valias, o que só era possível apurar no momento da realização.

Mas, como a aplicação deste regime especial dependia da verificação de condições a apurar posteriormente, a Administração Tributária adoptava naquele n.º 6 da Circular n.º 7/2004 o entendimento de que «caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores».

Este entendimento foi julgado constitucionalmente admissível pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/2014, de 09-01-2014, proferido no processo n.º 564/12, que decidiu «não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 31.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, na redação conferida pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, na parte em que impõe a indedutibilidade fiscal dos encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital logo que estes sejam incorridos, independentemente da realização de mais-valias isentas de tributação com a alienação de tais partes de capital».

Esta interpretação da Autoridade Tributária e Aduaneira, que se reconduz à aplicação provisória parcial, na parte desfavorável para o contribuinte, da estatuição prevista num regime especial, antes de estarem reunidos os pressupostos previstos na hipótese normativa para sua aplicação, mesmo que seja constitucionalmente admissível tem evidentes fragilidades interpretativas, pois não tem qualquer suporte legal em qualquer norma do EBF ou o CIRC relativa à determinação da matéria tributável das SGPS.

Mas, independentemente da sua incorrecção, o facto de ter sido adoptada numa orientação genérica publicada vincula a Autoridade Tributária e Aduaneira, por força do disposto no artigo 68.º-A da LGT, pelo que está obrigada a adoptá-la.

A Requerente adoptou a interpretação prevista neste ponto 6 da Circular n.º 7/2004, tendo desconsiderado nos exercícios de 2009 a 2013 os encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais de uma das sociedades do grupo, apesar de, quanto às participações sociais detidas em 31-12-2013, não se terem verificado os requisitos de aplicação do regime especial referido.

Assim, por força deste entendimento publicitado no ponto 6 da referida Circular, vinculativo para a Autoridade Tributária e Aduaneira, a desconsideração provisória e antecipada dos encargos financeiros suportados pela Requerente com a aquisição de partes de capital ficou condicionada à verificação dos requisitos para aplicação deste regime de não concurso das mais-valias realizadas para formação do lucro tributável: se se viesse a constatar, «no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores».

No pressuposto, adoptado na referida Circular, a desvantagem fiscal que constitui a desconsideração dos encargos financeiros está condicionada à obtenção do ulterior benefício fiscal que constitui a não tributação de mais-valias.

Esta vantagem fiscal será uma contrapartida da desvantagem que constitui a não consideração dos encargos financeiros, pelo que tem de se concluir que, na perspectiva da referida Circular, a impossibilidade de vir a ser aplicado o regime privilegiado a nível da alienação será justificação para que seja eliminada a desvantagem referida.

Utilizando a terminologia da referida Circular, poderá dizer-se que, tendo sido revogado o regime referido antes do «momento da alienação das participações» e não podendo aplicar-se às alienações o regime revogado (designadamente, por força da disposição transitória do artigo 14.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro), tem de se concluir, segura e definitivamente, que «no momento da alienação das participações (...) não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime». (   )

E, adquirida, num determinado exercício, por ter sido revogado o regime legal, a certeza de que não se verificarão «todos os requisitos para aplicação daquele regime», a Autoridade Tributária e Aduaneira está vinculada a aplicar a estatuição que anunciou na parte final daquele ponto 6: «proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores».

Como defende a Requerente, na linha da referida jurisprudência do Tribunal Constitucional, seriam materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da tutela da confiança que se retira do artigo 2.º da Constituição (princípio do Estado de Direito), que engloba os princípios da boa-fé e da segurança jurídica, a interpretação pretendida pela AT e a norma do n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT, se interpretadas como dispensando a Autoridade Tributária e Aduaneira da observância do ponto 6 da Circular n.º 7/2004 na sua totalidade, designadamente, mantendo os efeitos negativos antecipados para o contribuinte antes da verificação dos requisitos para aplicação do regime previsto no artigo 32.º, n.º 2, do EBF, sem a paralela aplicação dos efeitos positivos que aí se anunciavam para a hipótese de se vir a concluir «que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime».

Assim, a Requerente tem razão ao invocar a não observância da interpretação que a Autoridade Tributária e Aduaneira adoptou no referido ponto 6 da Circular n.º 7/2004 e, por isso, a Requerente tem direito a que sejam considerados como custo fiscal do exercício de 2014 os encargos financeiros que não foram considerados como custo/gasto em exercícios anteriores e cuja desconsideração antes da verificação dos requisitos do regime especial estava, na perspectiva da Autoridade Tributária e Aduaneira, condicionada a que fosse aplicado à Requerente o regime de benefício fiscal a nível da não tributação de mais-valias previsto, naquele artigo 32.º, n.º 2.

Por outro lado, não se pode aventar, sem alguma ligeireza de análise, que o regime da participation exemption previsto no artigo 51.º-C do CIRC, assegure à Requerente a continuidade do regime que estava previsto artigo 32.º, n.º 2, do EBF, tal com estava interpretado no ponto 6 da referida Circular.

Na verdade, por um lado, é óbvio que o regime da participation exemption depende de requisitos mais exigentes do que os previstos no EBF, designadamente quanto à percentagem de capital mínima para aplicação do regime, prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 51.º do CIRC (   ), aplicável por força do disposto no n.º 1 do seu artigo 51.º-C, e à limitação decorrente do valor dos bens imóveis ou dos direitos reais sobre bens imóveis situados em território português, prevista no n.º 4 deste artigo 51.º-C.

 Por outro, e é o decisivo, é que deste novo regime de participation exemption nunca poderá resultar a recuperação da relevância fiscal dos encargos financeiros suportados antes de 2014, que era assegurada pelo artigo 32.º, n.º 2, do EBF, na interpretação vinculativa adoptada pela Autoridade Tributária e Aduaneira na referida Circular.

Pelo exposto, é ilegal a decisão do recurso hierárquico, por violação do artigo 68.º-A, n.º 1, da LGT, o que constitui vício autónomo de violação de lei e justifica a sua anulação, bem como da autoliquidação de 2014, na parte em que não foram considerados como gastos os encargos financeiros suportados pela Requerente nos exercícios de 2009 a 2013 com a aquisição de participações sociais da sociedade B..., S.A. (artigo 135..º do Código do Procedimento Administrativo de 1991, vigente em 2014).

 

 

3.3. Questões de inconstitucionalidade suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira relativamente à interpretação da Requerente

 

3.3.1. Princípio da legalidade

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende, em suma, que «é materialmente inconstitucional a interpretação normativa proposta pela requerente, no sentido de ser permitida a dedução dos encargos financeiros incorridos entre 2007 e 2013, portanto na vigência do artigo 32.º do EBF, ao lucro tributável de 2014, em face da absoluta inexistência de norma legal que o preveja, por violação do princípio da legalidade tributária».

O princípio da legalidade, no caso de a Administração Tributária adoptar uma interpretação por via de orientação genérica, consubstancia-se na sua vinculação pela interpretação adoptada, por força dos princípios da boa-fé e da segurança jurídica, subjacentes ao n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT.

Este artigo 68.º-A contém uma norma aprovada pela Assembleia da República, que se encontra em vigor e é a expressão da legalidade legislativamente considerada adequada para estas situações.

Por isso, a interpretação da Requerente não contraria o princípio da legalidade, sendo, antes, a sua expressão.

 

3.3.2. Princípio da igualdade

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que a interpretação normativa da Requerente é «materialmente inconstitucional, também por violação do princípio da legalidade tributária, na vertente da generalidade e abstração da lei fiscal, decorrentes do princípio da legalidade e enquanto instrumentos da igualdade fiscal, e, portanto, igualmente por violação do princípio da igualdade tributária, os quais decorrem, nomeadamente, do disposto no artigo 13.º e no artigo 103.º da CRP».

Não é perfeitamente claro qual a perspectiva da Administração Tributária sobre a violação do princípio da igualdade.

A vinculação da Administração Tributária pelas orientações genéricas publicadas, impondo a aplicação da mesma interpretação a todos os contribuintes, tem como efeito o tratamento igualitário de todos os contribuintes, pelo que é uma via de concretização do princípio da igualdade.

Sendo a interpretação adoptada na referida Circular aplicável a todos os contribuintes que se encontrem na precisa situação aí prevista não se vê ofensa do princípio da igualdade, mas, antes, a sua concretização.

Por outro lado, se o que a Autoridade Tributária e Aduaneira pretende dizer é que a possibilidade de deduzir os encargos financeiros não deduzidos antecipadamente cria uma situação de discriminação positiva injustificada para as SGPS, é manifesto que não tem razão, pois a regra geral, aplicável à generalidade das sociedades, é a da dedutibilidade dos encargos financeiros, no termos do artigo 23.º, n.º 1, alínea c) do CIRC.

No artigo 32.º, n.º 2, do EBF, está em causa o afastamento da aplicação de uma regra penalizadora para as SGPS, em relação à generalidade das sociedades, justificada pelo concomitante provável benefício fiscal, pelo que a conclusão no sentido da inviabilidade de aplicação do regime na parte favorável, coloca a tributação as SGPS num plano de igualdade com a generalidade das sociedades a que não foi aplicável esse regime antes de 2014.

Isto é, a norma do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, na parte em que prevê a indedutibilidade dos encargos financeiros, implica uma discriminação negativa para as SGPS, em relação a todas as outras sociedades, que só encontra explicação racional na contrapartida aí prevista que constitui a possibilidade de as SGPS virem a beneficiar de uma discriminação positiva, em relação a todas as outras sociedades, a nível da tributação de mais-valias.

 Sendo assim, a aplicação apenas da discriminação negativa, pretendida pela Autoridade Tributária e Aduaneira, sem a correspondente aplicação da discriminação positiva que a justifica, é que implicaria inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdade, pois a discriminação negativa passaria a não ter justificação.

Por isso, a interpretação da Requerente não viola o princípio da igualdade, antes o concretiza.

 

3.3.3. Inconstitucionalidade por violação dos princípios do Estado de Direito democrático, da reserva da lei fiscal, e da separação de poderes, com a consequente subordinação dos tribunais à lei, os quais decorrem, nomeadamente, do disposto nos artigos 2.º, 103.º, 165.º e 202.º da CRP;

 

Não é facilmente inteligível a imputação destes vícios à interpretação da Requerente.

Quanto ao «princípio do Estado de Direito democrático», a Autoridade Tributária e Aduaneira não explica e não se percebe em que consista a violação a que alude, se não é a mesma que referiu a propósito do princípio a legalidade, questão que já foi apreciada.

No que concerne ao princípio da reserva de lei fiscal, também não se vê em que consista, pois o artigo 68.º-A da LGT é uma norma emanada pela Assembleia da República, em forma de Lei.

No que respeita ao princípio da separação de poderes, decerto não foi violado pela Requerente, que não exerceu qualquer dos poderes dos Estado e se limitou a apresentar a sua pretensão a um Tribunal constituído nos termos da lei, o órgão vocacionado num Estado de Direito para dirimir os litígios entre os particulares e a Administração, como esclarece o artigo 202.º da CRP.

Quanto à subordinação dos tribunais à lei, é precisamente isso que a Requerente pretende, que seja aplicado o regime do artigo 68.º-A, n.º 1, da LGT, como aqui se decidiu.

 

 

3.3.4. Inconstitucionalidade por violação do princípio constitucional da capacidade contributiva e tributação do lucro real (artigo 104.º, n.º 2, da CRP)

 

A Administração Tributária defende que «a pretensão de deduzir os encargos em 2014 viola o princípio constitucional da capacidade contributiva e tributação do lucro real (artigo 104.º, n.º 2 da CRP).»

A indedutibilidade de custos financeiros prevista na parte final do artigo 32.º, n.º 2, do EBF consubstancia um afastamento da regra da tributação segundo o rendimento real, que é concretizada no artigo 23.º, n.º 1, alínea c), do CIRC, que prevê a dedutibilidade de encargos financeiros.

As regras do CIRC sobre a dedutibilidade de encargos financeiros, designadamente a alínea c) do n.º 1 do artigo 23.º, estão manifestamente em sintonia com os princípios da igualdade e da tributação segundo a capacidade contributiva, pois esse regime é aplicável à generalidade dos sujeitos passivos de IRC e os encargos suportados para obter o rendimento deverão ser deduzidos para determinar o rendimento real.

A regra da parte final do artigo 32.º, n.º 2, do EBF é uma excepção às regras do CIRC sobre a dedutibilidade de encargos financeiros justificada pelo regime especial de tributação das mais-valias realizadas pelas SGPS.

Por isso, o afastamento da aplicação de uma excepção a essa regra, prevista na parte final do artigo 32.º, n.º 2, do EBF só pode favorecer a regra da tributação segundo o rendimento real.

Sendo o regime regra de tributação das empresas o da dedutibilidade dos encargos financeiros, nos termos do artigo 23.º, n.º 1, alínea c) do CIRC e implicando o seu afastamento desvantagem fiscal para as SGPS, só encontrava justificação racional na correspondente aplicação de um benefício fiscal a nível da tributação das mais-valias.

Não sendo aplicável o benefício fiscal, a dedutibilidade dos encargos financeiros é a expressão dos princípios da capacidade contributiva e da tributação do lucro real, pois, como óbvio, os encargos suportados diminuíram o lucro que seria obtido se eles fossem deduzidos.

Por isso, se se constata em 2014 que não se verificam as condições para aplicar o regime especial de tributação de mais-valias previsto naquele artigo 32.º, n.º 2, a ilação necessária é não aplicar também o regime especial de irrelevância dos encargos financeiros, que só se justificaria se fosse aplicável aquele regime de tributação.

O que contenderia com os princípios da igualdade e da tributação segundo a capacidade contributiva seria aplicar o regime especial de indedutibilidade de encargos financeiros sem se verificarem as condições especiais que o podem justificar, ao contrário do que sucede com a generalidade das sociedades e da regra da tributação fundamentalmente com base no lucro real (artigo 104.º, n.º 2, da CRP) e sem a possibilidade de dar relevância aos encargos suportados antes de 2014.

 No que concerne à alegada violação do princípio da especialização dos exercícios, não envolve violação dos princípios da capacidade contributiva ou da tributação segundo o lucro real, pois o que afectou esses princípios foi a não dedução dos encargos financeiros nos exercícios de 2009 a 2013, desfavorável para a Requerente.

De resto, o princípio da especialização dos exercícios não é absoluto, pois é complementado pelo princípio da solidariedade dos exercícios (  ), pelo que tributação segundo a capacidade contributiva e o lucro real não exigem a aplicação do primeiro.

Por outro lado, a dedução integral dos encargos financeiros, num só exercício, está nela expressamente prevista no ponto 6 da Circular n.º 7/2004, pelo que também quanto a esse ponto a Administração Tributária está vinculada.

 

3.3.5. Inconstitucionalidade do artigo 32.º do EBF e do n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira diz que «reputa-se materialmente inconstitucional o artigo 32.º do EBF e a norma do n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT quando interpretados no sentido de que este último preceito consagra carácter vinculativo às orientações genéricas e impõe a observância da interpretação que a Autoridade Tributária e Aduaneira adotou no referido ponto 6 da Circular n.º 7/2004, por violação dos princípios da legalidade tributária, da reserva da lei fiscal, e da separação de poderes com a consequente subordinação dos tribunais à lei, os quais decorrem nomeadamente, do disposto nos artigos 103.º, 165.º e 202.º da CRP».

A supremacia da vinculatividade das orientações genéricas, como exigência dos princípios da boa-fé e da segurança jurídica, já foi afirmada pelo Tribunal Constitucional no citado acórdão n.º 583/2009, de 18-11-2009, processo n.º 873/08: «é certo que o administrado pode invocar, no confronto com a administração, o conteúdo da orientação administrativa publicitada e, se for o caso, fazê-lo valer perante os tribunais, mesmo com sacrifício do princípio da legalidade (...). Mas é ao abrigo do princípio da boa-fé e da segurança jurídica, não pelo seu valor normativo, que o conteúdo das circulares prevalece». (   )

Esta jurisprudência foi reafirmada, nestes precisos termos, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/14, de 09-01-2014, processo n.º 564/12.

Aliás, esta prevalência da força vinculativa para a Autoridade Tributária e Aduaneira das circulares sobre o princípio da legalidade estrita é facilmente justificada , por aquela força ser reclamada pelos referidos princípios constitucionais da boa fé e segurança jurídica, fundamentais num Estado de Direito, que, por o serem, devem prevalecer sobre normas fiscais de natureza manifestamente secundária, em termos de constitucionalidade, como são as que, ao longo do tempo, vão indicando os encargos que podem e que deixam de poder ser deduzidos em sede de IRC.

Isto é, é intolerável, à face dos referidos princípios da boa-fé e da segurança jurídica, bem como do principio da confiança, que a Autoridade Tributária e Aduaneira tenha «convencido» os contribuintes, através do ponto 6 da circular referida, a anteciparem a assunção da parte negativa do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, deixando de imputar a cada exercício os encargos financeiros nele suportados «independentemente de se encontrarem já reunidas todas as condições para a aplicação do regime especial de tributação das mais-valias», com a garantia de que «caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores» e venha, depois de obtida aquela vantagem fiscal antecipada, proibir em definitivo a possibilidade de o contribuinte auferir a contrapartida anunciada.

É que, na verdade, como já se referiu, com a revogação do referido artigo 32.º, n.º 2, mesmo que se venha a conclui no momento da alienação das participações que se verificavam os requisitos para aplicação desse regime (ou do da participation exemption) estará sempre afastada a possibilidade de recuperação da relevância fiscal desses encargos anteriores a 2014, pois não está prevista essa recuperação o regime que então vigorar.

Neste contexto, a forma de assegurar a concretização daqueles princípios da boa-fé e da segurança jurídica, bem como do princípio da confiança, e impor a Administração Tributária o cumprimento do prometido, «mesmo com sacrifício do princípio da legalidade», como entendeu o Tribunal Constitucional nos acórdãos citados.

Por outro lado, não é afectada regra constitucional da reserva da lei fiscal, pois o que esta em causa é, precisamente, aplicar o artigo 68.º-A da LGT, que é uma norma emitida pela Assembleia da República.

Da mesma forma, a aceitação da interpretação da Requerente não põe em causa a o princípio da separação de poderes nem a subordinação dos tribunais à lei, pois é o presente Tribunal, constituído nos termos da Lei, que profere uma decisão jurisdicional e concretiza essa subordinação aplicando a lei que deve aplicar que é artigo 68.º-A, n.º 1, da LGT.

Pelo exposto, não são materialmente inconstitucionais os artigos 32.º, n.º 2 do EBF e 68.º-A, n.º 1, da LGT, por violação dos princípios da legalidade tributária, da reserva da lei fiscal, e da separação de poderes com a consequente subordinação dos tribunais à lei, os quais decorrem nomeadamente, do disposto nos artigos 103.º, 165.º e 202.º da CRP»

 

3.4. Questões de conhecimento prejudicado

 

Sendo de julgar procedente o pedido com fundamento na violação do artigo 68.º-A, n.º 1, da LGT, fica prejudicado, por ser inútil, o conhecimento das restantes questões de legalidade invocadas, pelo que não se toma delas conhecimento, de harmonia com o preceituado nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CC, subsidiariamente aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

3.5. Decisão do recurso hierárquico

 

A decisão do recurso hierárquico, que manteve a autoliquidação de IRC relativa ao exercício de 2014, enferma das ilegalidades de que enfermam essa autoliquidação, pelo que se justifica também a sua anulação.

 

 

4. Decisão

 De harmonia com o exposto, acordam, neste Tribunal Arbitral, em

a)            Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à dedutibilidade no exercício de 2014 dos encargos financeiros com a aquisição de partes de capital suportados pela Requerente nos exercícios de 2009 a 2013;

b)           Anular a autoliquidação relativa ao exercício de 2014 na parte em que não foram nela deduzidos esses encargos, bem como a decisão do recurso hierárquico.

 

5. Valor do processo

De harmonia com o disposto no art. 305.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 443.294,26.

 

6. Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 7.038,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 26-04-2021

 

Os Árbitros

 

(Jorge Lopes de Sousa)                                                          

(Vasco António Branco Guimarães)

(Raquel Franco)