Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 490/2020-T
Data da decisão: 2021-07-12  IRS  
Valor do pedido: € 9.709,08
Tema: IRS – Mais-valias imobiliárias – Discriminação de não residentes - Compatibilidade com o art. 63º TFUE.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

1. No dia 25-09-2020, o sujeito passivo A..., contribuinte fiscal nº..., residente em ..., Hamburgo, Alemanha, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), tendo em vista a declaração de ilegalidade da liquidação de IRS nº 2020... do ano de 2019, emitida pelo Serviço de Finanças ...- Lisboa ..., no valor de € 19.418,17.

2. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o árbitro ora signatário, disso notificando as partes.

3. O tribunal encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

4. Os fundamentos que sustentam o pedido de pronúncia arbitral dos Requerentes são em súmula, os seguintes:

4.1. A Requerente é residente na República Federal da Alemanha, na cidade de Hamburgo, conforme resulta da certidão junta como doc. nº1.

4.2. No dia 27 de Março de 2019, a Requerente celebrou uma escritura de partilha de bens com o seu irmão, por óbito dos pais de ambos, B..., falecido em 29 de Setembro de 1990, e C..., que também usava os nomes C1... e C2..., falecida em 25 de Setembro de 2015.

4.3. Como consta dessa escritura de partilha, junta como Doc. 2 e cujo teor integralmente se reproduz, dos acervos hereditários dos pais da Requerente faziam parte vários imóveis, os relacionados e descritos nas verbas 47 a 72 dessa mesma escritura.

4.4. Por efeito da acordada composição de quinhões, na parte que interessa, a Requerente adjudicou ao seu irmão os seguintes imóveis:

 

Verba   Artigo matricial Natureza             Freguesia            Concelho

47           ...            Urbano ...            Bragança

48           ...            Rústico ...            Bragança

51           ...            Rústico ...            Bragança

52           ...            Rústico ...            Bragança

55           ...            Rústico ...            Bragança

56           ...            Rústico ...            Bragança

59           ...            Rústico ...            Bragança

60           ...            Rústico ...            Bragança

63           ...            Rústico ...            Bragança

64           ...            Rústico ...            Bragança

67           ...            Rústico ...            Bragança

68           ...            Rústico ...            Bragança

70           ...            Rústico ...            Bragança

71           ...Fracção  “I”     Urbano ...            Porto

72           ...Fracção “A”    Urbano ...            Lisboa

 

4.5. Foi assim que, chegada ao ano de 2020 e dentro do prazo legal, a Requerente apresentou a sua declaração Modelo 3 de IRS referente ao ano de 2019, junta como Doc. nº 3.

4.6. Nessa declaração de IRS a Requerente incluiu as mais-valias imobiliárias, tendo optado pela tributação pelo regime geral, como decorre do Quadro 8 – campos 04 e 07 da declaração Mod. 3 junta como Doc. nº3.

4.7. Já no anexo G, a Requerente indicou como valores de aquisição os valores patrimoniais tributários dos referidos imóveis nas datas das transmissões, isto é, nas datas dos óbitos dos seus pais (29-09-1990 e 25-09-2015), na proporção deles adquirida, a saber:

1ª Transmissão – por óbito do pai em 29-09-1990, na proporção de 1/6 = 16,67 %

2ª Transmissão – por óbito da mãe em 25-09-2015, na proporção de 2/6 = 33,33 %

4.8. Tendo referido como valores de realização, nas mesmas proporções, os valores patrimoniais tributários dos mesmos imóveis na data da celebração do contrato de partilha, justamente porque foram esses os valores por que foram adjudicados/alienados ao irmão da Requerente em negócio oneroso.

4.9. Da soma dos valores de aquisição dos imóveis resultou a quantia de € 60.064,15, a qual, atendendo às datas de aquisição a título gratuito, por óbito de cada um dos pais da Requerente (1990 e 2015), terão sido corrigidos mediante a aplicação de coeficientes de desvalorização monetária, nos termos do artigo 50º do CIRS.

4.10. Da adição dos valores de realização dos mesmos imóveis resultou a importância de € 134.701,87.

4.11. A diferença entre os valores de aquisição corrigidos e os valores de realização importou numa mais-valia apurada de € 69.350,63, que foi integralmente levada a tributação e à qual foi aplicada a taxa autónoma de 28% consagrada na alínea a) do artigo 72º do CIRS, resultando em imposto a pagar à Fazenda Nacional no montante de € 19.418,17, como resulta da nota demonstrativa da liquidação de IRS de 2019 nº 2020 ..., junta como Doc. nº 4.

4.12. A Requerente procedeu ao pagamento do imposto apurado, dentro do prazo para o pagamento voluntário, em 25 de Agosto de 2020, como bem se alcança pelo teor do comprovativo ATM junto como Doc. nº 5.

4.13. Ora, a liquidação de IRS em crise é manifestamente ilegal e discriminatória, colidindo com o Direito da União Europeia e contrariando toda a jurisprudência nacional e comunitária.

4.14. Efectivamente, no que respeita aos sujeitos passivos residentes em Portugal, o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias respeitantes às transmissões de imóveis realizadas é apenas considerado em 50% do seu valor, como decorre do disposto no nº 2 do artigo 43º do CIRS, enquanto que se o sujeito passivo for residente noutro Estado-membro da União Europeia já o saldo apurado é integralmente levado a tributação a 100%.

4.15. Por esse motivo que o nº 2 do artigo 43º do CIRS colide com Direito da União Europeia, mormente com os artigos 18º e 63º nº 1 do TFUE, nos casos, evidentemente, em que o sujeito passivo seja residente noutro Estado-membro da UE.

4.16. Uma vez que a aplicação da taxa de 28% à totalidade do saldo positivo apurado em mais-valias imobiliárias dos residentes noutro Estado membro da UE consubstancia discriminação e comprime a liberdade de movimento de capitais, a AT não pode aplicar aquela norma a residentes noutro Estado-membro da UE mercê do primado do Direito da União Europeia sobre a legislação ordinária nacional.

4.17. Com efeito, o não residente em território português que resida noutro Estado membro da União Europeia verá a base tributável em sede de rendimentos da categoria G provenientes de mais-valias imobiliárias elevada ao dobro da dos residentes em Portugal, o que lhe determinará uma carga fiscal menos favorável em idênticas circunstâncias, independentemente de qual seja a taxa de tributação aplicável.

4.18. Aliás, a colecta resultante das taxas de tributação progressivas de que beneficiam os residentes em Portugal, permite-lhes ainda colher as deduções de que os não residentes estão impedidos de lançar mão.

4.19. Assim, o quadro normativo de tributação de mais-valias imobiliárias obtidas em Portugal oferecido pelo nº 2 do artigo 43º do CIRS aos residentes noutro Estado membro da União Europeia é discriminatório e colide ostensivamente com normas do TFUE, tratado a que o Estado Português se encontra vinculado, dele resultando a violação do princípio da igualdade e a restrição aos movimentos de capitais, v.g. artigos 18º e 63º do TFUE.

4.20. O que vem sendo sufragado pela mais avisada jurisprudência, tanto do Tribunal de Justiça da União Europeia que, no acórdão Hollmann, de 11/10/2007, Processo n.º C-443/06, conclui que a norma nacional portuguesa, contida no referido artigo 43º n.º 2 do CIRS, viola o artigo 63º do TFUE, na medida em que reveste um carácter discriminatório para os não residentes e ser, em consequência, restritiva da liberdade de circulação de capitais entre Estados Membros.

4.21. Tal posição foi igualmente acolhida pelo Supremo Tribunal Administrativo nos acórdãos de 30 de Abril de 2013, processo 01374/12 e de 3 de Fevereiro de 2016, processo 01172/14, e mais recentemente no acórdão de 20 de Fevereiro de 2019, processo 0901/11.0BEALM 0692/17.

4.22. Mesmo as alterações que a Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro veio introduzir ao CIRS, no sentido de permitir aos residentes noutro Estado membro da União Europeia exercer o direito de opção pelo englobamento dos rendimentos obtidos por mais-valias imobiliárias, equiparando-as assim aos residentes, não alcançou neutralizar os efeitos discriminatórios do regime sob censura.

4.23. Tanto que assim foi já decidido no Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão Gielen de 18 de Março de 2010, no Processo C-440/08, que manteve as conclusões expostas no Acórdão Hollman.

4.24. Também os tribunais arbitrais a funcionar junto do CAAD têm sufragado esse entendimento, conforme Decisão Arbitral de 5 de Julho de 2017, no Processo 89/2017-T Decisão Arbitral de 15 de Abril de 2019, no Processo 583/2018-T; Decisão Arbitral de 30 de Março de 2020, no Processo 787/2019-T; e Decisão Arbitral de 21 de Abril de 2020, no Processo 824/2019-T, só para citar as mais recentes.

4.25. Da análise da demonstração de liquidação respeitante ao acto de liquidação de IRS de 2019 aqui impugnado, resulta que a AT aplicou a taxa de 28% sobre a totalidade das mais-valias realizadas pela Requerente, residente na República Federal da Alemanha, quando devia ter aplicado a mesma taxa a 50% daquele rendimento.

4.26. O acto de liquidação sob censura padece do vício de violação de Lei, por incompatibilidade do nº 2 do artigo 43º do CIRS com os artigos 18º e 63º do TFUE.

4.27. Acto que, por ilegal, deve ser parcialmente anulado na parte que se encontra viciada, devendo o imposto pago indevidamente ser restituído à Requerente.

4.28. Para além da anulação parcial do acto de liquidação e do reembolso do valor de imposto indevidamente cobrado, tem a Requerente direito a juros indemnizatórios, o que igualmente reclama ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 43º da LGT e no artigo 24º do RJAT.

4.29. Em consequência, a Requerente solicita a declaração de ilegalidade da liquidação de IRS nº 2020... do ano de 2019, no valor de € 19.418,17, e a sua anulação na parte afectada, que é de € 9.709,08, sendo a AT condenada a restituir esse montante, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal, desde o dia 25 de Agosto de 2020, data do pagamento, até integral e efectivo reembolso da quantia indevidamente paga.

5. Por seu turno, a Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, na qual se defendeu, em súmula, nos seguintes termos:

5.1. Em discussão, está a aplicabilidade da incidência de imposto de mais-valias a 50% (tal como acontece com os residentes), obtidas por um não residente em Portugal, mas residente num Estado Membro da União Europeia, violar o Direito Comunitário.

5.2. Se é certo que no Acórdão do TJCE, de 11/10/2007, entendimento igualmente sufragado pelos Acórdãos do STA identificados pelo Requerente, foi decidida a contrariedade com o Direito Comunitário da disciplina da tributação das mais-valias imobiliárias de não residentes resultante dos artigos 72.°, n.º1 e 43.°, n.º 2 do CIRS, igualmente se assinala que o quadro normativo atual e aplicável à situação objeto dos autos é distinto, como, aliás, bem ilustra a decisão proferida por este mesmo CAAD no processo 539/2018-T.

5.3. Como a Requerente sabe, pese embora não tenha assinalado correcto na declaração, no sentido de adaptar a legislação nacional à decisão do TJCE, foi pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, aditados ao artigo 72º do Código do IRS, os nº7 e 8, actuais nºs 9 e 10, nos termos dos quais as declarações de rendimentos de IRS respeitantes aos anos fiscais de 2008 e seguintes têm um campo para que possa ser exercida a opção pela taxa consagrada no artigo 68.º do CIRS.

5.4. Compulsada a declaração de IRS entregue pela Requerente verifica-se que no Quadro 8 do Rosto foi assinalado o campo 4 (não residente), o campo 6 (residência em país da UE) e o campo 7 (pretende a tributação pelo regime geral aplicável aos não residentes)

5.5. Na verdade, para que o pretendido pudesse proceder, nomeadamente, que atributação da mais-valia fosse feita pela taxa consagrada no artigo 68.º, como residente, era necessário ter preenchido os campos 9, opção pelas taxas do artigo 68.º do CIRS, e 11, total dos rendimentos obtidos no estrangeiro.

5.6. Não o tendo feito, como evidencia a Mod. 3, e como a própria Requerente reconhece no artigo 8.º do P.P.A., não pode o peticionado proceder e, muito menos, a imputação do erro, e consequente responsabilidade, no preenchimento da declaração ser assacada à Requerida

5.7. Ademais, a norma estabelecida no n.º 2 do artigo 43.º, e cuja aplicação a Requerente defende, encontra-se no capítulo II do CIRS que tem como epígrafe "Determinação do rendimento coletável", sendo que para efeitos de incidência, e no que respeita à matéria das mais-valias que nos ocupa, relevantes são antes os artigos 9.º e 10.º do CIRS.

5.8. Assim, o disposto no n.º 2 do artigo 43° do CIRS não é aplicável ao caso aqui em análise, improcedendo, por isso, a argumentação aduzida pela Requerente.

5.9. Igualmente é desprovida de qualquer razão a alegação de que o atual quadro normativo, resultante da alteração legislativa ocorrida em 2007 para vigorar a partir de 2008, continua a violar o artigo 63.º do TFUE.

5.10. Pugnar por um entendimento diverso do supra consubstanciaria uma discriminação positiva, violadora do princípio constitucional da igualdade chamado à colação pela Requerente, e totalmente inaceitável à luz do direito nacional e comunitário.

5.11. Também o pedido de condenação em juros indemnizatórios deverá improceder por não se verificarem os pressupostos constantes do nº1 do art. 43º da LGT.

5.12. Por último, tendo em consideração que os Processos do CAAD n.ºs 598/2018-T e 569/2019-T, que versam sobre esta mesma temática, se encontram pendentes de análise e decisão no Tribunal de Justiça da União Europeia, sob os n.ºs C-388/19 e C-103/20, respetivamente, entende a Requerida que se justifica, e o que desde já se requer, a suspensão da instância até que seja emitida a pronúncia pelo TJUE, nos termos do disposto nos artigos 269.º, n.º 1, alínea c), e 272.º do CPC.

6. Em 19/1/2021 foi proferido despacho arbitral determinando a suspensão da instância até ser proferida a decisão pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, nos processos de reenvio prejudicial solicitados nos processos do CAAD 598/2018-T e 569/2019-T.

7. Tendo sido proferido no processo de reenvio prejudicial, solicitado pelo CAAD no processo 598/2018-T, o acórdão do TJUE de 18 de Março de 2021, processo C-388/19, foi retirado o pedido de reenvio prejudicial solicitado no processo 569/2019, razão pela qual se considerou, por despacho arbitral de 28/6/2021, cessada a suspensão da instância nos presentes autos.

8. No mesmo despacho arbitral foi dispensada a reunião prevista no art. 18º do RJAT, por não estarem preenchidas as circunstâncias que justificam a sua realização, podendo as partes requerer que a mesma tivesse lugar, o que estas não fizeram.

 

II – Factos provados

9. Com base na prova documental constante dos documentos juntos pela Requerente, consideram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:

9.1. A Requerente é residente na República Federal da Alemanha, na cidade de Hamburgo (certidão de domicílio fiscal junta como doc. nº1 ao requerimento inicial).

9.2. No dia 27 de Março de 2019, a Requerente celebrou uma partilha de bens da herança de seus pais com o seu irmão, D... por óbito dos pais de ambos, B..., falecido em 29 de Setembro de 1990, e C..., que também usava os nomes C1... e C2..., falecida em 25 de Setembro de 2015. (documento particular autenticado junto como doc. nº2 ao requerimento inicial).

9.3. Por efeito da acordada composição de quinhões nessa partilha a Requerente adjudicou ao seu irmão os seguintes imóveis:

 

Verba   Artigo matricial Natureza             Freguesia            Concelho

47           ...            Urbano ...            Bragança

48           ...            Rústico ...            Bragança

51           ...            Rústico ...            Bragança

52           ...            Rústico ...            Bragança

55           ...            Rústico ...            Bragança

56           ...            Rústico ...            Bragança

59           ...            Rústico ...            Bragança

60           ...            Rústico ...            Bragança

63           ...            Rústico ...            Bragança

64           ...            Rústico ...            Bragança

67           ...            Rústico ...            Bragança

68           ...            Rústico ...            Bragança

70           ...            Rústico ...            Bragança

71           ... Fracção  “I”    Urbano ...            Porto

72           ...Fracção “A”    Urbano ...            Lisboa

 

9.4. Em 19/6/2020 de 2020, a Requerente apresentou a sua declaração Modelo 3 de IRS referente ao ano de 2019, onde incluiu as mais-valias imobiliárias, tendo optado pela tributação pelo regime geral (declaração Modelo 3 junta como Doc. nº3 ao requerimento inicial).

9.5. O Serviço de Finanças Lisboa ... efectuou a liquidação de IRS nº 2020... do ano de 2019, emitida pelo Serviço de Finanças ... – Lisboa ..., constando da respetiva demonstração o rendimento global de € 69.350,63 (sessenta e nove mil, trezentos e cinquenta euros e sessenta e três cêntimos), e o valor a pagar de € 19.418,17 (dezanove mil, quatrocentos e dezoito euros e dezassete cêntimos), que corresponde a 28% da totalidade da mais-valia realizada pela Requerente (doc. nº 4 junto ao requerimento inicial).

9.6. A referida nota de liquidação foi emitida com o prazo de pagamento até 31/08/2020, tendo ocorrido o pagamento do referido imposto no dia 25/08/2020 (docs. nºs 4 e 5 juntos ao requerimento inicial).

 

 

III - Factos não provados

10. Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.

 

IV - Do Direito

11. São as seguintes as questões a examinar no presente processo.

- Da ilegalidade da liquidação de IRS por violação do art. 63º do TFUE e do direito ao reembolso do imposto pago em excesso.

- Do direito a juros indemnizatórios.

Examinar-se-ão assim essas questões:

 

DA ILEGALIDADE DA LIQUIDAÇÃO DE IRS POR VIOLAÇÃO DO ART. 63º DO TFUE E DO DIREITO AO REEMBOLSO DO IMPOSTO PAGO EM EXCESSO.

10. Sustenta a Requerente que o artigo 43.º, n.º 2 do CIRS viola o Direito da União Europeia, pois torna menos favorável para os residentes de outro Estado–Membro da União Europeia o exercício do direito de livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE. No seu entender não existe justificação material para diferenciação de regimes entre residentes e não residentes, que determina a exclusão de tributação de mais-valias imobiliárias em 50% para residentes, e a tributação da totalidade das mais-valias imobiliárias para não residentes.  Defende, por outro lado, que a possibilidade de os residentes noutro Estado-Membro da União Europeia optarem, relativamente aos rendimentos referidos no artigo 72.º, n.º 1 e 2 do CIRS, pela tributação à taxa que seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português não permite afastar o juízo de discriminação constante do acórdão de 11/10/2007, emitido no processo C-443/06 do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (Hollmann) sobre a previsão do artigo 43.º, n.º 2 do CIRS. Em consequência defendem que a liquidação é ilegal, pois a aplicação do artigo 43.º, n.º 2 do CIRS deveria determinar a tributação de apenas 50% das mais-valias imobiliárias realizadas e não da sua totalidade, como ocorreu.

Por sua vez, a Requerida defende que a decisão proferida no acórdão Hollmann se refere a situações anteriores à Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, tendo esta, em  execução do referido acórdão, procedido à adaptação da legislação nacional a essa decisão, aditando ao artigo 72º do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, o n.º 7 (actual n.º 14) e o n.º 8 (actual n.º 15), a qual passou a permitir que tanto residentes como não residentes beneficiem do regime previsto no artigo 43º, n.º 2 (consideração do saldo da mais-valia em apenas 50% do seu valor) do mesmo Código, desde que optem pelo englobamento dos rendimentos obtidos tanto em Portugal como fora deste território, nos termos do art. 68º CIRS, o que neste caso não ocorreu.

Analisemos então esta questão:

O art. 63º do TFUE dispõe o seguinte:

"1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movi¬mentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.

2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros".

Na data da alienação que gerou as mais-valias em questão vigorava a redacção do art. 72º do CIRS introduzida pela Lei 3/2019, de 9 de Janeiro, cujos nºs 13 e 14 dispunham o seguinte:

"13. Os residentes noutro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a), b) e e) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.

14. Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes".

As questões colocadas pelo regime diferenciado da tributação das mais-valias imobiliárias realizadas por sujeitos passivos residentes e por sujeitos passivos não residentes em território nacional foram inicialmente tratadas no acórdão Hollmann (processo n.º C-443/06, de 11/10/2007), que versou sobre uma situação ocorrida em data anterior à das alterações introduzidas ao artigo 72.º do CIRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12.

Nessa acórdão foi decidido que: 

“O artigo 56.° CE [atual artigo 63.º, TFUE] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no litígio no processo principal, que sujeita as mais valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efetuada por um residente noutro Estado Membro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobre as mais valias realizadas por um residente do Estado onde está situado esse bem imóvel”. 

Assim, o acórdão Hollmann considerou que o previsto no artigo 43.º, n.º 2 do CIRS, ao limitar a tributação a 50% das mais-valias apenas em relação aos residentes em Portugal, não a aplicando aos não residentes para efeitos de determinação do rendimento tributável no âmbito do IRS, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 56.º do CE (hoje artigo 63.º do TFUE). 

Todavia, alega a Requerida que, com o novo regime aplicável à tributação dos rendimentos de mais-valias imobiliárias obtidos pelos sujeitos passivos não residentes, resultante do aditamento dos números 7 e 8 (números 13 e 14 à data do facto tributário) ao artigo 72.º do CIRS, pela Lei n.º 67- A/2007, de 31/12 ficou sanada a desconformidade entre a legislação nacional e o Direito da União Europeia, uma vez que se consagrou a  possibilidade de opção do não residente pela tributação de acordo com as taxas previstas no artigo 68.º do CIRS, embora nesse caso, sejam considerados todos os rendimentos, incluindo os auferidos fora do território nacional. No seu entender, o regime vertido no artigo 72.º, números 13 e 14 do CIRS à data do facto tributário (hoje 14 e 15) repõe a igualdade de tratamento entre residentes e não residentes.

A questão foi recentemente objecto de decisão prejudicial do TJUE, em consequência de pedido apresentado por este CAAD no processo 598/2018-T. Esse pedido levou à prolação de acórdão pelo TJUE no âmbito do processo C-388/19 (MK v. Autoridade Tributária e Aduaneiro), o qual foi publicado no dia 18 de Março de 2021.

Neste processo o TJUE decidiu o seguinte:

"O artigo 63.° TFUE, lido em conjugação com o artigo 65.° TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à regulamentação de um Estado-Membro que, para permitir que as mais-valias provenientes da alienação de bens imóveis situados nesse Estado-Membro, por um sujeito passivo residente noutro Estado-Membro, não sejam sujeitas a uma carga fiscal superior à que seria aplicada, para esse mesmo tipo de operação, às mais-valias realizadas por um residente do primeiro Estado-Membro, faz depender da escolha do referido sujeito passivo o regime de tributação aplicável".

Face a esta posição do TJUE, é assim manifesta a ilegalidade da liquidação de IRS do ano de 2019, ainda que a Requerente não tenha optado pelo regime de tributação a que se referem os números 13 e 14 (à data do facto tributário) do artigo 72.º do CIRS. Efectivamente, como bem decidiu o TJUE, a possibilidade da opção não é susceptível de afastar o efeito discriminatório decorrente da tributação da totalidade da mais-valia apurada no ano em causa, o que torna ilegal uma liquidação de IRS que considere em relação a um não residente uma mais-valia imobiliária em 100%.

Nos termos do artigo 100º da Lei Geral Tributária, a Administração Tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade.

Tal não determina, no entanto, a invalidade total da liquidação de IRS, mas apenas a sua anulação parcial relativamente ao imposto pago em excesso, que irá assim ser decretada.

 

- DO DIREITO A JUROS INDEMNIZATÓRIOS.

11. A Requerente solicitou ainda o pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43º da LGT.

Estabelece essa disposição o seguinte:

“São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

Nos termos desta disposição são três os requisitos do direito aos referidos juros: i) existência de um erro em acto de liquidação de imposto imputável aos serviços; ii) determinação de tal erro em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial e iii) pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. 

A Autoridade Tributária tinha pleno conhecimento da jurisprudência existente no sentido da incompatibilidade da tributação das mais-valias imobiliárias auferidas por não residentes com o art. 63º do TFUE, razão pela qual não as deveria ter considerado em 100%, o que se traduz num “erro imputável aos serviços”, conforme consta do art. 43º da LGT.

Tendo em conta o estabelecido no artigo 61º do CPPT e tendo sido verificada a existência de erro imputável aos serviços da Administração Tributária, do qual resultou pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (vide art. 43º, nº1 da LGT), entendemos que a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal desde o pagamento do imposto em excesso até à sua efectiva restituição.

 

V – Decisão

 

Termos em que este Tribunal Arbitral decide anular parcialmente a liquidação de IRS nº 2020... do ano de 2019, condenando a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago, bem nos correspondentes juros indemnizatórios a contar da data em que foi efectuado o pagamento.

 

Fixa-se ao processo o valor de € 19.418,17 (valor indicado e não contestado) e o valor da correspondente taxa de arbitragem em € 1224,00 nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, condenando-se a Requerida nas custas do processo.

 

Lisboa, 12 de Julho de 2021

 

O Árbitro

(Luís Menezes Leitão)