Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 415/2020-T
Data da decisão: 2021-04-09  IRS  
Valor do pedido: € 125.471,01
Tema: IRS - Cláusula geral anti-abuso.
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Sumário:

Uma sequência de transações em que se inclui a criação de uma empresa veículo, desprovida de substância económica, que serviu apenas para a aquisição de participações sociais de uma outra sociedade, que ulteriormente distribuiu dividendos destinados à liquidação da dívida gerada por essa aquisição, constitui objetivamente um esquema abusivo enquadrável na cláusula geral anti-abuso, quando seja possível considerar que a finalidade principal das operações societárias foi a de evitar a tributação em IRS de rendimentos de capitais.    

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

                               1. A..., com o número de identificação fiscal ..., e B..., com o número de identificação fiscal ..., ambos residentes na ..., nº..., ..., ...-... Lisboa, e C..., com o número de identificação fiscal ..., residente na Rua ..., n.º..., ...-... Lisboa, em coligação, vêm requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade dos actos de liquidação adicional de IRS n.os 2019... e 2019... e respectivos juros compensatórios, de que foram notificados os primeiros Requerentes, e dos actos de liquidação de IRS n.os 2019... e 2019... e respectivos juros compensatórios, de que foi notificado o segundo Requerente, bem como dos actos de indeferimento das reclamações graciosas contra eles deduzidas.

 

Requerem ainda o reembolso do imposto e dos juros compensatórios indevidamente pagos, acrescidos de juros indemnizatórios.

               

Fundamentam o pedido nos seguintes termos.

 

Em 1998, os Requerentes constituíram a sociedade por quotas denominada D..., Lda. (D...), a qual tinha como objecto social a fabricação de produtos a partir de chapas e perfis metálicos, inicialmente com um capital social de € 10.000,00, constituído por duas quotas de valor nominal de € 5.000,00 cada, detido em partes iguais pelos sócios-gerentes.

 

Em 2007, após um aumento do capital social para € 150.000,00 por incorporação de reservas e, depois, para € 160.000,00, em dinheiro e por incorporação de reservas, a sociedade foi transformada em sociedade anónima e o capital social foi repartido pelos sócios fundadores e por mais três novos accionistas.

 

Em 2008, os accionistas da D... aceitaram vender 51% do capital social da sua participada à sociedade E...– SGPS, S.A. (E... SGPS), pelo montante de € 2.040.000,00, permanecendo com os restantes 49% do capital social da primeira sociedade, sendo que em resultado dessa alienação cada um dos Requerentes ficou a caber uma posição na D... de 24,5%.

 

Com a entrada da E... SGPS no capital, e passando esta a ser a acionista maioritária, a D... passou a pagar dividendos aos accionistas.

 

Tendo-se apercebido mais tarde que se unissem as suas participações sociais teriam uma posição mais relevante na gestão acionista da sociedade, decidiram constituir uma sociedade que detivesse e gerisse a participação de 49%, resultante da soma das participações individuais no capital social da D..., e pudesse também vir a deter e gerir participações conjuntas e servisse de veículo comum para eventuais investimentos noutras sociedades, assim se tendo constituído, em 23 de Dezembro de 2008, a holding «F... – SGPS, S.A.», com o capital social de € 50.000,00, e com o objecto social de gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indirecta do exercício de actividades económicas.

 

Com essa finalidade, a F... SGPS adquiriu aos Requerentes as participações sociais da D... pelo preço de € 2.156.000,00, cabendo € 1.078.000,00 a cada um dos alienantes.

 

Tendo em vista a viabilidade da aquisição das participações sociais pela holding, o preço acordado para a aquisição de partes sociais não foi de imediato pago aos alienantes, como acordado entre as partes nos contratos de compra e venda de valores mobiliários, tendo sido reconhecido na contabilidade da F... SGPS um débito em seu favor naquele montante que lhes seria restituído se o património líquido da F... SGPS assim o permitisse.

 

Entre 2009 e 2017, e por força da alteração de política de distribuição de resultados da D... que emergiu com o seu novo accionista (E... SGPS), a F... SGPS recebeu dividendos da sua participada com uma cadência anual, o que permitiu que a F... SGPS fosse reembolsando os seus accionistas do crédito que detinham por efeito da alienação das participações sociais.

 

Em termos quantitativos, a F... SGPS recebeu dividendos da D... no valor de € 982.450,00 e as amortizações do crédito aos sócios ascenderam a € 1.005.199,20.

 

Desde a constituição da F... SGPS, os Requerentes têm vindo a estudar e a avaliar diversos investimentos noutras empresas que nunca chegaram a concretizar-se por razões de oportunidade e de condições de negócio.

 

Em 2018, os Requerentes foram alvo de um procedimento inspectivo que determinou correcções tributárias ao abrigo da cláusula geral anti-abuso, tendo por base o reembolso do crédito realizado pelos accionistas da F... SGPS com a aquisição das participações sociais da D..., e que originou os actos de liquidação impugnados e que foram mantidos na sequência do indeferimento das reclamações graciosas contra eles deduzidas.

 

O procedimento tributário das reclamações graciosas viola os princípios da verdade material e do inquisitório, porquanto apesar de os contribuintes terem solicitado a produção de prova testemunhal, por se revelar útil à descoberta da verdade material e à correcta aplicação do direito, com vista a aferir o elemento subjectivo que presidiu à constituição da F... SGPS, a Autoridade Tributária recusou essa diligência com base na inadmissibilidade de outra prova para além da documental.

 

Os actos tributários são ainda ilegais por inverificação dos quatro requisitos de que depende a aplicação da CGAA. Os negócios realizados foram usuais: (i) a D... foi constituída na década 90 porque os accionistas queriam efectivamente a constituição de uma sociedade que desenvolvesse uma actividade económica genuína; (ii) a criação da F... SGPS e a alienação das acções da D... àquela foram levadas a cabo com o intuito de unir as participações dos Requerentes e centralizar a respectiva gestão, tendo sido realizadas no âmbito de uma operação perfeitamente legítima e cujo modelo é comumente utilizado, sem abuso de qualquer forma jurídica; (iii) a concessão de um crédito pelos sócios em benefício da holding ocorreu porque esta sociedade não tinha meios para pagar a pronto o preço das acções adquiridas (a valor de mercado) e para recorrer a endividamento externo; e (iv) a restituição do valor em dívida aos accionistas pela F... SGPS ocorreu com o propósito de satisfazer uma obrigação creditícia que sobre esta impendia de pagar o preço da transmissão de valores mobiliários, pela qual se tornou titular do capital social da D..., conforme impõe o princípio da plena concorrência.

 

Os actos tributários enfermam ainda de vício de fundamentação da decisão de aplicação da CGAA, em especial, pela falta de demonstração de que a celebração ou prática dos negócios ou actos jurídicos foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos e o erro na indicação dos negócios ou actos jurídicos de idêntico fim económico e, no plano substantivo, por errada subsunção da situação em apreço no âmbito da CGAA.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, começa por suscitar a questão prévia resultante de não ter sido impugnada no pedido arbitral a totalidade das correções promovidas pelos relatórios de inspecção tributária, mas apenas as que envolvem a aplicação da cláusula geral anti-abuso, pelo que a pronúncia do tribunal apenas pode confinar-se ao objecto do pedido.

 

Em sede de impugnação, sustenta que foram observados no decurso do procedimento tributário os princípios da verdade material e do inquisitório, mediante a audição e participação dos interessados e a realização de todas as diligências relevantes, sendo que no âmbito do procedimento de reclamação graciosa subsiste o princípio da limitação dos meios probatórios à forma documental, pelo que não havia lugar à produção de prova testemunhal. Sendo certo ainda que a Administração não está obrigada a realizar todas as diligências requeridas pelos contribuintes, se entender que essas diligências nada poderão acrescentar aos factos já apurados e, como é entendimento jurisprudencial, a preterição de formalidade não determina necessariamente a anulação dos atos impugnados, podendo degradar-se, em certos casos, em formalidade não essencial.

 

Por outro lado, a Autoridade Tributária, em conformidade com o disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, cumpriu o ónus de demonstração dos requisitos da CGAA previstos no artigo 38.º, n.º 2, dessa Lei e fundamentou a decisão da sua aplicação ao caso concreto, nos termos do artigo 63.º, n.º 2 e 3 do CPPT, através das considerações expendidas nos pontos III.2.1 e III.2.2 dos relatórios de inspecção tributária.

 

Em síntese, os negócios jurídicos realizados compreendem um conjunto de acontecimentos interligados entre si, que começam com a constituição de uma sociedade gestora de participações sociais – a F... SGPS – cujos sócios são os Requerentes, seguida da alienação a esta sociedade das acções detidas numa sociedade operacional – a D..., S.A. – pela quantia de € 2.156.000,00. 

 

De entre as alternativas de financiamento da aquisição das acções, por capital próprio ou por endividamento, os Requerentes optaram pela via que lhes proporcionaria maior flexibilidade na mobilização de meios financeiros, levando a F... SGPS a assumir uma dívida perante cada um deles, que veio a ser reembolsada através dos dividendos que a sociedade D..., S.A, passou a distribuir regularmente às suas participadas (F... SGPS, e E... Participações SGPS) e que foram utilizados para a amortização das dívidas aos sócios.

 

Estes elementos evidenciam que a interposição da F... SGPS entre os sócios a sociedade operativa não possui qualquer racionalidade económica, porquanto, do ponto de vista da gestão económica,  nenhuma mudança se verificou nem houve qualquer alargamento a outras áreas de negócio e a elevada dívida da sociedade para com os sócios, que veio a ser saldada através de distribuição de dividendos, retirou à sociedade qualquer capacidade de financiamento de novos investimentos, o que  revela que a actuação dos Requerentes se insere  numa lógica de planeamento fiscal ilegítimo.

 

                Conclui pela improcedência do pedido.

 

2. No seguimento do processo, houve lugar à reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, também destinada à produção de prova testemunhal indicada na petição inicial.

 

 Em alegações, as partes procuraram fixar os factos resultantes da prova documental e testemunhal produzida e, quanto à questão de direito, mantiveram as suas anteriores posições.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 13 de Novembro de 2020.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Admite-se a cumulação de pedidos e a coligação de autores, em virtude de se verificar que a procedência dos pedidos formulados pelos Requerentes depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito (cf. artigo 3.º, n.º 1, do RJAT).

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

 

A)           Em 13 de Agosto de 1998, os Requerentes A... e C... constituíram a sociedade por quotas denominada D..., Lda., matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva ..., com sede na Zona Industrial de ..., ..., ..., ...-... ..., ..., a qual tinha como objecto social a fabricação de produtos a partir de chapas e perfis metálicos, inicialmente com um capital social de € 10.000,00, constituído por duas quotas, de valor nominal de € 5.000,00 cada, detido em partes iguais pelos Requerentes.

B)           Em 27 de Junho de 2007, após um aumento do capital social para € 150.000,00 por incorporação de reservas e, depois, para € 160.000,00, em dinheiro e por incorporação de reservas), a D... foi transformada em sociedade anónima, passando a designar-se G..., S.A.

C)           Neste contexto, o capital social foi repartido pelos Requerentes enquanto sócios fundadores e por mais três novos accionistas, sendo que os Requerentes detinham 15.970 acções cada, no valor nominal de € 5,00, correspondente a € 79.850,00 do capital social, e os três novos accionistas detinham 20 acções cada, no valor nominal de € 5,00, correspondente a € 100,00 do capital social.

D)           Até à data da transformação em sociedade anónima, a D... não distribuía lucros aos seus sócios.

E)            Em 1 de Abril de 2008, os accionistas da D... aceitaram vender 51% do capital social, correspondente a 16.320 acções, à sociedade E...– SGPS, S.A., com sede no ..., Rua..., nº..., ..., ... ...-... … (E... SGPS), pelo montante de € 2.040.000,00;

F)            Os Requerentes mantiveram os restantes 49% do capital social da sociedade D..., correspondendo a cada um 24,5% do capital.

G)           Não obstante a alineação das participações e a perda da maioria do capital, os Requerentes mantiveram a seu cargo a actividade de gestão corrente da D... .

H)           Com a entrada da E... SGPS no capital social da D... e passando aquela a ser a acionista maioritária, ocorreu uma alteração da política de dividendos, passando a D..., desde então, a distribuir dividendos aos accionistas.

I)             Em 23 de Dezembro de 2008, os Requerentes constituírem a sociedade F...– SGPS, S.A. (F... SGPS), com sede na Rua ... nº ..., G, ..., ...-... ..., e com o capital social de € 50.000,00, representado por 50.000 acções, com o valor nominal de € 1,00 cada.

J)            A F... SGPS tinha como objecto social a gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indirecta do exercício de actividades económicas e as actividades acessórias e complementares desse objecto permitidas pela legislação aplicável, e o capital era detido em partes iguais de 50% pelos Requerentes.

K)           Em 23 de Dezembro de 2008, a F... SGPS adquiriu as 15.680 participações sociais (7.840 cada) representativas de 49% do capital social da D... aos Requerentes, pelo preço de € 2.156.000,00, cabendo € 1.078.000,00 a cada um dos alienantes.

L)            Nos respetivos contratos de compra e venda de valores mobiliários – constantes do documento n.º 5 anexo ao PPA e que aqui se dão por inteiramente reproduzidos – é acordado e estabelecido entre os outorgantes, além do mais, o seguinte:

«Cláusula Quinta 

O preço devido pela compra e venda operada pelo presente contrato, será liquidado de acordo com o plano de pagamento a acordar entre as partes.»

M)          Com vista a determinar o justo valor dos ativos e passivos da D... aquando da alienação das ações representativas do seu capital social, à luz dos princípios contabilísticos e fiscais aplicáveis (princípio da plena concorrência), foi solicitada a uma entidade externa uma avaliação daquela sociedade, tendo, por incumbência dos Requerentes A... e C..., cabido à “H..., Lda.” (doravante, H...) efetuar a avaliação da D..., o que esta fez em fevereiro de 2008, com referência a 31 de dezembro de 2007.

N)           Dessa avaliação à D... resultou, de acordo com o método de avaliação dos free cash flows, que a D... valia € 7.432.477,00 e, segundo o método dos capitais próprios, que valia € 5.844.728,00.

O)           O preço acordado para a aquisição de partes sociais da D... não foi de imediato pago aos alienantes, tendo sido reconhecido na contabilidade da F... SGPS um débito em seu favor nesse mesmo montante, o qual foi relevado como um passivo nas contas 26822911 – Outras Operações Acionistas –A... e 26822912 – Outras Operações Acionistas – C... .

P)           Entre 2009 e 2017, por força da alteração de política de distribuição de resultados da D..., a F... SGPS recebeu dividendos da sua participada com uma cadência anual e em montantes aproximados.

Q)           Esta circunstância permitiu que a F... SGPS fosse reembolsando os seus accionistas do preço que lhes era devido pela aquisição das participações sociais na D... .

R)           Nesse período de tempo, a F... SGPS recebeu dividendos da D... no valor de € 982.450,00 e efectuou amortizações do crédito aos sócios no montante de € 1.005.199,20 – sendo que a diferença de € 22.749,00 foi paga com recurso aos fundos que os acionistas tinham entregado à sociedade para a realização das respetivas entradas para o capital social –, conforme a tabela síntese que segue:

 

Ano do pagamento         Dividendos pagos pela D... à F... SGPS (1)             Amortizações do empréstimo aos accionistas da

F... SGPS (2)       Diferença

(1-2)

2009      € 147.000,00       € 33.653,90         € 113.346,10

2010      € 107.800,00       € 237.800,00      - € 130.000,00

2011      € 107.800,00       € 114.000,00      - € 6.200,00

2012      € 102.900,00       € 112.346,10      - € 9.446,10

2013      € 110.250,00       € 110.000,00      € 250,00

2014      € 122.500,00       € 0,00    €122.500,00

2015      € 137.200,00       € 253.140,00      - € 115.940,00

2016      € 147.000,00       € 0,00    € 147.000,00

2017      € 0,00    € 144.259,20       - € 144.259,20

TOTAL   € 982.450,00       € 1.005.199,20   - € 22.749,20

 

S)            Nesse mesmo período de tempo, a F... SGPS não concretizou quaisquer outros investimentos, reconduzindo-se a sua actividade à gestão das participações sociais da D... que adquiriu ao Requerentes.

T)            Os Requerentes A... e B... foram alvo de acção inspectiva externa, de âmbito parcial, credenciada pelas OI2018... e OI2018..., relativamente aos exercícios de 2015 e 2017, em vista à comprovação e verificação das obrigações tributárias em sede de IRS.

U)           Os Requerentes A... e B... foram envolvidos na acção inspectiva por terem apresentado declaração de rendimentos conjunta na condição de cônjuges pertencentes ao mesmo agregado familiar.

V)           O Requerente C... foi alvo de acção inspectiva externa, de âmbito parcial, credenciada pelas OI2018... e OI2018..., relativamente aos exercícios de 2015 e 2017, em vista à comprovação e verificação das obrigações tributárias em sede de IRS.

W)          No âmbito dessa acção inspectiva, foi desencadeado o procedimento de autorização previsto no artigo 63.º do CPPT para aplicação da cláusula geral anti-abuso do artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

X)           Os Relatórios de Inspecção Tributária elaborados no âmbito das acções inspectivas a que se referem as antecedentes alíneas T) e V) justificam a aplicação da cláusula geral anti-abuso nos seguintes termos:

 

Y)            O Relatório de Inspecção Tributária referente aos Requerentes A... e B... formulou a seguinte proposta de correcção:

 

III.3.1 ENQUADRAMENTO FISCAL

 

Tendo-se verificado, de acordo com os factos relatados nos capítulos anteriores deste Relatório, estarem reunidas as condições para aplicação do disposto no artigo 38.º, n.º  2, da LGT e no artigo 63.º do CPPT, conforme já explicado, incumbe à Administração Fiscal considerar ineficaz, no âmbito tributário, a classificação daqueles dividendos como rendimentos não tributados nos termos do artigo 51.º do CIRC, enquadrando-os como distribuição de dividendos a pessoas singulares, tributados nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS.

De facto, a F... SGPS serviu, tão só, como instrumento ou veículo para converter dividendos (tributados em sede de IRS, na esfera dos seus beneficiários) em pagamento de uma dívida aos seus acionistas.

Face ao exposto, a tributação deve ocorrer de acordo com as normas aplicáveis na ausência da tal estrutura, concretamente na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, não se produzindo as vantagens fiscais referidas, tal como dispõe o n.º 2 do artigo 38.º da LG T, Ou seja, deve-se proceder à tributação dos montantes pagos pela G... SA (através daquela sociedade veículo), na esfera dos seus efetivos beneficiários, C... e A... .

Conforme referido no capítulo III. 1.4 deste Relatório, os montantes recebidos da F... SGPS pelo Sujeito Passivo a título de reembolso de dívida, tiveram origem nos montantes (e com valores muito semelhantes) e em datas muito próximas dos dividendos distribuídos pela D... SA à F... SGPS.

Na qualidade de beneficiário dos dividendos pagos pela D... SA através da sociedade veículo utilizada  para o efeito a F... SGPS — concluiu-se que o sujeito passivo A... auferiu rendimentos de capitais enquadráveis na categoria E do IRS em cada um dos anos em questão (2015 e 2017), os quais não foram declarados no Anexo E das respetivas declarações de rendimentos Modelo 3, totalizando os mesmos as seguintes importâncias:

 

Ano       Rendimentos da categoria

e pagos peja G... SA a A...

               

2015      € 126.570,00

2017      € 72.129,60

Total      € 198.699,60

 

Assim sendo, as correções fiscais serão refletidas na esfera jurídico-tributária do titular dos rendimentos de capitais (dividendos) auferidos na qualidade de acionista da G... SA, sendo o montante auferido sujeito a tributação autónoma à taxa de 28% nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 72.º do CIRS (redação dada pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro) nos anos de 2015 e 2017.

 

III.3.2. RESUMO DAS CORREÇÕES AOS RENDIMENTOS DA CATEGORIA E

Em suma, o contribuinte A... deverá ser tributado, nos anos de 2015 e 2017, através da aplicação da tributação autónoma à taxa de 28%, aplicada aos aludidos rendimentos da categoria E não declarados, conforme se descreve:

 

ANO 2015 - IMPOSTO EM FALTA DO AGREGADO FAMILIAR A... e B...

Categoria de rendimentos          Declarados         Correção

                               Rendimentos     Taxa aplicável    Imposto em falta

Cat. E Capitais (tributação autónoma à taxa de 28%)       0,00        126.570,00          28%       35.439,60

 

ANO 2017 - IMPOSTO EM FALTA DO AGREGADO FAMILIAR A... e B...

Categoria de rendimentos          Declarados         Correção

                               Rendimentos     Taxa aplicável    Imposto em falta

Cat. E • Capitais (tributação autónoma à taxa de 28%)   0,00        72.129,60            28%       20.196,29

 

Z)            O Relatório de Inspecção Tributária referente ao Requerente C... formulou a seguinte proposta de correcção:

 

               III.3.1. ENQUADRAMENTO FISCAL

 

Tendo-se verificado, de acordo com os factos relatados nos capítulos anteriores deste Relatório, estarem reunidas as condições para aplicação do disposto no artigo 38.º, n.º 2, da LGT e no artigo 63.º do CPPT conforme já explicado, incumbe à Administração Fiscal considerar ineficaz, no âmbito tributário, a classificação daqueles dividendos como rendimentos não tributados nos termos do artigo 51.º do CIRC, enquadrando-os como distribuição de dividendos a pessoas singulares, tributados nos termos da alínea h) do n.º  2 do artigo 5.º do CIRS.

De facto, a F... SGPS serviu, tão só, como instrumento ou veículo para converter dividendos (tributados em sede de IRS, na esfera dos seus beneficiários) em pagamento de uma dívida aos seus acionistas.

Face ao exposto, a tributação deve ocorrer de acordo com as normas aplicáveis na ausência da tal estrutura, concretamente na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, não se produzindo as vantagens fiscais referidas, tal como dispõe o n.º 2 do artigo 38.º da LGT, Ou seja, deve-se proceder à tributação dos montantes pagos pela G... SA (através daquela sociedade veículo), na esfera dos seus efetivos beneficiários, C... e A... .

Conforme referido no capítulo (III.1.4 deste Relatório, os montantes recebidos da F... SGPS pelo Sujeito Passivo a titula de reembolso de dívida, tiveram origem nos montantes (e com valores muito semelhantes) e em datas muito próximas dos dividendos distribuídos pela G... SA à F... SGPS nos anos de 2014, 2015 e 2016.

Na qualidade de beneficiário dos dividendos pagos pela G... SA através da sociedade veículo utilizada para o efeito — a F... SGPS — concluiu-se que o sujeito passivo C... auferiu rendimentos de capitais enquadráveis na categoria E do IRS em cada um dos anos em questão (2015  e 2017), os quais não foram declarados no Anexo E das respetivas declarações de rendimentos Modelo 3, totalizando os mesmos as seguintes importâncias:

 

Ano       Rendimentos da categoria

e pagos pela G... SA a C...

2015      €126,570100

2017      €72.129,60

Total     

 

                Assim sendo, as correções fiscais serão refletidas na esfera jurídico-tributária do titular dos rendimentos de capitais (dividendos) auferidos na qualidade de acionista da G... SA, sendo o montante auferido sujeito a tributação autónoma à taxa de 28% nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 72.º do CIRS (redação dada pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro) nos anos de 2015 e 2017.

 

III.3.2. RESUMO DAS CORREÇÕES AOS RENDIMNETOS DA CATEGORIA E

Em suma, o contribuinte C... deverá ser tributado, nos anos de 2015 e 2017, através da aplicação da tributação autónoma à taxa de 28%, aplicada aos aludidos rendimentos da categoria E não declarados, conforme se descreve:

 

ANO 2015 - IMPOSTO EM FALTA DO AGREGADO FAMILIAR C...

Categoria de rendimentos          Declarados         Correção

                               Rendimentos     Taxa aplicável    Imposto em falta

Cat. E Capitais

(tributação autónoma à taxa de 28%)     0,00       126.570,00          28%       35.439,60

 

ANO 2017 IMPOSTO EM FALTA DO AGREGADO FAMILIAR C...

Categoria de rendimentos          Declarados         Correção

                               Rendimentos     Taxa aplicável    Imposto em falta

Cat. E - Capitais (tributação autónoma à taxa de 28%)    0,00        72.129,60            28%       20.196,29

               

AA)        Na sequência do procedimento inspectivo a que se refere a antecedente alínea T), os Requerentes A... e B... foram notificados dos actos de liquidação de IRS n.os 2019 ... e 2019 ... e respectivos actos de liquidação de juros compensatórios n.os2019 ... e 2019 ...e 2019 ... e 2019 ... e de acerto de contas n.os 2019 ... e 2019 ..., relativos aos anos de 2015 e 2017, dos quais resultou um valor global a pagar de € 62.351,77.

BB)         Em data concretamente não apurada, os Requerentes A... e B... procederam ao pagamento integral do referido montante de € 62.351,77.

CC)         Na sequência do procedimento inspectivo a que se refere a antecedente alínea V), o Requerente C... foi notificado dos actos de liquidação de IRS n.os 2019... e 2019 ... e respectivos actos de liquidação de juros compensatórios n.os 2019 ... e 2019 ... e 2019 ... e de acerto de contas n.os 2019 ... e 2019 ..., relativos aos anos de 2015 e 2017, dos quais resultou um valor global a pagar de € 63.119,24.

DD)        Em data concretamente não apurada, o Requerente C... procedeu ao pagamento integral do referido montante de € 63.119,24.

EE)         Os Requerentes A... e B... apresentaram reclamação graciosa contra os actos de liquidação adicional que foi indeferida por despacho de 27 de Julho de 2020, do chefe de divisão da Direcção de Finanças de ..., notificado por ofício datado do dia imediato enviado por carta registada.

FF)         O Requerente C... apresentou reclamação graciosa contra os actos de liquidação adicional que foi indeferida por despacho de 22 de Julho de 2020, do chefe de divisão da Direcção de Finanças de ..., notificado por ofício datado do dia imediato enviado por carta registada.

GG)       Na fundamentação dos aludidos despachos de indeferimento das reclamações graciosas – similares nos segmentos que importa considerar neste processo – consta, além do mais, o seguinte:

«(…)

V – ANÁLISE DO PEDIDO E PARECER

Relatados, sucintamente, os factos subjacentes às correções promovidas pelos serviços de inspeção tributária, que originaram as liquidações de IRS respeitantes aos anos de 2015 e 2017, e atendendo à matéria posta em crise na p.i. — aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso (CGAA), afigurou-se-nos indispensável solicitar aos serviços de inspeção tributária da Direção de Finanças de ..., informação sobre a Matéria de Facto, cujo teor se anexa à presente informação, fazendo desta, parte integrante.

Tal como referido na mencionada informação sobre a matéria de Facto, no âmbito da ação inspetiva foram efetuadas correções decorrentes da aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso (CGAA), que resultaram no apuramento de IRS em falta da categoria E, incidente sobre dividendos não declarados pelo Reclamante e auferidos da sociedade G..., SA, bem como, efetuadas outras correções (em 2015, rendimentos da categoria A não declarado).

Porém, o sujeito passivo só vem contestar as correções decorrentes da aplicação da CGAA, apesar de solicitar a anulação total das liquidações em apreço.

No que respeita às alegações invocadas, e relativas à aplicação da CGAA remetemos para a informação sobre a matéria de facto prestada pela Divisão de Inspeção Tributária II da Direção de Finanças de ..., de cujo teor concordamos na íntegra, não nos parecendo haver mais nada a acrescentar, não merecendo a mesma quaisquer reparos.

Ao contribuinte competirá o ónus de provar a realidade daquelas operações, não lhe bastando criar dúvida da sua veracidade.

O Reclamante não logrou carrear com a sua petição os documentos probatórios das suas alegações, que possam contrariar os factos subjacentes às correções promovidas pelos serviços de inspeção tributária.

Ora, constatamos que, agora em sede de reclamação graciosa, o Reclamante não logrou carrear com a sua petição os documentos probatórios das suas alegações, que possam contrariar os factos subjacentes às correções promovidas pelos serviços de inspeção tributária, que permitam à Administração Tributária uma nova abordagem da situação em apreço.

A reclamação graciosa feita pelo contribuinte, destina-se a obter uma reanálise de uma certa situação pela Administração Tributária; é a via normal de resolução de um litígio entre o sujeito passivo e a Administração Tributária.

Estabelece o n.º 1 do art. 74.º da LGT a regra de “quem alega deve provar” fazendo recair sobre os interessados o ónus de prova dos factos que interessam à sustentação da sua posição, o que equivale a dizer que havendo aqui um ónus de prova dos factos, ele recai sobre o interessado a quem aproveita.

Consequentemente, os factos também só devem ser considerados provados quando forem determinados com uma certeza absoluta, razão pela qual a não prestação de prova ou a sua prestação insuficiente não poderá deixar de influenciar o mérito da pretensão.

De acordo com o disposto na al. e) do art. 69.º do CPPT, no procedimento de reclamação graciosa os meios probatórios limitam-se à forma documental, pelo que aqui, nesta sede, não tem qualquer pertinência a inquirição de quaisquer testemunhas, como é requerido pelo reclamante.

E mesmo que o fosse permitido, e atentos à matéria que se encontra em apreciação, parece-nos que, a prova testemunhal por si só, desacompanhada de outros elementos de prova, designadamente documentais, dificilmente convenceria a Administração Tributária da realidade das operações elou da sua dimensão.

Parece-nos, assim, como já referimos, não nos merecerem quaisquer reparos as correções promovidas pelos serviços de inspeção tributária, pelo que deverá o pedido ser de indeferir.

Da Ilegalidade da Liquidação de Juros Compensatórios:

Dispõe o n.º 1 do art. 35.º da LGT “São devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária.”

Ora, como acima ficou provado, houve, por culpa imputável ao sujeito passivo, falta de entrega, nos Cofres do Estado, do imposto que deveria ter sido retido aos pagamentos efetuados aos acionistas da Reclamante a título de dividendos.

Deste modo, parece-nos que a liquidação se mostra legal, sendo os juros compensatórios devidos.

Do Direito a Juros Indemnizatórios

O art. 43.º da Lei Geral Tributária (LGT) define os pressupostos do direito a juros indemnizatórios a favor contribuinte, designadamente no seu n.º 1 que determina “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

Ou seja, este dispositivo consagra 4 requisitos deste direito a juros indemnizatórios:

A existência de um erro num ato de liquidação de um tributo;

Que o erro seja imputável aos serviços;

Que a existência desse erro seja determinada em processo de reclamação graciosa ou impugnação judicial;

Que desse erro tenha resultado o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

Ora, como referido, em sede de reclamação graciosa concluiu-se pela legalidade das liquidações adicionais de IRS respeitantes aos anos de 2015 e 2017, ora reclamadas, porquanto o Sujeito Passivo, quer no âmbito da ação inspetiva quer nesta sede, não faz alusão a quaisquer novos elementos factuais ou jurídicos-tributários que possam condicionar a Administração Tributária a uma nova abordagem da questão em apreço.

É, assim, nosso entendimento de que não se encontram reunidos os pressupostos consagrados no referido artigo 43.º da LGT que permitam o reconhecimento ao direito a juros indemnizatórios.

(…)»

HH)        O pedido arbitral deu entrada em 18 de Agosto de 2018.

 

Factos não provados

 

                O Tribunal não considerou provado que a constituição da F... SGPS tivesse tido em vista organizar a actividade dos accionistas da D..., aqui Requerentes, através de uma estrutura empresarial de cúpula que permitisse a diversificação do negócio e a realização de novos investimentos e que a criação dessa empresa tivesse sido determinada essencialmente por razões empresariais e económicas.

 

Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a composição da lide processual.

 

Motivação da matéria de facto

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto com a resposta, designadamente, nos Relatórios de Inspecção Tributária, e na prova testemunhal produzida em audiência.

 

As testemunhas I..., revisor oficial de contas, e J..., administrador da E... SGPS, referiram, em audiência, que a constituição pelos Requerentes da F... teve em vista proteger a sua posição societária na D... após a alienação de 49% do capital social desta sociedade, mediante a detenção conjunta por uma sociedade gestora de participações sociais das partes de capital individuais (24,5%) e que havia intenção de avançar para investimentos noutras empresas, mencionando genericamente o interesse na entrada de capital na empresa K..., como sede em Moçambique. A testemunha L..., administrador da “M..., SA” e director das sociedades “N..., Lda.” e “O..., Lda.”, pertencentes ao mesmo grupo societário, considerou que esteve igualmente em equação a aquisição de participações sociais destas empresas, por parte da F... SGPS e da E... SGPS. A este propósito, a testemunha referiu que foi realizada uma auditoria a essas empresas, sendo que foi junto ao pedido arbitral, como documento n.º 4, um relatório elaborado pela consultora “P..., Lda.”, que se destinou à verificação contabilística das demonstrações financeiras das referidas sociedades “M...”, “N...” e “O...”.

 

No entanto, nenhum destes possíveis negócios foram concretizados e não foram apresentados pelos Requerentes quaisquer elementos documentais que permitam esclarecer os contornos específicos dos investimentos que se pretendiam realizar.

 

E o certo é que, à data em que se iniciaram os procedimentos de inspecção tributária (em 15 e 16 de Novembro de 2018), cerca de dez anos volvidos após a constituição da F... SGPS, esta sociedade não adquiriu quaisquer outras participações nem teve qualquer actividade económica relevante, limitando-se a deter as participações sociais na D... que lhes foram alienadas pelos Requerentes e passaram a ser reconhecidas como débito na sua contabilidade.

 

Sobre esta matéria, o Tribunal terá de partir de presunções judiciais que resultem das diversas operações que se encontram documentadas, relevando, entre outras, as seguintes circunstâncias: (a) os Requerentes constituíram a sociedade por quotas denominada D... com um capital social distribuído por duas quotas em partes iguais; (b) em 2008, após a transformação em sociedade anónima, os Requerentes venderam 51% do capital social da D... à sociedade E... SGPS, S.A.; (c) no mesmo ano, os Requerentes constituírem a sociedade F... SGPS e, de seguida, alienaram a essa sociedade as participações sociais que detinham na D..., representativas de 49% do capital social; (d) a transmissão das acções foi reconhecida, na contabilidade da sociedade F... SGPS, como um crédito a favor dos alienantes das participações sociais; (e) a F... SGPS não concretizou quaisquer outros investimentos, nem adquiriu outras participações sociais; (f) entre 2009 e 2017, a D... distribuiu dividendos à F... SGPS, em parte, a título de reembolso do crédito pela alienação das acções.

 

Matéria de direito

 

Delimitação do objecto do processo

5. No pedido arbitral, começa-se por invocar a violação dos princípios da verdade material e do inquisitório com fundamento na não admissão da produção de prova testemunhal, que havia sido requerida pelos sujeitos passivos no âmbito do procedimento tributário de reclamação graciosa, e que se lhes afigurava ser útil para a descoberta da verdade material e à correcta aplicação do direito, especialmente em vista a determinar os objectivos que estiveram na base da constituição da F... SGPS.

 

Importa referir, quanto a este aspecto, que o âmbito de competência dos tribunais arbitrais, na arbitragem tributária, é definido por referência à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte ou pagamento por conta ou à declaração de legalidade de actos de fixação da matéria tributável que não dê origem a liquidação (artigo 2.º, n.º 1, do RJAT). Pelo que, tendo sido deduzido um pedido de constituição de tribunal arbitral para a apreciação da legalidade de um acto de liquidação, o objecto do processo é esse próprio acto tributário (neste sentido, o acórdão do STA de 18 de Maio de 2011, Processo n.º 0156/11, e, na doutrina, cfr. SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRINDADE, Contencioso Tributário, vol II, Coimbra, 2017, pág. 434).

 

A reclamação graciosa precedentemente deduzida, nos termos do artigo 70.º do CPPT, constituindo uma garantia procedimental do contribuinte, corresponde a um procedimento de segundo grau, permitindo que a Administração possa ainda tomar uma posição definitiva sobre a questão antes de o interessado poder suscitar um litígio judicial. E nesse sentido, o efeito útil e relevante do indeferimento da reclamação graciosa traduz-se na manutenção na ordem jurídica do acto tributário de liquidação.

 

Nestes termos, os vícios próprios da decisão de reclamação graciosa, enquanto procedimento de segundo grau, não são, em si, arbitráveis, sendo que tal decisão apenas é susceptível de ser anulada como mera consequência da declaração de ilegalidade do acto tributário de liquidação, que constitui o objecto do pedido arbitral.

 

Não há, assim, que tomar conhecimento do apontado vício de violação dos princípios da verdade material e do inquisitório.

 

Vício de falta de fundamentação

 

6. No pedido arbitral, os Requerentes alegam que os actos de liquidação impugnados enfermam de vício de falta de fundamentação da decisão de aplicação da CGAA, em especial, pela falta de demonstração de que a celebração ou prática dos negócios ou actos jurídicos foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos.

 

Como é entendimento jurisprudencial corrente, a fundamentação do acto tributário é um conceito relativo que varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto, sendo que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do acto decidiu num certo sentido e não de forma diferente.

 

No caso vertente, como resulta da matéria de facto dada como assente (alínea X)), os relatórios de inspecção tributária não só descrevem circunstanciadamente os factos atinentes à constituição das sociedades em que os Requerentes tiveram participação (ponto III.1.1) e as diversas operações de transformação das sociedades, alienação de capital e fluxo financeiro entre as sociedades (ponto III.1.2. a ponto III.1.5), como também dedicam um capítulo próprio à demonstração dos motivos que justificam a aplicação da cláusula geral anti-abuso, mediante a verificação dos diversos requisitos mencionados no artigo 63.º, n.º 3, alíneas a) e b), do CPPT (ponto III.3.).

 

E, assim, os relatórios descrevem desenvolvidamente os negócios jurídicos realizados bem como a distribuição de dividendos efectuada pela D... à F..., SGPS, que foi totalmente utilizada para o pagamento da dívida resultante da alienação àquela entidade das participações sociais que os Requerentes detinham na D....

 

Independentemente da validade dos argumentos aduzidos, de que se tratará adiante, os relatórios de inspecção tributária contêm uma análise detalhada das operações que terão visado, por meios artificiosos, a obtenção de vantagens fiscais, vindo a formular uma proposta de correcção tributária com base no adequado enquadramento fiscal na cláusula geral anti-abuso (ponto III.3.)

 

 Não podendo dizer-se, de nenhum modo, que os interessados se encontraram impossibilitados de discutir as soluções propostas e de rebater a factualidade descrita ou que tenham sequer ficado impedidos de aceitar ou reagir processualmente contra os actos tributários.

 

Improcede, por conseguinte, o indicado vício de forma por falta de fundamentação.

 

Cláusula geral anti-abuso

 

7. A disposição do artigo 38.º, n.º 2, da LGT declara como “ineficazes, no âmbito tributário, os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”. E, nesse caso, determina que a tributação se efectue de acordo com as normas que seriam aplicáveis se esses meios não tivessem sido utilizados, não se produzindo as vantagens fiscais que se pretendia obter.

 

A fim de delimitarmos o arco operativo da cláusula geral anti-abuso no plano jurídico-tributário, há, desde logo, que precisar alguns conceitos terminológicos.

 

Nessa perspetiva e na esteira de Nuno Sá Gomes, importa começar por ter presente que a «racionalidade da gestão das actividades económicas, pressupõe que, em princípio, os agentes económicos devam optimizar os respectivos custos comerciais, industriais, financeiros e fiscais. Sendo assim, a boa gestão fiscal, supõe, obviamente, a minimização dos custos fiscais, que a doutrina designa por economia fiscal ou poupança fiscal, sem prejuízo do rigoroso cumprimento das leis tributárias pelos agentes económicos. 

De resto, a economia fiscal, a poupança fiscal é, frequentemente, querida explicitamente ou sugerida pelo próprio legislador fiscal, ao estabelecer normas negativas da tributação, consagrando, quer desagravamentos fiscais estruturais, (…), quer ainda, consagrando benefícios fiscais excepcionais, estáticos ou dinâmicos, dirigidos, portanto, quer a situações já consumadas, quer a situações futuras que se prendem fomentar (…).

                Em todos estes casos, a economia fiscal, a poupança fiscal, é expressa ou implicitamente, querida, desejada, ou, mesmo, sugerida pelo próprio legislador fiscal, ao prever e regular o próprio desagravamento fiscal.

                Nestes casos, os actos e negócios da economia fiscal têm, portanto, lugar intra legem e inserem-se no que a doutrina fiscal designa por planificação fiscal (Tax planning). E nesta medida estamos, obviamente, perante actos ou negócios jurídicos lícitos.

                Mas a economia fiscal, a poupança fiscal pode ocorrer noutros termos, designadamente, mediante negócios jurídicos não previstos nas normas de incidência fiscal ou mediante práticas contabilísticas permitidas tecnicamente mas mais favoráveis aos contribuintes. 

                (…) Trata-se, portanto, de economia fiscal, de poupança fiscal que ocorre “extra legem” isto é, relativamente a factos ou situações não previstos pela lei fiscal e que a doutrina designa por elisão fiscal. É o que a doutrina saxónica designa frequentemente por tax avoidance. (…)

                 Mas, em princípio, estes negócios são também lícitos.

                Note-se, porém, a este propósito, que entre os negócios fiscalmente menos onerosos elisivos, isto é, que tutelando os interesses dos contribuintes, afastam a aplicação das leis de imposto, ainda haverá que autonomizar os negócios que a doutrina e a própria lei fiscal qualificam de anómalos ou abusivo, sendo objecto de leis anti-abuso, atenta a gravidade da perda de receitas a que dão lugar (…).

                Finalmente, a economia fiscal, a poupança fiscal, pode ser conseguida pelos contribuintes mediante actos ilícitos, actuando pois contra legem, como sucede, v.g. nos negócios que actuam na economia clandestina ou paralela, e nas práticas fiscais fraudulentas (…).

                Nestes casos, estamos perante verdadeira e própria evasão fiscal ilícita que a doutrina fiscal saxónica designa por tax evasion.

                Efectivamente, a evasão fiscal é, obviamente, ilícita, infringindo frontalmente a lei fiscal.

                (…)

                Em resumo: a poupança fiscal pode ocorrer intra legem (planificação fiscal), extra legem (elisão fiscal), ou contra legem (evasão fiscal) constituindo esta última sempre acto ilícito mas nem sempre infracção fiscal. E pode suceder ainda que os actos praticados pelos contribuintes sejam antijurídicos mas ilícitos como sucede quanto aos actos que sejam objecto de leis fiscais especiais antiabuso (…)» (Manual de Direito Fiscal, Volume II, 9.ª edição, 3.ª reimpressão, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 2000, págs. 101 a 104).

               

                Dito isto, analisemos agora mais de perto a norma do n.º 2 do artigo 38.º da LGT que consagra a cláusula geral anti-abuso, a qual foi introduzida – por aditamento do artigo 32.º-A ao Código de Processo Tributário – no sistema fiscal português pelo artigo 51.º, n.º 7, da Lei n.º 87-B/98, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 1999. 

               

Esta é uma norma que «tem em vista uma adequada conciliação do princípio da segurança com o interesse público de uma justa distribuição dos encargos tributários», por via do combate, em nome do princípio da justiça e da igualdade, da «contradição entre as formas jurídicas adoptadas pelas partes e os fins económicos dos contratos». Com efeito, se «um acto ou negócio jurídico foram celebrados com puros fins de elisão fiscal, alheios à sua substância económica normal, justifica-se a sua irrelevância ou desconsideração para efeitos fiscais»; nesse caso, cessa «então a presunção da conformidade do negócio ou acto jurídico aos fins económicos que suscitaram o desenho das normas de incidência tributária» (sobre todos estes aspectos, cfr. António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária Anotada, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 2001, pág. 186).

               

Atento o escopo da norma, há pois que delimitar corretamente o seu campo aplicativo, começando por salientar que a mesma «não se aplica obviamente aos casos em que tenha sido o próprio legislador a pretender a poupança fiscal, como é o caso das deduções, abatimentos, incentivos e outros benefícios fiscais. Pressupõe, antes uma actuação contra os fins essenciais do ordenamento jurídico-tributário» (idem, pág. 187).

 

Por isso, a aplicação da cláusula anti-abuso está, nuclearmente, circunscrita aos casos em que se verifica o «carácter artificioso da selecção de um determinado meio jurídico para obter um resultado normalmente atingido pela utilização de outro meio» e «aos casos em que o negócio visar única ou principalmente fins de elisão fiscal, não se verificando quando se prove que não foram fiscais os fins determinantes dos actos ou contratos, mesmo quando destes resulte a redução das receitas a que, de outro modo, a Fazenda Pública teria direito» (idem, pág. 188). Todavia, como sublinha António Lima Guerreiro, «na caracterização dos objectivos dos actos ou contratos, não é também à motivação psicológica das partes – de muito difícil determinação – mas ao carácter anómalo ou não para os fins tidos em vista pelas partes das formas jurídicas utilizadas que se deve atender.

 

A referência à expressão “objectivo” dos actos ou contratos objecto da aplicação da norma anti-abuso limita de qualquer modo a aplicação da norma (…) aos casos em que o negócio evidencie o propósito de defraudar os interesses da Fazenda nacional. Não é necessária para a aplicação da norma a indagação dos motivos pessoais das partes, bastando a demonstração dos fins do negócio de acordo com a interpretação das suas cláusulas, mas obviamente a aplicação da norma (…) depende necessariamente de um juízo de facto sobre a vontade efectiva dos sujeitos passivos do imposto, como se manifesta nos documentos do acto ou contrato» (ibidem).    

 

Fazendo agora a exegese hermenêutica da norma, segundo assinala SÉRGIO VASQUES, a cláusula geral anti-abuso consagrada na LGT é composta de três elementos essenciais. “Em primeiro lugar exige-se a prática de acto ou negócio artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, exige-se o objectivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objectivos económicos reais. Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados se tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e práticas negociais mais comuns” (Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2018, pág. 369).

 

O sentido geral da norma é, nestes termos, o de permitir a desqualificação para efeitos fiscais de um qualquer acto ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte com o único, ou principal, objectivo de obtenção de uma vantagem fiscal, que possa consubstanciar uma fraude à lei fiscal. O efeito jurídico que resulta do funcionamento da cláusula anti-abuso é o de considerar os actos como praticados de acordo com o padrão normal do comércio jurídico para obter o mesmo resultado económico, determinando-se a obrigação tributária em função dos actos equivalentes que pudessem ser praticados.

 

Resulta de todas as precedentes considerações, que a cláusula geral anti-abuso se destina a eliminar as vantagens fiscais ilegítimas obtidas na esfera jurídica pelo contribuinte através de actos ou negócios abusivos praticados com o intuito de obviar ao pagamento do imposto que seria devido caso se tivesse recorrido às formas negociais comuns.  

 

A aplicação da cláusula anti-abuso depende, por outro lado, de uma apreciação casuística, havendo que ponderar a actuação concreta imputável ao sujeito passivo em função das circunstâncias de facto que possam ser tidas como assentes (cfr. acórdão do TCA Sul de 15 de fevereiro de 2011, Processo n.º 04255/10, e acórdão arbitral proferido no Processo n.º 377/2014).

 

No caso vertente, a vantagem fiscal ilícita que justificou a aplicação da disposição anti-abuso traduziu-se na evitação de pagamento de imposto relativamente à distribuição de dividendos a dois sócios, que, normalmente, seria objecto de tributação como rendimentos de capitais, nos termos da alínea h) do n.º 2 artigo 5.º do Código do IRS, e que foi alcançada através de um conjunto sucessivo de operações societárias que se encontram assim descritas.

 

Em 1998, os Requerentes constituíram a sociedade por quotas denominada D..., Lda., com um capital social inicial de € 10.000,00, constituído por duas quotas por eles detidas em partes iguais.

 

Em 2007, após um aumento do capital social, a D... foi transformada em sociedade anónima, passando a designar-se G..., S.A., e, nesse contexto, o capital social foi repartido pelos Requerentes e mais três novos accionistas que passaram a deter um valor residual do capital social.

 

Em 2008, os Requerentes venderam 51% do capital social da D... à sociedade E... – SGPS, S.A., pelo montante de € 2.040.000,00, mantendo a actividade de gestão corrente da D... .

 

Em 23 de Dezembro de 2008, os Requerentes constituíram a sociedade F... SGPS, que tinha como objecto social a gestão de participações sociais noutras sociedades, e no mesmo dia alienaram a essa sociedade as participações sociais que detinham na D..., representativas de 49% do capital social, pelo preço de € 2.156.000,00, cabendo € 1.078.000,00 a cada um dos alienantes.

 

Na sequência dessa operação, foi reconhecido, na contabilidade da sociedade F... SGPS um crédito a favor dos alienantes das participações sociais da D..., correspondente aos valores da transmissão de acções.

 

O valor por ação que foi pago pela F... SGPS (€ 137,50) foi superior em € 12,50/ação ao valor por ação que foi pago pela E...– SGPS, S.A. (€ 125,00), sendo que ambos os negócios ocorreram no mesmo ano e não foi demonstrada a ocorrência de qualquer evento na D... suscetível de justificar essa diferença de preço.

 

Entre 2009 e 2017, a D... distribuiu dividendos à F... SGPS que foram totalmente utilizados para o reembolso do débito gerado com a aquisição das participações sociais que os Requerentes detinham na D... .

 

Nesse mesmo período de tempo, a F... SGPS não concretizou quaisquer outros investimentos, limitando-se a deter as participações sociais que adquiriu aos seus próprios sócios fundadores.

 

8. A referência a actos ou negócios jurídicos que podem ser tidos como ineficazes por aplicação da cláusula anti-abuso deve ser entendida em sentido amplo, abrangendo quaisquer esquemas negociais que possam considerar-se finalisticamente relacionados e que, por ausência de racionalidade económica, devam ser tidos como visando obviar ao pagamento do imposto que normalmente seria devido. Ademais, as formas negociais que tenham sido utilizadas devem ser aferidas em termos objectivos, a partir da substância económica das transações segundo um padrão de razoabilidade económica e comercial.

 

Não podendo perder-se de vista que o sentido geral da Diretiva Antielisião Fiscal (UE) 2016/1164 do Conselho, de 12 de julho de 2016, que sugere que uma montagem (ou série de montagens) será considerada como não genuína na medida em que não coloque em prática um propósito comercial válido baseado em razões que reflictam a realidade económica.

 

                 No caso, as operações de modificação da titularidade do capital social levadas a efeito e a constituição de um crédito a favor dos accionistas da D..., aqui Requerentes, não revelam um objectivo suficientemente definido e justificado do ponto de vista financeiro, nem encontram uma explicação bastante na alegada pretensão de diversificação do negócio e de realização de novos investimentos que, aliás, no espaço temporal de dez anos nunca chegaram a ocorrer.

 

De facto, a F... SGPS detinha apenas 49% das acções da D... que lhe foram alienadas pelos Requerentes e não adquiriu quaisquer outras participações sociais e não manteve qualquer actividade económica substantiva.

 

O único efeito prático da constituição da F... SGPS foi, efetivamente, a interposição desta entre a D... e os Requerentes, passando a não haver tributação no momento do pagamento dos dividendos pela D... à F... SGPS (artigo 51.º do CIRC) e, tratando-se, formalmente, de pagamento de dívida contraída pela F... SPGS perante os seus acionistas aquando da aquisição das participações sociais que estes detinham na D...– e que aquela vai pagando ao longo dos anos essencialmente com os dividendos provenientes da D...– não há tributação em sede de IRS no momento em que a F... SGPS paga aos Requerentes. Acresce que a F... SGPS não tinha colaboradores nem nunca teve outro ativo que não fosse as participações na D... que lhes foram

 transmitidas pelos Requerentes. Assim, a figura jurídica da SGPS

 foi artificiosamente desfuncionalizada, sendo manifesta a dissociação face à motivação normativa subjacente à introdução das SGPS no nosso ordenamento jurídico, patenteada no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de dezembro, onde se afirma que se visou "facilitar e incentivar a criação de grupos económicos, enquanto instrumentos adequados a contribuir para o fortalecimento do tecido empresarial português" e "proporcionar aos empresários um quadro jurídico que lhes permita reunir numa sociedade as suas participações sociais, em ordem à sua gestão centralizada e especializada".

 

Assistiu-se, nestes termos, a uma série de transações por passos (“step transaction”) com um efeito consequencial que é o de permitir que os acionistas da D..., aqui Requerentes, passassem a deter um crédito resultante da alienação de acções que lhes assegura a possibilidade de auferirem rendimentos a título de pagamento desse mesmo crédito que, na realidade, consubstanciam distribuição de dividendos. A ausência de tributação, decorrente da transformação de rendimentos de capitais em pagamento de um crédito, compara com a que normalmente ocorreria sobre os dividendos na ausência da SGPS: tributação em IRS por retenção na fonte à taxa de 28%, com opção pelo englobamento.

 

Subsistem, em todo este contexto, factos suficientes para considerar que o conjunto articulado de operações, não tendo tido um objectivo que se torne justificável no plano da racionalidade económica e da actividade empresarial, teve o único propósito de obstar à tributação em sede de IRS dos rendimentos de capitais, havendo fundamento bastante para a declaração de ineficácia dos negócios jurídicos em aplicação da cláusula geral anti-abuso a que se refere o artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

 

                Atento o exposto, conclui-se pela legalidade da actuação da AT ao aplicar, no caso, a cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT e, consequentemente, pela legalidade quer dos actos de liquidação adicional de IRS controvertidos, quer dos actos de indeferimento das reclamações graciosas que os mantiveram.

 

                Juros compensatórios

               

9. Em face da não anulação das liquidações adicionais de IRS impugnadas, fica, naturalmente, prejudicada a pretendida declaração de nulidade das liquidações dos correspondentes juros compensatórios.

 

Contudo, impõe-se apreciar, especificamente, a questão suscitada pelos Requerentes atinente à falta dos pressupostos próprios, previstos no artigo 35.º, n.º 1, da LGT e no artigo 91.º, n.º 1, do CIRS, para a liquidação dos juros compensatórios, tendo em conta que o retardamento da liquidação tem que ser imputável ao contribuinte.

 

O artigo 35.º, n.º 1, da LGT estatui que “são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.

 

Em face desta disposição legal, tem sido entendido pela jurisprudência que “a responsabilidade por juros compensatórios, tendo a natureza de uma reparação civil, depende do nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a actuação do contribuinte e da possibilidade de formular um juízo de censura a título de dolo ou negligência a essa actuação” (acórdão do STA de 19 de Novembro de 2008, Processo n.º 0576/08), pelo que “para que o sujeito passivo deva juros compensatórios se exige um nexo de causalidade adequada entre o seu comportamento e a falta de recebimento pontual de prestação, sendo que a conduta do sujeito passivo deve ser censurável a título de dolo ou negligência, devendo, em todo o caso, indagar-se se a culpa está ou não excluída em concreto” (acórdão do STA de 22 de Janeiro de 2014, Processo n.º 01490/13), pois “se a imputabilidade exigida para responsabilização pelo pagamento desse tipo de juros depende da existência de culpa por parte do contribuinte, esse juízo só pode ser aferido casuisticamente pelo julgador” (acórdão do STA de 6 d Maio de 2015, Processo n.º 0196/15).

 

Sustentam os Requerentes que «não deverá ser imputada responsabilidade por juros compensatórios quando o atraso na liquidação ou a obtenção de reembolso indevido sejam provocados pela conduta do contribuinte e seja errónea a sua posição, mas ele tenha actuado de boa-fé (o que, de acordo com o n.º 2 do artigo 59.º da LGT, se deverá presumir) e o erro seja desculpável – o que se verifica, in casu. E, quanto ao mais, resulta claro que a posição dos Requerentes é sustentada em divergências, válidas e fundamentadas, quer de facto, quer de direito, relativamente à análise empreendida pela AT; divergências às quais não podem renunciar e que fundamentando o seu comportamento têm como consequência que não possa ser formulado qualquer juízo de censurabilidade a título de dolo ou negligência contra os mesmos.»

 

Atento o acima exposto, é manifesto que, contrariamente ao alegado pelos Requerentes, impõe-se reconhecer a legalidade da liquidação dos juros compensatórios, uma vez que, em face dos factos dados como provados, verifica-se in casu o nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a atuação dos Requerentes e a censurabilidade, a título de dolo, da atuação perpetrada.

 

Com efeito, os Requerentes gizaram e intervieram ativa e decisivamente num conjunto de operações que se destinou, como se viu, a evitar, com abuso das formas jurídicas, a tributação em IRS, por retenção na fonte, de rendimentos de dividendos, que seria devida na ausência dessas operações, actuação que acima se reputou como abusiva, em conformidade com o disposto no artigo 38.º, n.º 2, da LGT. Deste modo, não se pode, de modo algum, afirmar que estamos simplesmente perante uma divergência de critérios entre a Administração Fiscal e o contribuinte relativamente à qualificação de determinada situação tributária ou que ocorreu um qualquer erro desculpável. Na verdade, no caso concreto, não está em causa uma simples divergência de interpretação com a Administração Tributária sobre o sentido de particulares enunciados normativos tributários. Pelo contrário, do que se trata é de avaliar a actuação dos Requerentes enquanto conduta específica e intencionalmente dirigida a evitar o cumprimento das obrigações fiscais exigíveis de tributação por retenção na fonte de rendimentos de capitais, o que, como actuação abusiva que é, envolve inelutavelmente um juízo de censura quanto à conduta assim adoptada.

 

Nestes termos, atenta a situação fáctica objecto dos autos, que envolve, em consequência da aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, um juízo de censura sobre a conduta dolosa dos Requerentes, afiguram-se legais as liquidações de juros compensatórios impugnadas.

 

Reembolso do imposto e dos juros compensatórios indevidamente pagos e pagamento de juros indemnizatórios

 

10. Sendo de julgar improcedente o pedido arbitral, fica prejudicado o conhecimento dos pedidos acessórios de condenação no reembolso do imposto e dos juros compensatórios pagos e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

III – Decisão

Termos em que se decide:

a)            Julgar improcedente o pedido arbitral e manter os actos de liquidação impugnados, bem como as decisões de indeferimento das reclamações graciosas;

b)           Julgar prejudicado o conhecimento dos pedidos acessórios de condenação no reembolso do imposto e dos juros compensatórios pagos e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

Valor da causa

 

Os Requerentes indicaram como valor da causa o montante de € 125.471,01, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor das liquidações a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, que fica a cargo dos Requerentes.

 

Notifique.

 

Lisboa, 9 de Abril de 2021,

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

Ricardo Rodrigues Pereira

 

O Árbitro vogal

A. Sérgio de Matos