Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 400/2020-T
Data da decisão: 2021-01-12  IUC  
Valor do pedido: € 45.066,84
Tema: IUC – artigo 3.º, n.º 1 - incidência subjectiva; exigibilidade do imposto; pronúncia indevida
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Sumário

I – Tendo o Tribunal Central Administrativo Sul determinado a anulação de decisão arbitral por pronúncia indevida, a Requerente poderá sindicar, em nova ação arbitral, atos de liquidação, por aplicação analógica do disposto no artigo 24.º, n.º 3 do RJAT.

II - O artigo 3.º, n.º 1 do CIUC consagra uma presunção ilidível.

III - Uma factura é um elemento probatório demonstrativo da aquisição da propriedade de um veículo por uma terceira entidade, adequado a permitir ilidir a presunção prevista no CIUC.

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Nuno Cunha Rodrigues, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 26.10.2020, decide nos termos que seguem:

I. Relatório:

1. A..., Lda., CIPC..., com sede no ..., ...–..., ...-... Oeiras, apresentou, em 07/08/2020, um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com a alínea a) do art. 99.º do CPPT, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida AT).

2. A Requerente pede a declaração de ilegalidade dos actos de indeferimento expresso das reclamações graciosas n.º ...2014...; n.º ...2014... e n.º ...2014... – todas notificadas à Requerente a 31 de Janeiro de 2014) por si apresentadas relativas aos actos de liquidação oficiosos de Imposto Único de Circulação (IUC) referentes aos períodos de 2009 a 2013, no valor global de €45.066,84.

3. A Requerente solicitou a cumulação de pedidos, ao abrigo do regime previsto no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, dada a identidade factual e jurídica em relação às três decisões de indeferimento expresso nas reclamações graciosas e, consequentemente, em relação às liquidações subjacentes às mesmas.

4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD a 10-08-2020 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nessa mesma data.

5. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o ora signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

6. Em 10-08-2020 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

7. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 26-10-2020.

8. Por despacho de 2 de dezembro de 2020, e em aplicação dos princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária), foram as partes notificadas da dispensa da reunião do tribunal arbitral a que se refere o artigo 18.º desse Regime e do prosseguimento do processo para apresentarem alegações escritas facultativas pelo prazo sucessivo de dez dias.

9. As partes apresentaram alegações escritas, de facto e de direito, nas quais reiteraram as posições anteriormente assumidas nos respetivos articulados.

10. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

11. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

12. O processo não enferma de nulidades e não se suscita qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

II. Do pedido da Requerente:

A Requerente solicita a declaração de ilegalidade dos actos de indeferimento expresso das reclamações graciosas n.ºs ...2014...; n.º ...2014... e n.º ...2014... relativas aos actos de liquidação oficiosos de Imposto Único de Circulação (IUC) referentes aos períodos de 2009 a 2013, no valor global de €45.066,84.

Entende a Requerente que:

a)            Apesar do facto gerador de tributação do IUC ser a propriedade do veículo, a presunção registral é ilidível.

b)           O registo constitui uma presunção de que existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos definidos no registo – cfr. artigo 7.º do Código de Registo Predial aplicável por força do artigo 29.º do Código do Registo Automóvel.

c)            Estamos perante uma presunção iuris tantum.

d)           Para elidir esta presunção é necessário, (i) ou fazer prova da nulidade do registo, (ii) ou demonstrar a invalidade do negócio ou, ainda, (iii) que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem.

e)           A Requerente demonstrou que a titularidade do veículo pertence a um terceiro.

 

III. Da resposta da Requerida AT:

Em resposta, a Requerida AT considerou, em síntese:

i)             A intempestividade / caducidade do direito de acção que, enquanto excepção dilatória, obsta ao prosseguimento do processo, nos termos do disposto no artigo 89.º, nº 1, al. h) do CPTA;

ii)            A manutenção na ordem jurídica do acto impugnado, uma vez que:

a.            O legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.

b.            Em face desta redacção não é manifestamente possível invocar que o disposto no artigo 3.º, n.º 1 do CIUC se trata de uma presunção.

 

IV. Matéria de facto:

A. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

1.            A Requerente é uma sociedade comercial, cuja atividade principal consiste na compra, venda e aluguer de máquinas e veículos automóveis;

2.            No exercício da sua atividade, a Requerente oferece aos clientes diversas soluções, no âmbito do aluguer de longa duração de veículos automóveis;

3.            A AT liquidou oficiosamente IUC à Requerente e notificou diversas notas de liquidação oficiosa de IUC e respetivos juros compensatórios, bem como de coimas relativas às viaturas indicadas no processo administrativo, referentes aos anos de 2008, 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013.

4.            A Requerente foi notificada no dia 31 de janeiro de 2014, do indeferimento das seguintes reclamações graciosas (relativas aos IUC, juros compensatórios e respetivas coimas):

a.            Reclamação graciosa n.º ...2014..., relativa às liquidações oficiosas de IUC dos anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e de 2013, referente aos DUC identificados no requerimento inicial e reproduzido no documento n.º 8 junto com o Pedido de Pronúncia Arbitral, referente à cópia da notificação do indeferimento da reclamação;

b.            Reclamação graciosa n.º ...2014..., relativa às liquidações oficiosas de IUC dos anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e de 2013, referente aos DUC identificados no requerimento inicial e reproduzido no documento n.º 9 junto com o Pedido de Pronúncia Arbitral, referente à cópia da notificação do indeferimento da reclamação;

c.            Reclamação graciosa n.º ...2014..., relativa às liquidações oficiosas de IUC dos anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e de 2013, referente aos DUC identificados no requerimento inicial e reproduzido no documento n.º 10 junto com o Pedido de Pronúncia Arbitral, referente à cópia da notificação do indeferimento da reclamação;

5.            A AT tributou em sede de Imposto Único de Circulação, as viaturas que estavam em nome da Requerente, registadas na Conservatória do Registo Automóvel;

6.            Na sequência dessa notificação, a Requerente liquidou o respetivo imposto e juros, tendo apresentado diversas reclamações graciosas dos diversos atos de liquidação, tendo pedido o reembolso do montante global de 45.066,84 € (quarenta e cinco mil e sessenta e seis euros e oitenta e quatro cêntimos), acrescido dos respetivos juros indemnizatórios, previstos nos artigos 43.º e 61.º do CPPT;

7.            Os veículos identificados no processo administrativo foram objecto de venda a terceiros em momento anterior ao período da tributação e, noutros casos, foram dados como perda total, sendo canceladas as respetivas matrículas, em momento anterior ao período da tributação;

 

B. Factos não provados

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral.

C. Fundamentação da matéria de facto

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

A convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas partes e no acervo probatório (em particular o incluído no processo administrativo) carreado para os autos, o qual foi objeto de uma análise crítica e de adequada ponderação à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

D. Da cumulação de pedidos

Considerada a identidade dos factos tributários, do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados, nada obsta, face ao disposto nos arts. 104.º do CPPT e 3.º do RJAT, à cumulação de pedidos verificada in casu.

 

V. Do Direito:

i) Da excepção invocada pela Requerida AT:

A Requerida AT invocou a intempestividade /caducidade do direito de acção que, enquanto excepção dilatória, obstaria ao prosseguimento do processo, nos termos do disposto no artigo 89.º, nº 1, al. h) do CPTA.

Em síntese, a Requerida entende que

a)            Tendo o Requerente sido notificado das decisões de indeferimento expresso das reclamações graciosas aqui sub juditio a 31-01-2014, o prazo de 90 dias de que dispunha para apresentar o Pedido de Pronúncia Arbitral já há muito se encontra ultrapassado.

b)           O processo n.º 8894/15.9BCLSB, que correu termos no Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), decidiu:

“Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, julgando procedente a Impugnação da Decisão Arbitral, anular a sentença proferida no processo arbitral n.º 327/2014-T, por ter sido proferida após esse processo arbitral ter findado e já estarem extintos os poderes jurisdicionais do Tribunal Arbitral que a esse processo presidiu”;

c)            Se o TCAS determinou a anulação da sentença proferida no processo arbitral n.º 327/2014T, a mesma deixou de existir no ordenamento jurídico.

d)           Pelo que a Requerente não pode recorrer ao n.º 3 do artigo 24.º do RJAT, para efeitos de propositura de nova acção arbitral, já que a condição essencial para a aplicação daquele artigo pura e simplesmente não existe.

e)           Mesmo considerando que há decisão subsumível no n.º 3 do artigo 24.º do RJAT é insofismável concluir que a decisão proferida foi de mérito.

f)            Assim:

(1)          se se considerar que não houve decisão, por força do Acórdão do TCAS, não há aplicação do n.º 3 do artigo 24.º do RJAT; e

(2)          se se considerar que houve decisão, terá necessária e forçosamente de se considerar que houve decisão de mérito, pelo que igualmente não há aplicação do n.º 3 do artigo 24.º do RJAT.

Em resposta a Requerente veio defender o seguinte:

a)            A Requerente apresentou tempestivamente o pedido de constituição do tribunal arbitral no dia 10 de abril de 2014, tendo em conta o prazo de 90 dias;

b)           No âmbito do processo arbitral, que correu termos no CAAD sob o n.º 327/2014-T, o Tribunal arbitral singular veio julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral que formulou;

c)            Na sequência de apresentação de impugnação da decisão arbitral, o TCAS proferiu acórdão no processo n.º 8894/15.9BCLSB;

d)           O instituto jurídico da arbitragem voluntária contém mecanismos com solução diversa para a situação de extinção da instância sempre que não tenha havido decisão de conhecimento do mérito, como é o caso da decisão proferida nos autos, nomeadamente no artigo 24.º, n.º 2 do RJAT;

e)           No caso em apreço, o prazo de 90 dias conta-se a partir da notificação do acórdão do TCAS, que é datada de 8 de maio de 2020;

f)            O pedido de constituição de tribunal arbitral é tempestivo;

Cumpre apreciar a excepção invocada.

No âmbito do processo arbitral que correu termos no CAAD sob o n.º 327/2014-T, o Tribunal arbitral singular veio julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente.

Mais tarde, e na sequência de apresentação de impugnação da decisão arbitral, o TCAS proferiu acórdão no processo n.º 8894/15.9BCLSB, no qual concluiu da seguinte forma:

“Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, julgando procedente a Impugnação da Decisão Arbitral, anular a sentença proferida no processo arbitral n.º 327/2014-T, por ter sido proferida após esse processo arbitral ter findado e já estarem extintos os poderes jurisdicionais do Tribunal Arbitral que a esse processo presidiu”;

Por outras palavras, o TCAS anulou a decisão proferida no processo arbitral que correu termos no CAAD sob o n.º 327/2014-T.

A anulação da sentença arbitral deveu-se à circunstância de, nessa sentença, o primeiro despacho a determinar a prorrogação do prazo de duração do processo arbitral ter sido proferido a 23 de dezembro de 2014 sendo que, nessa data, já findara o processo arbitral e os poderes do Tribunal Arbitral para nele proferir despachos.

Atente-se no afirmado pelo TCAS, na decisão de recurso, relativamente ao processo arbitral do CAAD sob o n.º 327/2014-T (cfr. página 36 da decisão do TCAS):

“(…) o prazo regra de 6 meses previsto no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT não foi respeitado, uma vez que, tendo-se a fase processual iniciado a 20 de junho de 2014 e a sentença impugnada sido proferida a 18 de junho de 2015, há muito, nesta última data, esse prazo se encontrava ultrapassado.”

Como tal o TCAS anulou a sentença arbitral com fundamento no artigo 28.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, i.e. por ter existido pronúncia indevida (cfr. página 37 da decisão do TCAS).

No regime de arbitragem voluntária em direito tributário, a nulidade da decisão arbitral derivada do vício de omissão de pronúncia ou pronúncia indevida está consagrada no artigo 28, n.º 1, alínea c) do RJAT (cfr. ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 26/06/2014, proc.7084/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 31/03/2016, proc.8981/15).

Como bem observa Jorge Lopes de Sousa e Carla Castelo Trindade, a pronúncia indevida corresponde a uma noção mais abrangente do que a de excesso de pronúncia. A primeira poderá ocorrer em dois casos.

O primeiro, e tradicional, ocorre quando o tribunal arbitral se pronuncia relativamente a questões sobre as quais não se poderia pronunciar, ultrapassando, pois, os limites do princípio do dispositivo a nível decisório, condenando além do pedido – situação em que estamos perante um excesso de pronúncia.

O segundo verifica-se quando o tribunal não poderia decidir, na medida em que ocorreu um vício que inquinou a sua constituição ou porque decidiu fora das suas competências.

Esta segunda situação terá ocorrido, de harmonia com a decisão do TCAS, no processo arbitral n.º 327/2014-T.

Como tal, o TCAS determinou a anulação da decisão atendendo a que se verifica uma causa de nulidade da sentença, podendo aqui ser aplicado o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código do Processo Civil, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

Neste contexto, e por decisão do TCAS, a decisão arbitral proferida no processo n.º 327/2014-T não produz quaisquer efeitos uma vez que foi anulada.

Não tendo havido decisão de mérito – reitere-se, por expressa determinação da sentença proferida pelo Tribunal de recurso -, terá de ser aplicado, in casu, o disposto no artigo 24.º, n.º 3 do RJAT, por analogia, dando-se assim a possibilidade ao Requerente de sindicar, em nova ação arbitral, os atos em apreço nos presentes autos. Este entendimento é, aliás, considerado por Jorge Lopes de Sousa que, a este propósito, afirma o seguinte:

“(…) esse direito a instauração de novo processo arbitral (ou os meios impugnatórios alternativos indicados naquele n.º 3 do artigo 24.º) deverá ser reconhecido, por analogia evidente, não só nos casos em que é proferida uma «decisão arbitral ponha termo ao processo sem conhecer do mérito da pretensão», mas também quando nem sequer é proferida uma decisão arbitral, pois, em qualquer dos casos se está perante a não satisfação do direito à tutela judicial que se visa atingir”

De forma idêntica, os Tribunais Administrativos e Fiscais têm considerado a possibilidade de ser proposta nova ação arbitral em consequência de anulação da anteriormente proferida.

Assim, veja-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, datado 16 de dezembro de 2015, disponível em www.dgsi.pt:

“Se a não prolação de decisão não for imputável ao sujeito passivo, deverá entender-se, com base em analogia com a situação regulada no nº 3 do art. 24º do RJAT (nosso negrito), que se reiniciam os prazos para o sujeito passivo apresentar reclamação, impugnação, revisão, promoção da revisão oficiosa, revisão da matéria tributável ou para suscitar nova pronúncia arbitral dos actos objecto da pretensão arbitral. Não se aplica o instituto da caducidade para os prazos dirigidos àqueles a quem incumbe julgar: a sua posição jurídica é totalmente distinta da de quem exerce um direito, e fazer caducar o poder-dever de decidir quando incumpra prazos que lhe são dirigidos nada resolve, só piora a situação daqueles (partes num litígio) cujo direito à decisão se visa proteger com tais prazos.

O árbitro não exerce um direito quando emite uma decisão arbitral. Exerce uma função, um poder, um poder-dever. E é porque o árbitro exerce um poder-dever que faz pouco sentido fazer cessar a sua obrigação de decidir quando ultrapasse o prazo legalmente indicado para o efeito, uma vez que isso penaliza, justamente, aqueles (as partes) que verdadeiramente têm o direito - o direito a uma decisão - e que nenhum prazo associado ao exercício do seu direito ofenderam.”

                E a decisão do TCAS no acórdão de 28 de novembro de 2019, disponível em www.dgsi.pt:

“Caso a presente impugnação arbitral venha a ser declarada procedente, o Tribunal arbitral estará impedido de concretizar o Acórdão do TCA Sul, porquanto em 12-03-2019 - altura em que, não é de mais repetir, se perfez um ano desde o início do processo - se esgotaram os respetivos poderes jurisdicionais, inexistindo a possibilidade de o Tribunal e as partes gozarem de prazos complementares em ordem a promover o respeito pelo contraditório e em ordem a, subsequentemente, ser proferida nova decisão arbitral, expurgada do vício que inquinou a anterior.

Na hipótese do presente augúrio se vir a materializar no tempo e no espaço, a Impugnada não ficará desamparada nas suas pretensões, pois nos termos do disposto no artigo 24.º, n.º 3 do RJAT, quando a decisão arbitral ponha termo ao processo sem conhecer do mérito da pretensão por facto não imputável ao sujeito passivo, os prazos para a reclamação, impugnação, revisão, promoção da revisão oficiosa, revisão da matéria tributável ou para suscitar nova pronúncia arbitral dos atos objeto da pretensão arbitral deduzida contam-se a partir da notificação da decisão arbitral. PP. A Impugnada poderá ver de novo discutida a sua questão material junto de uma nova instância jurisdicional.”

A esta luz, e no caso em apreço, o prazo de 90 dias para a propositura de ação arbitral, pela Requerente, conta-se a partir da notificação do acórdão do TCAS - 8 de maio de 2020.

Tendo o pedido de constituição de tribunal arbitral sido realizado em 7 de agosto de 2020, pode concluir-se que este foi feito de forma tempestiva.

Não procede, assim, a excepção invocada pela Requerida AT, pelo que este Tribunal Arbitral é competente para conhecer do pedido.

 

B) Da errada interpretação da lei operada pela Requerida AT:

i)             Da interpretação do artigo 3.º do CIUC:

Os actos de liquidação sub judice foram realizados oficiosamente pela AT por não terem sido realizados pela Requerente.

De harmonia com os fundamentos apresentados pela AT na decisão de indeferimento do pedido de reclamação graciosa, a Requerida AT entende que “(…) a base de dados em que assenta a liquidação de IUC sobre bens móveis terrestres sujeitos a registo, é formada com os elementos fornecidos pelos Instituto dos Registos e do Notariado, I.P (IRN) e pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P. (IMT).”

A AT refere ainda que o “IUC incide sobre a propriedade dos veículos, tal como é atestada pelos registos (cf. n.º 1 do artigo 6.º do IUC), e não sobre o uso ou fruição dos mesmos” pelo que “o imposto é devido enquanto a matrícula não for cancelada”.

Entende a Requerente que está em causa o pagamento de IUC, referente aos anos de 2008 a 2013, e relativos a veículos que foram objecto de venda a terceiros em momento anterior ao período de tributação ou a veículos dados como perda total e em relação aos quais já foram canceladas as respectivas matrículas, em momento anterior ao período de tributação.

Importa, assim, proceder ao recorte da incidência subjectiva do IUC, uma vez que a incidência objectiva deste imposto resulta clara do disposto no artigo 2.º do CIUC (Código do Imposto Único de Circulação).

A incidência subjectiva encontra-se prevista no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do respectivo Código, que dispõe da seguinte forma:

“1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força de contrato de locação.

3 - É ainda equiparada a sujeito passivo a herança indivisa, representada pelo cabeça de casal.”

No contexto da aplicação do IUC, o registo constitui condição essencial para a qualificação dos sujeitos passivos do IUC.

Trata-se de conditio que emerge ao longo de todo o Código do IUC, nomeadamente do artigo 6.º, quando define o facto gerador da obrigação de imposto nos termos do qual este “(…) é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional.”

Trata-se, pois, de uma norma que, recorrendo ao elemento registal, estabelece, simultaneamente, o facto gerador do imposto e a respectiva conexão fiscal.

É, também, a partir dos elementos do registo automóvel que se extrai o momento do início do período de tributação, bem como, de uma maneira geral, todos os elementos necessários à liquidação do imposto em causa, como é, designadamente, o caso da cilindrada, antiguidade da matrícula, tipo de combustível e nível de emissão de dióxido de carbono (CO2).

A questão central que aqui se coloca reside em verificar se a incidência subjetiva assenta estritamente na inscrição da titularidade do veículo no Registo Automóvel ou se o registo opera apenas como uma presunção de incidência tributária, ilidível, em conformidade com o disposto no artigo 73.º da Lei Geral Tributária.

Trata-se de matéria já anteriormente tratada por jurisprudência do CAAD, em particular nas decisões n.ºs 212/2014-T e nº 106/2018-T que aqui acolhemos e seguimos de perto.

Nesta conformidade coloca-se aqui um problema de interpretação do artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, no sentido de se determinar se este consagra, ou não, uma presunção relativa à qualificação como proprietário, e consequentemente, como sujeito passivo deste imposto, a pessoa, singular ou colectiva, em nome da qual a propriedade do veículo se contra registada e, caso se conclua nesse sentido, a sua elisão com base dos elementos probatórios que o integram.

Como vimos inicialmente, o Código do IUC elege, no tocante à incidência subjectiva, o proprietário do veículo, considerando como tal a pessoa em nome da qual o mesmo se encontre registado (art. 3.º, n.º 1, do CIUC).

Mas, apesar disso, o legislador ressalvou alguns casos particulares em que a propriedade formal ou jurídica do veículo foi secundarizada pela utilização do mesmo, imputando, a este último, a obrigação de pagamento do IUC, como sucede com os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direito de opção de compra por força de contrato de locação (art.3.º, n.º 2, do CIUC).

Certo é que a norma de incidência, ao remeter para os elementos do registo automóvel, não distingue entre o registo inicial do veículo e os registos posteriores: o sujeito passivo do imposto é o proprietário do veículo, considerando-se como tal a pessoa, singular ou colectiva em nome da qual o veículo se encontrar registado.

É sobre a interpretação da norma do n.º 1 do artigo 3.º que se evidenciam as diferentes posições expressas pela Requerente e pela Requerida.

Esta matéria tem sido objecto de diversas decisões arbitrais que, reiterada e uniformemente, se têm pronunciado no sentido de considerar que a norma do n.º 1, do artigo 3.º do CIUC estabelece uma presunção, ilidível, nos termos gerais e, em especial, for força do disposto no artigo 73.º da LGT.

Veja-se, a este propósito, as decisões do CAAD de 19.7.2013, Proc. 26/1013-T, de 10.9.2013, Proc. 27/2013-T, de 15.10.2013, Proc. 14/2013-T, de 5.12.2013, Proc. 73/2013-T, de 14.2.2014, Proc. 170/2013-T, de 30.4.2014, que aqui seguimos.

Não há dúvida que é por recurso ao elemento registral que o legislador estabelece, simultaneamente, o facto gerador do imposto, bem assim como a determinação do momento do início do período de tributação e a constituição da obrigação tributária e, de uma maneira geral, todos os elementos necessários à liquidação do imposto em causa.

Apesar do supra exposto quanto à dependência do regime de tributação do IUC em relação ao registo automóvel não se pode extrair, como imediata conclusão, que a norma de incidência subjectiva, no segmento em que considera como proprietário a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado, não constitua uma presunção de incidência.

Segundo noção contida no artigo 349.º do Código Civil, presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.

Acresce que, estabelece o artigo 341.º do Código Civil que as presunções constituem meios de prova, tendo esta por função a demonstração da realidade dos factos, de tal modo que, quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (cfr. n.º 1 do art. 350.º do Código Civil).

Dito isto, acresce que as presunções, que podem ser explícitas ou implícitas, salvo nos casos em que a lei o proibir, podem ser ilididas, mediante prova em contrário, como aliás resulta expressamente do disposto no nº 2, do artigo 350º do Código Civil.

Por fim, tratando-se de presunções de incidência tributária, estas são sempre ilidíveis, conforme expressamente dispõe, o artigo 73º, da LGT.

Assim, quanto à questão de saber, face ao teor literal do disposto no n.º 1, do artigo 3.º, do CIUC, qual o alcance da expressão “considerando-se como tais”, dado que na actual versão o legislador não usou o termo “presumem-se” (o qual constava do extinto Regulamento do Imposto Sobre Veículos), entende o Tribunal que só pode ser o seguinte: o legislador presume (considera) que os proprietários são as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.

Significa isto que, tal presunção, implícita, é naturalmente ilidível nos termos previstos no artigo 73º da LGT.

Não é, pois, a titularidade constante do registo automóvel condição, por si só determinante de incidência tributária, mas sim a propriedade tal qual resulta do registo, o que resulta numa mera presunção ilidível.

Além do que, como já se disse supra, tratando-se de norma de incidência tributária, nunca seria admissível a consagração de uma presunção inilidível.

Como afirmam, Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação ao nº 3, do artigo 73º, da LGT, “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”. (Cfr. Jorge de Sousa, CPPT, 6.ª Edição, Áreas Editora. Lisboa, 2011, págs. 586; ainda neste sentido cfr. Ac. STA, Acs. de 29.2.2012 e de 2.5.2012, Procs. 441/11 e 381/12).

E, são muitos os exemplos de normas em que é utilizado o verbo “considerar” para estabelecer presunções ilidíveis, como sucede com o disposto nº 2 do artigo 21º do CIRC, no artigo 89-A da LGT ou no artigo 40º, nº1 do CIRS entre outros.

Tendo em conta que o sistema jurídico deve formar um todo coerente, os exemplos acima referidos, bem como a doutrina e jurisprudência indicadas, permitem concluir que não é só quando é usado o verbo “presumir” que estamos perante uma presunção, mas também o uso de outros termos ou expressões, como o termo “considera-se” podem servir de base a presunções. E, como se referiu supra, sendo o elemento literal o primeiro instrumento de interpretação da norma jurídica, em busca do pensamento legislativo, importa confrontá-lo com os demais elementos de interpretação, nomeadamente o elemento racional ou teleológico, o elemento histórico e o sistemático.

Pelo que, à luz do elemento literal da interpretação, nada obsta ao entendimento de que, o disposto no n.º 1, do art. 3.º, do CIUC, consagra uma presunção ilidível.

Este entendimento é, ainda, o único que se afigura adequado e conforme ao princípio da verdade material e da justiça, subjacentes às relações fiscais, com o objetivo de tributar o real e efectivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário, por constar do registo automóvel, como sucede no caso concreto com a Requerente.

Sobre a questão em análise, é, pois, unanime o entendimento que tem vindo a ser defendido em sucessivas, diversas e numerosas decisões arbitrais proferidas.

Veja-se, neste sentido, as decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 243/2013-T, 335/2014-T, 243/2013-T, 397/2014-T, 417/2014-T, 432/2014-T, 436/2014-T; 448/2014-T; 456/2014-T; 627/2014-T; 782/2014-T; 75/2015-T e 202/2015-T.

Por ser assim, tem de se permitir ao titular inscrito no registo automóvel a possibilidade de apresentar elementos probatórios bastantes para a demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo, e que inicialmente, e em princípio, se supunha ser o verdadeiro proprietário.

Caso contrário, aceitar-se-ia a supremacia da verdade formal do registo sobre a verdade material, e seria admitir a violação grosseira dos princípios fundamentais fiscais enunciados e, ainda, do princípio contido no artigo 73º da LGT segundo o qual não existem presunções inilidíveis em matéria de incidência fiscal.

A tudo o que se deixa supra exposto acresce que, outro entendimento, traduziria a violação dos princípios da legalidade, da proporcionalidade e da justiça, bem como o do inquisitório, consagrados, respectivamente, nos artigos 55.º e 58.º da LGT.

Assim, acompanhando-se a reiterada jurisprudência arbitral, supra mencionada, relativa a situações idênticas, não pode deixar de se entender que a expressão "considerando-se como tais" constante da referida norma, configura uma presunção legal, e que esta é ilidível, nos termos gerais, e, em especial, por força do disposto no artigo 73.º da LGT que determina que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.

Esta é, também, a posição do tribunal arbitral nos presentes autos, sufragando as posições já anteriormente plasmadas nas diversas decisões arbitrais supra mencionadas, pelo que, se entende que a presunção ilidível, inscrita no n.º 1, do art.º 3.º, do CIUC, corresponde à interpretação mais ajustada à prossecução dos objectivos almejados pelo legislador e ao respeito pelos princípios da legalidade, justiça tributária, certeza e segurança jurídicas.

 

ii)            Da Interpretação conforme à Constituição;

A Requerida suscitou, na resposta, a questão da interpretação conforme à Constituição, invocando os princípios da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.

Por tudo o que se deixou exposto, entende este tribunal que a interpretação conforme à Constituição é a que aqui se deixou vertida.

Dito de outro modo, o respeito pelos princípios jurídico constitucionais em presença impõe que se tribute de acordo com a realidade factual e não meramente formal, mormente quando são conhecidos todos os elementos relevantes para cumprir o propósito do legislador, que no caso, é o de tributar ao IUC ao proprietário do veículo, por ser o seu utilizador por si ou por aquele em quem consente essa utilização.

Novamente em linha com a jurisprudência do CAAD, em particular a afirmada no processo nº 212/2014-T, é no sentido do conceito legal de presunção e no respeito dos princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva que o legislador atribui plena eficácia à presunção derivada do registo automóvel acolhendo-a, como tal, na definição da incidência subjectiva deste tributo estabelecida no n.º 1, do art. 3.º, do CIUC.

Importará, ainda, acrescentar a todos os argumentos já expostos, um último extraído da própria jurisprudência do Tribunal Constitucional (TC). Assim, refira-se que, contrariamente ao alegado pela Requerida, a consideração de que o disposto no artigo 3.º, n.º 1, do CIUC consagra uma presunção ilidível representa a melhor interpretação e a mais conforme à Constituição, resulta do próprio Acórdão do TC com o n.º 348/97, de 29.4.1997, posição reiterada no acórdão n.º 311/2003, de 28.4.2003, os quais declaram a inconstitucionalidade do “estabelecimento pelo legislador fiscal de uma presunção “juris et de jure” já que “veda por completo aos contribuintes a possibilidade de contrariarem o facto presumido, sujeitando-os a uma tributação que pode fundar-se numa matéria colectável fixada à revelia do princípio da igualdade tributária”.

Nesta conformidade, não se vislumbra que a alegação da Requerida AT possa ter acolhimento.

 

iii)           Da Elisão da Presunção:

Concluiu-se, anteriormente, que o artigo 3.º do Código do IUC, na redacção aplicável, consagra uma presunção ilidível.

Aqui chegados cumpre analisar se esta presunção foi, ou não, efectivamente ilidida pela Requerente.

Para ilidir a presunção derivada da inscrição do registo automóvel, a Requerente juntou, em sede administrativa, as cópias de todas as faturas de venda dos veículos e dos salvados, cuja tributação em sede de IUC foi alvo., através das quais se pode extrair que a venda das viaturas se efectuou em momento anterior ao que ocorreu o facto gerador e a consequente exigibilidade do imposto.

É certo que, como afirma a Requerida AT, “as regras do registo automóvel (ainda) não chegaram ao ponto de uma factura unilateralmente emitida pela Requerente poder substituir o requerimento de registo automóvel, aliás documento aprovado por modelo oficial.” (cfr. artigo 113.º da resposta).

Porém, uma factura é, indiscutivelmente, um elemento probatório demonstrativo da aquisição da propriedade de um veículo por uma terceira entidade, adequado a permitir ilidir a presunção prevista no CIUC.

Com efeito, não sendo legalmente exigível a forma escrita para o contrato de compra e venda dos veículos automóveis, a prova da venda correspondente poderá fazer-se por qualquer meio, nomeadamente por via documental, nesta se incluindo, designadamente, as facturas relativas às vendas dos veículos.

Em linha com o afirmado na decisão arbitral proferida no processo n.º 627/2014-T, sempre se dirá que as facturas - como prova da venda dos veículos, tendo em conta o objecto social da Requerente e a sua actividade empresarial, traduzida na compra e venda de veículos e na celebração de contratos de aluguer de longa duração de veículos automóveis, findos os quais a propriedade dos aludidos veículos foi transmitida aos respectivos clientes/adquirentes -, mostram-se totalmente ajustadas à mencionada realidade empresarial, sendo absolutamente verosímil a venda dos veículos que as facturas visam provar, não se identificando, de todo, elementos que corporizem qualquer contrato simulado.

Podemos assim concluir estarmos perante facturas que reproduzem a real e verdadeira venda dos veículos às pessoas nelas indicadas.

O mesmo se diga relativamente aos veículos que foram dados como perda total e em relação aos quais já foram canceladas as respetivas matrículas, em momento anterior ao período da tributação.

Assim, tendo em conta, por um lado, que a presunção consagrada no artigo 3.º, n.º 1 do CIUC foi ilidida e que, por outro, os veículos em questão no presente processo foram vendidos ou cancelada a matrícula em data anterior à da exigibilidade do imposto, ou seja, ao momento em que a Administração Tributária pode exigir a prestação tributária, não se pode deixar de considerar que, aquando da exigibilidade do imposto, face ao disposto no n.º 3 do artigo 6.º, conjugado com o n.º 2 do artigo 4.º, ambos do CIUC, a Requerente não era sujeito passivo do imposto em questão.

Em sentido idêntico, reitere-se, pronunciou-se a jurisprudência arbitral, nomeadamente nos processos n.ºs 243/2013-T, 335/2014-T, 243/2013-T, 397/2014-T, 417/2014-T, 432/2014-T, 436/2014-T; 448/2014-T; 456/2014-T; 627/2014-T; 782/2014-T; 75/2015-T e 202/2015-T.

Conclui-se, desta forma, que toda a documentação constante do processo administrativo comprova, com suficiente grau de certeza, quem eram os proprietários e sujeitos passivos de imposto, pelo que se considera ilidida a presunção decorrente do primeiro registo automóvel efectuado.

Nestes termos, atendendo ao disposto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do CIUC, conclui-se que se mostra ilidida a presunção contida no nº 1 e que, por isso, a Requerente não constitui sujeito passivo do IUC liquidado quanto aos veículos identificados nos autos.

Em consequência de todo o supra exposto, resulta que todas as liquidações impugnadas são ilegais, padecem do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, pelo que devem ser objecto de anulação, procedendo-se, consequentemente, ao reembolso à Requerente do montante indevidamente pago a crescido dos juros à taxa legal.

 

iv)           Do pedido de juros indemnizatórios:

 

Dispõe a alínea b), do nº 1, do art.º 24º, do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.

Tal dispositivo está em sintonia com o disposto no artigo 100.º da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a), do nº 1, do art.º 29º, do RJAT, no qual se estabelece que: “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”

Dispõe, por sua vez, o artigo 43.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

Da análise dos elementos probatórios constantes dos presentes autos, nomeadamente do Processo Administrativo (PA), é possível inferir que, pelo menos desde o exercício do direito de audição, a AT tinha conhecimento dos elementos factuais, no essencial, relevantes para proceder à correcta liquidação do imposto.

Isso mesmo resulta da informação constante do PA junto aos autos.

Consequentemente a AT teve a possibilidade de revogação dos actos tributários ilegalmente praticados, que poderia ter efectuado no prazo para resposta ao presente pedido de pronúncia arbitral, o que não sucedeu.

Não resta dúvida que a AT se encontrava na disponibilidade dos elementos informativos suficientes sobre a situação concreta das viaturas constantes dos autos, de modo que teve a possibilidade de emendar o erro e de evitar a prática dos actos tributários lesivos e ilegais.

Nisso mesmo consiste o erro pelo qual está obrigada a indemnizar.

Por força do supra exposto e sem necessidade de mais considerandos, o tribunal não pode sufragar a alegação da Requerida quer quanto ao afastamento da obrigação de pagar juros indemnizatórios quer, por idêntica razão, no que toca à alegação em matéria de responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais.

Assim sendo, atento o disposto no artigo 61º, do CPPT e considerando que se encontram preenchidos os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no nº 1 do art.º 43º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre a quantia de € 45.066,84 (quarenta e cinco mil e sessenta e seis euros e oitenta e quatro cêntimos), a contar da data em que foi efectuado o pagamento até ao seu integral reembolso.

 

VI – Decisão:

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)            Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)           Condenar a Requerida AT na restituição do valor de imposto indevidamente pago;

c)            Condenar a Requerida AT no pagamento de juros indemnizatórios, desde a data em que a Requerente efectuou o pagamento das liquidações, até ao integral pagamento do montante que deve ser reembolsado;

d)           Condenar a Requerida AT no pagamento das custas do processo.

 

VII - Valor do processo:

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 45.066,84 (quarenta e cinco mil e sessenta e seis euros e oitenta e quatro cêntimos).

 

VII - Custas:

Nos termos do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.142 (dois mil cento e quarenta e dois euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida AT.

 

Registe-se e notifique-se.

 

Lisboa, 12 de janeiro de 2021

 

O Árbitro Singular

Nuno Cunha Rodrigues