Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 317/2020-T
Data da decisão: 2021-04-01  ISV  
Valor do pedido: € 180.464,11
Tema: ISV – Aquisições intracomunitárias de veículos usados – Não redução da componente ambiental – Discriminação – Desconformidade do art. 11.º, n.º 1 do CISV face ao art. 110.º do TFUE.
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SUMÁRIO

 

O n.º 1 do artigo 11.º do Código do ISV não contempla reduções de taxa que reflitam a depreciação dos veículos usados provenientes de outros Estados-Membros da União Europeia na componente ambiental do imposto, implicando que o ISV liquidado nestas viaturas usadas seja superior ao montante de ISV contido no valor residual de veículos usados nacionais similares (já matriculados em Portugal) similares. Esta diferenciação representa uma discriminação vedada pelo artigo 110.º do TFUE.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Luís Menezes Leitão e Rui Miguel Zeferino Ferreira (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 11 de setembro de 2020, acordam no seguinte:

 

                I.             RELATÓRIO

 

A..., LDA., doravante “Requerente”, pessoa coletiva número ..., com sede na ..., n.º..., ... ...- Vila Nova de Gaia, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e deduzir pedido de pronúncia arbitral (“ppa”), ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), na redação vigente.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

 

A Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade parcial, com a consequente anulação, também parcial, das liquidações do Imposto Sobre Veículos (“ISV”) reportadas aos períodos de 2017, 2018 e 2019, no valor de € 180.464,11, melhor identificadas nas Declarações Aduaneiras de Veículos (“DAV”) juntas pela Requerente aos autos, na sequência do despacho de indeferimento do recurso hierárquico interposto contra a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa destas liquidações. Peticiona a restituição da referida quantia acrescida de juros indemnizatórios.

 

Como fundamento da sua pretensão, a Requerente alega, em síntese, erro de direito na liquidação do ISV sobre as aquisições intracomunitárias de viaturas usadas que efetuou, entre os anos de 2017 e 2919. Em seu entender, a aplicação das percentagens de redução previstas no artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV, na redação vigente à data dos factos, sobre a componente cilindrada, ignorou a componente ambiental, que também devia beneficiar de uma redução de taxa em função dos anos de utilização dos veículos, em conformidade com o Direito da União Europeia, pelo que conclui verificar-se uma discriminação fiscal proibida pelo artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).

 

Em 26 de junho de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, com a notificação à AT em 30 de junho de 2020.

 

De acordo com o preceituado nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.

               

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 11 de setembro de 2020.

 

Em 14 de outubro de 2020, a Requerida apresentou a sua Resposta e juntou o processo administrativo (“PA”). Defende-se por exceção e por impugnação, concluindo pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”), com as legais consequências.

 

Em matéria de exceção, a Requerida invoca a caducidade do direito de ação, considerando ter sido ultrapassado o prazo de 120 dias (a contar do termo do prazo do pagamento das liquidações de ISV), para a Requerente apresentar o pedido de revisão oficiosa, ao abrigo do disposto na primeira parte do n.º 1 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), com a ressalva de três DAV, em relação às quais o pedido de revisão foi tempestivo.

 

Sustenta, para este efeito, a Requerida que, estando a AT vinculada ao princípio da legalidade e tendo observado o disposto no artigo 11.º do Código do ISV, inexiste erro de direito imputável aos serviços que fundamente o prazo alargado de 4 anos constante da segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT. Em consequência, considera que o pedido de pronúncia arbitral, por ter sido apresentado para além do prazo de 90 dias contados após o termo do prazo de pagamento do imposto é, de igual modo, extemporâneo.

 

Por impugnação, a Requerida começa por sublinhar o Princípio da Equivalência, devendo os contribuintes ser onerados “na medida dos custos que […] provocam no ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária”, nos termos do disposto no artigo 1.º do Código do ISV. Sustenta que apesar da proibição de discriminação entre produtos nacionais e produtos originários de outros Estados-Membros, estabelecida no artigo 110.º do TFUE, a mesma não pode deixar de subordinar-se aos objetivos ambientais consagrados no artigo 191.º do TFUE, nomeadamente a preservação, proteção e melhoria da qualidade do ambiente.

 

Acrescenta que o ambiente constitui um direito consagrado no artigo 66.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), determinando a alínea h) do seu n.º 2 que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com proteção do ambiente e qualidade de vida.

 

Assim, para a Requerida, o artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV, na redação vigente à data dos factos, não viola o Direito da União Europeia e visa o cumprimento de responsabilidades ambientais assumidas no âmbito do Protocolo de Quioto e do Acordo de Paris, em obediência ao princípio do poluidor pagador, os quais vinculam o Estado português por força do artigo 8.º da CRP.

 

Deste modo, o legislador nacional teve em consideração, no artigo 11.º, n.º 1 do CISV, que a componente ambiental se destina a compensar os efeitos nefastos que os veículos automóveis causam ao ambiente, sendo que esse montante é progressivo em função das emissões de dióxido de carbono. Por outro lado, os veículos mais antigos são mais poluentes, pelo que a posição da Requerente beneficiaria os veículos usados face aos novos.

 

A Requerida aduz que o pagamento da componente ambiental na totalidade não visa restringir a entrada de veículos usados em Portugal, nem obsta à sua admissão no território nacional, nem tão-pouco visa impedir a realização de negócios jurídicos de compra e venda de veículos automóveis usados com matrículas de outros Estados-Membros, pois o número de veículos usados matriculados, entre 2017 e 2018, teve um crescimento de 13%, muito acima da taxa de crescimento da venda de veículos novos, de apenas 3%.

 

Por fim, a Requerida suscita a inconstitucionalidade da interpretação da Requerente:

(a)          Por entender que a mesma viola o princípio da legalidade, constante do n.º 2 do artigo 103.º da CRP, ao representar a aplicação de um benefício fiscal que não se encontra previsto na lei, e, bem assim, os objetivos ambientais a salvaguardar, nos termos preceituados no artigo 66.º, n.º 2, alíneas a), f) e h) da CRP;

(b)          Por violação dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, na vertente do direito ao duplo grau de jurisdição, com suporte nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4 e 266.º da CRP, uma vez que uma decisão que desaplique norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia, não é passível de recurso para o Tribunal Constitucional, pois não é enquadrável nas alíneas a) e b) do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional.

 

A Requerida conclui que não são devidos juros indemnizatórios, mesmo que a pretensão da Requerente fosse procedente, por não se verificar erro imputável aos serviços, dado a AT ter agido no cumprimento estrito da lei.

 

Em 20 de outubro de 2020, o Tribunal determinou a notificação da Requerente para que esta se pronunciasse sobre a matéria de exceção suscitada pela Requerida, tendo aquela exercido o contraditório, em 26 de outubro de 2020, no sentido da tempestividade da ação. 

 

Por despacho de 10 de novembro de 2020, foi considerada desnecessária a inquirição das testemunhas, em virtude de os factos alegados pela Requerente com relevo para a decisão apenas serem passíveis de prova documental, tendo sido dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade e da simplificação e informalidade processuais. O conhecimento da matéria de exceção foi relegado para a decisão a proferir a final. As Partes, notificadas para o efeito, não se opuseram.

 

As Partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas, facultativas e sucessivas, por despacho de 26 de novembro de 2020, advertindo-se a Requerente da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente até à data de prolação da decisão arbitral, que foi fixada no termo do prazo previsto no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT.

 

                A Requerente optou por não apresentar alegações, tendo a AT alegado por remissão para os argumentos que constam da Resposta, mantendo a sua posição.

 

                Por despacho de 23 de fevereiro de 2021, foi prorrogado por dois meses o prazo de prolação da decisão arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 21.º, n.º 2 do RJAT. 

 

                II.            SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer do ato de liquidação de ISV, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

A Requerida suscita a exceção de intempestividade da presente ação, para cuja apreciação interessa proceder à fixação da matéria de facto, após o que essa questão será apreciada e decidida por este Tribunal.

                 

III.          FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

1.            Matéria de Facto Provada

 

A.           A A..., LDA., aqui Requerente, tem por objeto o “comércio de automóveis, compra venda e troca; importação e exportação; intermediário de crédito e outras atividades auxiliares de serviços financeiros” – cf. certidão permanente identificada pela Requerente sob o número ... .

B.            Nos anos de 2017, 2018 e 2019, a Requerente adquiriu, no exercício da sua atividade, seiscentos e oito veículos automóveis usados matriculados em outros Estados-Membros e apresentou às autoridades aduaneiras seiscentas e oito DAV relativas a esses mesmos veículos, tendo a AT liquidado ISV no valor total de € 1.337.191,71 euros, imposto que foi oportunamente pago pela Requerente – cf. Documentos 1 a 609 juntos pela Requerente e PA.

C.            O cálculo do ISV incidente sobre os mencionados seiscentos e oito veículos (quadro R das DAV) foi efetuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, e atendeu, quer à componente cilindrada (em centímetros cúbicos), quer à componente ambiental relativa à emissão de gases CO2 indicada nas DAV (escalão de CO2 em gramas por quilómetro), nos termos do artigo 7.º do Código do ISV. Foi igualmente deduzida a percentagem (de redução) da componente cilindrada correspondente aos escalões da tabela D, em função dos anos de uso das viaturas, conforme previsto no artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV – cf. Documentos 1 a 609 juntos pela Requerente e PA.

D.           No cálculo do ISV não foi aplicada qualquer redução à componente ambiental dos seiscentos e oito veículos em função do respetivo número de anos de uso – cf. Documentos 1 a 609 juntos pela Requerente e PA.

E.            Caso o cálculo do ISV tivesse sido efetuado com a percentagem de redução também aplicada à componente ambiental, o imposto liquidado, com referência aos mencionados seiscentos e oito veículos, cifrar-se-ia no valor total de € 1.156.727,60, o que representa uma diferença no valor de € 180.464,11 – cf. Documentos 1 a 609 juntos pela Requerente e PA.

F.            Por não se conformar em parte com a liquidação de ISV efetuada pela AT, relativamente aos seiscentos e oito veículos usados adquiridos entre 2017, 2018 e 2019, na medida em que o respetivo cálculo não contemplou qualquer redução de taxa da componente ambiental, a Requerente apresentou em 24 de outubro de 2019, junto da Alfândega de Leixões, um pedido de revisão oficiosa dos correspondentes atos de liquidação de ISV ao abrigo do artigo 78.º, n.º 1 da LGT, norma que aí mencionou de forma expressa – cf. PA.

G.           Este pedido de revisão foi indeferido, após exercício do direito de audição, por despacho do Diretor da Alfândega de Leixões, datado de 7 de fevereiro de 2020, notificado à Requerente em 12 de fevereiro de 2020, com os seguintes fundamentos:

“- O prazo previsto na 2ª parte do nº1 do art.78º da LGT só será aplicável se o fundamento da revisão do ato tributário consistir em erro e esse erro for imputável aos serviços.

-  Ora, no que respeita à existência de erro, tendo as liquidações de ISV sido efetuadas de acordo com a disciplina legal aplicável, é posição da AT de que as mesmas não enfermam de qualquer vício, pois, encontrando-se estas em total consonância com as normas legais aplicáveis à factualidade que lhe está subjacente, são as mesmas legais (logo, isentas de erro).

- Sem embargo, acresce referir que, o erro que vem imputado às liquidações de ISV reconduz-se a uma questão de direito.

- Tratando-se de matéria exclusivamente de direito, será de afastar, desde logo, a imputabilidade aos serviços da AT do imputado «erro» porquanto o ato tributário de liquidação visado, foi praticado nos termos do art.11º do CISV, e a AT não pode deixar de aplicar a norma, com base num «julgamento» de conformidade com o direito comunitário, designadamente com o disposto no art.110º do TFUE.

- Com efeito, a AT está sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art.266º, nº2 da CRP e   art.55º da LGT), não pode deixar de aplicar uma norma com fundamento de que a mesma não está em conformidade com o direito comunitário (aplicável por força do artigo 8º, nº 4 da CRP).

 - Assim, atendendo a que a Administração Tributária se limitou a fazer a interpretação  das normas aplicáveis aos factos, sempre sobre o espectro do principio da legalidade, e  não tendo, como referido, a prerrogativa de poder desaplicar normas com base num «julgamento» de pretensa desconformidade com o direito comunitário ( atribuição  reservada aos tribunais), será forçoso concluir pela inexistência de imputabilidade aos  serviços de erro que fundamente um procedimento de revisão do ato tributário, nos   termos da 2ª parte do nº 1 do art.78º da LGT.

- Efetivamente, não pode ser imputado aos serviços da AT qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao   legalmente devido, se não estava na disponibilidade da AT decidir de modo diferente   daquele que decidiu por estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr.art.266º, nº2 da CRP e art.55º da LGT).

5. Nesta conformidade, inexistindo erro imputável aos serviços, inexiste fundamento que legitime o procedimento de revisão do ato tributário, nos termos da 2ª parte do nº 1 do art.78º da LGT.” – cf. PA.

H.           Em 4 de março de 2020, a Requerente interpôs recurso hierárquico do despacho de indeferimento do pedido de revisão da liquidação do ISV, que veio, de novo, a ser indeferido, conforme despacho do Subdiretor-geral da Área de Gestão Tributária – IEC (Direção de Serviços dos Impostos Especiais de Consumo e do Imposto sobre Veículos), de 27 de maio de 2020, notificado à Requerente em 5 de junho de 2020, que adere à proposta de indeferimento constante da informação n.º 298/2020, de 17 de março de 2020, dos mesmos serviços - cf. PA.

I.             Fundamenta a informação n.º 298/2020, nos seguintes termos:

“III – DO DIREITO APLICÁVEL

5. Delimitados os autos, verifica-se que o “thema decidendum” que opõe o recorrente à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), se reconduz à parte final do preceituado no nº 1 do art.º 78º da Lei Geral Tributária (LGT).

6. Da análise de todos os elementos constantes do processo, importa referir o seguinte:

7. Decorre da citada disposição legal (nº 1 do art.º 78º da LGT), que os sujeitos passivos podem pedir a revisão dos atos tributários à entidade que os praticou, com fundamento em erro imputável aos serviços, e é justamente sobre o alcance da expressão “erro imputável aos serviços” que se desenvolve a questão a dirimir.

Vejamos,

8. O princípio constitucional da legalidade que entre nós vigora, exige que os impostos e os seus elementos essenciais (incidência, taxa, benefícios fiscais e garantia dos contribuintes) têm obrigatoriamente de ser criados por lei [nº 2 do art.º 103º da Constituição da República Portuguesa (CRP)].

9. Por outro lado, por força do disposto no nº 2 do at.º 266º da CRP, a atuação da AT encontra-se sujeita ao princípio da legalidade tributária, prevista no art.º 8º da LGT, o que determina a sua vinculação à lei, ou seja, a AT não pode contrariar ou desobedecer às normas legais pré-existentes, pelo que, este princípio deve ser entendido em sentido proibitivo ou negativo, pois são proscritas atuações administrativas que contrariem a lei.

10. Ora, sendo o CISV a lei que determina incidência do imposto sobre veículos, e considerando que o ato tributário de liquidação visado, foi praticado ao abrigo do art.º 11º desse Código, a AT não pode contrariar ou desobedecer às disposições legais nele ínsitas.

Com efeito,

11. O ato de liquidação em causa não pode ser considerado ilegal, pois o mesmo foi efetuado de acordo com a disciplina legal aplicável, isto é, encontra-se em total consonância com as normas legais aplicáveis à factualidade que lhe está subjacente.

Por outro verso,

12. Cumpre de igual modo referir que, não tendo sido proferida qualquer decisão que declare com força obrigatória geral, o vício de violação de lei comunitária, a AT, uma vez vinculada ao princípio da legalidade, terá de proceder à tributação dos veículos usados de acordo com a legislação atualmente em vigor e que se encontra vertida no CISV.

13. Assim, face ao exposto, é manifesto que não pode ser imputado qualquer erro à AT, pelo que o mesmo não pode ser invocado para solicitar a revisão do ato de liquidação, relativo aos veículos em causa.

IV - PROPOSTA

14. Nestes termos, propõe-se o indeferimento do presente RH, sendo de manter o despacho recorrido.” – cf. PA.

J.             Em discordância com a decisão de indeferimento do recurso hierárquico, em 25 de junho de 2020, a Requerente deduziu a presente ação arbitral – cf. registo de entrada do pedido no sistema de gestão processual do CAAD.

 

                2.            Factos não Provados

               

Com relevo para a decisão não se identificaram factos que devam considerar-se não provados.

 

                3.            Motivação da Decisão da Matéria de Facto

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica dos documentos, nomeadamente as DAV e o PA, juntos aos autos por ambas as Partes e nas posições consonantes por estas assumidas em relação aos mesmos, sendo o dissídio estritamente de direito.

 

 

                III.          FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

1.            Questões a Decidir

 

                A primeira questão a decidir nos presentes autos respeita à exceção de caducidade da ação suscitada pela Requerida, com a ressalva de três DAV relativamente às quais considera não ter decorrido o respetivo prazo. De seguida, e na medida em que a exceção não proceda, o Tribunal deve apreciar a questão de mérito, relativa à alegada incompatibilidade do artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV com o artigo 110.º do TFUE, bem como o direito da Requerente a juros indemnizatórios.

 

 

2.            Exceção de Caducidade da Ação

 

Segundo a Requerida, o pedido de revisão oficiosa (parcial) dos atos de liquidação de ISV foi deduzido após o prazo de 120 dias  previsto para a reclamação graciosa dos atos tributários, sendo enquadrável na primeira parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, pelo que é extemporâneo e implica, numa relação de causalidade necessária, a intempestividade da presente ação arbitral . Preconiza ser inaplicável ao caso em análise o prazo de 4 anos contemplado no segundo segmento desta norma [n.º 1 do artigo 78.º da LGT], por não se verificar o fundamento de “erro imputável aos serviços” .

 

Para este efeito, a Requerida faz uma interpretação restritiva do conceito de erro imputável aos serviços, de forma a excluir o erro por incompatibilidade com o Direito da União Europeia (em concreto, com o artigo 110.º do TFUE) invocado pela Requerente como vício invalidante dos atos tributários de liquidação de ISV controvertidos, na parte em que tais atos não acolheram uma redução de taxa da componente ambiental. Argui ainda que a Requerente não invocou expressamente “a primeira ou segunda parte do nº 1 do artigo 78º da LGT, mas tendo-o referido como um todo”.

 

Convém, antes de mais, salientar que, tal como a Requerida refere e de acordo com a jurisprudência que cita, como reflexo da intempestividade do pedido de revisão dos atos de liquidação de ISV este Tribunal Arbitral ficaria impedido de conhecer o fundo da causa. Não pela consequente extemporaneidade da ação arbitral, mas por se ter formado “caso decidido ou resolvido”, verificando-se, nessas circunstâncias, a inimpugnabilidade dos atos tributários. Neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 14 de outubro de 2020, processo n.º 0937/02.2BTLRS 0318/15, sobre a impugnação judicial, em que se coloca questão idêntica:

“Se a reclamação graciosa é intempestiva tudo se passa como se não tivesse sido apresentada, e o ato tributário (a liquidação) consolida-se na ordem jurídica.

Logo, a concluir-se pela extemporaneidade da reclamação graciosa, a posterior impugnação judicial terá de improceder por inimpugnabilidade do ato e não por caducidade do direito de deduzir impugnação judicial (cf. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 31/05/2017, recurso 01609/13).”

 

Porém, na situação dos autos, não se verifica a intempestividade do pedido de revisão oficiosa.

 

Desde logo, convém notar que não reveste qualquer relevância o facto de a Requerente ter invocado o n.º 1 do artigo 78.º da LGT como um todo, sem especificar se pretendia enquadrar-se na primeira (erro não imputável aos serviços) ou na segunda parte da norma (erro imputável aos serviços). Não compete à Requerida escolher, por sua conveniência, a parte em que a Requerente se enquadra, retirando, sem qualquer suporte, que esta teria invocado somente a primeira parte do n.º 1, quando não o fez.

 

Por outro lado, o vício que a Requerente imputa aos atos de liquidação de ISV, de violação do Direito da União Europeia, é, ao contrário do que defende a Requerida, um erro de direito imputável aos serviços, na aceção do n.º 1 do artigo 78.º da LGT. Com efeito, a legalidade não se cinge à dimensão dos atos legislativos previstos no artigo 112.º da CRP e inclui o bloco de normas e princípios supraordenados, como a Constituição e o Direito primário e derivado da União Europeia acolhido ex professo pelo artigo 8.º, n.º 4 da CRP.

 

A subordinação “à Constituição e à lei” que o artigo 266.º, n.º 2 da CRP postula  não pode, assim, deixar de compreender o Direito da União Europeia.

 

Entendimento que é seguido pela jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo, como se extrai dos seguintes excertos ilustrativos:

 

“havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efetuar liquidação afetada por erro» já que «a administração tributária está genericamente obrigada a atuar em conformidade com a lei (arts. 266°, n.° 1 da CRP e 55° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma atuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços.”

 

“Podendo a administração tributária proceder à revisão do ato tributário por iniciativa própria, no prazo que lhe é conferido (4 anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo não tiver sido pago) com fundamento em erro imputável aos serviços, pode igualmente fazê-lo a pedido do sujeito passivo, ainda que após o termo do prazo que a este é concedido para formular o pedido por iniciativa própria (arts.49° n°1 e 78° n°s 1 e 7 LGT/art. 86° n° 4 al. a) CPPT; na doutrina Diogo Leite de Campos/Benjamim Silva Rodrigues/Jorge Lopes de Sousa Lei Geral Tributária comentada e anotada 4ª edição 2012 pp. 705/706).

Esta interpretação, embora permitindo um alargamento do período de instabilidade da situação tributária, com preterição do valor da segurança jurídica, resulta da aplicação dos princípios da decisão, legalidade, justiça, igualdade e imparcialidade (art. 266° n° 2 CRP; art. 56° n°1 LGT) (cf. designadamente, acórdãos STA-SCT 20.03.2002 processo n° 26580; 29.10.2003 processo n° 462/03; 11.05.2005 processo n° 319/05; 22.03.2011 processo n° 1009/10).

Constitui erro imputável aos serviços, determinante da admissibilidade da impugnação judicial deduzida, o indeferimento (expresso ou tácito) do pedido de revisão oficiosa formulado pelo contribuinte, com fundamento em norma de direito nacional que viola norma de direito comunitário, integrante de ordenamento de hierarquia superior.

A vinculação da administração tributária ao cumprimento das normas de direito comunitário ou convencional radica na circunstância de, por imperativo de disposição constitucional, elas integrarem o ordenamento jurídico nacional e vigorarem na ordem interna, estando os órgãos e agentes administrativos subordinados à Constituição e à lei (arts. 8° nºs 2 e 3 e 266° n° 2 CRP).”  (sublinhado nosso)

 

                Em moldes similares, decidiu o Tribunal Arbitral no processo do CAAD n.º 297/2020-T, ao considerar como erro imputável aos serviços o erro na aplicação do Direito da União Europeia, enquadrável no prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT para a revisão oficiosa dos atos tributários. 

 

Em síntese, a revisão oficiosa exige que, cumulativamente, se verifiquem três requisitos:

i)             O pedido seja formulado no prazo de 4 anos contados a partir do ato cuja revisão se requer (ou a todo o tempo quando o tributo não se encontre pago);

ii)            Tenha origem em erro imputável aos serviços e

iii)           Proceda da iniciativa do contribuinte ou se realize oficiosamente pela AT.

 

Todos estes requisitos estão reunidos na situação vertente, pois o erro imputável aos serviços abrange o erro nos pressupostos de iure, por violação do Direito da União Europeia.

Neste âmbito, não devem confundir-se os requisitos de aplicabilidade do prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT, no plano das condições de admissibilidade da instância, com as condições de procedência (de mérito) da ação.

 

A alegação, pela Requerente, de erro de direito, que inclui o Direito da União Europeia, constitui um pressuposto válido para a aplicação (estatuição) do prazo de 4 anos da citada norma. Já saber se, efetivamente, ocorreu um erro imputável aos serviços, é outra questão, que se situa no plano do conhecimento do fundo da causa.

 

Dito de outro modo, não é necessário concluir que a Requerente tem razão quanto ao preenchimento e verificação dos pressupostos do invocado erro imputável aos serviços, ou seja, decidir pela procedência da ação, para aquilatar da tempestividade da ação. É suficiente que o erro imputável aos serviços seja a causa de pedir. 

 

In casu, as liquidações de ISV reportam-se aos anos 2017, 2018 e 2019 e o pedido de revisão oficiosa foi submetido em 24 de outubro de 2019, pelo que não foi ultrapassado o prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT.

 

À face do exposto, julga-se improcedente a exceção de caducidade do direito de ação, uma vez que o pedido de pronúncia arbitral deu entrada em 25.06.2020, dentro do prazo de 90 dias determinado pelo artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, a contar da notificação do despacho de indeferimento do recurso hierárquico , em 05.06.2020, por remissão para o artigo 102.º, n.º 1, alínea e) do CPPT.  

 

3.            Desconformidade do artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV com o artigo 110.º do TFUE

 

                3.1.        Quadro legal

 

A Requerente não contesta que a AT liquidou o ISV relativo às seiscentas e oito viaturas usadas que adquiriu noutros Estados-Membros da União Europeia nos exatos termos estatuídos nos artigos 7.º e 11.º do Código do ISV. Porém, questiona a conformidade da fórmula de cálculo e da taxa do imposto estabelecidas no artigo 11.º, n.º 1 desse Código para veículos usados com matrículas atribuídas por outros Estado-Membros da União, que considera discriminatória das viaturas provenientes desses Estados em relação às viaturas usadas nacionais e, por conseguinte, incompatível com o Direito da União Europeia, face ao teor do artigo 110.º do TFUE.

 

Neste âmbito, importa proceder ao confronto do regime nacional aplicável com o princípio não discriminatório constante do citado artigo 110.º do TFUE, para o que se transcrevem os artigos 7.º e 11.º do Código do ISV, na parte relevante para a apreciação do objeto desta ação (redação em vigor à data dos factos ):

 

“Artigo 7.º

Taxas normais - automóveis

1.            A tabela A, a seguir indicada, estabelece as taxas de imposto, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, e é aplicável aos seguintes veículos:

a)            Aos automóveis de passageiros;

b) Aos automóveis ligeiros de utilização mista e aos automóveis ligeiros de mercadorias, que não sejam tributados pelas taxas reduzidas nem pela taxa intermédia.

 

TABELA A

Componente cilindrada

[…]

Componente ambiental

Aplicável a veículos com emissões de CO2 resultantes dos testes realizados ao abrigo do Novo Ciclo de Condução Europeu Normalizado (New European Driving Cycle - NEDC)

[…]

Componente ambiental

Aplicável a veículos com emissões de CO2 resultantes dos testes realizados ao abrigo do Procedimento Global de Testes Harmonizados de Veículos Ligeiros (Worldwide Harmonized Light Vehicle Test Procedure - WLTP)

[…]

2. A tabela B, a seguir indicada, tem em conta exclusivamente a componente cilindrada, sendo aplicável aos seguintes veículos:

a)            Na totalidade do imposto, aos automóveis ligeiros de mercadorias, de caixa fechada, com lotação máxima de três lugares, incluindo o do condutor, e altura interior da caixa de carga inferior a 120 cm;

b) Na totalidade do imposto, aos automóveis ligeiros de mercadorias, de caixa fechada, com lotação máxima de três lugares, incluindo o do condutor, e tração às quatro rodas, permanente ou adaptável;

c) Aos automóveis abrangidos pelos n.ºs 2 e 3 do artigo seguinte, nas percentagens aí previstas;

d) Aos automóveis abrangidos pelo artigo 9.º, nas percentagens aí previstas.

TABELA B

Componente cilindrada

[…]

3. Ficam sujeitos a um agravamento de (euro) 500 no total do montante do imposto a pagar os veículos ligeiros equipados com sistema de propulsão a gasóleo, sendo o valor acima referido reduzido para (euro) 250 relativamente aos veículos ligeiros de mercadorias referidos no n.º 2 do artigo 9.º, com exceção dos veículos que apresentarem nos respetivos certificados de conformidade ou, na sua inexistência, nas homologações técnicas, um valor de emissão de partículas inferior a 0,002 g/km.

4. Sempre que o imposto relativo à componente ambiental apresentar um resultado negativo, será o mesmo deduzido ao montante do imposto da componente cilindrada, não podendo o total do imposto a pagar ser inferior a (euro) 100, independentemente do cálculo que resultar da aplicação da tabela A ou da tabela B.

5. A cilindrada dos automóveis movidos por motores Wankel corresponde ao dobro da cilindrada nominal, calculada nos termos do Regulamento das Homologações CE de Veículos, Sistemas e Unidades Técnicas Relativo às Emissões Poluentes, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 202/2000, de 1 de setembro.

6. Nas situações previstas na alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º, o montante do imposto a pagar é o que resulta da diferença entre o imposto incidente sobre o veículo após a respetiva operação, atento o tempo de uso entretanto decorrido, e o imposto originariamente pago, exceto nos casos de mudança de chassis, em que o imposto é devido pela totalidade.

7. (Revogado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro).

8. Os veículos que se encontrem equipados com motores preparados para o consumo, no seu sistema de propulsão, exclusivamente de gás de petróleo liquefeito (GPL), gás natural ou bioetanol, são tributados, na componente ambiental, pelas taxas correspondentes aos veículos a gasolina.

9. Os veículos que se encontrem equipados com motores preparados para o consumo, no seu sistema de propulsão, de biodiesel são tributados, na componente ambiental, pelas taxas correspondentes aos veículos a gasóleo.”

 

“Artigo 11.º

Taxas - veículos usados

1. O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:

TABELA D

Componente cilindrada

Tempo de uso

Percentagem de redução

Até 1 ano ……………………………………………..

Mais de 1 a 2 anos …………………………………...

Mais de 2 a 3 anos …………………………………...

Mais de 3 a 4 anos …………………………………...

Mais de 4 a 5 anos …………………………………...

Mais de 5 a 6 anos …………………………………...

Mais de 6 a 7 anos …………………………………...

Mais de 7 a 8 anos …………………………………...

Mais de 8 a 9 anos …………………………………...

Mais de 9 a 10 anos ………………………………….

Mais de 10 anos ……………………………………...          10

20

28

35

43

52

60

65

70

75

80

2. Para efeitos de aplicação do número anterior, entende-se por «tempo de uso» o período decorrido desde a atribuição da primeira matrícula e respetivos documentos pela entidade competente até ao termo do prazo para apresentação da declaração aduaneira de veículos.

3. Sem prejuízo da liquidação provisória efetuada, sempre que o sujeito passivo entenda que o montante do imposto apurado dos termos do n.º 1 excede o imposto calculado por aplicação da fórmula a seguir indicada, pode requerer ao diretor da alfândega, mediante o pagamento prévio de taxa a fixar por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, e até ao termo do prazo de pagamento a que se refere o n.º 1 do artigo 27.º, que a mesma seja aplicada à tributação do veículo, tendo em vista a liquidação definitiva do imposto:

ISV=((V/VR) x Y) + C

em que:

ISV representa o montante do imposto a pagar;

 

V representa o valor comercial do veículo, tomando por base o valor médio de referência determinado em função da marca, do modelo e respetivo equipamento de série, da idade, do modo de propulsão e da quilometragem média de referência, constante das publicações especializadas do setor, apresentadas pelo interessado;

VR é o preço de venda ao público de veículo idêntico no ano da primeira matrícula do veículo a tributar, tal como declarado pelo interessado, considerando-se como tal o veículo da mesma marca, modelo e sistema de propulsão, ou, no caso de este não constar de informação disponível, de veículo similar, introduzido no mercado nacional, no mesmo ano em que o veículo a introduzir no consumo foi matriculado pela primeira vez;

 

Y representa o montante do imposto calculado com base na componente cilindrada, tendo em consideração a tabela e a taxa aplicável ao veículo, vigente no momento da exigibilidade do imposto;

 

C é o «custo de impacte ambiental», aplicável a veículos sujeitos à tabela A, vigente no momento da exigibilidade do imposto, e cujo valor corresponde à componente ambiental da referida tabela.

4. Na falta de pedido de avaliação formulado nos termos do número anterior presume--se que o sujeito passivo aceita como definitiva a liquidação do imposto feita por aplicação da tabela constante do n.º 1.

5. (Revogado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro).”

 

No que se refere aos artigos 110.º e 191.º do TFUE, os mesmos dispõem nos seguintes moldes:

 

“Artigo 110.º

(ex-artigo 90.º TCE)

Nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares.

 

Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indiretamente outras produções.”

 

“Artigo 191.º

(ex-artigo 174.º TCE)

1. A política da União no domínio do ambiente contribuirá para a prossecução dos seguintes objetivos:

             a preservação, a proteção e a melhoria da qualidade do ambiente,

             a proteção da saúde das pessoas,

             a utilização prudente e racional dos recursos naturais,

             a promoção, no plano internacional, de medidas destinadas a enfrentar os problemas regionais ou mundiais do ambiente, e designadamente a combater as alterações climáticas.

2. A política da União no domínio do ambiente terá por objetivo atingir um nível de proteção elevado, tendo em conta a diversidade das situações existentes nas diferentes regiões da União. Basear-se-á nos princípios da precaução e da ação preventiva, da correção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e do poluidor-pagador.

Neste contexto, as medidas de harmonização destinadas a satisfazer exigências em matéria de proteção do ambiente incluirão, nos casos adequados, uma cláusula de salvaguarda autorizando os Estados-Membros a tomar, por razões ambientais não económicas, medidas provisórias sujeitas a um processo de controlo da União.

3. Na elaboração da sua política no domínio do ambiente, a União terá em conta:

             os dados científicos e técnicos disponíveis,

             as condições do ambiente nas diversas regiões da União,

             as vantagens e os encargos que podem resultar da atuação ou da ausência de atuação,

             o desenvolvimento económico e social da União no seu conjunto e o desenvolvimento equilibrado das suas regiões.

4. A União e os Estados-Membros cooperarão, no âmbito das respetivas atribuições, com os países terceiros e as organizações internacionais competentes. As formas de cooperação da União podem ser objeto de acordos entre esta e as partes terceiras interessadas.

O disposto no parágrafo anterior não prejudica a capacidade dos Estados-Membros para negociar nas instâncias internacionais e celebrar acordos internacionais.”

 

                3.2.        A Jurisprudência do Tribunal de Justiça

 

A tributação em ISV das viaturas usadas provenientes de outros Estados-Membros da União Europeia resultava, à data dos factos, da utilização das taxas normais do ISV também aplicadas às viaturas novas, previstas no artigo 7.º do respetivo Código, tendo em conta as tabelas e escalões da componente cilindrada e da componente ambiental (o nível de emissão de dióxido de carbono), corrigidas pela aplicação de percentagens de redução em relação à componente cilindrada, em função do tempo de uso das viaturas, nos termos do artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV (aplicável somente a veículos usados), sendo a redução tanto maior quanto mais antiga a viatura.

 

Assim, a percentagem de redução da taxa incidente na componente cilindrada das viaturas em estado de uso, atendia à desvalorização comercial média dos veículos, em função do tempo de utilização.

 

Porém, tal redução de taxa não se encontrava prevista para a componente ambiental, o que equivalia a tratar os veículos usados provenientes de outros Estados-Membros como veículos novos na parte relativa à tributação da componente ambiental. Desta forma, a tributação destes veículos usados era superior ao montante da taxa residual de ISV incorporada em veículos usados já matriculados no território nacional com o mesmo tempo de uso, diferenciação passível de configurar uma discriminação entre as viaturas usadas nacionais e as viaturas usadas provenientes da União Europeia que, segundo a Requerente, é proibida pelo artigo 110.º do TFUE.

 

                Neste domínio, importa compulsar a jurisprudência do Tribunal de Justiça que se pronunciou sobre o tema da incompatibilidade de normas nacionais que tributam de forma agravada os veículos provenientes de outros Estados-Membros quando comparados com os similares nacionais.

 

Segundo o Tribunal de Justiça, os Estados-Membros têm a liberdade de estabelecer um sistema de tributação diferenciado para certos produtos, em função de critérios objetivos. Contudo, essa diferenciação só é compatível com o Direito Europeu se prosseguir objetivos também eles compatíveis com as exigências do Tratado e do direito derivado e se as suas modalidades forem de molde a evitar “qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, das importações provenientes dos outros Estados-Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes” . 

 

Critérios como idade, a quilometragem, o estado geral, o modo de propulsão, a marca ou o modelo do veículo, o tipo de motor, a cilindrada e uma classificação assente em considerações ambientais são considerados objetivos e podem ser utilizados pelos Estados-Membros . Apesar disso, “um imposto automóvel não deve onerar mais os produtos provenientes de outros Estados-Membros do que os produtos nacionais similares”  .

 

Deste modo,  o Tribunal de Justiça interpreta o disposto no primeiro parágrafo do artigo 110.º do TFUE  como uma exigência de, independentemente do caráter ambiental do objetivo e do fundamento do imposto automóvel, ser “tida em conta a depreciação dos veículos usados que são objeto de tributação, visto que esse imposto se caracteriza por ser apenas cobrado uma vez quando do primeiro registo do veículo para efeitos da sua utilização no Estado-Membro em causa e por ser desta forma incorporado no referido valor.”   (realce nosso)

 

Na perspetiva do Tribunal de Justiça, para que um sistema de tributação dos veículos usados “importados” , que tome em consideração a depreciação efetiva dos veículos com base em critérios gerais, seja compatível com o artigo 114.° do TFUE  é “necessário que o mesmo esteja organizado de modo a excluir, tendo em conta as aproximações razoáveis inerentes a qualquer sistema deste tipo, todo e qualquer efeito discriminatório” , devendo garantir que a “importação” de um veículo proveniente de outro Estado-Membro não exceda o montante do imposto residual incorporado em veículos equivalentes ou similares já matriculados no território nacional .

 

Tendo o Tribunal de Justiça decidido, no processo Comissão/República Helénica, C-74/06, de 20.09.07, que a República Helénica não cumpriu as obrigações que lhe incumbiam por força do artigo 90.º do TCE (atual 110.º do TFUE) ao aplicar “um critério único de depreciação assente na antiguidade do veículo automóvel e ao fixar uma redução de 7% para os veículos automóveis cuja antiguidade seja de seis a doze meses ou de 14% para os veículos automóveis cuja antiguidade seja de um ano”, uma vez que tal critério não garante que o imposto devido não exceda  o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já registados no território nacional.

 

Posição que é reforçada no processo Ioan Tatu, C-402/09, de 07.04.11, declarando o Tribunal que “[o] artigo 110.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado-Membro crie um imposto sobre a poluição que incide sobre os veículos automóveis no momento da sua primeira matrícula nesse Estado-Membro, se esta medida fiscal for estruturada de tal maneira que desencoraje a colocação em circulação, no referido Estado-Membro, de veículos usados adquiridos noutros Estados-Membros, sem, por outro lado, desencorajar a compra de veículos usados da mesma idade e com o mesmo desgaste no mercado nacional”.

 

                Para o Tribunal de Justiça, a tomada em consideração da desvalorização real dos veículos é o parâmetro central. O que não implica necessariamente que cada um dos veículos tenha de ser avaliado casuisticamente ou sujeito a uma prova pericial, podendo os Estados-Membros fixar o valor dos veículos usados através de tabelas de percentagens fixas, calculadas com base nos supra mencionados critérios objetivos. No entanto, os critérios empregues têm de garantir, em todos os casos, um valor dos veículos usados (base de incidência) que seja muito próximo do seu valor real, como afirmado no processo Comissão/República Portuguesa, C-200/15, de 16.06.2016, em que estava em causa precisamente a aferição da compatibilidade do artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV, na redação anterior à Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro (“LOE2017”), tendo o Tribunal decidido que Portugal não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º do TFUE.

 

                O facto decisivo foi, neste caso, o de a legislação portuguesa à data ter um sistema de tributação em ISV que, por um lado, conduzia a que o imposto incidente sobre um veículo novo posto em circulação em Portugal fosse igual ao imposto devido por um veículo usado [“importado”] há menos de 1 ano e, por outro lado, limitava a desvalorização dos veículos automóveis usados há mais de 5 anos a 52%, independentemente do estado geral desses veículos.

 

Partindo do pressuposto de que “o valor de mercado de um veículo automóvel começa a diminuir a partir da data da sua compra ou da sua entrada em circulação e que esta diminuição continua para além do quinto ano da sua utilização”, o Tribunal de Justiça conclui que “a regulamentação nacional em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo a pagar pelos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros para Portugal e utilizados há menos de um ano ou há mais de cinco anos é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos. Por conseguinte, a regulamentação nacional em causa não garante que […] os veículos usados importados de outro Estado-Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares disponíveis no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE.”

 

Subsequentemente, no processo Manuel dos Santos, C-640/17, de 17.04.18, o Tribunal de Justiça reitera a aplicação do parâmetro da “perfeita neutralidade das imposições internas no que respeita à concorrência entre os produtos que já se encontram no mercado nacional e os produtos importados”, a respeito do Imposto Único de Circulação, considerando não ser a legislação nacional consentânea com o disposto no artigo 110.º do TFUE ao não tributar os veículos automóveis ligeiros de passageiros matriculados em Portugal antes de 1981 e, simultaneamente, sujeitar a imposto os veículos similares matriculados noutro Estado Membro antes de 1981 (quando matriculados em Portugal, pela primeira vez, após essa data), o que favorecia a venda de veículos usados nacionais e desencorajava a importação de veículos usados similares.

 

                Em síntese, a jurisprudência do Tribunal de Justiça é unânime no sentido de reclamar uma identidade de tratamento – tão próxima da realidade quanto possível – dos veículos usados “importados” face aos veículos usados já matriculados no território nacional com o mesmo tempo de uso, atenta a taxa residual de ISV incorporada nestes últimos.

 

De acordo com o Tribunal de Justiça são diversos os critérios objetivos que os Estados-Membros podem utilizar para determinar essa desvalorização, designadamente a idade, a cilindrada e a classificação assente em considerações ambientais, conforme sucede no Código do ISV. Porém, como acima assinalado, a aplicação destes critérios, incluindo os ambientais, não pode resultar num imposto automóvel que onere mais os veículos oriundos de outros Estados-Membros do que os produtos nacionais similares.

 

                3.3.        Análise Concreta

 

                O artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV, objeto de discussão nos presentes autos, foi objeto de alterações posteriores à decisão, desfavorável para Portugal, da ação por incumprimento movida pela Comissão Europeia (processo C-200/15).

 

Com efeito, a Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, passou a admitir a desvalorização do veículo incidente sobre o critério cilindrada tendo em conta uma percentagem de redução de 10% no decurso primeiro ano de utilização, a qual aumenta de forma progressiva até 80% para veículos com mais de 10 anos (anteriormente não era tida em conta qualquer desvalorização dos veículos usados importados com menos de 1 ano e a desvalorização dos veículos era limitada a 52% o que, como acima referido, o Tribunal de Justiça julgou desconforme ao artigo 110.º do TFUE, no processo C-200/15).

 

Por outro lado, a Requerida afirma que a jurisprudência europeia não se pronuncia especificamente sobre a questão da percentagem de redução de ISV aplicável a um veículo usado “importado” apenas incidir seletivamente sobre um elemento específico de tributação, a cilindrada, e não sobre a componente ambiental. Assim, parece defender que o Tribunal de Justiça ainda não tomou posição sobre a particular questão de direito que é suscitada nesta ação arbitral. 

 

Sem prejuízo da alteração legislativa referida e de a jurisprudência do Tribunal de Justiça, por ser anterior, não ter apreciado a específica redação do artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV, na versão em vigor  à data dos factos [2017 a 2019], afigura-se que a questão que se suscita é análoga às que foram objeto de pronúncia por parte daquele Tribunal e atrás assinaladas.

 

Com efeito, a parametria fundamental subjacente à jurisprudência constante do Tribunal de Justiça é a de o artigo 110.º não admitir a diferenciação fiscal entre os veículos  usados provenientes de outros Estados-Membros e os veículos nacionais usados com características equiparadas.

 

Ora, tal critério não pode julgar-se satisfeito se uma das componentes da tributação do imposto automóvel nacional aplicada a veículos novos – a componente ambiental – não sofre qualquer desvalorização ou redução quando se trata da admissão de veículos usados provenientes de outros Estados-Membros. Assim, na componente ambiental, estes veículos acabam por comportar uma tributação equivalente à de um veículo novo, sem atender à normal depreciação que um usado forçosamente tem. Pelo que, desta forma, o tratamento dos usados provenientes da União Europeia acaba por ser desfavorável quando comparado com o dos usados nacionais, atento imposto (meramente) residual contido neste últimos, concluindo-se que o 11.º, n.º 1 do Código do ISV é, por essa razão, incompatível com o comando anti discriminatório que o artigo 110.º do TFUE contém.

 

Este é também o sentido da jurisprudência arbitral, conforme se pode constatar das decisões proferidas nos processos do CAAD n.ºs 572/2018-T, de 03.04.2019; 346/2019-T, de 02.11.2019; 350/2019-T, de 27.01.2020; 348/2019-T, de 31.01.2020; 498/2019-T, de 31.01.2020; 466/2019-T, de 06.03.2020 ; 660/2019-T, de 15.06.2020; 872/2019-T, de 25.06.2020; e 98/2020-T, de 30.10.2020.

Neste âmbito, transcrevem-se os seguintes excertos ilustrativos:

“[…] o art. 11.º do CISV está em clara desconformidade com o disposto no art. 110.º do TFUE, visto que, por via da exclusão de qualquer redução quanto à componente ambiental, se sujeitam os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional – o que, como se viu, é contrário ao que tem sido a orientação do TJUE no que diz respeito à interpretação do referido art. 110.º.” 

 

Ou:

“62. Ora, ao conferir a percentagem de redução apenas sobre a componente de cilindrada, o legislador português está a tratar os veículos usados provenientes de outro EM como veículos novos na parte relativa à tributação da componente ambiental, não refletindo o respetivo tempo de uso.

63. O que, só por si, faz com que a tributação destes veículos usados seja superior ao montante da taxa residual de ISV incorporada em veículos usados já matriculados em território nacional com o mesmo tempo de uso.

64. E leva a que Portugal esteja a cobrar imposto sobre os veículos usados “importados” de outros EM, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional.” 

 

Ou ainda:

 

“[…] a tributação automóvel pode assentar em critérios objetivos, como sejam o tipo de motor, a cilindrada e, inclusivamente, uma classificação assente em considerações ambientais. Porém, quando aplicados a veículos usados importados de outros Estados-Membros, o montante de imposto cobrado não pode exceder o montante que se contém no valor residual de veículos usados similares já registados no Estado-Membro de importação. É, pois, constante a orientação do Tribunal de Justiça, no que concerne à interpretação daquele artigo 110.º quando referido a tributação automóvel: um imposto automóvel não deve onerar mais os produtos provenientes de outros Estados-Membros do que os produtos nacionais similares. […]

Nestes termos, julga-se incompatível com o direito comunitário a norma do artigo 11.º do Código do ISV, na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional.”

 

                Impõe-se, desta forma concluir que a não redução da componente ambiental no cômputo do ISV devido pela admissão de veículos usados provenientes de outros Estados-Membros da União Europeia inquina o n.º 1 do artigo 11.º do Código do ISV por constituir uma discriminação (negativa) desses veículos, desconforme ao disposto no artigo 110.º do TFUE.

 

Esta conclusão não é afastada pelo argumento, trazido pela Requerida, de que o legislador nacional atendeu, no artigo 11.º, n.º 1 do CISV, a que a componente ambiental se destina a compensar os efeitos nefastos que os veículos automóveis causam ao ambiente, em linha com a política da União no domínio do ambiente, definida no artigo 191.º do TFUE , e com o disposto no artigo 66.º da CRP sobre o direito ao ambiente e qualidade de vida. Acrescenta que o regime fiscal visa, de forma idêntica, o cumprimento das responsabilidades ambientais assumidas no âmbito do Protocolo de Quioto e do Acordo de Paris.

 

Segundo este raciocínio, do artigo 191.º do TFUE extrair-se-ia uma norma de adequação ao artigo 110.º do TFUE, pelo que estaríamos perante uma discriminação permitida.

 

                Na verdade, a preservação do ambiente constitui um objetivo fundamental, devendo a política fiscal compatibilizar-se com a mesma e, na medida do possível, contribuir para este desiderato. No entanto, segundo entendemos, na presente ação arbitral não é posto em crise esse ponto de vista.

 

A questão que se coloca nos autos não é a da escolha entre uma solução ambientalmente responsável e outra que não o seja. O legislador nacional pode (e deve) adotar medidas fiscais que promovam e salvaguardem o ambiente. Dito isto, terá, contudo, de o fazer na mesma medida para os produtos nacionais e para aqueles que são procedentes de outros Estados-Membros da União Europeia, não lhe sendo lícito discriminar desfavoravelmente os veículos de outros Estados-Membros por razões ambientais sem que faça recair o mesmo agravo sobre os veículos nacionais. Foi, aliás, este entendimento que o Tribunal de Justiça claramente subscreveu no caso Ioan Tatu, C-402/09.

 

                Perfilhando idêntica posição, refere a decisão arbitral 98/2020-T:

 

                “44. […] a preocupação ambiental pode ser entendida diversamente pelos diferentes Estados-membros, conduzindo a regimes mais ou menos exigentes, inclusivamente em termos fiscais, mas esses regimes hão-de respeitar o princípio da igualdade e não discriminação.

45. A leitura do art. 191.º TFUE (e bem assim das regras constitucionais relativas ao ambiente) não impõe qualquer adequação do princípio da neutralidade fiscal, pela simples razão que não existe qualquer conflito entre elas.

46. A invocação do princípio da equivalência merece a mesma apreciação: pode o legislador entender deve onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infra-estruturas viárias e sinistralidade rodoviária – tal como refere a Requerida -, mas isso não lhe permite taxar de forma agravada os veículos usados importados.”

 

É a própria Requerida que, ao defender que a aplicação do disposto no artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV “não obsta à admissão de veículos usados em território nacional”, acaba por afirmar que se pretende “orientar os consumidores na escolha de veículos com menores emissões de dióxido de carbono”, o que conduz implicitamente, e de forma inevitável, à conclusão de que há uma tributação mais gravosa dos veículos usados adquiridos em transações intracomunitárias, o que é vedado pelo artigo 110.º do TFUE.

 

De notar que a redação do artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV foi recentemente modificada pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro (LOE2021), passando a prever percentagens de redução, não só tendo em conta a componente cilindrada, mas também a componente ambiental .

 

                3.4.        Sobre a Alegada Inconstitucionalidade da Interpretação da Requerente

 

                Violação do Princípio da Legalidade

 

Na tese da Requerida, a conclusão pela desconformidade do artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV com o artigo 110.º do TFUE consubstancia um benefício fiscal que não se encontra previsto na lei, pelo que a mesma viola o princípio da legalidade, constante do n.º 2 do artigo 103.º, n.º 2 da CRP.

 

Contudo, não se pode acolher a premissa usada no silogismo da AT, pois a desaplicação de um regime (fiscal) nacional incompatível com o Direito Europeu não representa um benefício fiscal, mas a correção de um parâmetro imperativo para o Estado português  que não foi respeitado. Estamos, assim, perante a aplicação do princípio da neutralidade fiscal ínsito no artigo 110.º do TFUE e não face à atribuição de um benefício fiscal. Deste modo, não se verifica a necessidade de uma intervenção legislativa, sendo suficiente o quadro legal preexistente, que inclui o Direito Europeu, para fundar o princípio da não discriminação que consta do TFUE que determina a desaplicação das soluções que o legislador ordinário adote e não se coordenem ao mesmo princípio.

 

Como referido na decisão arbitral n.º 660/2019-T, o artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV leva a que “Portugal esteja a cobrar imposto sobre os veículos usados «importados» de outros EM, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional (ou seja, ao contrário do que alega a AT, não existe qualquer benefício fiscal que decorra do reconhecimento do número de anos de uso do veículo na tributação da componente ambiental; trata-se de uma mera equiparação da tributação de produtos similares).” (realce nosso)

 

Posição que a decisão arbitral n.º 98/2020-T secunda, nos seguintes termos:

 

“51. A liberdade argumentativa da AT assume mesmo algum excesso quando pretende que uma eventual aplicação dos níveis de redução previstos para a componente cilindrada à componente ambiental redundaria numa subversão da tributação da componente ambiental, resultando na atribuição de um benefício.

 

52. Se, do que se trata, é sempre e apenas da neutralidade fiscal, desta não pode, por definição, resultar a atribuição de qualquer benefício.”

 

Nestes termos, não se identifica a violação do princípio da legalidade que a Requerida imputa à interpretação preconizada.

 

Violação do Direito ao Ambiente

 

Neste ponto, continua a não assistir razão à Requerida. Com efeito, não se infere do princípio da neutralidade fiscal e da não discriminação qualquer violação dos objetivos ambientais ou do disposto no artigo 66.º, n.º 2, alíneas a), f) e h) da CRP, nem a Requerida logra explicar porque chega a tal conclusão, pelo que também se conclui pela improcedência do alegado pela Requerida.

 

Violação dos Princípios do Estado de Direito e do Acesso ao Direito e à Tutela Jurisdicional Efetiva

 

Por fim, a Requerida considera que a interpretação da Requerente viola o disposto nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4 e 266.º da CRP, partindo do pressuposto, novamente erróneo, de que uma decisão que desaplique norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia, não é passível de recurso para o Tribunal Constitucional, pois não é enquadrável nas alíneas a) e b) do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional.

 

                A este respeito convém, antes de mais, notar que os tribunais arbitrais fazem parte das categorias de tribunais previstas no artigo 209.º da CRP, pelo que as suas pronúncias são emitidas mediante processo equitativo e têm natureza jurisdicional, a que se soma o facto de as suas decisões serem emitidas em prazo razoável.

 

                Por outro lado, a faculdade de submissão de atos de liquidação de ISV à jurisdição arbitral foi expressamente determinada pelo legislador ordinário no artigo 4.º, n.º 1, conjugado com o artigo 2.º, n.º 1, ambos do RJAT, e concretizada na Portaria de Vinculação .

 

Acresce não se perceber invocação pela Requerida do artigo 266.º da Constituição, que versa sobre os princípios fundamentais da atuação da administração pública e não sobre o princípio da tutela jurisdicional efetiva .

 

Por fim, no tocante ao regime de recursos (duplo grau de decisão), contrariamente ao que é afirmado pela Requerida, o recurso para o Tribunal Constitucional das decisões arbitrais não se restringe às situações previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, abrangendo também as da alínea i) do mesmo número, relativas às decisões que “recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional”.

 

Neste sentido, compulsa-se o acórdão n.º 711/2020, de 09.12.2020, do Tribunal Constitucional, de que se transcreve o seguinte excerto com relevo para a questão:

“[…] é de aplicar aos tribunais arbitrais as vias de recurso de decisões judiciais para o Tribunal Constitucional previstas na Constituição e na LTC, incluindo a estabelecida na alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. É certo que a letra do artigo 25.º, n.º 1, do RJAT refere que a «decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é suscetível de recurso para o Tribunal Constitucional na parte em que recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que aplique norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada». No entanto, a ausência de uma referência expressa à via de recurso prevista na alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC não pode ser interpretada como restringindo o acesso ao Tribunal Constitucional, nesse contexto. Efetivamente, estando os recursos para o Tribunal Constitucional estabelecidos na Constituição e na LTC, que é uma lei orgânica, com valor reforçado (artigo 164.º, alínea c), e artigo 166.º, n.º 2, da Constituição), nunca poderia o RJAT – que é um decreto-lei autorizado – pretender eliminar uma ou mais dessas vias, sob pena da sua inconstitucionalidade. Assim, o artigo 25.º, n.º 1, RJAT deve ser interpretado, à luz da Constituição, como reafirmando que das decisões arbitrais, como de quaisquer outras decisões judiciais em Portugal, cabe recurso para o Tribunal Constitucional nos termos e condições previstos no artigo 280.º da Constituição e nos artigos 70.º e seguintes da LTC.”

 

                Conclui-se, desta forma, que a interpretação preconizada pela Requerente não enferma das inconstitucionalidades apontadas pela AT.

 

                4.            Sobre o Reenvio Prejudicial

 

A questão de interpretação do Direito Europeu discutida nos autos respeita ao princípio de não discriminação entre os produtos nacionais e os produtos de outros Estados-Membros que sejam similares, consagrado no artigo 110.º do TFUE.

 

Tal questão foi especificamente clarificada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça a propósito de diversos casos relativos à aplicação do imposto automóvel nos Estados-Membros, conforme ficou acima referenciado.

 

Neste contexto, de acordo com o entendimento do Tribunal de Justiça, a partir do acórdão Cilfit , a obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação pode ser dispensada quando:

 

a)            A questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal; ou

b)           O Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma; ou

c)            O juiz nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente.  

 

No caso sub judice, verifica-se o preenchimento dos requisitos previstos na alínea b), podendo afirmar-se que o “ato” em questão está devidamente aclarado pela jurisprudência consolidada do Tribunal de Justiça, como o tem entendido também a jurisprudência arbitral .

 

                5.            Juros Indemnizatórios

 

O direito a juros indemnizatórios é regido pelo artigo 43.º da LGT que, no seu n.º 1, o faz depender da ocorrência de erro imputável aos serviços do qual tenha resultado o pagamento de prestação tributária superior à legalmente devida.

 

A jurisprudência arbitral tem reiteradamente afirmado a competência destes tribunais para proferir pronúncias condenatórias derivadas do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios originados em atos tributários ilegais que aí sejam impugnados, que, havendo decisão a favor do sujeito passivo, postulam o restabelecimento da situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e 43.º e 100.º da LGT.

 

Na situação vertente, as liquidações parcialmente impugnadas padecem de erro imputável à Requerida, por aplicação de normas nacionais que violam o Direito da União Europeia (que faz parte do bloco de legalidade constitutivo da ordem jurídica nacional), pois deveria ter sido considerada, nas liquidações de ISV, além da redução da taxa aplicável à componente cilindrada em função dos anos de uso dos veículos prevista no artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV (na redação vigente à data dos factos), a redução da taxa aplicável à componente ambiental em função do mesmo critério (anos de uso dos veículos), aplicável por imperativo do princípio não discriminatório ínsito no artigo 110.º do TFUE.

 

A não aplicação da mencionada redução na componente ambiental resultou no pagamento de uma prestação tributária em montante superior ao legalmente devido, que se cifra em € 180.464,11, pelo que se verifica o pressuposto de erro imputável aos serviços e a constituição, na esfera da Requerente, do direito ao recebimento de juros indemnizatórios que a visam ressarcir da ilegal privação desta quantia pelo período de tempo que perdurar, até à sua restituição, conforme preceituado nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

* * *

 

                À face do exposto, conclui-se pela procedência da ação, por vício material de violação de lei (do artigo 110.º do TFUE), com a anulação parcial dos seiscentos e oito atos tributários de liquidação de ISV, referentes aos anos 2017, 2018 e 2019, no valor de € 180.464,11, em conformidade com o disposto no artigo 163.º, n.º 1 do novo CPA, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT, sendo devidos os juros indemnizatórios correspondentes.

 

* * *

 

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil (v. artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).

 

                V.           DECISÃO

 

                De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar:

 

(a)          Improcedente a exceção de caducidade do direito de ação suscitada pela Requerida;

(b)          A ação integralmente procedente, com a consequente anulação parcial dos seiscentos e oito atos de liquidação de ISV, referentes aos anos 2017, 2018 e 2019, no valor de € 180.464,11, anulando-se, de igual modo, as decisões dos atos de segundo/terceiro grau que nessa parte confirmaram tais atos de liquidação;

(c)          Procedente o pedido de juros indemnizatórios,

 

tudo com as legais consequências.

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se ao processo o valor de € 180.464,11 (cento e oitenta mil quatrocentos e sessenta e quatro euros e onze cêntimos) correspondente ao valor das liquidações de ISV cuja anulação é peticionada pela Requerente – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável ao abrigo do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

VII.         CUSTAS

 

                Custas no montante de € 3.672,00, a cargo da Requerida, em razão do decaimento, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

* * *

Notifiquem-se as Partes e, bem assim, o Ministério Público para efeitos do disposto no artigo 280.º, n.º 3 da CRP e no artigo 72.º, n.º 3 da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional).

 

Lisboa, 1 de abril de 2021

 

Os Árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins

Luís Menezes Leitão

Miguel Zeferino Ferreira