Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 278/2020-T
Data da decisão: 2021-04-13  IVA  
Valor do pedido: € 428.877,44
Tema: IVA - Locação financeira e ALD; Direito à dedução parcial; Coeficiente de imputação específico. Ofício-circulado n.º 30108
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Marisa Isabel Almeida Araújo e Sofia Ricardo Borges (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 28 de agosto de 2020, acordam no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

A...– SUCURSAL EM PORTUGAL, doravante “Requerente”, pessoa coletiva número ..., com sede na ..., n.º ..., ..., em Lisboa, apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante “RJAT”), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, na redação vigente. 

 

A Requerente visa a anulação do ato de indeferimento da Reclamação Graciosa deduzida contra a autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) relativa ao ano 2018, efetuada através da declaração periódica apresentada com referência ao período de dezembro desse ano, e a consequente anulação (parcial) desta autoliquidação, por não ter incluído IVA dedutível no valor de € 428.877,44.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante também designada por “AT”.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT, em 1 de junho de 2020.

 

Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 5.º, na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 29 de julho de 2020, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

O Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 28 de agosto de 2020.

 

POSIÇÃO DA REQUERENTE

 

A Requerente baseia a sua pretensão no vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito, nos seguintes termos:

a)            É um sujeito passivo de IVA misto, uma vez que a sua atividade compreende, quer operações tributáveis que conferem o direito à dedução (contratos de leasing e ALD, locação de cofres e custódia de títulos), quer operações isentas que não conferem esse direito (operações de financiamento/ concessão de crédito e operações de pagamentos);

b)           Em relação à aquisição de bens e serviços direta e exclusivamente conexos com operações que conferem o direito à dedução, como os bens (veículos) objeto dos contratos de locação financeira, deduziu na íntegra o IVA incorrido;

c)            Nas aquisições de bens e serviços utilizados exclusivamente na realização de operações que não conferem o direito à dedução, não deduziu qualquer IVA;

d)           Nos recursos de utilização mista, utilizou dois métodos de dedução parcial: o método da afetação real, nas áreas em que conseguiu determinar critérios objetivos de medição do grau de utilização efetiva; e o método da percentagem de dedução (pro rata), nos demais casos, incluindo a atividade de leasing;

e)           Na atividade de leasing, incorre em gastos significativos, não apenas em relação à gestão dos contratos de locação financeira, mas também com a disponibilização dos bens locados;

f)            Para determinar o montante de IVA dedutível relativamente a aquisições de bens e serviços de utilização mista, aplicou o coeficiente de imputação específico para o ano 2018, de acordo com o disposto no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009;

g)            Assim, seguindo este Ofício-circulado, no cálculo da percentagem de dedução apenas considerou como valor relativo às operações de locação financeira, no numerador e no denominador da fração de apuramento daquela percentagem, o montante anual da componente de juros e outros encargos contida nas rendas de locação, excluindo desse apuramento, a componente de amortização financeira. Deste cálculo resultou a percentagem de 9% de IVA dedutível no ano de 2018 (correspondente a imposto deduzido no valor de € 551.413,85);

h)           Se tivesse procedido à inclusão da componente da amortização financeira na mencionada fração de apuramento, o IVA dedutível corresponderia a 16%, ou seja, a € 980.291,30;

i)             Considera que o método consagrado no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108 é ilegal e que, no âmbito da atividade de leasing, devia ser aplicado o disposto no artigo 23.º, n.º 4 do Código do IVA, cuja fórmula abrange (quer no numerador, quer no denominador da fração de apuramento da percentagem de dedução) o montante [anual] da globalidade das rendas e não apenas o montante [anual] parcial das rendas correspondente aos juros e outros encargos;

j)             O que se traduz na dedução adicional que entende assistir-lhe de € 428.877,44 de IVA;

k)            A Diretiva IVA  no n.º 2 do seu artigo 174.º não confere margem de discricionariedade quanto à fórmula de cálculo do pro rata. Quanto a métodos alternativos, o n.º 2 do artigo 173.º do diploma europeu prevê apenas a aplicação de pro rata por setor de atividade (alínea a)) ou a dedução com base na afetação dos bens ou serviços adquiridos (alínea c));

l)             A imposição, pela AT ao sujeito passivo, do método da afetação real, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 23.º do Código do IVA, depende de a AT determinar que a utilização do método do pro rata conduz a distorções significativas na tributação, o que não sucedeu, nem o ofício fundamenta tal conclusão;

m)          Por outro lado, o método da afetação real é inaplicável ao caso da Requerente, pois é inviável identificar em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização dos bens e serviços adquiridos nas atividades/operações sujeitas a distintos regimes de IVA, com e sem direito à dedução;

n)           O coeficiente de imputação específico determinado pelo ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108 resulta precisamente de não ser possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos recursos mistos, pelo que constitui um paradoxo e não tem fundamento legal, violando o princípio da legalidade previsto no n.º 2 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”);

o)           A determinação de uma percentagem de dedução calculada com exclusão de uma parte do valor (renda) das operações de locação financeira contraria a fórmula única e injuntiva prevista no artigo 174.º da Diretiva IVA e nos n.ºs 4 e 5 do artigo 23.º do Código do IVA, pelo que o coeficiente de imputação é, de igual modo, incompatível com a Diretiva IVA;

p)           A posição que sustenta está em consonância com diversa jurisprudência arbitral, que cita (decisões arbitrais n.ºs 309/2017-T; 311/2017-T; 312/2017-T; 354/2019-T), segundo a qual o Código do IVA não permite a utilização do coeficiente de imputação específico, por não ser enquadrável no n.º 4 do artigo 23.º deste compêndio legal, nem a imposição de uma percentagem de dedução especial pode ocorrer independentemente da utilização real dos bens e serviços;

q)           O acórdão do Tribunal de Justiça, de 18 de outubro de 2018, processo Volkswagen Financial Services, C-153/17, afasta-se da jurisprudência do acórdão Banco Mais, C-183/13 (de 10 de julho de 2014), invocado pela AT, e valida a posição da Requerente, no sentido de que, sendo a utilização dos bens adquiridos sobretudo determinada pela disponibilização dos bens locados, como considera ocorrer in casu, o método de repartição que não tenha em conta o valor do bem [que corresponde em traços gerais à “amortização financeira”], não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que a que advém do pro rata, sendo desconforme à Diretiva IVA;

r)            A leitura que o Supremo Tribunal Administrativo tem feito, apesar de admitir que a AT tem prerrogativas para alterar o modo de cálculo da percentagem de dedução para os bens de utilização mista, não reconhece validade incondicional ao coeficiente de imputação específico, fazendo depender a sua admissibilidade da demonstração de que produz resultados mais precisos do que o método da percentagem de dedução;

s)            O prazo para o exercício do direito à dedução por erro de enquadramento (erro de direito) é, conforme afirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e arbitral, de 4 anos, nos termos previstos no artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA.

 

A Requerente conclui pelo pedido de anulação parcial da (auto)liquidação de IVA efetuada na declaração periódica referente a dezembro de 2018, com a consequente restituição do valor de IVA suportado em excesso de € 428.877,44, acrescido de juros indemnizatórios ao abrigo do preceituado nos artigos 43.º da LGT e 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), até à sua restituição.

 

A título subsidiário, a Requerente solicita o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça, em relação à consideração do valor das amortizações financeiras no cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista.

 

Juntou 2 documentos e indicou 4 testemunhas.

 

POSIÇÃO DA REQUERIDA

 

A AT, notificada para o efeito por despacho de 28 de agosto de 2020, apresentou Resposta, na qual se defendeu por impugnação, concluindo pela improcedência da ação e absolvição de todos os pedidos. Neste âmbito, alega em síntese que:

a)            O artigo 23.º, n.º 3, alínea b) do Código do IVA confere à AT o poder de obrigar o sujeito passivo a adotar o método previsto no Ofício-circulado n.º 30108, tendo em vista afastar distorções significativas na tributação;

b)           O coeficiente de imputação específico é o único adequado, salvaguarda a neutralidade e está de acordo como as normas de direito europeu, nomeadamente os artigos 173.º e 174.º da Diretiva IVA, e com o artigo 23.º do Código do IVA;

c)            A renda de locação financeira mobiliária decompõe-se em duas partes, uma correspondente ao capital ou amortização financeira que traduz o “reembolso da quantia emprestada” (quantia que corresponde ao preço de aquisição do bem dado em locação), e outra, de juros e encargos, que constitui a remuneração do locador;

d)           Tendo o locador, no momento de aquisição do bem objeto da locação, exercido o direito à dedução integral do IVA que onerou essa aquisição, por via do método da imputação direta, deve ser expurgado do cálculo da percentagem de dedução a parte da renda que corresponde ao valor de amortização financeira, pois esta consubstancia a restituição do capital financiado/investido para a aquisição do bem locado;

e)           Deste modo, é apenas o diferencial (genericamente juros) que se encontra conexo com a aquisição de recursos de utilização mista (indistintamente em operações com e sem direito à dedução);

f)            Entendimento distinto permitiria um aumento artificial da percentagem de dedução do IVA incorrido nos inputs de utilização mista;

g)            O acórdão do Tribunal de Justiça no processo Banco Mais, C-183/13, de 10 de julho de 2014, corrobora a conformidade do procedimento preconizado pela AT e a interpretação deste tribunal vincula os tribunais nacionais, nos termos do artigo 8.º, n.º 4 da Constituição;

h)           Bem assim, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 4 de março de 2020, processo n.º 052/19.0BALSB, vem confirmar que a norma do artigo 23.º, n.º 2  do Código do IVA reproduz a regra de determinação do direito à dedução enunciada na Diretiva IVA que estabelece que os Estados-Membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços, em linha com a jurisprudência anterior daquele Supremo Tribunal (v. arestos proferidos nos processos n.º 01075/13, de 29 de outubro de 2014, n.º 081/13, de 4 de março de 2015, n.º 0970/13, de 3 de junho de 2015, n.º 01874/13, de 17 de junho de 2015, n.º 0330/14, de 27 de janeiro de 2016, e n.º 0485/17, de 15 de novembro de 2017);

i)             Desta forma, não ocorre violação do princípio da legalidade, pois o artigo 23.º do Código do IVA determina expressamente nos seus n.ºs 3 e 2 que a AT pode impor condições especiais aplicando o critério que entenda mais consentâneo à situação e que respeite a neutralidade do imposto, pelo que não só o conteúdo das normas que constam do Ofício-circulado é conforme ao direito (Diretiva IVA), como o seu estabelecimento através desse processo está de acordo com as instruções do legislador;

j)             A Requerente não demonstrou, como lhe competia, que a utilização dos recursos mistos por parte da Requerente foi sobretudo determinada pela disponibilização dos veículos locados. Em relação à disponibilização dos veículos locados, os inputs em que o locador incorre circunscrevem-se essencialmente à aquisição desses veículos. Os restantes inputs que emergem na vigência do contrato de locação, decorrem das vicissitudes deste e situam-se ao nível do financiamento e da gestão;

k)            Pelo que todos os custos em que a Requerente incorre inerentes à gestão do contrato encontram-se refletidos na parte da renda que corresponde aos juros e que constitui a remuneração do locador;

l)             Além de que, em relação a alguns gastos que incorre (como o tratamento do IUC junto dos clientes, multas e infrações e segundas vias de faturas), a Requerente se faz cobrar autonomamente por serviços prestados através de comissões específicas;

m)          Assim, não tendo satisfeito o ónus da prova, deve ser a ação decretada improcedente à semelhança do que foi decidido nas decisões arbitrais n.º 383/2019-T, de 27 de fevereiro de 2020, n.º 709/2019-T, de 13 de setembro de 2020, 759/2019-T, de 5 de setembro de 2020, e 927/2019-T, de 21 de setembro de 2020.

n)           Não se verificam os pressupostos elencados no artigo 43.º da LGT, designadamente o erro imputável aos serviços e o pagamento indevido de prestação tributária, pelo que não assiste à Requerente o direito a juros indemnizatórios.

 

Em 30 de outubro, foi junto o processo administrativo (“PA”).

 

* * *

Por despacho de 12 de outubro de 2020, o Tribunal Arbitral determinou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, com produção de prova testemunhal, por se julgar útil para o apuramento da verdade material.

 

Em 20 de novembro de 2020, realizou-se a referida reunião, na qual foram ouvidas as testemunhas B... e C... e prescindidas a primeira e quarta testemunhas indicadas pela Requerente. Atenta a junção de documentos pela Requerente, foi deferido o requerimento da Requerida de dilatação do prazo de vista para o limite do prazo de apresentação das alegações escritas.

Na mesma reunião, as Partes foram notificadas para alegações escritas sucessivas, com a fixação do prazo de 15 dias. O Tribunal advertiu ainda a Requerente da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente até à data de prolação da decisão arbitral, a proferir até ao termo do prazo previsto no artigo 21.º do RJAT. 

 

Em 19 de dezembro de 2020, a Requerente apresentou as suas alegações e mantém a posição inicial, considerando provado, pelos documentos juntos e depoimentos das testemunhas, que a utilização dos recursos mistos por si adquiridos foi sobretudo determinada pela disponibilização dos bens locados, numa aceção ampla do termo “disponibilização” por forma a abranger todos os procedimentos relativos à gestão operacional do leasing que ocorrem ao longo da vigência do contrato, que não tenham relação com o financiamento propriamente dito.

 

Em 15 de janeiro de 2021, a Requerida contra-alegou, reiterando o foi escrito em sede de Resposta, nomeadamente a não comprovação de que a utilização dos recursos mistos foi sobretudo determinada pela disponibilização dos veículos. Acrescenta que o termo “disponibilização” se reporta à encomenda e disponibilização ao cliente do veículo, no momento inicial, ficando excluída a cedência de gozo do veículo, que enquadra numa segunda fase, de gestão do contrato. Por fim, assinala a diferente situação fática subjacente ao acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça no processo Volkswagen Financial Services, de 18 de outubro de 2018, processo n.º C-153/17, relativo a uma entidade financeira localizada no Reino Unido, país que obrigava à desagregação do leasing em duas operações para efeitos de IVA, uma isenta de IVA (referente aos juros) e outra tributada (referente à amortização financeira), diversamente do que sucede em Portugal.

 

                Em 8 de fevereiro de 2021, a Requerida procedeu à junção de documento superveniente, respeitante ao acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 20 de janeiro de 2021, proferido no processo n.º 0101/19.1BALSB, sobre um caso análogo ao decidindo, ao que se opôs a Requerente, considerando ser esse acórdão irrelevante por respeitar a factualidade diversa, uma vez que considera ter demonstrado que os recursos de utilização mista foram sobretudo determinados pela disponibilização dos veículos objeto dos contratos de locação financeira. 

 

                Por despacho de 23 de fevereiro de 2021, o Tribunal determinou a prorrogação do prazo de prolação da decisão, nos termos do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, resultante da realização de diligências instrutórias (prova testemunhal), da interposição de períodos de férias judiciais e da complexidade das questões suscitadas.

 

 

II.            SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer do ato de (auto)liquidação de IVA, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e artigo 10.º, n.º 2 do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do CPPT.

 

Não existem exceções a apreciar. O processo não enferma de nulidades.

 

 

III.          QUESTÕES A APRECIAR

 

Constituem questões a apreciar no presente processo arbitral:

 

a)            Saber se os artigos 173.º e 174.º da Diretiva IVA e o artigo 23.º do Código do IVA permitem a imposição de um método de pro rata mitigado como o coeficiente de imputação específico previsto no ponto 9 do Ofício-circulado nº 30108, de 30 de janeiro de 2009, emitido pela Área de Gestão Tributária do IVA para as instituições de crédito que desenvolvam simultaneamente as atividades de leasing, de ALD e de concessão de crédito, e se este coeficiente consubstancia um critério objetivo passível de fundar a aplicação do método da afetação real, de acordo com o disposto no artigo 23.º, n.ºs 3 e 2 do Código do IVA;

b)           Aferir da violação do princípio da legalidade tributária, estabelecido nos artigos 103.º, n.º 2 da CRP;

c)            Determinar se a imposição genérica de um coeficiente de imputação específico, independentemente da comprovação da utilização concreta dos bens e serviços, apurada caso a caso, viola o direito da União Europeia, em concreto o artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA;

d)           Saber se a utilização dos recursos mistos da atividade de leasing foi sobretudo determinada pela disponibilização dos veículos.

 

 

IV.          FUNDAMENTAÇÃO

 

1.            DE FACTO

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

A)           A Requerente é uma instituição de crédito cujo objeto social consiste na realização das operações descritas no n.º 1 do artigo 4.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, nomeadamente, entre outras atividades de natureza financeira, a atividade de locação financeira (leasing) – provado por acordo atento o teor do documento 1 junto pela Requerente.

B)           A Requerente qualifica-se, para efeitos de IVA, como um sujeito passivo deste imposto, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, e está enquadrada no regime normal de periodicidade mensal – cf. provado por acordo e documento 1.

C)           No exercício da sua atividade a Requerente realiza operações tributadas que conferem o direito à dedução do IVA, ao abrigo do n.º 1 do artigo 20.º do Código do imposto, nomeadamente, contratos de locação financeira mobiliária, e operações isentas de IVA que não conferem esse direito, nos termos do n.º 27) do artigo 9.º do Código do IVA, como (entre outras) operações de financiamento e de concessão de crédito cf. provado por acordo e documento 1.

D)           Especificamente no que se refere à atividade de leasing, as rendas cobradas contêm duas componentes distintas, uma respeitante à amortização/reembolso do capital utilizado para adquirir o bem dado em locação e outra relativa à taxa de juro aplicada a esse capital adicionada de outros encargos que a Requerente estima incorrer na execução do contrato – provado por acordo.

E)            A tramitação de um processo de leasing na esfera da Requerente, inicia-se com uma proposta do cliente, que escolhe o bem e o fornecedor, seguida de uma análise de risco e de uma decisão, culminando com a emissão do contrato, dependendo a entrega do bem locado da celebração de um contrato de seguro pelo cliente, cuja proposta é enviada pela Requerente à seguradora, antes de a Requerente autorizar o fornecedor a entregar o bem locado ao cliente (locatário) – provado pelo depoimento da segunda testemunha inquirida.

F)            A Requerente cobra uma comissão específica pela tramitação inicial do processo de leasing – provado pelo depoimento da segunda testemunha inquirida.

G)           A taxa de juro aplicada ao contrato depende do perfil de risco do cliente, avaliado previamente à celebração do contrato – provado pelo depoimento da segunda testemunha inquirida.

H)           A Requerente, como proprietária da viatura locada, participa no processo de legalização da mesma, mas a viatura é diretamente entregue pelo fornecedor do bem ao locatário, que procede ao seu levantamento – provado pelo depoimento da segunda testemunha inquirida.

I)             Na vigência dos contratos de locação financeira, a Requerente monitoriza os seguros das viaturas, nomeadamente a atualização do capital seguro e o cancelamento dos seguros por vicissitudes diversas – provado pelo depoimento da segunda testemunha inquirida.

J)            As notificações para pagamento do IUC das viaturas financiadas em leasing antes de 2018 eram enviadas pela AT à Requerente ou, em 2018, esta última retirava as guias de pagamento do Portal das Finanças. Em ambos os casos, o IUC era debitado aos locatários, sendo-lhes remetida a certidão comprovativa do pagamento – provado pelo depoimento da segunda testemunha inquirida.

K)           No caso de infrações rodoviárias que envolvam viaturas locadas, a Requerente remete aos clientes as notificações das autoridades para identificação do condutor e uma carta à entidade autuante com a identificação do locatário. Este serviço prestado pela Requerente é remunerado por uma comissão específica – provado pelo depoimento da segunda testemunha inquirida e pelo preçário da Requerente.

L)            As alterações dos contratos de locação financeira, situações de incumprimento, e/ou o termo desses contratos implicam interações entre diversas áreas/departamentos da Requerente – provado pelo depoimento das duas testemunhas inquiridas.

M)          Existe um manual de procedimentos que indica as tarefas envolvidas na atividade de leasing e a forma como devem realizar-se – provado pelo depoimento das duas testemunhas inquiridas.

N)           A atividade do departamento específico do leasing, que é integrado por três colaboradores da Requerente, desenvolve-se com maior incidência, no sentido de que consome mais recursos, ao longo da vida dos contratos de leasing e não na fase de originação dos contratos até à disponibilização do bem ao locatário – provado pelo depoimento da segunda testemunha inquirida.

O)           Em relação ao ano 2018, nos casos em que a Requerente identificou uma conexão direta e exclusiva entre as aquisições de bens e serviços e as operações ativas realizadas, aplicou o método da imputação direta, ao abrigo do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA, nomeadamente no que se refere aos bens objeto dos contratos de locação financeira mobiliária em relação aos quais deduziu na íntegra o IVA incorrido na sua aquisição – cf. provado por acordo e documento 1.

P)           Nas situações em que identificou uma conexão direta, mas não exclusiva entre as aquisições de bens e serviços e as operações ativas realizadas, aplicou o método da afetação real, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA – cf. provado por acordo e documento 1.

Q)           Nos demais casos, de aquisições de bens e serviços afetos indistintamente afetos às diversas operações realizadas, com e sem direito à dedução, denominados de “recursos de utilização mista” (comuns ou residuais), a Requerente, por não lograr determinar critérios objetivos de utilização efetiva, aplicou o método da percentagem de dedução, através da aplicação de um “coeficiente de imputação específico” para o ano 2018, em cumprimento do disposto no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, e da fórmula aí prescrita – provado por acordo e documento 1.

R)           Este coeficiente resulta de uma fração construída em moldes semelhantes aos previstos no artigo 23.º, n.º 4 do Código do IVA para o método da percentagem de dedução, com a diferença de que o valor das rendas dos contratos de locação financeira não é considerado na sua totalidade, apenas sendo incluído no denominador e no numerador da fração de cálculo a componente das rendas respeitante aos juros e outros encargos, ficando portanto excluída desse cálculo, não o influenciando, a componente da renda que se destina a compensar o desembolso de capital para aquisição dos bens locados (amortização financeira) – provado por acordo e documento 1.

S)            A percentagem definitiva de dedução apurada pela Requerente, por aplicação do coeficiente de imputação específico previsto no ponto 9 do citado Ofício-circulado, foi de 9%, correspondendo a IVA deduzido de € 551.413,85 – provado por acordo e documentos 1 e 2.

T)            Se a Requerente tivesse aplicado o pro rata de dedução previsto no artigo 23.º, n.º 4 do Código do IVA, a percentagem de IVA dedutível ascenderia a 16% e o correspondente IVA dedutível cifrar-se-ia em € 980.291,30, sendo a diferença, face à dedução efetuada, de € 428.877,44 – provado por acordo e documentos 1 e 2.

U)           Inconformada com a autoliquidação, por entender ter entregue prestação tributária em excesso derivada da ilegalidade do coeficiente de imputação específica, a Requerente apresentou Reclamação Graciosa (parcial) da autoliquidação de IVA referente ao ano 2018, com fundamentos idênticos aos do presente pedido arbitral – cf. documento 1 e PA.

V)           Por ofício de 3 de março de 2020, foi a Requerente notificada do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, da mesma data, do Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade de Grandes Contribuintes, ao abrigo de subdelegação de competências – cf. documento 1.

W)          Os fundamentos da decisão de indeferimento constam da Informação n.º 21-ADP/2020, da Divisão de Justiça Tributária da Unidade de Grandes Contribuintes, de 28 de fevereiro de 2020, e têm correspondência com os argumentos da Resposta da Requerida – cf. documento 1.

X)           Não se conformando com a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa deduzida contra a autoliquidação de IVA referente ao ano 2018, visando a anulação parcial desta, a Requerente deduziu a presente ação arbitral em 28 de maio de 2020 – cf. registo de entrada do pedido no SGP.

 

 

2.            MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.

 

                Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em meros juízos conclusivos, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos, na posição das Partes e no depoimento das testemunhas.

 

As duas testemunhas inquiridas, B..., responsável da área de Contencioso e Grandes Riscos da Requerente, e C..., responsável pela área de Leasing Mobiliário da Requerente, manifestaram conhecimento direto dos factos respeitantes à sua área de intervenção e responderam de forma objetiva e credível.

 

Ambos os depoimentos permitiram circunstanciar a forma como se processa a atividade de leasing e dos mesmos resultou claro que o principal consumo de recursos ocorre após a disponibilização da viatura, na fase de “gestão da carteira”, sendo de igual modo nessa fase que surge o incumprimento dos contratos que conduz à intervenção da área de Contencioso.

 

                 

               

                3.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

Não se provou que a disponibilização de viaturas ou equipamentos objeto de leasing implica a envolvência da vasta rede de balcões de atendimento da Requerente (artigo 76.º do ppa). Segundo as testemunhas, a área de leasing está centralizada no edifício do ... e a de contencioso (de recuperação de crédito) e grandes riscos no ..., sendo as viaturas entregues diretamente pelos fornecedores aos clientes. Não houve qualquer referência à intervenção dos balcões neste âmbito.

 

                Não foram identificados outros factos que devam considerar-se não provados.

 

4.            DE DIREITO

 

                4. 1.       RAZÃO DE ORDEM

 

A título preliminar importa salientar que nos presentes autos a Requerente pretende ver apreciada a questão de direito consistente no facto de, na sua perspetiva, não se extrair do artigo 23.º do Código do IVA, nem dos artigos 173.º e 174.º da Diretiva IVA, suporte legal que confira à AT o poder de impor uma fórmula de cálculo da percentagem de dedução ou pro rata distinta da que consta do artigo 23.º, n.º 4 do Código do IVA (que transpõe o artigo 174.º da Diretiva), ou uma afetação real que não seja baseada em critérios objetivos, discordando que o coeficiente de imputação específico possa ser considerado como tal.

 

A esta questão de direito acresce uma questão de facto. A Requerente visa demonstrar que o consumo dos recursos de utilização mista (ou “promíscuos”) pela atividade de leasing foi sobretudo determinado pela disponibilização dos bens objeto de locação e não tanto pela componente de financiamento e gestão dos contratos de locação.

 

O tema a decidir prende-se, desta forma, com o método de dedução (parcial) do IVA nos recursos de utilização mista das instituições de crédito que desenvolvem as atividades de leasing e ALD em simultâneo com as atividades de concessão de crédito e foi já objeto de duas pronúncias no Tribunal de Justiça, nos processos Banco Mais, C-183/13, de 10 de julho de 2014, e Volkswagen, C-153/17, de 18 de outubro de 2018, a que acresce o profuso debate na jurisprudência nacional da última década.

 

É assim considerável o lastro adquirido nesta matéria, pelo que as questões de direito suscitadas foram já aprofundadas e clarificadas pelo Tribunal de Justiça, no que respeita à interpretação do Direito da União Europeia, em concreto da Diretiva IVA, e pelo Supremo Tribunal Administrativo, em relação ao direito interno, destacando-se neste último caso dois importantes e recentes acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, proferidos nos processos n.ºs 084/19.8BALSB e 0101/19.1BALSB, de 24 de fevereiro de 2021 e de 20 de janeiro de 2021, respetivamente, todos no sentido da admissibilidade do coeficiente de imputação específica consagrado no n.º 9 do Ofício-circulado n.º 30108, à luz do Direito da União Europeia e da legislação nacional.

 

Diversamente, a jurisprudência arbitral que se pronunciou inicialmente sobre esta matéria propendia para a inadmissibilidade do mencionado coeficiente de imputação específica, em linha com a argumentação da Requerente, por entender que se estaria perante um terceiro método, sem cabimento no artigo 23.º do Código do IVA, resultando, desse modo, violado o princípio da legalidade tributária .

 

Porém, na sequência do acórdão para uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, de 4 de março de 2020, no processo n.º 7/19, assistiu-se a uma inflexão no sentido das decisões arbitrais, de que são exemplos as proferidas nos processos n.º 709/2019-T, de 13 de setembro de 2020, n.º 759/2019-T, de 5 de setembro de 2020, e n.º 927/2019-T, de 21 de setembro de 2020, concluindo-se que “a norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, ao permitir que a Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva 2006/112/CE, correspondendo à sua transposição para o direito interno”. 

 

4.2.  O ARTIGO 23.º DO CÓDIGO DO IVA E O COEFICIENTE DE IMPUTAÇÃO ESPECÍFICO

 

                O coeficiente de imputação específico consta do Ofício-circulado n.º 30108, da área de gestão tributária do IVA, de 30 de janeiro de 2009, no qual se refere, com relevância para esta análise, o seguinte:

“7. Face à atual redação do artigo 23.º, a afetação real é o método que, tendo por base critérios objetivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista.

8. Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do prorata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de atividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do nº.2 do artigo 23º do CIVA, a afetação real com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades.

9. Na aplicação do método da afetação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do nº. 4 do artigo 23º do CIVA.”

 

Segundo a Requerente, o artigo 23.º do Código do IVA só prevê dois métodos de dedução, o pro rata e a afetação real, constituindo o coeficiente de imputação específico um método desprovido de base legal, pois, por um lado, não obedece à fórmula de cálculo imperativa do pro rata (n.º 4 do citado artigo 23.º), e por outro lado, também não constitui um critério objetivo que permita determinar o grau de utilização dos recursos mistos e, por essa razão, não tem assento no mencionado preceito, nem na Diretiva IVA. Por último, assinala que a Requerida não demonstrou a ocorrência de distorções na tributação, que sempre seria condição necessária para a aplicação impositiva do método da afetação real.

 

Afigura-se, todavia, que a Requerente não tem razão.

 

Desde logo, no processo C-183/13, o Tribunal de Justiça considerou que os n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 23.º do Código do IVA constituem a transposição do artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA, correspondente ao anterior artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c) da Sexta Diretiva, posição que foi sucessivamente reafirmada pelo Supremo Tribunal Administrativo em múltiplos acórdãos. Neste âmbito, referimos, a título ilustrativo, além dos supra citados, os acórdãos de 29 de outubro de 2014, processo n.º 1075/13; de 4 de março de 2015, processo n.º 1017/12; de 3 de junho de 2015, processo n.º 0970/13; de 17 de junho de 2015, processo n.º 0956/13; e de 15 de novembro de 2017, processo n.º 0485/17.

 

Com efeito, o legislador português reproduziu no artigo 23.º do Código do IVA o essencial do regime de dedução parcial, i.e., aplicável aos recursos de utilização mista, previsto nos artigos 173.º a 175.º da Diretiva IVA. Tal como na Diretiva, o método do pro rata é consagrado como método supletivo de dedução do IVA (artigo 23.º, n.º 1, alínea b) do Código). Alternativamente, os sujeitos passivos podem optar pelo método da afetação real, sem prejuízo de a AT poder “impor condições especiais ou [ ] fazer cessar esse procedimento” se verificar que o mesmo provoca ou pode provocar [em função dos critérios objetivos empregues] distorções significativas na tributação (artigo 23.º, n.º 2 do Código). Por fim, pode ser a própria AT a impor a afetação real em detrimento do pro rata quando o sujeito passivo exerça atividades distintas ou este método seja passível de causar distorções significativas na tributação (artigo 23.º, n.º 3 do Código).

 

Como é salientado no acórdão do Tribunal de Justiça C-183/13, inexistindo na Diretiva  regras que concretizem o método da afetação real, cabe aos Estados-Membros estabelecê-las, tendo em conta “a finalidade e a sistemática da referida diretiva e os princípios em que assenta o sistema comum do IVA”, nomeadamente o da “neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas”.

 

Importa, para tanto, ter em conta as características específicas próprias às atividades dos sujeitos passivos, a fim de se obterem resultados mais precisos na determinação do alcance do direito à dedução, pois o princípio da neutralidade fiscal, inerente ao sistema comum do IVA, exige que as modalidades do cálculo da dedução reflitam objetivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição de bens e serviços de utilização mista que pode ser imputada a operações que conferem direito à dedução .

 

Declara a este propósito o recente acórdão (Pleno) do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.º 084/19.8BALSB) que a norma do artigo 23.º, n.º 2 do Código do IVA “ao permitir que a AT imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, aquela regra de determinação do direito à dedução enunciada na Diretiva do IVA”, que estabelece que os Estados-Membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou parte dos bens ou serviços, nos exatos termos do disposto no artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA.

 

Assim, não se verifica o vício de ilegalidade que a Requerente sindica em relação ao ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, que funda a autoliquidação controvertida, esclarecendo o acórdão, também daquele Supremo Tribunal (Pleno), no processo n.º 101/19.1BALSB, que a expressão «afetação real» empregue pelo artigo 23.º do Código do IVA corresponde à expressão «utilização» adotada na Sexta Diretiva, a qual, “por sua vez «não pode deixar de ser entendida como imputação do uso real e efetivo que cada bem ou serviço adquirido tenha em cada um dos tipos de operações em que é usado conjuntamente» (cit. José Guilherme Xavier de Basto e Maria Odete Oliveira, in «Desfazendo  mal-entendidos em matéria do direito à dedução…», Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 1, número 1, pág. 50). Interpretação que a alteração introduzida pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de janeiro, veio de alguma forma confirmar, ao aditar a frase «…com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito»”. E agora, acrescentamos nós, menos dúvidas existirão, pois a própria Diretiva passou a mencionar, em vez da expressão «utilização», outra expressão, coincidente com a empregue no Código do IVA: a “afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços”. (sublinhado nosso)

 

Seguindo ainda este aresto, “[a] questão que ficava era a de saber se o método previsto no ponto 9 do ofício circulado n.º 30108 [...] era ainda um método adequado a atender à intensidade real e efetiva da utilização dos bens ou serviços em cada um dos tipos de operações para os efeitos da Sexta Diretiva e da alínea c) do n.º 3 do artigo 17.º em particular.

E foi a esta questão que, no fundo, o Tribunal de Justiça respondeu afirmativamente.

Desde que fosse apurado que a utilização de bens ou serviços de utilização mista pelo sujeito passivo era sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira (parágrafo 33 do acórdão). […]

Não é verdade, por isso, que o Tribunal de Justiça tivesse interpretado o direito interno português. Na parte em que se referiu ao artigo 23.º do Código do IVA, limitou-se a reconhecer a semelhança e a quase sobreposição entre a redação do seu n.º 2 (no segmento acima assinalado) e a disposição comunitária correspondente.

Todavia, ao decidir que o método proposto pela Administração Tributária do Estado português se conformava com a lei comunitária, também permitiu que se concluísse que se conformava com aquele segmento do dispositivo nacional sem necessidade de considerandos adicionais. Precisamente porque essa parte do dispositivo nacional constituía a transposição para o direito interno da disposição comunitária”.

 

Sobre a alegação de que um pro rata mitigado não constitui um método de afetação real, o Supremo Tribunal Administrativo sustenta que não é assim, porque não existe apenas uma forma de proceder à afetação de bens e serviços. “A confirmar que o sistema de afetação real comporta diferentes modalidades e apresenta, por isso, uma certa plasticidade que permita ajustar o sistema de dedução às especificidades da atividade prosseguida pelo sujeito passivo vem a segunda parte do preceito, segundo a qual a Administração Tributária pode impor «condições especiais». Isto é, condições que permitam o «afinamento» (a expressão é do artigo que acima citamos, pág. 62) do método de dedução.

Pelo que a Recorrente tem razão nesta parte: o método a que alude o ponto 9 do ofício-circulado supra aludido não tem apenas cabimento na lei comunitária; também tem cabimento na lei interna.” 

 

E conclui que, sob este prisma, as referências ao (ou, dito de outro modo, à violação do) princípio da legalidade e da reserva de lei não têm cabimento.

 

Posição que, pelas razões acima expostas, aqui se acompanha.

 

4.3. SOBRE O COEFICIENTE DE IMPUTAÇÃO ESPECÍFICO NÃO SER UM CRITÉRIO OBJETIVO

 

Assente o pressuposto de que o coeficiente de imputação específica é enquadrável no método da afetação real, uma segunda questão que daí deriva prende-se com saber se esse método constitui um critério objetivo e é ajustado, no sentido de constituir “uma modalidade do cálculo de dedução que reflita objetivamente a parte real das despesas efetuadas com bens ou serviços de utilização mista que é imputada a operações que conferem o direito à dedução.”

 

Com efeito, de acordo com o Tribunal de Justiça, importa que o critério adotado seja mais preciso do que o resultante do método residual do pro rata, considerando as especificidades do sujeito passivo , o que acontece se a utilização dos bens e serviços for sobretudo determinada pelo financiamento e gestão dos contratos, interpretação que o Supremo Tribunal Administrativo entende também dever ser extraída das disposições nacionais que procedem à transposição da norma da Diretiva IVA.

 

Neste âmbito, o citado Ofício-circulado n.º 30108 invoca que se trata de um método menos suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados e de conduzir a distorções significativas na tributação. O que, de uma forma geral, é uma asserção válida, atentas as características-padrão da atividade de locação financeira.

 

De facto, a remuneração da atividade de leasing, apesar de juridicamente configurada como uma renda unitária, do ponto de vista económico corresponde tendencialmente a apenas uma das duas componentes compreendidas nesta renda, “os juros e outros encargos”, o que é refletido no tratamento contabilístico conferido às locações, nos termos da IFRS 16 , que as equipara às operações de financiamento ou concessão de crédito. 

 

O valor do capital que é “amortizado” (no sentido de reembolsado ou pago), representa o valor do bem escolhido pelo locatário e que a este foi cedido. Ou seja, quando essa quantia é paga pelo locatário, via rendas, não constitui a remuneração da atividade do locador, mas o pagamento parcelar do custo de aquisição do bem locado, in casu, viaturas automóveis, ou, dito de outro modo, o reembolso do preço da viatura que findo o contrato, e se este se executar e desenvolver dentro da normalidade, passará para a esfera jurídica do locatário .

 

Assim, a atividade do locador, que disponibiliza a viatura ao locatário porque despendeu os meios financeiros para o efeito, é remunerada pela componente da renda, aqui denominada de “juros e outros encargos”, que excede o valor do reembolso do capital usado para adquirir a viatura.

 

Do ponto de vista do IVA, o valor do imposto liquidado na renda (output) referente à componente de reembolso do capital (originariamente usado para adquirir a viatura) está afeto por imputação direta, à dedução, na sua esfera, do IVA incorrido na aquisição dessa viatura (input) . O valor do capital debitado ao locatário e do IVA liquidado corresponderá ao do custo de aquisição da viatura e do respetivo IVA deduzido, em virtude dessa imputação/afetação direta, e em razão de tal componente não contemplar, à partida, qualquer margem para acomodar ou prever outros inputs, como os de utilização mista em causa nesta ação, nem o “lucro” da operação.

 

Deste modo, é a componente da renda remanescente ao capital (este exclusivamente afeto ao input da viatura adquirida para locação) que reflete a ponderação por parte do sujeito passivo dos gastos (inputs) que estima incorrer na operação e da sua margem financeira. É esta componente dos juros e outros encargos que representará a (única) remuneração económica dos gastos da atividade de leasing e ALD, pois a outra, a do capital, esgota-se com o input da aquisição da viatura, não sobrando qualquer valor para imputar a outros gastos/inputs.

 

Assim sendo, para efeitos de determinação da dedutibilidade dos gastos mistos, a comparação entre as diversas contraprestações da atividade financeira da Requerente apenas será a priori proporcional e equilibrada se tiver em conta a componente de juros e outros encargos e já não a do capital, que, à partida, não apresenta conexão com esses gastos mistos e apenas com o input de aquisição do veículo, já deduzido integralmente pelo método da imputação direta.

 

Caso contrário, estaríamos a comparar realidades diversas, nomeadamente juros de financiamentos concedidos no contexto da atividade geral, com juros e capital do leasing. Nesta situação, a comparação apenas será paritária se incluirmos na fração que apura a proporção do IVA dedutível, para além do capital e juros do leasing, o valor dos empréstimos e dos juros recebidos na restante atividade . Em sentido idêntico veja-se o voto de vencido da aqui signatária Dra. Sofia Ricardo Borges, na decisão arbitral n.º 408/2019-T, de que se retira o seguinte excerto:

 

“Ao não retirar-se da fracção o valor correspondente à amortização financeira na actividade que confere direito à dedução (leasing financeiro), como pugna a Requerente, e ao, ao invés e simultaneamente, não se incluir na mesma fracção o valor de tudo o que constitui amortização de capital na actividade (a actividade principal da Requerente) que não confere direito à dedução, fica ab initio, é a nossa opinião, viciado o apuramento (visado pela fracção) da proporção da receita da actividade que confere direito à dedução na receita total do SP. Consequentemente, o apuramento da porção de inputs mistos utilizados naquela. Para mais. […]”.

 

O método do pro rata que a Requerente pretende aplicar traduzir-se ia no incremento significativo da percentagem de dedução sem que o mesmo tivesse qualquer conexão com um presumível consumo equivalente de IVA nos gastos mistos pela atividade de leasing. Pelo que se verifica a condição de que o método do pro rata é, em abstrato, passível de causar na situação em análise um acréscimo injustificado do nível de dedução do IVA nos recursos de utilização mista, derivado da consideração da componente de capital da renda de leasing (que, em princípio, não tem conexão direta com esses gastos) no cômputo da percentagem de dedução acompanhada, em simultâneo, da não consideração do capital mutuado, relativo à restante atividade financeira, por forma a que as realidades sejam comparáveis/equivalentes.

 

É este efeito que o Ofício-circulado citado tem subjacente ao referir que o método da percentagem de dedução tout court “é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”. Pelo que não se pode concordar com a Requerente que a AT não tenha fundado a imposição do coeficiente específico de acordo com o disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 23.º do Código do IVA, ou seja, na distorção significativa passível de ocorrer pelo método supletivo .

 

Adicionalmente, ao contrário do afirmado pela Requerente, o critério em análise é um critério de natureza objetiva embora aproximativo, característica que é, aliás, comum aos outros critérios objetivos comummente aceites e aplicados no método da afetação real, como o número de pessoas afetas às atividades, ou o número de horas homem incorridas, metros quadrados ocupados, entre outros. Todos estes critérios, apesar de objetivos, não podem deixar de ser encarados como aproximativos da realidade e não como um espelho rigoroso.

 

Uma exigência de rigor milimétrico representaria a impossibilidade de aplicar a afetação real, pois nenhum dos referidos critérios garante a exata medida de consumo dos recursos por cada uma das atividades/operações, com e sem direito à dedução, e traduziria uma interpretação de um rigor formalista incompatível com o princípio da neutralidade do imposto. A pretexto de um alegado incumprimento de requisitos dificilmente alcançáveis, viabilizaria a dedução de imposto em montante consideravelmente superior ao que corresponde ao consumo (aproximado) dos bens e serviços pelas operações que conferem direito à dedução, transformando imposto indedutível em imposto efetivamente deduzido pelo sujeito passivo (ou vice-versa).

 

No plano concreto, quanto a determinar se tal entendimento é de afastar atentas as circunstâncias verificadas na esfera da Requerente, aplica-se o entendimento sedimentado na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, reiterada nos dois recentes acórdãos do Pleno acima identificados (de 2021), de que, quando o ato de liquidação adicional do IVA se fundamenta no não reconhecimento das deduções declaradas pelo sujeito passivo, cabe a este a prova dos factos constitutivos do direito à dedução.

 

Desta forma, cabe “ao sujeito passivo alegar e demonstrar que, no seu caso concreto, a utilização dos bens ou serviços mistos não era sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos. Solução que reputamos adequada também porque o sujeito passivo, dada a sua proximidade com a fonte produtora, está mais bem posicionado para expor as especificidades do seu negócio.” Esta questão (de erro nos pressupostos de facto) será apreciada autonomamente no ponto seguinte.

 

4.4.        CONSUMO DE RECURSOS SOBRETUDO DETERMINADO PELA “GESTÃO DE CARTEIRA”

 

Como condição de admissibilidade da aplicação do coeficiente de imputação específico, o acórdão Banco Mais (C-183/13) requer que a utilização dos bens e serviços “promíscuos” seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de leasing. Afirma a este propósito a Requerente que no seu caso concreto tal não sucede. Porém, de novo, sem razão, ressaltando da matéria de facto que o consumo mais expressivo de recursos mistos por parte da área de leasing, e inevitavelmente pela área de contencioso (na parte que se prende com o leasing), se verifica no decurso da execução do contrato de locação financeira e não em relação à fase inicial de disponibilização do bem locado.

 

Com efeito, não só a disponibilização é muito menos consumidora de recursos, sendo as tarefas descritas pela Requerente de acompanhamento dos seguros, pagamento de IUC, gestão de multas, entre outras, respeitantes ao decurso dos contratos, como as próprias despesas iniciais que se podem associar à disponibilização do bem são objeto de uma comissão específica, designada pelas testemunhas como “comissão de processo inicial”.

 

Mesmo na aceção lata de disponibilização perfilhada pela Requerente, afigura-se que as características do contrato de locação financeira não são de molde a fazer recair sobre o locador encargos significativos associados à disponibilização dos bens locados “no decurso do contrato”.

 

São aqui pertinentes as considerações tecidas no voto de vencido na decisão arbitral n.º 383/2019-T, da Dra. Sofia Ricardo Borges, no sentido de que no contrato de locação financeira, ao abrigo da disciplina estabelecida no Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho, “ao contrário do que seria a regra numa locação, os riscos, encargos, responsabilidades em geral relativas ao bem correm pelo lado do locatário, não obstante não ser ele o proprietário. Ou seja, o locador fica, na lf, liberto daquilo que são as obrigações regra do proprietário no regime geral da locação. Entre o mais, não corre por conta dele o risco do perecimento do bem, sendo a obrigação de segurar o bem do locatário; não corre por conta dele locador, mas sim por conta do locatário, a obrigação de realizar reparações, mesmo que necessárias ou urgentes; ao locatário é reconhecido o direito de fazer uso de acções possessórias, sendo a ele locatário que compete defender a integridade do bem e o respectivo gozo; o locador não responde pelos vícios do bem, nem pela sua inadequação aos fins do contrato; as despesas de transporte, seguro, montagem, instalação e reparação do bem, assim como as necessárias à sua eventual devolução ao locador ficam a cargo do locatário, salvo estipulação em contrário; como assim também o risco de perda e deterioração do bem. Tudo cfr. art.ºs 10.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º do DL n.º 149/95. Sendo ainda elucidativo, quanto a nós, o art.º 22.º do mesmo Diploma, sob a epígrafe “Operações anteriores ao contrato”, ao determinar que se, antes de celebrado o contrato de lf, “qualquer interessado [tiver] procedido à encomenda de bens, com vista a contrato futuro, entende-se que actua por sua conta e risco, não podendo o locador ser, de algum modo, responsabilizado por prejuízos eventuais decorrentes da não conclusão do contrato, (…).” Tudo a configurar, parece-nos líquido, uma relação na qual o locador, não obstante se tornar proprietário, fica desresponsabilizado (afastado) de praticamente tudo (senão tudo) o que sejam as obrigações regra de um proprietário.

Posto isto, parece-nos evidente decorrência do próprio regime legal, os custos (inputs) em que o locador incorre para a disponibilização dos veículos aos locatários, como proprietário sui generis que os “aluga”, circunscrever-se-ão essencialmente ao da aquisição do veículo (supra tratado). Incorrendo, a par desses, como será de admitir, em custos de financiamento e gestão dos contratos.

Será pois neste último contexto - custos de financiamento e gestão dos contratos - que se detectarão com relevo, é a nossa maneira de ver, possíveis inputs promíscuos.”

 

Deste modo, a Requerente não conseguiu demonstrar que o consumo de recursos de utilização mista pela sua atividade de leasing foi sobretudo determinado pela disponibilização dos bens locados, ónus que, de acordo com a jurisprudência constante do Supremo Tribunal Administrativo acima referida, lhe competia

 

Por fim, numa breve referência ao acórdão do Tribunal de Justiça de 18 de outubro de 2018, no processo Volkswagen Financial Services, C-153/17, convém notar que a situação fática aí apreciada é distinta da aqui em causa, como também se lê no voto de vencido no processo n.º 408/2019-T : “[...] o locador era empresa pertencente a grupo automóvel, portanto produtores/fornecedores, no Grupo, dos veículos; o contrato em causa é um contrato consagrado pelo legislador do Reino Unido que não tem correspondência com o nosso contrato de locação financeira, trata-se ali de contrato “hire-purchase” (locação-venda será a figura mais próxima nos OJ continentais), com especificidades próprias e distintas das do nosso contrato de locação financeira; o regime de IVA aplicável no caso é distinto do nosso: a parte das rendas correspondente à amortização de capital está sujeita (conferindo direito a dedução) enquanto que a dos juros e demais encargos está isenta (sem direito a dedução). E o que o SP ali vem peticionar (...) é que lhe seja permitido deduzir os inputs em que incorreu, o que não lhe era permitido fazer à partida porque, no RU, no tipo de contrato em causa, a parte da renda correspondente aos juros e encargos está isenta, não dá direito a dedução, e é com relação a essa que incorreu em inputs [só aí os repercutiu no preço] […].”

 

De igual modo, Sérgio Vasques aponta as diferenças entre a situação analisada no processo C-153/17 e o caso português, explicando que “o direito do Reino Unido obriga à desagregação do leasing em duas operações: a disponibilização do veículo e o seu financiamento. […] Para efeitos de IVA, as duas operações são tratadas de forma distinta também. A disponibilização do veículo constitui uma operação tributada; ao passo que o financiamento é tido como uma operação de concessão de crédito isenta.”

 

Acresce que as conclusões do Tribunal de Justiça no processo C-153/17 foram ditadas pelo facto de o tribunal nacional de reenvio ter previamente determinado que, nesse caso concreto, os custos gerais tinham uma relação direta e imediata com a totalidade das atividades do sujeito passivo e, assim, com a disponibilização dos veículos. Na situação vertente, a Requerente não alegou, e menos demonstrou, que os recursos de utilização mista foram sobretudo determinados pela disponibilização dos veículos locados (associada à componente de capital das rendas de leasing e ALD) e não pela gestão dos contratos.

 

                               Em termos similares se expressa o voto de vencido do processo arbitral n.º 408/2019-T acima citado, conforme se retira do seguinte excerto ilustrativo: “E sempre se refira, para além do mais, que a repartição mais precisa da utilização dos inputs mistos requer, numa situação como a que deu origem ao Acórdão Volkswagen versus numa como a que deu origem ao Acórdão Banco Mais (esta última sim semelhante à dos presentes autos), pela diversidade de situações subjacente, uma distinta concretização das normas de apuramento (do montante de IVA dedutível) em causa. Desde logo, enquanto que naquela os inputs incorridos deixariam de ser considerados para efeitos de dedução caso se aceitasse o método tal como concretizado pela Autoridade Fiscal do Reino Unido (o que o TJUE afastou), nesta os inputs incorridos estão precisamente a ser considerados da forma mais aproximada à realidade por via do método tal como preconizado pela AT (…).”

 

4.5. JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

Peticionou, por fim, a Requerente que para além do reembolso da quantia que tinha sido voluntária e indevidamente paga, seria ainda devido o pagamento de juros indemnizatórios.

 

A este respeito dispõe-se no artigo 43.º, n.º 1 da LGT que “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

 

Tendo-se determinado, nos presentes autos, que não ocorreu qualquer erro imputável aos serviços, nem o pagamento de prestação tributária superior à devida, não se encontram reunidos os requisitos de que depende a aplicabilidade daquele regime, pelo que também improcede o peticionado pela Requerente a este respeito.

 

4.5. REENVIO PREJUDICIAL

 

A questão de interpretação do Direito Europeu discutida nos autos foi especificamente clarificada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça a propósito do caso Banco Mais, C-183/13 , conforme ficou acima referenciado.

 

Neste contexto, de acordo com o entendimento do Tribunal de Justiça, a partir do acórdão Cilfit , a obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação pode ser dispensada quando:

 

a)            A questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal; ou

b)           O Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma; ou

c)            O juiz nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente.  

 

No caso sub judice, verifica-se o preenchimento dos requisitos previstos nas alíneas b) e c), podendo afirmar-se que o “ato” em questão está devidamente aclarado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça que já se pronunciou “de forma firme”, como o tem entendido também a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo supra referida, pelo que atualmente não se suscitam dúvidas, nem há fundamento para suscitar o reenvio prejudicial.

 

                EM SÍNTESE

 

Pelos motivos expostos, julga-se não verificado o vício de erro nos pressupostos de direito e de facto alegado pela Requerente, em virtude de o coeficiente de imputação específico consagrado no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009 ter suporte legal no artigo 23.º, n.ºs 3 e 2 do Código do IVA, não ocorrendo violação do princípio da legalidade, e ser conforme ao Direito da União Europeia, em concreto ao disposto no artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA e ao princípio da neutralidade fiscal, concluindo-se pela manutenção da autoliquidação de IVA reportado ao ano 2018.

 

V.           DECISÃO

 

À face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar a ação improcedente, com as legais consequências.

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 428.877,44 correspondente ao valor da autoliquidação de IVA que se pretende anulado, indicado pela Requerente e não contraditado pela Requerida – v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

VII.         CUSTAS

 

                Custas no montante de € 7.038,00, a cargo da Requerente, por decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 13 de abril de 2021

 

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins

Marisa Isabel Almeida Araújo

Sofia Ricardo Borges