Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 211/2021-T
Data da decisão: 2022-01-07   
Valor do pedido: € 84.214,87
Tema: Artigo 15.º, n.º1, do RCPITA; degradação de formalidades invalidantes em meras irregularidades.
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SUMÁRIO:

I.             Na pendência do procedimento de inspeção podem ser alterados os fins do procedimento de inspeção e a sua extensão, devendo tais alterações, do ponto de vista formal, nos termos do artigo 15.º, n.º, 1 do RCPITA, revestir a forma de despacho fundamentado (de modo claro, preciso, direto, atual e completo). A omissão desta formalidade acarreta a invalidade/ilegalidade da alteração em causa com fundamento em vício de forma; 

II.            No caso dos autos, da análise dos documentos juntos, não se consegue perceber a razão da mudança de âmbito e extensão do procedimento de inspeção nem tão pouco o raciocínio que levou a Requerida a proceder à mudança do procedimento de âmbito parcial incidente sobre IVA para IVA e IRC. Com efeito, um destinatário normal fica sem perceber qual foi o iter lógico, o raciocínio do autor para, perante a situação concreta do procedimento tomar aquela decisão;

III.          As alíneas a) a c) do n.º 5 do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo acolhem, no essencial, a jurisprudência administrativa reiterada, baseada no princípio do aproveitamento do ato administrativo, pressupondo um princípio da inoperância dos vícios e uma desvalorização da teoria das formas, nas situações ali previstas, que não se verificam no caso dos autos.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

Os árbitros Fernanda Maças (árbitro presidente), Dr. João Maricoto Monteiro e Prof. Doutora Eva Dias Costa (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

I.RELATÓRIO

 

1.“A..., SA”, contribuinte com o NIF ... e sede na Rua..., ..., ..., ..., vem, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1 a) e 10º nº 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), apresentar Pedido de Constituição de Tribunal Arbitral e Pedido de pronúncia Arbitral em matéria Tributária tendo por objeto a impugnação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) n.º 2020..., datada de 30/12/2020, respeitante ao exercício de 2016 e no montante de € 84.214,87, ao qual acrescem os juros compensatórios devidos, no valor de € 11.250,18 .

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico, pelo que o Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 23-06-2020.

 

2.A fundamentar o pedido a Requerente argumenta, em síntese, que, no caso em apreço, foi alterado o âmbito do procedimento de inspeção sem preenchimento dos requisitos previstos no artigo 15º do Regime Complementar de Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA) porquanto é manifesto que, no que se refere ao requisito da fundamentação, esta é, pura e simplesmente, inexistente. E a ausência de tal requisito terá que acarretar a invalidade da alteração em causa com fundamento em falta de fundamentação, bem como incompetência e vício de forma.

 

3. Na Resposta a Requerida veio defender que o ato em crise não padece de qualquer ilegalidade pelo que se impugna por infundado, todo o alegado no Pedido de Pronúncia Arbitral que contrarie o supra exposto, devendo ser considerada como improcedente a pretensão da Requerente e a Entidade Requerida absolvida de todos os pedidos.

 

4. Por despacho de 23 /9/2021, o Tribunal dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, o que fez ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo, e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste. Mais, no mesmo despacho, foram ambas as partes notificadas para produzirem alegações escritas, no prazo de quinze dias a partir da notificação do presente despacho, concedendo-se à Requerida a faculdade de, caso assim o entenda, juntar as suas alegações com carácter sucessivo relativamente às produzidas pelo sujeito passivo. No mesmo despacho foi designado o dia 23 de Dezembro de 2021 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral, prazo prorrogado, por despacho de 20 de Dezembro de 2021, para o dia 23 de Fevereiro de 2022.

 

5.As partes não produziram alegações.

 

 

II. SANEADOR

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

Não existem nulidades.

 

Cumpre apreciar e decidir.

 

III. DO MÉRITO

 

III.1-Matéria de facto

 

III.1-1-Factos dados como provados 

 

1.Consideram-se provados com interesse para a boa decisão da causa os seguintes factos:

A. A ação inspetiva credenciada pela OI2019... de origem Central teve como objetivo o controlo dos sujeitos passivos que solicitaram reembolsos de IVA elevados sem terem sido alvo de controlo inspetivo em 2016 ou 2017;

B. Por carta-aviso datada de 2020-01-09, foi levado ao conhecimento da Requerente que iria ser objeto de uma ação de inspeção, mostrando-se assim cumprido o disposto pela al. l) do n.º 3 do art.º 59.º da LGT e pelo art.º 49.º do RCPITA;

C. Em conformidade com o disposto pelo art.º 51.º em conjugação do art.º 46.º, ambos do RCPITA, o procedimento de inspeção iniciou-se no dia 2020-01-23;

D. O referido procedimento legitimava os atos de inspeção que tinham por âmbito o IVA e por extensão o exercício de 2016 (cfr. doc 2 junto com o Pedido), concretizado com a assinatura da Ordem de Serviço pelo legal representante da aqui Requerente, o administrador B..., titular do NIF ..., na qualidade de Presidente do Conselho de Administração;

E. Inicialmente a Ordem de Serviço foi emitida tendo o procedimento âmbito parcial, incidente sobre IVA, tendo, no decurso do procedimento de inspeção, sido decidido alterar o âmbito do mesmo;

F. Para esse efeito, os serviços procederam à notificação, em 15/07/2020, de exemplar de credencial, donde consta uma anotação no quadro 5, que informa- “Alteração dos Fins, Âmbito e Extensão do Procedimento” e refere apenas “Alteração de âmbito para parcial em IVA e IRC, de acordo com a alínea b) do n.º1 do art.t 14.º do RCPITA” (cfr. doc n.º 3 junto, pelo SP no Pedido, que se dá por reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos);

G. Tanto na Ordem de Serviço assinada pelo responsável da Requerente em 2020-01-23, como na que por ele mesmo foi assinada a 2020-07-15, concretizando-se nesta última a notificação da alteração do âmbito do procedimento inspetivo, consta despacho do Chefe de Divisão, proferido por subdelegação de competências, como por melhor evidência se demonstra:

 

 

H. A Requerente foi notificada para apresentação de elementos e prestação de esclarecimentos, tendo colaborado disponibilizando os elementos solicitados;

I. Concluídos os atos inspetivos, foi elaborado o projeto de Relatório Inspectivo o qual foi devidamente notificado à Requerente no dia 2020-09-10 pelo ofício n.º 2020... tendo-lhe sido concedido o prazo de 15 dias para o exercício do direito de audição, conforme preconizado pelos art. os 60.º da LGT e do RCPITA;

J. Não tendo a Requerente exercido o direito de participação na formação da decisão que a lei lhe confere, foi o projeto convolado em definitivo e igualmente devidamente notificado à Requerente.

L. Os atos inspetivos foram concluídos em 2020-10-01, conforme Nota de Diligência emitida nessa, em conformidade com o vertido no art.º 61.º do RCPITA.

 

III.1-2-Factos dados como não provados 

Não há factos relevantes para a apreciação da causa que não se tenham provado.

 

III.1-3-Fundamentação da matéria de facto 

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Coletivo e a sua convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, e nos documentos juntos por estas ao presente Processo.

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT, e consignar se considera provada ou não provada essa causa de pedir, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei é que o princípio da livre apreciação não domina na avaliação das provas produzidas.

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para esta Decisão Arbitral, os factos acima elencados.

 

III-2- DO DIREITO

 

§1.º- Da ilegalidade da liquidação do IRC relativa a 2016

 

A Requerente impugna a liquidação, entre o mais, por vício ocorrido no procedimento de inspeção, em virtude da alteração do âmbito da Ordem de Serviço de IVA para IVA e IRC, por falta de fundamentação.

A questão gira e torno do sentido e alcance do disposto no  nº 1 do artigo 15.º do RCPITA, que tem como epígrafe “ Alteração dos fins, âmbito e extensão do procedimento, ”cujo conteúdo é   o seguinte:

”1-Os fins, o âmbito e a extensão do procedimento de inspeção podem ser alterados durante a sua execução mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado, devendo ser notificado à entidade inspecionada”.

Alega a Requerente que tais requisitos não foram satisfeitos no procedimento de inspeção em apreciação, porquanto é manifesto que, no que se refere ao requisito da fundamentação, esta é, pura e simplesmente, inexistente.

Em sentido oposto alega a Requerida que da factualidade do Relatório resulta inequívoco que este requisito se mostra cumprido, porquanto a Requerente foi notificada em 2020-07-15 da alteração do âmbito da Ordem de Serviço, e os atos inspetivos apenas foram concluídos em 2020-10-01, com a emissão da nota de diligência.

Que, em relação aos fundamentos que motivaram os Serviços Inspetivos a solicitar o alargamento do âmbito da Ordem de Serviço, foi-lhe explicado o porquê dessa alteração. Ainda que assim não tivesse ocorrido, entende a Requerida que a Requerente sempre poderia deitar mão do disposto pelo art.º 37.º do CPPT e solicitar os elementos em falta, o que não fez, pelo que deixou que a situação se consolidasse na sua esfera jurídica.

Acresce que, segundo a Requerida, também o art.º 30.º do CPPT permite aos Sujeitos Passivos a consulta dos elementos constantes nos processos, arquivados ou pendentes.

 

Vejamos.

 

Em termos gerais, como é sabido, o artigo 77.º da LGT determina que “[a] decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram.”

Conforme é unanimemente preconizado pela doutrina e pela jurisprudência, a obrigação de fundamentação dos atos em matéria tributária, cumpre duas funções: uma de natureza exógena, que visa colocar o administrado em condições de conhecer os fundamentos que motivaram a autoridade administrativa a decidir da forma que o fez, por forma permitir-lhe optar conscientemente entre a aceitação do acto e a sua impugnação; e outra de natureza endógena, que visa não só assegurar que os agentes da administração ponderem, de forma séria, cuidada e isenta, os factos concretos e as disposições legais aplicáveis em cada caso, mas também assegurar e garantir o controlo, particularmente pelos tribunais, da observância dos princípios da legalidade, da justiça e da imparcialidade, que se impõem à actuação da administração, aferindo o acerto jurídico das respectivas decisões.

Razão por que é essencial a suficiência e a clareza da fundamentação, de modo a que o administrado possa dispor dos elementos necessários à compreensão da motivação do acto administrativo e/ou tributário, permitindo-lhe conhecer as razões fácticas e jurídicas que estiveram na sua base, por forma a aceitá-las ou a rebatê-las, optando em consciência entre a aceitação da decisão e a sua impugnação; e de modo a que o próprio tribunal possa dispor de um real e efectivo controlo sobre a legalidade do acto, aferindo o respectivo acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.” Neste sentido, concluiu o Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) no seu acórdão de 27 de janeiro de 2016 (processo n.º 0324/15).

Ora, cremos que é essencialmente para assegurar a verificação destas exigências da fundamentação que o nº 1 do artigo 15.º do RCPITA prescreve que a alteração do âmbito do procedimento de inspeção deve obedecer a vários requisitos, em especial, “Revestir a forma de despacho fundamentado”, isto é, a lei exige existência de um despacho que evidencie, de um modo claro, preciso, direto e completo, as razões justificativas da necessidade ou conveniência dessa alteração.

No caso em apreço, conforme resulta dos factos dados como provados, no decurso do procedimento de inspeção, a AT decidiu alterar o âmbito do mesmo, tendo, para esse efeito, procedido à notificação, em 15/07/2020, de exemplar da credencial em causa, limitando-se a fazer mera anotação no quadro 5 da mesma, o qual se destina a informar a eventual “Alteração dos Fins, Âmbito e Extensão do Procedimento”. Mais, tal anotação refere, apenas, “Alteração de âmbito para parcial em IVA e IRC, de acordo com a alínea b) do nº 1 do artº 14 do RCPITA”.

Da análise dos documentos juntos, não se consegue perceber as razões de facto e de direito determinantes da prática do ato de alteração do âmbito da inspeção. Dito de outra forma, não se consegue perceber a razão da mudança de âmbito e extensão do procedimento de inspeção nem tão pouco o raciocínio que levou a Requerida a proceder à mudança do procedimento de âmbito parcial incidente sobre IVA para IVA e IRC. Com efeito, um destinatário normal fica sem perceber qual foi o iter lógico, o raciocínio do autor para, perante a situação concreta do procedimento tomar a decisão de mudança de âmbito do procedimento de inspeção.

A razão de ser da necessidade de fundamentação é assegurar que as razões factuais e jurídicas sejam cognoscíveis pelo interessado de forma clara, para que este possa exercer o seu direito de defesa. Podemos dizer que a melhor ou pior fundamentação é essencialmente aferida segundo aquilo que o interessado entende e segundo a defesa que consegue apresentar. Ou seja, o dever de fundamentação emerge como um importante sustentáculo da legalidade administrativa e instrumento fundamental da respetiva garantia contenciosa (Cfr. Mário Esteves de Oliveira e outros, Código do Procedimento Administrativo, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, p. 589).

Por outro lado, as caraterísticas exigidas à fundamentação, por lei, servem igualmente para se aferir da consistência da atividade da Requerida quanto ao cumprimento de princípios jurídicos fundamentais da igualdade, da imparcialidade e da transparência.

Com referência específica ao dever de fundamentação constante do artigo 15.º, n.º1, do RCPITA, referem Joaquim Freitas da Rocha e João Damião Caldeira (Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira, Anotado e Comentado, 2ª. Edição, revista, atualizada e ampliada, Almedina, Coimbra 2021, pp. 115 ss,) que a alteração dos fins do procedimento de inspeção e a sua extensão, do ponto de vista formal, deve revestir a forma de despacho fundamentado (de modo claro, preciso, direto, atual e completo). Acrescentando os autores que a omissão desta formalidade acarreta a invalidade/ilegalidade da alteração em causa com fundamento em vício de forma. 

Também na jurisprudência pode ler-se, a título de exemplo, que “Na pendência do procedimento de inspeção podem ser alterados os fins e a extensão daquele, posto que tal conste de despacho fundamentado da entidade  que o tiver ordenado (…)”, e, mais adiante, conclui-se que a omissão  da alteração dos fins, do âmbito e da extensão do procedimento de inspeção pela entidade que o ordenou, “todas as conclusões referentes ao relatório relativas a tal alargamento são ilegais e,  não poderão ter validade fiscal, nem fundamentar qualquer acto de liquidação” (Acórdão do STA de 15-06-2016, processo n.º 01101/15- cfr. a obra atrás citada a p. 119). 

Termos em que se considera não verificadas as características exigidas por lei quando exige que a mudança de âmbito e extensão do procedimento de inspeção tem de constar de despacho devidamente fundamentado, com a consequente invalidade do despacho em causa na parte impugnada.

 

Alega, também a Requerida que, tendo os atos inspetivos sido concluídos e o respetivo relatório final elaborado e notificado à Requerente, a eventual omissão da formalidade de fundamentação do despacho deve considerar-se degradada em formalidade não essencial.

Sobre este tema, refere o n.º 5 do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), que não se produz o efeito anulatório quando:

a)            O Conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível;

b)           O fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançada por outra via ;

c)            Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmos em o vício o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.

 

As alíneas a) a c) do n.º 5 do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo acolhem, no essencial, a jurisprudência administrativa reiterada, baseada no princípio do aproveitamento do ato administrativo, pressupondo um princípio da inoperância dos vícios e uma desvalorização da teoria das formas, nas situações ali previstas.

Na verdade, afigura-se pacífico que se aceite o afastamento da relevância de vícios invalidantes no caso de atos administrativos vinculados. Se o conteúdo de determinado ato é determinado pelo regime legal aplicável, significa que é o próprio legislador que vincula o órgão administrativo à prática do ato com o conteúdo pré-determinado. O mesmo se diga nos casos em que, apesar de em abstrato o legislador não vincular o órgão administrativo a praticar um ato com determinado conteúdo, a verdade é que a apreciação das circunstâncias do caso concreto restringe a atuação administrativa a uma única solução possível, neutralizando a discricionariedade administrativa (cfr. Licínio Lopes Martins, “A invalidade do ato administrativo no Novo Código do Procedimento Administrativo: as alterações mais relevantes”, in Carla Amado Gomes e outros, coordenação, Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2015, pp 584 ss.).

Por outro lado, consagra-se a degradação de formalidades invalidantes em meras irregularidades desde que o fim visado pela exigência procedimental ou formal tenha sido alcançado por outra via, ou se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.

Ora, aplicando o exposto ao caso em análise, resulta claro que não se verifica nenhuma das circunstâncias previstas no preceito. Não obstante a Requerida argumentar que o Relatório de inspeção foi finalizado, a verdade é que não estamos perante ato de conteúdo vinculado nem tão pouco se pode afirmar que o resultado inspetivo a que se chegou, na parte relativa ao alargamento do âmbito em causa- IRC, tinha de ser necessariamente aquele. Atentas as circunstâncias do caso, também não se pode deixar de admitir que os meios de defesa da Requerente pudessem assentar em argumentos diferentes, caso o ato de alargamento do âmbito da inspeção se encontrasse devidamente fundamentado. O que significa que a omissão de fundamentação pode ter tido igualmente implicações na diminuição dos meios de garantia e de defesa que a lei coloca à disposição da Requerente.

Finalmente, também não procede o argumento da Requerida no sentido de que a Requerente sempre podia ter lançado mão do disposto no artigo 37.º do CPPT, que permite ao interessado, sempre que a comunicação da decisão em matéria tributária não contiver os fundamentos legalmente exigidos, requerer a notificação dos requisitos que tenham sido omitidos.

Em primeiro lugar, trata-se de uma mera faculdade e, por outro lado, pressupõe que a fundamentação exista, tendo a Requerida apenas omitido a sua comunicação aos interessados. O que não é o caso, uma vez que dos factos dados como provados resulta que a omissão de fundamentação é originária, isto é, não é contemporânea da prática do ato em causa. Em suma, no caso em apreço não estamos perante uma mera omissão de notificação da fundamentação de facto e de direito existente, que se traduz em mero requisito de eficácia.

Termos em que, se dão por não verificados os requisitos previstos no artigo 163.º do CPA, com o consequente vício de forma emergente de preterição de formalidade legal essencial, ocorrida no procedimento de inspeção e relativa ao alargamento de âmbito parcial sobre IVA para IVA e IRC, relativo a 2016. Tal omissão é manifestamente lesiva e invalidante do ato final de liquidação na parte ora impugnada.

 

§2.º Questões de conhecimento prejudicado

Procedendo o pedido de pronúncia arbitral com fundamento no vicio imputado ao procedimento inspetivo, que se reflete na ilegalidade da liquidação impugnada, que assegura eficaz tutela dos interesses da Requerente, fica prejudicado, por inútil, o conhecimento das restantes questões suscitadas, de harmonia com os artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral, julgar totalmente procedente o pedido de anulação do ato tributário de liquidação de IRC, relativo a 2016, na parte impugnada, e respetivos juros compensatórios supra identificados, com as legais consequências.

 

V. Valor do processo

Fixa-se ao processo o valor de € 84.214,87, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

VI. Custas

Custas no montante de € 2.754,00, a cargo da Requerida, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Lisboa, 7 de Janeiro de 2022

Notifique-se.

Os árbitros,

 

Fernanda Maçãs (árbitro presidente)

Dr. João Maricoto Monteiro (vogal)

Prof. Doutora Eva Dias Costa (vogal)