Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 205/2020-T
Data da decisão: 2021-04-24  IRC  
Valor do pedido: € 783.811,10
Tema: IRC – Preços de transferência.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral, Dra. Alexandra Coelho Martins, árbitro presidente, Prof. Doutor António Martins, designado pela Requerente, e Dr. Henrique Fiúza, designado pela Requerida, acordam no seguinte:

 

                I.             RELATÓRIO

 

A..., S.A., doravante “Requerente”, pessoa coletiva número..., com sede na ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa, requereu a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e deduziu pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente, e nos artigos 1.º, alínea a) e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

A Requerente peticiona a ilegalidade, com a consequente anulação, do ato de liquidação adicional n.º 2019..., de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), referente ao período de 2015, que resultou no montante total a pagar de € 783.811,10, incluindo juros compensatórios no valor de € 93.582,53 (conforme demonstração de acerto de contas n.º 2019...). Requer ainda a restituição do valor pago, acrescido de juros indemnizatórios. Juntou 10 documentos, protestou juntar 8 adicionais e requereu a produção de prova testemunhal.

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

 

Em 30 de março de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, com a notificação da AT em 31 de março de 2020.

 

A Requerente designou como árbitro o Prof. Doutor António Martins, no uso da prerrogativa prevista no artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do RJAT.

 

Nos termos do disposto do artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do RJAT, e dentro do prazo previsto no artigo 13.º, n.º 1, a Requerida indicou como árbitro o Dr. Henrique Fiúza.

 

Na sequência dos requerimentos apresentados pelos árbitros designados pelas Partes para que o árbitro presidente fosse designado pelo Conselho Deontológico, foi, por despacho de 24 de julho de 2020, do Exmo. Presidente do Conselho Deontológico, designada a Dra. Alexandra Coelho Martins nessa qualidade, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do RJAT.

 

Todos os árbitros comunicaram a aceitação do encargo, tendo o Exmo. Presidente do CAAD informado as partes dessa designação em 24 de julho de 2020, para efeitos do disposto no artigo 11.º, n.º 7 do RJAT, não tendo estas manifestado oposição.

 

Em 25 de agosto de 2020, o Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído.

 

                Em 29 de setembro de 2019, a Requerida apresentou Resposta, na qual se defende por impugnação, e juntou o processo administrativo (“PA”). 

 

O Tribunal Arbitral determinou, por despacho de 15 de outubro de 2020, a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, com inquirição de testemunhas.

 

                Em 12 de novembro de 2020, realizou-se no CAAD a referida reunião, na qual foram ouvidos os depoimentos das três testemunhas indicadas pela Requerente, convidando-se esta a juntar documentos que o Tribunal considerou relevantes para o apuramento da verdade. 

 

                A Requerente juntou documentos por requerimentos de 18 e 24 de novembro de 2020, concedendo-se prazo de vista à Requerida, que se pronunciou em 18 de dezembro de 2020, invocando que os documentos em causa não foram apresentados aos Serviços de Inspeção Tributária no procedimento inspetivo, que os mesmos não suprem a falta de prova mencionada no Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) e que deles não resulta a valorização dos imóveis alienados em 2018.

 

                De seguida, as Partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas sucessivas e fixada a data para prolação da decisão arbitral.

               

                A Requerente apresentou alegações finais em 18 de janeiro de 2021, nas quais mantém a sua posição, considerando-a sufragada pela prova testemunhal produzida.

 

                Em 2 de fevereiro de 2021, a Requerida apresentou as suas alegações e reitera os fundamentos e conclusões constantes da Resposta e do requerimento de resposta à junção de documentos pela Requerente, notando que as avaliações referidas pela Requerente apenas incidiram sobre imóveis da Requerente que não o em causa nos autos, frustrando a possibilidade de, com base nas mesmas, se percecionar a diferença de valor de mercado, além de apontar discrepâncias dos dados relativos aos imóveis constantes do RIT e do relatório de avaliação.

 

                Foi prorrogado o prazo para prolação da decisão, ao abrigo do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, por despacho de 3 de fevereiro de 2021, derivado do prolongamento da fase instrutória e da complexidade das questões suscitadas.

 

POSIÇÃO DA REQUERENTE

 

A causa de pedir da Requerente é complexa e abrange, em síntese, os seguintes fundamentos de invalidade do ato tributário impugnado:

a)            Vício procedimental, por violação do disposto nos artigos 62.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”) e 2.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”). Neste âmbito, considera a Requerente que a notificação recebida da conclusão dos atos de inspeção (v. artigo 61.º RCPITA), com a indicação de que dos mesmos não tinham resultado atos – tributários ou em matéria tributária – desfavoráveis, consolidou uma expetativa legítima na esfera da Requerente. A posterior notificação, dando sem efeito a antecedente, com a menção de atos desfavoráveis, traduz uma reabertura do procedimento inspetivo após a conclusão dos atos inspetivos, sem qualquer justificação, factual ou de direito, e representa a alteração de um ato administrativo consolidado na ordem jurídica (de encerramento dos atos inspetivos), colidindo com as legítimas expetativas da Requerente em violação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança;

b)           Vício de erro nos pressupostos de facto, por não estarem reunidos os requisitos de aplicação do regime de preços de transferência, previstos no artigo 63.º do Código do IRC, em concreto a existência de “relações especiais” entre a Requerente e os adquirentes do prédio permutado, porquanto:

i.             A estrutura acionista da Requerente era composta, à data da celebração do contrato de permuta, por 17 acionistas, pelo que os 4 acionistas que aceitaram ceder as suas ações (representativas de parte do capital social da Requerente) em troca do prédio não tinham uma influência significativa naquela;

ii.            O facto de 2 desses 4 acionistas fazerem parte do Conselho de Administração da Requerente não altera essa conclusão, na medida em que determinadas decisões da Requerente não eram tomadas por esse órgão, mas pelo conjunto dos acionistas reunidos em Assembleia Geral, nomeadamente no que respeita a transações de ações próprias (v. artigos 319.º e 373.º do Código das Sociedades Comerciais – “CSC”);

iii.           A existência de uma relação de parentesco entre os acionistas, não determina a existência de um ascendente ou do poder de influenciar decisões entre esses mesmos acionistas (artigo 63.º, n.º 4 do Código do IRC) que, todos juntos, não detinham sequer 20% de ações representativas do capital da Requerente;

iv.           Os estatutos da Requerente estabelecem que nenhum acionista pode representar mais de 20% dos votos presentes ou de 10% das ações emitidas;

v.            Os acionistas já tinham mandatado o Conselho de Administração da Requerente, em 10 de janeiro de 2015, para promover a venda da totalidade das ações, concretizada por um contrato promessa de compra e venda das ações e pela outorga da escritura de permuta, em 29 e em 30 de dezembro de 2015, respetivamente:

vi.           A operação de permuta proveio de uma decisão de todo o corpo de acionistas, não tendo sido direcionada e decidida pelos 4 acionistas em questão e integrava um objetivo mais amplo, o da venda da própria Requerente;

c)            Vício de erro nos pressupostos, por inadequação do método utilizado pela AT para aferir o valor de mercado da Requerente em 2015 (e, por essa via, das ações permutadas pelo prédio), mediante utilização de vetores e “comparáveis” relativos a anos distintos e ulteriores (2017 e 2018) ao ano em análise, não sendo as diferenças neutralizáveis pela mera aplicação de coeficientes de desvalorização. Argui a este respeito a Requerente que:

i.             O procedimento de avaliação de empresas deve ter apenas em consideração as circunstâncias contemporâneas à data da avaliação, ou que ocorreram até essa data e não eventos subsequentes, ex post facto;

ii.            A AT não identificou operações idênticas ou outras vendas de imóveis, nem um comparativo interno com referência ao mesmo período, nem sequer um comparável externo, admitindo a dificuldade de determinar com fiabilidade os termos em condições idênticas que serviriam de comparação. Assim, o apuramento do valor de mercado das ações da Requerente em 2015, com base em vendas de imóveis (não de ações) efetuadas 3 anos depois, não permite um mínimo de comparabilidade entre tais operações, nem essa avaliação reflete uma situação normal de mercado;

iii.           Existiam vias alternativas para alcançar um mínimo de comparabilidade entre as operações, como a aplicação do critério previsto no artigo 15.º, n.º 3, alínea a) do Código do Imposto do Selo, ou uma fidedigna avaliação dos imóveis em causa mediante aplicação das regras previstas na Lei n.º 153/2015, de 14 de setembro, no Aviso n.º 5/2006 do Banco de Portugal ou no Regulamento n.º 2/2015 da CMVM, este relativo à avaliação de imóveis detidos por Organismos de Investimento Coletivo;

d)           Erro (nos pressupostos) na quantificação do facto tributário, em violação do disposto no artigo 100.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), uma vez que o valor de mercado atribuído à Requerente pela AT – de € 37.361.384,33 – é desajustado e manifestamente superior ao de mercado:

i.             O que resulta, desde logo, do Relatório do ROC em que a AT se louvou para alegar que o valor das ações cedidas era superior ao que foi praticado, de 30 de novembro de 2015, que indica um intervalo entre € 13.150.000 e € 17.625.000;

ii.            Bem como do comparável de uma proposta de € 13.000.000 enviada à Requerente por um potencial comprador, em 3 de março de 2015 (valor pelo qual a sociedade veio a ser vendida já no ano 2016);

iii.           Ou ainda dos rendimentos (rendas) gerados pelas propriedades de investimento, de € 374.045,40 em 2014 e de € 624.574,17 em 2015, que inviabilizam que a sociedade pudesse ser valorizada em mais de 37 milhões de euros;

iv.           Atentos outros diversos pressupostos errados assumidos pela Requerida:

i.             Os imóveis transacionados em 2017 e 2018 foram objeto de medidas de valorização, como a desocupação, a afetação a outros usos e alterações urbanísticas com novos direitos construtivos e aumento da capacidade edificativa, que permitiram o incremento substancial do seu valor;

ii.            O estado de conservação dos imóveis era precário, ao contrário do considerado pela Requerida;

iii.           O valor médio de venda apurado pela Requerida nos anos 2017 e 2018 teve por base imóveis com afetações distintas (comércio e habitação), comparando realidades incomparáveis;

iv.           A equiparação do valor do capital próprio da Requerente ao valor dos imóveis, não tendo em conta a totalidade do património da sociedade;

v.            O caráter genérico dos dados retirados do Instituto Nacional de Estatística para ajustar o valor de mercado das ações da Requerente a 2015, inquinando a comparabilidade e sendo insuscetíveis de constituir um fator de atualização dos preços no ano 2015;

e)           Vício de fundamentação, relativamente aos pressupostos de aplicação do regime previsto no artigo 63.º do Código do IRC, em concreto à existência de relações especiais e à tomada de referência de vendas realizadas em anos posteriores a 2015  (artigos 77.º da Lei Geral Tributária – “LGT”, 36.º do CPPT, 153.º do Código do Procedimento Administrativo – “CPA” e 268.º, n.º 3 da CRP); e

f)            Vício de forma, por preterição de formalidade essencial, dada a desconsideração, pela Requerida, dos elementos novos carreados para o procedimento pela Requerente (artigo 60.º, n.º 7 da LGT).

 

POSIÇÃO DA REQUERIDA

 

                Na sua resposta a Requerida reproduz e confirma o entendimento vertido pelos Serviços de Inspeção no Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) e, no que se refere aos vícios do ato tributário suscitados pela Requerente, sustenta que:

a)            A notificação da conclusão dos atos de inspeção remetida à Requerente (artigo 61.º, n.º 1 do RCPITA), na parte em que referia não terem resultado atos tributários ou em matéria tributável desfavoráveis ao sujeito passivo, constituiu um lapso que foi retificado por nova notificação (que deu sem efeito a nota de diligência antecedente) e não gerou a ineficácia da decisão final. A mencionada notificação não correspondeu ao encerramento do procedimento inspetivo, que apenas veio a suceder com a notificação do relatório final (artigo 62.º, n.º 1 do RCPITA). Acresce que não foram promovidas quaisquer diligências externas após a primeira notificação. Assim, não foi reaberta nenhuma inspeção, mas dada continuidade ao mesmo procedimento;

b)           Sobre a falta de verificação dos pressupostos do regime de preços de transferência, a existência de relações especiais (artigo 63.º, n.º 4, alínea c) do Código do IRC) está justificada e fundamentada no RIT, não se tratando de uma presunção legal, mas de aplicação da lei. Destaca as relações de parentesco entre a quase totalidade dos acionistas e o facto de os documentos juntos pela Requerente reforçarem essa conexão;

c)            No tocante ao método de quantificação, a Requerente não juntou elementos suscetíveis de contrariar a aplicação do regime de preços de transferência, nem demonstrou o erro na respetiva quantificação;

d)           Não se verifica o vício de falta de fundamentação, sendo percetível a justificação da existência de relações especiais e as razões que motivaram o ato tributário.

 

                Por fim, a Requerida pronunciou-se pela desnecessidade de inquirição das testemunhas e conclui pela improcedência do pedido arbitral, com as legais consequências.

 

                II.            SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer do ato de liquidação de IRC e juros compensatórios controvertidos, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado da data limite de pagamento, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do CPPT (no caso, alínea a)).

 

Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

                III.          FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

1.            MATÉRIA DE FACTO PROVADA

 

                Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:

 

A.           A A..., S.A., aqui Requerente, é uma sociedade anónima constituída em 30 de julho de 1998. Em 2015, era titular de um acervo de bens imóveis, desenvolvendo a sua atividade no ramo imobiliário –arrendamento, venda e operações acessórias conexas – e estava enquadrada no regime geral de IRC – cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) junto pela Requerente como Documento 3.

B.            A estrutura acionista da Requerente, no ano 2015, era a seguinte – cf. RIT:

ACIONISTAS NO INÍCIO DE 2015

Nome   Ações

B...         4965

C...         3213

D...         190

E...         800

F...         800

G...        510

H...         1636

I...          1894

J...          200

K...         800

L...          2094

M...       1894

N...        190

O...        2094

P...         190

Q...        1636

R...         1894

                25000

 

ACIONISTAS NO FINAL DE 2015

Nome   Ações

B...         4965

E...         800

F...         800

G...        510

H...         1636

I...          1894

S...         1047

K...         800

L...          2094

M...       1894

O...        2094

Q...        1636

T...         1047

A... (Ações próprias)       3783

                25000

 

C.            Em 2015, a Requerente tinha os seguintes administradores, sendo a gerência de facto exercida pelos três primeiros – cf. RIT:

a)            D...;

b)           F...;

c)            H...;

d)           E...;

e)           U...; e

f)            O... .

D.           Em 10 de janeiro de 2015, os acionistas da Requerente celebraram um acordo, mediante o qual:

i.             Quatro dos acionistas (C..., N..., D... e V...) declararam permutar o prédio urbano sito na Rua ..., n.ºs ... a ... D, em Lisboa, freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ..., com o valor patrimonial de € 1.975.890,00, pelas ações da Requerente que estavam na sua titularidade;

ii.            Os demais acionistas obrigaram-se a vender a terceiros a totalidade das ações de que eram titulares e a aceitar a permuta do referido prédio a efetivar antes da venda das ações;

iii.           Estas obrigações apenas eram exigíveis no caso de ser apresentada uma proposta de aquisição das ações da totalidade do capital social da Requerente pelo valor mínimo de € 13.000.000,00, correspondendo ao ativo imobiliário, expurgado do prédio da Rua ... e de todos os demais ativos (mobiliários);

iv.           Mandataram o Conselho de Administração da Requerente para promover as negociações e praticar os atos a que houvesse lugar com vista à concretização do acordo – cf. documento 7 junto pela Requerente.

E.            Em 30 de novembro de 2015, a Requerente foi avaliada pela sociedade de  revisores oficiais de contas W..., SROC, Lda., que concluiu que o justo valor de cada ação da Requerente correspondia a um valor contido no intervalo entre € 526 e € 705 euros – cf. RIT e documentos anexos.

F.            Em 23 de dezembro de 2015, o Conselho de Administração da Requerente apresentou uma proposta a submeter à Assembleia Geral para deliberação de aquisição das ações próprias detidas por C... (213 ações), V... (1190 ações), N... (1190 ações) e D... (1190 ações), por permuta pelo prédio da Rua...– cf. RIT e documentos anexos (proposta do CA).

G.           Esta operação (de permuta do prédio da Rua ... por ações representativas do capital da Requerente) constituía uma condição imposta pelos 4 acionistas beneficiários da permuta para viabilizar a venda da totalidade das ações da Requerente a terceiros, pelo preço mínimo global de € 13.000.000,00 – cf. RIT e documentos anexos (proposta do CA).

H.           Em 30 de dezembro de 2015, a Requerente celebrou uma escritura pública de permuta do prédio sito na Rua ... acima identificado, que se encontrava classificado como propriedade de investimento, mediante o qual transmitiu esse imóvel a C..., V..., N... e D..., por contrapartida de 3783 ações próprias, das quais 213 pertencentes a C... e 1190 por cada um dos outros intervenientes. O rendimento desta permuta foi reconhecido pela Requerente na conta "7862- Alienações", apurando mais-valias contabilísticas e mais-valias fiscais derivadas desta operação – cf. RIT e documentos anexos. 

I.             No final de 2015, a Requerente detinha 50 imóveis que no sistema informático da AT constavam com o valor de € 15.437.900,00 (valor que não inclui o prédio da Rua ..., entretanto permutado) – cf. RIT.

J.             Em 22 de junho de 2016, foi vendida a totalidade das ações representativas do capital social da Requerente à sociedade X..., S.A., pelo valor de € 12,999,999.99 – cf. RIT.

K.            Em 2016, o estado da generalidade dos imóveis da Requerente era de degradação, com exceção do edifício arrendado à Y..., sito no Largo...– cf. depoimento da primeira testemunha.

L.            Os imóveis detidos pela Requerente foram, no decurso dos anos 2016, 2017 e 2018, objeto de diversas ações tendo em vista a respetiva valorização, nomeadamente:

(a)          A celebração de acordos de revogação de contratos de arrendamento antigos e com rendas baixas, permitindo a desocupação de diversas frações e a viabilização de projetos futuros;

(b)          Desenvolvimento urbanístico através da apresentação de Pedidos de Informação Prévia e de Projetos de Arquitetura junto da Câmara Municipal de Lisboa

– cf. prova testemunhal e documentos juntos pela Requerente na sequência da diligência de inquirição de testemunhas.

M.          A Requerente foi objeto de um procedimento externo de inspeção tributária, de âmbito parcial, para IRC e IVA, credenciado pela Ordem de Serviço n.º OI2018..., relativa ao período de 2015, que teve início em 16 de novembro de 2018 – cf. RIT.

N.           No âmbito deste procedimento inspetivo, a Requerente foi notificada, em 28 de dezembro de 2018, através do Ofício n.º..., datado de 17 de dezembro de 2018, da conclusão dos atos de inspeção e da nota de diligência (n.º NDO...), com a indicação de “não resultarem atos tributários ou em matéria tributária desfavoráveis ao sujeito passivo” – cf. RIT e Documento 4 junto pela Requerente.

O.           Em 8 de agosto de 2019, a Requerente recebeu nova notificação relativa ao procedimento inspetivo vertente, dando sem efeito a nota de diligência notificada pelo Ofício n.º ... que antecede, comunicando que “A breve prazo será enviado o projeto de conclusões do relatório, nos termos dos artºs 60º da LGT e 60º do RCPITA” – cf. RIT e Documento 5 junto pela Requerente.

P.            Esta última notificação baseia-se na Informação dos Serviços de Inspeção Tributária, datada de 29 de julho de 2019, sobre a qual recaiu despacho de concordância do Diretor de Finanças de Lisboa, que dispõe nos seguintes termos:

“No âmbito da ação de inspeção a decorrer credenciada pela ordem de serviço n.º OI2018..., foi enviada ao representante legal da sociedade “A..., SA” […] a notificação da nota de diligência n.º NDO..., pelo n/ofício n.º ... de 17-12-2018, com a indicação de “não resultarem atos tributários ou em matéria tributária desfavoráveis ao sujeito passivo”.

A nota de diligência foi notificada nos temos do artigo 61.º do Regime Complementar do Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA) e tem como finalidade dar por concluídos os atos extemos de inspeção, continuando o procedimento inspetivo a decorrer até à notificação do relatório. nos termos do artigo 62.º do mesmo diploma.

Acontece que, por apreciação superior, do procedimento inspetivo vão resultar atos tributários ou em matéria tributária desfavoráveis ao sujeito passivo, pelo que se comunica que a nota de diligência n.º ND..., notificada pelo n/ofício n.º ... de 17-12-2018, fica sem efeito e a breve prazo será o sujeito passivo notificado do projeto de conclusões do relatório, nos termos do disposto no artigo 60.º do RCPITA e artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT) – cf. RIT e Documento 5 junto pela Requerente.

Q.           Na sequência deste procedimento inspetivo, foram propostas correções meramente aritméticas à matéria coletável da Requerente no valor de € 2.787.385,62, com a notificação do correspondente projeto de Relatório, para exercício do direito de audição, por ofício datado de 14 de agosto de 2019 – cf. RIT.

R.            Como fundamento das referidas correções, refere o projeto de Relatório, com relevo para os autos, o seguinte – cf. RIT:

“II.4.3 - RENDIMENTOS OBTIDOS

 

Os rendimentos do sujeito passivo no período de 2015 resultaram essencialmente do valor obtido dos imóveis arrendendados e da venda do prédio sito na Rua ..., ..., Lisboa, que foi efetuada através da permuta por aquisição de ações próprias.

O prédio objeto da permuta é um prédio urbano inscrito com o artigo matricial... . É um prédio do tipo: "Prédio em Prop- Total com Andares ou Div. Susc. De Utiliz. Independente" e constituído por sete frações, a saber: RC, 1.º, 2.º-3.º, 4.º, 5.º, 6.º e 7.º a 9.º.

No final de 2014 estas 7 frações tinham o Valor Patrimonial Tributário total de € 1.975.890,00 […].

 

II.4.3.1 – RENDAS OBTIDAS

 

Os imóveis pertencentes ao sujeito passivo registados em propriedades de investimento geraram rendas. O valor dos rendimentos obtidos com as rendas, foram registados contabilisticamente na conta "7873- Rendas out. rend. em propr. Investimento" que no final do ano ascendeu os € 712.172,28.

 

II.4.3.2 – VENDA/PERMUTA

 

No final do ano de 2015 o sujeito passivo celebra um contrato de permuta em que cede uma propriedade de investimento e recebe ações próprias, reconhecendo contabilisticamente o rendimento na conta "7862- Alienações", e efetuando os seguintes movimentos, conforme "prints" que se seguem extraídos dos extratos, fornecidos pelo sujeito passivo, das contas SNC: 7862, 521 e 522:

[…]

 

A propriedade de investimento estava registada na contabilidade ao custo de aquisição nas contas SNC "42102- Rua ... N.º..." no montante de € 17.640,98 e "...- Rua ... N.º ..." no montante de € 52.922,95, e que o sujeito passivo também creditou no final do ano.

A referida propriedade de investimento refere-se ao prédio urbano da freguesia ... e com o artigo matricial n.º..., sendo que o valor registado na contabilidade na conta 42102 se refere à parte do terreno e o valor da conta 42202 se refere ao edifício.

A operação tem por base a "Escritura Publica de Permuta" celebrada em 30/12/2015, na qual consta que os acionistas, C... […],D... […], V... […] e N... […], entregaram as ações que detinham em troca do prédio, conforme cópia da referida escritura que se anexa, como ANEXO 2.

Na data da escritura os acionistas: D..., V... e N..., detinham cada um, 1190 ações, sendo que 1000 lhes tinham sido doadas, por sua mãe, C..., em 23/12/2015, conforme se refere na "Escritura Publica de Permuta" (ANEXO 2).

No quadro seguinte consta a idenficação dos acionistas que intervieram no contrato de permuta e o n.º de ações que entregaram à sociedade e a quota parte que cada um recebeu no prédio objeto da permuta:

NIF         Nome   N.º de ações entregues na permuta        Quota - parte do predio adquirida na permuta

[…]         C...         213         55/1000

[…]         D...         1190       315/1000

[…]         V...         1190       315/1000

[…]         N...        1190       315/1000

Total                     3783       1000/1000

 

Na escritura foi atribuído a cada ação o valor de € 522,31, sendo este valor inferior ao atribuído no relatório elaborado pela sociedade de revisores oficiais de contas W..., SROC, LDA […], o qual foi solicitado para valorizar as ações representativas da sociedade.

O relatório foi efetuado pelo ROC, Z..., está datado de 30 de novembro de 2015, e apresenta o intervalo entre € 526 e € 705, para valorização das ações, conforme ponto 9 do referido relatório (ANEXO 3), que concluiu:

"9. É assim nossa convicção de que o justo valor de cada ação da sociedade A..., S.A corresponde a um valor contido no intervalo entre 526 €uros e 705 €uros"

O valor que veio a ser atribuído a cada ação resultou do quociente, arredondado, entre o Valor Patrimonial Tributário do prédio permutado e o n.º de ações entregues por parte dos acionistas (€ 1.975.890,00 / 3783 = 522,3076...) resultando o valor de € 522,31 por ação.

Assim das 3783 ações valorizadas a € 522,31 resultou num valor total de € 1.975.898,73, valor que o sujeito passivo considerou como valor de cedência do prédio, coincidente com o seu Valor Patrimonial Tributário, não resultando do contrato de permuta qualquer valor extra a entregar por qualquer das partes.

Com os valores assim determinados, o sujeito passivo deduziu na Mod 22 uma mais-valia contabilística no montante de €1.942.250,15 e acresceu a mais-valia fiscal apurada de € 199.590,19, tendo entregue cópia do mapa de apuramento das mais-valias e menos-valias fiscais, que se anexa como ANEXO 4.

[…]

 

III – DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORREÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS À MATÉRIA TRIBUTÁVEL

 

[…]

 

III.1-PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA – ART.º 63.º DO CIRC

 

[…]

 

Em suma, para aplicação dos preços de transferência é necessário a verificação dos seguintes requisitos:

-              Que existam relações especiais entre o contribuinte e uma outra entidade sujeita ou não ao regime do IRC;

-Que em virtude dessas relações sejam estabelecidas condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes,

-              Conduzindo ao apuramento de uma base tributária distinta da que seria apurada na ausência de tais relações.

Assim passaremos a analisar:

 

A- A verificação da existência de relações especiais

No caso em apreço a sociedade A... celebrou contrato de permuta do prédio urbano da freguesia ... com o artigo matricial ..., por ações próprias detidas pelos acionistas à data: C... […], V... […], N... […] e D... […].

A sócia C... é mãe dos outros três acionistas e a acionista D..., na data dos factos, 30/12/2015, data da escritura de permuta, fazia parte do conselho de administração e era gerente de facto da sociedade A... .

Previamente, à Escritura Pública de Permuta, datada de 30/12/2015, foi efetuada uma proposta do conselho de administração, datada de 23/12/2015, sobre a deliberação da aquisição de ações próprias dos acionistas suprareferidos que se encontra em anexo (ANEXO 1), designado- se como "Proposta do Conselho de Administração".

Nesse documento, o conselho de administração propõe, em sequência da condição imposta pelos quatro acionistas envolvidos na permuta, que sejam adquiridas as ações dos mesmos em troca do imóvel já referido, para viabilizarem o negócio da venda da totalidade das ações da sociedade, pelo preço mínimo global de € 13.000.000,00.

Verifica-se que a acionista D..., diretamente interessada na concretização desta proposta na quota parte que lhe corresponde […] é administradora da sociedade.

Verifica- se igualmente que foram beneficiários da proposta atrás referida, C..., mãe da administradora da sociedade, D... e mãe de V... e N..., irmãos de D... .

Face ao exposto, considera- se verificado o requisito da existência de relações especiais entre a sociedade A... e os acionistas que fizeram a permuta das ações, dado que exerceram direta e indiretamente, influência na decisão da gestão da sociedade, nos termos da al. c) do n.º 4 do art.º 63.º do CIRC e também conforme se retira do documento constante no ANEXO 1, com a designação de "Proposta do Conselho de Administração", uma vez que os referidos acionistas só viabilizariam o negócio pretendido peta sociedade se previamente esta última adquirisse as ações aos referidos sócios, por permuta com o prédio sito na Rua..., n.º .., Lisboa.

Acresce referir que a referida "Proposta do Conselho de Administração", foi aprovada, conforme ata n.º 69, que se anexa (ANEXO 5) e da qual se retira ainda que era a presidente da Mesa da Assembleia, C..., beneficiária da permuta bem como os seus filhos.

 

B- Valor de realização do prédio permutado com os acionistas e o valor de realização de outros imóveis alienados a entidades independentes

No negócio efetuado entre a sociedade e os seus acionistas, atribuíram ao imóvel o valor de € 1.975.898,73, que coincide com o VPT que também serviu de base para determinar o valor atribuído às ações no montante de € 522,31 (quociente arredondado, entre o Valor Patrimonial Tributário do prédio permutado e o n.º de ações entregues por parte dos acionistas, €1.975.890,00 /3783= 522,3076).

Os valores assim determinados foram condição dos acionistas envolvidos na permuta para a viabilização do negócio conforme documento anexo no ANEXO 1, com a designação de "Proposta do Conselho de Administração". No entanto importa aferir, em termos fiscais, qual o valor que seria de praticar se não existissem relações especiais ou seja, a A..., deveria ter atendido ao princípio de plena concorrência, previsto no art.º 63.º do CIRC e na Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro.

Isto porque, por imperativo legal, as operações realizadas entre a empresa e os acionistas, verificada que se encontra a existência de relações especiais devem ser efetuadas nos mesmos termos e condições que seriam estabelecidos se essas relações não existissem, ou seja, se fossem efetuadas com entidades independentes em operações comparáveis.

O sujeito passivo na IES no quadro 10, não menciona ter havido operações com entidades relacionadas, contudo ficou demonstrada a sua existência, pelo que ao abrigo do princípio da plena concorrência deve ser apurado o montante por que seria efetuada a permuta das ações pelo imóvel.

[…]

No caso e dado que a sociedade, no ano de 2015, não praticou operações idênticas, não efetuou outras vendas de imóveis, não foi possível obter um comparativo interno tendo por referência o mesmo período.

Também não se detetou um comparável externo e dada a especificidade da operação, transmissão onerosa de um imóvel em propriedade total mediante um contrato de permuta e dado a dificuldade de se detetrminar com fiabilidade os termos e condições idênticas que serviriam de comparação (características especificas das entidades comparáveis e as especificidades relativas ao prédio objeto da permuta, nomeadamente localização, prédio em propriedade total) , conclui-se pela inaplicabilidade dos métodos identificativos na al. a) do n.º 3 do art.º 63.º do CIRC e do n.º 1, al. a) e na b) do art.º 4.º da portaria n.º 1446- C/2001, de 21/12.

Assim e dado que se apurou, que a sociedade vendeu imóveis, em 2017 e 2018, a entidades independentes, considera-se que com base no valor destas vendas é possível efetuar a determinação do valor de mercado da sociedade, à data de 2015, e a partir desse valor determinar o valor de mercado das ações e do prédio permutado, já que ao abrigo do art.º 46.º, n.º 3 al. a) o valor de realização do prédio será o valor de mercado dos bens ou direitos recebidos em troca, considerando-se como o método mais apropriado, e com previsão legal prevista, no art.º 63.º , n.º 3 al. b) e no art.º 4.º, n.º 1 al. b) da portaria n.º 1446- C/2001, a final, que refere:

"b)…ou outro método mais apropriado aos factos e às circunstâncias específicas... ".

Assim de acordo com os elementos disponíveis no sistema de informação da AT foi possível constatar que:

               O sujeito passivo em 2017 e 2018 efetuou vendas a outras entidades sujeitas a IRC e com as quais não se apurou, da consulta das bases de dados da AT, existirem relações especiais, pelo que se consideram estas operações, operações não vinculadas, ou seja operações efetuadas entre entidades independentes.

Da análise dessas vendas constata-se que os valores de realização foram superiores aos valores patrimoniais tributários dos prédios vendidos […], ao contrário do prédio objeto da permuta, cujo preço se fixou em € 1.975.898,73, valor que resultou com uma diferença irrelevante de € 8,73, relativamente ao seu VPT de €1.975,890,00 e apenas resultante do arredondamento no valor atribuído às ações entregues.

[…]

Loc         Art.        Tipo Operação  Data Realização Entidade              VPT total das frações     Valor realização (VR)                Diferação entre VR e VPT

...            ...            Permuta(Operação vinculada)   30-12-2015          Sócios   1.975.890,00 €  1.975.898,73 €  8,73 €

...            ...            Venda(operação não vinculada)               09-10-2017          […]         387.580,00 €      1.300.000,00 €                912.420,00 €

...            ...            Venda(operação não vinculada)               19-10-2017          […]         1.335.410,00 €  2.100.000,00 €                764.590,00 €

...            ...            Venda(operação não vinculada)               03-07-2018          […]         1.487.920,00 €  6.392.064,00 €                4.904.144,00 €

...            ...           

Venda(operação não vinculada)              

31-07-2018        

[…]        

3.327.680,00 € 

10.200.000,00 €              

6.872.320,00 €

...            ...                                                                                         

...            ...                                                                                         

...            ...                                                                                         

Segue quadro resumo, das vendas realizadas entre 2015 e 2018, incluindo a permuta do prédio dos acionistas, em que se demonstra claramente a diferença obtida entre o valor de realização e o VPT dos prédios. Sendo que a nível contabilístico os referidos prédios estavam registados ao seu custo de aquisição conforme já referido.

 

 

Do quadro anterior resulta, claramente, que em virtude da relação existente entre os acionistas envolvidos na permuta, foram estabelecidas condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre partes independentes, como foi o caso dos outros imóveis vendidos a entidades independentes.

 

C- Determinação do valor de mercado das ações e determinação do valor de realização do imóvel

[…]

Com referência aos valores conhecidos das vendas de 2017 e 2018, efetuadas com entidades independentes, é possível determinar o valor de mercado da sociedade, tendo como referência essas vendas e ajustar esse valor ao período de 2015.

Assim vamos determinar o valor médio do m2 das áreas vendidas a entidades independentes […]

[…] do total de 13.489,08 m2 vendidos, entre 2017 e 2018, resultou o preço médio do m2 vendido a € 1.482,09.

Se considerarmos que a sociedade tinha imóveis, à data da permuta do imóvel em causa, com uma área total de 25.208,58 m2, resulta daí um valor de mercado da sociedade de € 37.361.384,33, pelo que cada ação teria o valor unitário de € 1.494,46 e consequentemente o valor da permuta das 3783 ações deveria ascender a € 5.653.524,68, conforme se demonstra:

1             2             3=1*2    4             5=3/4    6             7=5*6

m2 totais detidos (anteriores às vendas)              Preço (€) médio m2 reportado a 2017/2018         Valor (€) mercado dos imóveis da empresa em 2017/2018         

nº ações              Valor (€) unitário por ação reportado a 2017/2018           

Nº ações permutadas    Valor (€) das ações permutadas, reportado a valores de 2017/2018

25.208,58            1.482,09               37.361.384,33    25.000   1.494,46               3.783     5.653.524,68

 

Considerando que a permuta se operou em 2015, é necessário ajustar o valor de mercado das ações para 2015.

Assim, tomou-se como referência os valores estatísticos constantes das bases de dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), referentes à evolução dos preços por m2 das avaliações bancárias (efetuadas pelos bancos) relativamente aos preços dos imóveis, do tipo de construção referente a apartamentos em Lisboa, conforme se anexa em ANEXO 6, e de que segue quadro resumo, para se efetuar, um ajustamento, por comparação desta evolução. Estes dados consideram-se dados oficiais, e não têm os efeitos especulativos do mercado imobiliário.

Pelo que se segue quadro resumo, da pesquisa efetuada:

Final ano             Preços(€) médios do m2 das Avaliações Bancárias

2015      1.878,00

2016      2.006,00

2017      2.152,00

2018      2.229,00

Fonte: Bases de Dados INE – www.ine.pt

De 2015 para 2018 houve um aumento dos preços do m2 de 18,69%, nas avaliações bancárias efetuadas pelos bancos, pelo que se procede ao ajustamento do valor de mercado das ações para 2015, considerando a mesma evolução de preços, resultando o valor de mercado das 3783 ações permutadas, num total de € 4.763.284,34, conforme quadro que se segue:

1             2             3=1*2

Valor unitário (€) por ação ajustado (1949,46/1,1869      Nº ações permutadas    Valor (€) das ações com ajustamento

1.259,13               3.783     4.763.284,34

 

Conforme resulta do anterior exposto o valor das ações permutadas em 30/12/2015 tinham um valor de mercado de € 4.763.284,34 apurado ao abrigo dos preços de transferência, valor que deverá ser atribuído ao prédio permutado para efeitos de apuramento do resultado fiscal, nos termos do art.º 46.º n.º 3, al. a) do CIRC.

 

D- Quantificação da matéria tributária a corrigir ao abrigo do art.º 63.º do CIRC

Perante a evidência demonstrada conclui-se que a sociedade A... fez a permuta do imóvel sito na Rua ..., n.º ..., em Lisboa por um preço inferior ao valor que teria praticado com uma entidade independente, dado as relações especiais estabelecidas com os sócios que entregaram as ações em troca do prédio.

Face ao que foi exposto, o valor da mais-valia fiscal, resultante de idêntico negócio entre entidades independentes ascende a €2,986.975,81

[…]

Face ao exposto e considerando o montante já inscrito no campo 739 da Mod 22, de € 199.590,19, procede-se ao acréscimo de € 2.787.385,62 (€2.986.975,81 - €199.590,19), correspondendo este valor à correção resultante da aplicação dos preços de transferência, previstos no art.º 63.º do CIRC.

[…]

Assim, o lucro tributável corrigido, no período de 2015, é de € 3.330.613,25.”

 

S.            A Requerente exerceu o direito de audição por escrito, tendo os Serviços de Inspeção Tributária entendido que aquela não juntou documentos ou elementos suscetíveis de alterar os fundamentos para aplicação dos preços de transferência nos termos do projeto de relatório, já que a operação a avaliar era a venda do imóvel, sito na Rua..., ..., Lisboa, tendo por base a venda de outros imóveis por parte da Requerente, a entidades independentes, para aferir o seu valor [da Requerente], à data da permuta das ações pelo imóvel e, em consequência, o valor do próprio imóvel. Desde modo, o projeto convolou-se em Relatório definitivo – cf. RIT e Documento 2 junto pela Requerente.

T.            Subsequentemente, a Requerente foi notificada da liquidação adicional de IRC de 2015 aqui impugnada, emitida sob o n.º 2019..., datada de 11 de novembro de 2019, no montante de € 775.662,69, incluindo a liquidação de juros compensatórios na importância de € 93.582,53, que resultou no valor total a pagar de € 783.811,10 (incluindo juros), conforme demonstração de acerto de contas n.º 2019..., de 13 de novembro de 2019, com data limite de pagamento fixada em 31 de dezembro de 2019 – cf. documento 1junto pela Requerente.

U.           Em 30 de dezembro de 2019, a Requerente procedeu ao pagamento integral do valor de € 783.811,10, em resultado do ato de liquidação objeto desta ação – cf. documento 18 junto pela Requerente.

V.           Em 27 de março de 2020, por não se conformar com a referida liquidação de IRC (incluindo juros compensatórios), a Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo – conforme registo no sistema de gestão processual do CAAD.

 

                2.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

Com relevo para a decisão não existem factos que devam considerar-se não provados.

 

3.            MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se essencialmente na análise crítica da prova documental junta aos autos por ambas as Partes e nas posições por estas assumidas em relação aos factos.

 

Em relação à prova testemunhal produzida, as testemunhas, ouvidas em audiência contraditória, revelaram conhecimento direto dos factos que relataram com objetividade. Contudo, esse conhecimento restringe-se ao estado dos imóveis da Requerente em 2016 e à sua avaliação sem incluir aquele (prédio da Rua ...) cujo valor de transferência está em discussão nos presentes autos.

 

Neste âmbito, a primeira testemunha, AA..., colaborador do grupo “BB...”, que adquiriu a Requerente em junho de 2016, verificou pessoalmente o acervo imobiliário que a Requerente detinha em 2016 e constatou que esses imóveis se encontravam muito degradados, tendo a sua valorização dependido de um trabalho especializado desenvolvido pela “BB...” após a compra, envolvendo a negociação com arrendatários e o desenvolvimento de operações urbanísticas. Desconhece factos anteriores a 2016.

 

A segunda testemunha, CC..., colaborador da empresa de avaliações “DD...”, procedeu à avaliação do património imobiliário da Requerente no final de 2015, porém, essa avaliação não abrangeu o prédio da Rua ... .

 

Por fim, a testemunha EE..., advogada da imobiliária de 2004 a 2016, relatou as circunstâncias familiares de gestão da Requerente e as condições do acordo a que os acionistas chegaram em janeiro de 2015 para a venda da Requerente.

 

                IV.          DO DIREITO

 

                1.            QUESTÕES DECIDENDAS

 

                Está em discussão nos presentes autos uma correção de preços de transferência, efetuada ao abrigo do disposto no artigo 63.º do Código do IRC, em relação à qual a Requerente suscita os seguintes vícios de que importa conhecer na medida em que o seu conhecimento não resulte prejudicado pela solução dada a outros que os antecedam (artigo 608.º do CPC, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT):

(a)          Vício do procedimento inspetivo;

(b)          Erro nos pressupostos, por inexistência de relações especiais;

(c)          Erro nos pressupostos, por inadequação do método usado pela Requerida e por erro na quantificação;

(d)          Vício de fundamentação;

(e)          Preterição de formalidades essenciais.

 

Será observada a ordem dos vícios indicada pela Requerente que se coordena com o disposto no artigo 124.º do CPPT, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, considerando a tutela mais estável e eficaz dos interesses em presença, sendo que a procedência do invocado vício de erro nos pressupostos implica que fique prejudicado o conhecimento dos restantes.

 

                2.            VÍCIO PROCEDIMENTAL

 

                Segundo a Requerente, a notificação, em 28 de dezembro de 2018, da conclusão dos atos de inspeção com a menção de que daquela não tinham resultado atos – tributários ou em matéria tributária – desfavoráveis determinou o encerramento do procedimento. Este despacho consolidou-se na ordem jurídica, sendo inválida a reabertura do procedimento ocorrida posteriormente, com a consequente anulabilidade do ato de liquidação daí decorrente.

 

                Interessa começar por salientar que o Capítulo I do Título II do RCPITA, sob a epígrafe “Conclusão do Procedimento de Inspeção”, trata separadamente a conclusão dos atos inspetivos (artigo 61.º) e a conclusão do procedimento de inspeção (artigo 62.º) que são, desta forma, configurados pelo legislador como momentos distintos da fase final do procedimento. Por esta razão, é errónea a afirmação de que a notificação à Requerente dos atos de inspeção, que está prevista no artigo 61.º RCPITA, tenha produzido o efeito de encerramento do procedimento que, de acordo com o artigo 62.º do regime, se considera concluído com o “relatório final” (também objeto de notificação ao contribuinte) e não com a notificação da conclusão dos atos externos de inspeção. No mesmo sentido, o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28 de novembro de 2019, no processo n.º 744/08.9BESNT, declara que: “No art. 61º do RCPIT trata-se da conclusão dos atos de inspeção e não da conclusão do procedimento de inspeção, que apenas termina com a notificação do relatório de inspeção, conforme art. 62º, nºs 1 e 2 do RCPIT”.

 

                Assim, no momento da notificação da conclusão dos atos de inspeção não ocorreu o encerramento do procedimento inspetivo, o que apenas veio a suceder com a notificação do Relatório. Pelo que não é de considerar consolidado um “encerramento” que ainda não se tinha verificado à data da primeira notificação.  Acresce assinalar que não resulta dos autos que após esta primeira notificação tenham sido desenvolvidas quaisquer diligências externas adicionais pela Requerida.

 

                No que se refere ao facto de a primeira notificação mencionar que a inspeção não resultou em atos desfavoráveis para a Requerente, mesmo que se considerasse constitutiva de direitos, à data da segunda notificação ainda não estava consolidada, pois era anulável, nos termos do disposto nos artigos 168.º, n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”) , aplicável subsidiariamente, nos moldes preceituados no artigo 2.º, alínea d) do CPPT, não tendo ainda decorrido 9 meses desde a data da primeira notificação.              

 

                À face do exposto, não se formou uma expetativa legítima, digna de tutela, na esfera da Requerente, suscetível de alicerçar a alegada violação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, improcedendo a arguição do vício procedimental pela Requerente.

 

                3.            SOBRE O PRESSUPOSTO DE RELAÇÕES ESPECIAIS (ARTIGO 63.º, N.º 4 DO CÓDIGO DO IRC)

 

                A Requerente alega que não existem relações especiais entre as partes contratantes da operação em causa na presente ação, cujo valor foi corrigido para efeitos fiscais: a permuta do prédio sito na Rua ... por ações próprias detidas por 4 acionistas da Requerente. Entende a Requerente que, sem prejuízo de existirem relações familiares entre estes 4 acionistas e os demais, estas relações não determinaram um ascendente ou o poder de influenciar as decisões entre esses mesmos acionistas (em particular dos 4 acionistas permutantes sobre os restantes), conclusão que considera manter-se independentemente de 2 desses 4 acionistas fazerem parte do seu Conselho de Administração [da Requerente], dado que as decisões sobre a aquisição de ações próprias não eram tomadas por este órgão, mas em Assembleia Geral.

 

                Sobre a matéria, estabelece o artigo 63.º, n.º 4 do Código de IRC que se verificam “relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer, direta ou indiretamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra”. Esta cláusula geral é seguida de uma enumeração exemplificativa de um conjunto de casos que o legislador considerou constituírem uma manifestação desse poder, como, com relevância para os presentes autos, aquele em que existe uma relação entre “uma entidade [a Requerente] e os membros dos seus órgãos sociais, ou de quaisquer órgãos de administração, direção, gerência ou fiscalização, e respetivos cônjuges, ascendentes e descendentes” (alínea c)).

 

                Ficou demonstrado nos autos, e confirmado pela Requerente, que in casu existiam relações familiares entre os membros dos órgãos sociais da Requerente e que ela própria era uma sociedade de cariz familiar. Diversos dos seus acionistas eram filhos da sócia C... e irmãos (e mãe) da acionista D... que era, em simultâneo, membro do Conselho de Administração da Requerente com funções executivas.

 

                O texto legal não reclama que se comprove que foi efetivamente exercida uma influência, bastando-se com a suscetibilidade de que tal suceda, fundada num juízo presuntivo implícito, num juízo de probabilidade sobre a realidade dos factos  semelhante ao seguinte: nas circunstâncias-tipo enumeradas é comum que se constate uma influência considerada relevante para conformar uma distorção do preço da transação por razões e interesses que não estão presentes nas transações entre partes independentes.

 

                Não se trata, portanto, de uma presunção em sentido próprio, mas de uma opção de política fiscal assente “numa ideia de praticabilidade, que exige ao legislador a elaboração de leis cuja aplicação e execução seja eficaz e económica ou eficiente, e que conduzam a resultados consonantes com os objetivos pretendidos. Com essa finalidade, com que se pretende também assegurar os princípios materiais da igualdade e da justiça fiscal, é constitucionalmente justificável que o legislador possa recorrer não apenas às referidas presunções legais, mas também a técnicas de tipificação e de simplificação, que permitam disciplinar certos aspetos do direito dos impostos segundo critérios de normalidade, afastando as situações atípicas ou anormais” – v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 753/2014, de 12 de novembro de 2014.

 

                Nestes moldes, como salienta a Requerida, não está em causa (nem tem de demonstrar-se) uma influência efetiva, apenas o preenchimento dos pressupostos legais erigidos como implicando o provável exercício dessa influência, o que se verifica na situação vertente, enquadrável na alínea c) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC. Conclui-se neste ponto não assistir razão à Requerente, uma vez que se encontram reunidas as condições previstas na citada norma para que se considere existirem relações especiais e o consequente preenchimento do pressuposto subjetivo do regime de preços de transferência aplicado pela AT, ao abrigo do n.º 1 do mesmo artigo.

 

                4.            SOBRE O ERRO NOS PRESSUPOSTOS POR INADEQUAÇÃO DO MÉTODO UTILIZADO E O ERRO NA QUANTIFICAÇÃO DO FACTO TRIBUTÁRIO

 

                4.1.        INTRODUÇÃO

 

                A Requerida corrigiu a matéria tributável de IRC da Requerente, no período de 2015, incrementando-a no valor de € 2.787.385,62, por entender que a permuta realizada em 30 de dezembro desse ano, entre a Requerente e 4 dos seus acionistas, do prédio detido por aquela na Rua ..., por contrapartida das ações destes no seu capital [da Requerente], não se ter efetuado em condições idênticas às que seriam acordadas entre entidades independentes em operações comparáveis, de harmonia com o estabelecido no artigo 63.º do Código do IRC e da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro.

 

As ações (próprias) entregues pelos acionistas em troca do imóvel da Rua ..., que antes integrava o património da Requerente, foram avaliadas no valor unitário de € 522,31. O dito imóvel foi então valorizado em € 1.975.890,00. Todavia, segundo a Requerida este valor não reflete o valor de mercado da Requerente à data e distorce o valor das ações. Em 2015 e 2016 não se realizaram transações de imóveis da sociedade com entidades independentes, afirmando a Requerida não se terem detetado outros comparáveis no período em causa (2015).

 

Não obstante, com base em transações de imóveis da Requerente com entidades independentes realizadas em 2017 e 2018, a Requerida procedeu ao apuramento do “valor de mercado” daquela, após ajustamento do valor obtido ao período de 2015.

 

O valor médio do m2 dos imóveis vendidos em 2017 e 2018 foi quantificado pela Requerida em € 1.482,09. Considerando que a sociedade tinha imóveis com uma área total de 25.208,58 m2, à data da permuta do prédio da Rua..., daí resultou um valor de mercado da Requerente de € 37.361.384,33, e, consequentemente, cada ação teria o valor unitário de € 1.494,46.

 

Usando depois “valores estatísticos constantes das bases de dados do INE, referentes à evolução dos preços por m2 das avaliações bancárias relativamente aos preços dos imóveis, do tipo de construção referente a apartamentos em Lisboa", a Requerida recalculou o valor de cada ação da Requerente, reportado ao período de 2015, apurando-o em € 1.259,13 (e não em € 522,31, como praticado pela Requerente).

 

Assim, o valor de mercado – “arm´s lenght” – das ações recebidas pela Requerente em troca do imóvel permutado seria de € 4.763.284,34, o que implicaria o acréscimo à base tributária acima referido e quantificado.

 

A Requerente vem opor-se à metodologia adotada pela Requerida, sustentando que a mesma é inadequada e suscita questões de variada natureza, todas confluindo numa incorreta aplicação das regras de preços de transferência e na errónea quantificação do facto tributário.

 

A Requerida, não identificando um comparável externo e concluindo pela inaplicabilidade dos métodos previstos no artigo 63.º do Código do IRC, terá decidido apoiar a correção fiscal num “facto alternativo”: a circunstância de a Requerente ter vendido alguns imóveis, nos anos 2017 e 2018, a entidades independentes, cujos valores de venda foram utilizados para a determinação do valor de mercado da Requerente em 2015. 

 

Na perspetiva da Requerente, este procedimento não é idóneo, desde logo por ofensa ao princípio da comparabilidade, pois está alicerçado em valores de transações relativas a um período distinto daquele em análise (2015). Acresce que as lacunas analíticas e legais daí resultantes não são neutralizadas pela singela aplicação de “coeficientes de desvalorização”. Para a Requerente, o procedimento de avaliação de uma empresa deve ter apenas em consideração as circunstâncias conhecidas na data da avaliação, ou que ocorreram até essa data.

 

                4.2.        QUADRO LEGAL E RELEVO DAS RECOMENDAÇÕES DA OCDE

 

Com relevo para a análise do caso sub iudice interessa atender ao disposto no artigo 63.º do Código do IRC e ao artigo 5.º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro, na versão à data dos factos, que infra se transcrevem na parte aplicável:

“Artigo 63.º do Código do IRC

Preços de transferência

1 – Nas operações comerciais, incluindo, designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, bem como nas operações financeiras, efetuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.

2 – O sujeito passivo deve adotar, para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o método ou métodos suscetíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efetua e outras substancialmente idênticas, em situações normais de mercado ou de ausência de relações especiais, tendo em conta, designadamente, as características dos bens, direitos ou serviços, a posição de mercado, a situação económica e financeira, a estratégia de negócio, e demais características relevantes dos sujeitos passivos envolvidos, as funções por eles desempenhadas, os ativos utilizados e a repartição do risco.

3 – Os métodos utilizados devem ser:

a) O método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda minorado ou o método do custo majorado;

b) O método do fracionamento do lucro, o método da margem líquida da operação ou outro, quando os métodos referidos na alínea anterior não possam ser aplicados ou, podendo sê-lo, não permitam obter a medida mais fiável dos termos e condições que entidades independentes normalmente acordariam, aceitariam ou praticariam.

4 – Considera-se que existem relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer, direta ou indiretamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra, o que se considera verificado, designadamente, entre:

a) Uma entidade e os titulares do respetivo capital, ou os cônjuges, ascendentes ou descendentes destes, que detenham, direta ou indiretamente, uma participação não inferior a 20 % do capital ou dos direitos de voto;

b) Entidades em que os mesmos titulares do capital, respetivos cônjuges, ascendentes ou descendentes detenham, direta ou indiretamente, uma participação não inferior a 20 % do capital ou dos direitos de voto;

c) Uma entidade e os membros dos seus órgãos sociais, ou de quaisquer órgãos de administração, direção, gerência ou fiscalização, e respetivos cônjuges, ascendentes e descendentes;

d) Entidades em que a maioria dos membros dos órgãos sociais, ou dos membros de quaisquer órgãos de administração, direção, gerência ou fiscalização, sejam as mesmas pessoas ou, sendo pessoas diferentes, estejam ligadas entre si por casamento, união de facto legalmente reconhecida ou parentesco em linha reta;

e) Entidades ligadas por contrato de subordinação, de grupo paritário ou outro de efeito equivalente;

f) Empresas que se encontrem em relação de domínio, nos termos do artigo 486.º do Código das Sociedades Comerciais;

g) Entidades cujo relacionamento jurídico possibilita, pelos seus termos e condições, que uma condicione as decisões de gestão da outra, em função de factos ou circunstâncias alheios à própria relação comercial ou profissional;

h) Uma entidade residente ou não residente com estabelecimento estável situado em território português e uma entidade sujeita a um regime fiscal claramente mais favorável residente em país, território ou região constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças.”

 

“Artigo 5.º da Portaria n.º 1446-C/2001

Fatores de comparabilidade

Para efeitos do artigo anterior, o grau de comparabilidade entre uma operação vinculada e uma operação não vinculada deve ser avaliado, tendo em conta, designadamente, os seguintes fatores:

a) As características específicas dos bens, direitos ou serviços que, sendo objeto de cada operação, são suscetíveis de influenciar o preço das operações, em particular as características físicas, a qualidade, a quantidade, a fiabilidade, a disponibilidade e o volume de oferta dos bens, a forma negocial, o tipo, a duração, o grau de proteção e os benefícios antecipados pela utilização do direito e a natureza e a extensão dos serviços;

b) As funções desempenhadas pelas entidades intervenientes nas operações, tendo em consideração os ativos utilizados e os riscos assumidos;

c) Os termos e condições contratuais que definem, de forma explícita ou implícita, o modo como se repartem as responsabilidades, os riscos e os lucros entre as partes envolvidas na operação;

d) As circunstâncias económicas prevalecentes nos mercados em que as respetivas partes operam, incluindo a sua localização geográfica e dimensão, o custo da mão-de-obra e do capital nos mercados, a posição concorrencial dos compradores e vendedores, a fase do circuito de comercialização, a existência de bens e serviços sucedâneos, o nível da oferta e da procura e o grau de desenvolvimento geral dos mercados;

e) A estratégia das empresas, contemplando, entre os aspetos suscetíveis de influenciar o seu funcionamento e conduta normal, a prossecução de atividades de pesquisa e desenvolvimento de novos produtos, o grau de diversificação da atividade, o controle do risco, os esquemas de penetração no mercado ou de manutenção ou reforço de quota e, bem assim, os ciclos de vida dos produtos ou direitos;

f) Outras características relevantes quanto à operação em causa ou às empresas envolvidas.”

 

Convém assinalar, neste âmbito, a relevância das Recomendações da OCDE , em casos que envolvem preços de transferência, como bem vincado no Preâmbulo da Portaria n.º 1446-C/2001, quando nele se expressa:

 

“Através da presente Portaria completa-se uma primeira fase da regulamentação sobre os preços de transferência, para cuja aplicação, nos casos de maior complexidade técnica, é aconselhável a consulta dos relatórios da OCDE que desenvolvem esta matéria, e cuja adoção pelos países membros é objeto de recomendações aprovadas pelo Conselho desta organização internacional.”

 

Assim, na apreciação da presente correção de preços de transferência estas Recomendações serão tidas em conta.

 

                4.3.        SOBRE O USO DE INFORMAÇÃO EX-POST, OU DISPONÍVEL A POSTERIORI, EM AVALIAÇÃO DE ATIVOS OU DE EMPRESAS

 

4.3.1.     As Recomendações da OCDE

 

As Guidelines da OCDE  em matéria de preços de transferência constituem um elemento hermenêutico central na aplicação da metodologia de determinação do preço de plena concorrência no domínio das transações vinculadas. Importa, pois, compulsar o que nelas se dispõe sobre o uso de informação obtida em períodos ou exercícios posteriores ao momento de referência da avaliação de ativos ou de empresas, a fim de apurar o seu valor de mercado.

 

Em tradução livre, negrito e sublinhado deste Tribunal, dispõem os §§ 3.68, 3.72 e 3.73 dessas Guidelines o seguinte:

 

3.68 Em princípio, a informação relativa às condições de transações não controladas comparáveis realizadas ou concretizadas durante o mesmo período de tempo em que o foi a transação controlada ("transações não controladas contemporâneas”) é considerada como a informação mais confiável para usar numa análise de comparabilidade, porque reflete como as partes independentes se comportaram num ambiente económico que é o mesmo que o ambiente da transação controlada. A disponibilidade de informações sobre transações não controladas contemporâneas pode, no entanto, ser limitada na prática, dependendo do momento da obtenção dessa informação.

3.72 Surge a questão de saber se,  em caso afirmativo, como levar em conta na análise de preços de transferência eventos futuros que eram imprevisíveis na época em que ocorreu e se analisou uma transação controlada, em particular quando a avaliação naquele período de tempo era altamente incerta. A questão deve ser resolvida, tanto por contribuintes como por administrações tributárias, por referência ao que empresas independentes teriam feito em circunstâncias comparáveis, para levar em consideração a incerteza da avaliação no preço da transação.

 

3.73 O raciocínio que se encontra nos parágrafos 6.28-6.32 e no anexo ao Capítulo VI “Exemplos para ilustrar as Diretrizes de Preços de Transferência em ativos intangíveis e elementos de avaliação altamente incerta”, para transações envolvendo intangíveis para os quais a avaliação é incerta, aplica-se por analogia a outros tipos de transações em que se verifica  incerteza de avaliação.

A questão principal é determinar se a avaliação era suficientemente incerta no momento da transação, de tal forma que as partes, em condições normais de mercado, teriam exigido um mecanismo contratual de ajustamento do preço, ou até se a alteração no valor foi tão fundamental que teria levado a uma renegociação da transação.

Quando for esse o caso, a administração tributária estaria justificada caso  determine o preço em condições normais de mercado para a transação com base na cláusula de ajuste ou de renegociação que seria observada ou incluída  numa transação não controlada comparável.

Em outras circunstâncias, onde não há razão para considerar que a avaliação era suficientemente incerta e, por isso, as partes não teriam exigido uma cláusula contratual de ajuste futuro no preço, nem estaria prevista a renegociação dos termos do acordo, então não há razão para as administrações fiscais fazerem ajustamentos, pois tal representaria um uso inapropriado de informação obtida após o evento, ou  informação retrospectiva (hindsight). A mera existência de incerteza não deve implicar um ajuste ex post sem uma consideração do que empresas independentes teriam acordado. "

 

Extrai-se do § 3.68 das Guidelines o princípio geral de que a informação a usar é a que se reporta a idêntico período temporal, por assim se garantir uma componente importante da comparabilidade.

 

Todavia, o § 3.72 aventa a possibilidade de tal informação não existir, ou de a avaliação ser altamente incerta, suscitando a questão de saber se eventos subsequentes devem, ou não, ser tidos em conta.

 

A esta dúvida responde o § 3.73 em termos que não deixam dúvidas: caso, em face do grau de incerteza no momento da transação, partes independentes não incluam nos contratos de transações de bens similares cláusulas de revisão de preços, então não devem as administrações fiscais usar informação de natureza ex post ou retrospetiva, pois tal representaria um uso inapropriado de informação obtida após os eventos sob apreciação (hindsight).

 

E, no caso de as partes independentes terem incluído cláusulas de eventual revisão de preços, a inferência lógica terá de ser a de que a revisão tanto pode ser para mais, num ambiente económico que, entretanto, se tornou mais favorável; como uma revisão em baixa, numa conjuntura mais degradada.

 

Na situação vertente, não há qualquer indício de a Requerida ter trazido ao processo contratos entre partes independentes, relativos a bens similares, que incluíssem tais cláusulas. A própria transação controlada aqui em causa não as inclui. Uma razão significativa para que tal tenha sucedido, radica no facto de os acionistas (vendedores das ações) visarem, em geral, objetivos de liquidez imediata, tendo aceite no ano seguinte, em 2016, vender as ações pelo preço que antes lhes fora proposto.

 

Assim, a atuação da Requerida quanto ao uso de informação obtida ex post não só não colhe apoio no que a lei exige sobre os múltiplos fatores de comparabilidade das transações (artigo 63.º do Código do IRC e artigo 5.º da Portaria, antes citados), nem na doutrina de referência constante das Guidelines, como em parte alguma da fundamentação do ato tributário [RIT] se discute tal problemática (relativa às questões derivadas da utilização de informação ex post), essencial no contexto da correção efetuada. A AT assume, sem justificação bastante, como adequado o uso de informação ex post, critério que, como se mostrou, não é validado pelas Recomendações da OCDE.

 

Mas, como se verá no ponto seguinte, não é só a OCDE que afirma o primado da informação contemporânea às transações ou avaliações efetuadas, quando se valorizam ativos individuais ou empresas no seu todo.

 

4.3.2. A doutrina financeira sobre avaliação de empresas e ativos

 

No caso vertente, a Requerida avaliou o capital da Requerente e, por isso, as respetivas ações, com referência ao ano 2015, usando valores conhecidos de transações e preços de 2017 e 2018. Em seguida, aplicando dados relativos à evolução dos preços por m2 das avaliações bancárias relativamente aos preços dos imóveis, do tipo de construção referente a apartamentos em Lisboa, deslocou, ou antecipou, para 2015, esses valores de avaliação.

 

No fundo, tratou-se de apurar quanto valeria em 2015 o capital da empresa a partir de factos e preços observados em 2017 e 2018, aos quais se aplicou um coeficiente de correção.

 

A doutrina financeira de referência, internacional e nacional, é unânime quanto a um ponto: a avaliação de empresas e suas partes de capital deve ser efetuada tendo por base a informação que se conhece, ou se pode projetar ou estimar, à data da avaliação. Os eventos subsequentes não devem entrar em tal exercício de valoração financeira.

 

A nível nacional, veja-se JOÃO CARVALHO DAS NEVES, “Avaliação de empresas e negócios”, Lisboa, McGraw Hill, 2002.  Nesta obra é visível, em todos os modelos e casos de avaliação, que se devem levar em conta projeções futuras de benefícios (por ex., valores de mercado, cash flows) e que se deve estimar a evolução económica e financeira da entidade sob avaliação. Ou seja, a informação a usar é a que se dispõe quanto ao passado e ao presente, além de estimativas ou previsões de evolução futura das variáveis que comandam o valor das empresas. Em lado algum advoga o mencionado autor a utilização de informação obtida ex post ou, como se diz nas Guidelines, obtida com o uso de hindsight, após a concretização dos eventos que a geram.

 

No panorama internacional, veja-se JAMES HITCHNER, “Financial Valuation”, N. Jersey, Wiley. 2011. A p. 340 e segs. desenvolvem-se os métodos para avaliação de ativos (ou entidades) do ramo imobiliário. Caso se use o preço de mercado, refere o autor que devem usar-se “imóveis similares vendidos recentemente, ou disponíveis para venda no momento a que se reporta a avaliação.”

 

Caso se recorra ao rendimento futuro descontado (discounted cash flow) a base serão os fluxos de caixa previstos. Numa avaliação referida ao período 1, não se devem pois levar  em conta factos observados nos exercícios 2, 3 ou 4.

 

De igual modo, ASWATH DAMODARAN, um dos mais reputados autores no domínio da teoria e prática das finanças empresariais, sublinha, em “Investment Valuation”, Wiley, 1996, p. 3, que a informação a usar em avaliação de ativos ou empresas é a que estiver disponível na data a que se reporta essa avaliação. O uso de hindsight, ou informação ex post, é visto como tecnicamente incorreto.

 

R. BREALEY, S. MYERS E F. ALLEN, em “Principles of corporate finance, McGraw Hill, 2015, p. 93 e 483, deixam claro que a avaliação de empresas se funda em hipóteses, ou previsões, sobre benefícios esperados do seus ativos, do custo esperado do capital que os  financia, da taxa de crescimento que se prevê para tais benefícios futuros;  enfim de uma longa lista de projeções ou estimativas de variáveis, e não de valorizações assentes em informação ex post.

 

A mesma linha é apresentada em T. COPELAND,  T. KOLLER, J. MURRIN, “Valuation”, McKinsey Ltd, 2000.

 

Adicionalmente, a doutrina fiscal nacional – veja-se M. FREITAS PEREIRA, “Fiscalidade”, Coimbra, Almedina, 2018, p. 589 – refere que a informação a tomar em conta serão os fatores previsíveis ou estimados no momento da tomada de decisão.

 

Em suma, a doutrina financeira e fiscal que se debruça sobre métodos de avaliação é unânime em afirmar a natureza prospetiva, e não retrospetiva, do processo de avaliação. Também aqui o procedimento retrospetivo da AT não colhe qualquer apoio.

 

                4.3.3.    A jurisprudência relativa ao momento sobre o qual deve incidir a recolha de informação

 

Esta corrente geral, constante das Recomendações da OCDE e da doutrina financeira e fiscal, tem colhido a aceitação da jurisprudência, e nos mais variados impostos. Apresentam-se, de seguida, três casos emblemáticos, um dos quais se refere a preços de transferência.

 

Veja-se, em primeiro lugar, o acórdão de 24 de setembro de 2014, do Supremo Tribunal Administrativo, no âmbito Processo n.º 0779/12, onde a tese da relevância da informação disponível na data da decisão ou transação surge com particular nitidez:

 

“Assim, um custo será aceite fiscalmente caso, num juízo reportado ao momento em que foi efetuado, seja adequado à estrutura produtiva da empresa e à obtenção de lucros, ainda que se venha a revelar uma operação económica infrutífera ou economicamente ruinosa, e a AT apenas pode desconsiderar como gastos fiscais os que não se inscrevem no âmbito da atividade do contribuinte e foram contraídos, não no interesse deste, mas para a prossecução de objetivos alheios (quando for de concluir, à face das regras da experiência comum que não tinha potencialidade para gerar rendimentos).”

 

O Tribunal Supremo dilucida pois, no citado acórdão, a questão do momento a que se deve reportar o juízo sobre a adequação dos gastos. É claro que o momento deve ser aquele em que se decide suportar esses gastos. A informação que serve de base às decisões que induzem gastos empresariais só poderá ser a que está disponível no momento em que se tomam. O que acontece depois está, em grande medida, fora do controlo do decisor, devido ao risco da atividade económica, e não pode ser considerado como elemento para aferir da legalidade ou do acerto de decisão.

 

Num caso decidido pelo Tribunal de Justiça, em 24 de setembro de 2019, opondo, numa questão sobre preços de transferência , mais concretamente um acordo prévio (APA), a sociedade Starbucks à Comissão Europeia, refere-se (itálico e sublinhado deste Tribunal):

“9 […] Acresce que, no âmbito de um exame dos dados plurianuais, a Administração Fiscal não pode utilizar os conhecimentos adquiridos a posteriori. […]

250 Daqui resulta que, nestas circunstâncias, a apreciação da existência de uma vantagem conferida por um acordo prévio, como o APPT, deve ser feita atendendo ao contexto da época em que foi celebrado. Esta conclusão implica que a Comissão é obrigada a abster‑se de apreciações baseadas numa situação posterior à adoção do APPT.

251 Por conseguinte, há que julgar procedente o argumento formulado pela Starbucks segundo o qual, nas circunstâncias do caso vertente, a Comissão não podia basear a sua análise em informações que não eram disponíveis ou razoavelmente previsíveis no momento da conclusão do APPT, em abril de 2008.

 

O Tribunal de Justiça vem afirmar a incorreta utilização de informação ex post à que existia no momento da celebração do Advance Price Agreement (APA), e que, por isso, rejeita.

O mesmo Tribunal de Justiça, agora para efeitos de IVA, decidiu que a informação relevante sobre a dedutibilidade do imposto contido nos inputs se deve reportar àquela que é conhecida no momento em que se exerce o direito à dedução.

O trecho que a seguir se apresenta, relativo ao processo C-249/17, Ryanair Ltd, decidido em 17 de outubro de 2018, assim o expressa (itálico e sublinhado deste Tribunal):

 

“32 Tendo em conta o conjunto das considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que os artigos 4.º e 17.º da Sexta Diretiva devem ser interpretados no sentido de que conferem a uma sociedade como a que está em causa no processo principal, que tem a intenção de adquirir a totalidade das ações de outra sociedade para exercer uma atividade económica que consiste em lhe prestar serviços de gestão sujeitos a IVA, o direito a deduzir integralmente o IVA pago a montante sobre as despesas relativas a prestações de serviços de consultoria efetuadas no âmbito de uma OPA, mesmo que se verifique que essa atividade económica não foi realizada, desde que essas despesas tenham origem exclusivamente na atividade económica projetada.”

 

                4.3.4.    Sobre as consequências jurídicas de se aceitar o uso habitual de informação obtida a posteriori como elemento relevante em preços de transferência

 

Como se pode facilmente depreender, se a utilização de informações ex post fosse permitida, sem mais, na análise de preços de transferência, a segurança jurídica das transações que implicassem valoração financeira seria seriamente afetada.

 

Com efeito, se as autoridades tributárias procedessem a um ajustamento fiscal positivo todas as vezes que um aumento de preço (verificado ex post) ocorresse, então, logicamente, teriam de aceitar uma redução na receita tributável e uma declaração fiscal modificada, sempre que essa informação ex post implicasse preços mais baixos. A escolha do momento a que se reportaria a informação ex post incrementaria a incerteza e a arbitrariedade, impedindo a consolidação dos efeitos das transações, ainda que efetuadas de boa fé. Ficaria comprometida a segurança jurídica, porquanto o valor de ações (ou de outros ativos) seria sempre passível de modificação à medida que nova informação (e novas valorizações de ativos) fosse sendo revelada a posteriori aos participantes numa transação.

 

Ao risco normal da atividade económica viria somar-se o risco de valorização das transações para efeitos de preços de transferência, ficando tais valorizações submetidas a um acrescido grau de arbitrariedade ou aleatoriedade, se a escolha da informação e o momento a que se reporta fosse totalmente dependente da conveniência das partes. Entende-se que tal situação geraria uma intolerável insegurança jurídica.

 

A complexidade na aplicação do princípio de plena concorrência ou arm´s lenght nas transações entre partes relacionadas seria substancialmente agravada caso tal procedimento fosse aceitável. Daí que as Guidelines o restrinjam a uma situação muito especial, que não se observa na situação sob escrutínio nos presentes autos.

 

4.4.        SOBRE AS QUESTÕES DA “COMPARABILIDADE” DAS TRANSAÇÕES E DA QUANTIFICAÇÃO DOS SEUS EFEITOS

 

Quer o artigo 63.º, n.º 1 do Código do IRC, quer a Portaria n.º 1446-C/2001 (em especial o respetivo artigo 5.º (normas supra transcritas) atribuem, na análise dos preços de transferência, um papel chave ao tema da comparabilidade. A doutrina e a jurisprudência tratam abundantemente desta temática. 

 

A posição da Requerida enferma, quanto a esta questão, de vários vícios, encontrando-se uma análise de comparabilidade limitada e insuficiente, no âmbito da fundamentação do RIT.

 

Em primeiro lugar, na esteira do que já se disse sobre a questão da utilização de informação ex post, as transações realizadas pela Requerente, em 2017 e 2018, teriam de ser analisadas à luz da lista dos fatores de comparabilidade vertidos, entre outras normas, no artigo 5.º da Portaria n.º 1446-C/2001, o que não foi feito.

 

Em segundo lugar, seria necessário demonstrar que haveria comparabilidade entre o ativo cujo preço se procurava avaliar (o imóvel da Rua ... a que respeitava o artigo matricial ...) e os imóveis alienados em 2017 e 2018.

 

Ficou adquirido nos autos que existiram atos de gestão, por parte da Requerente, que implicaram valorizações dos imóveis entretanto vendidos. Esses atos centraram-se na resolução de contratos de arrendamento, possibilitando um volume e qualidade de edificação posteriores diferentes dos que seriam possíveis em 2015, e em pedidos de autorização, entregues no Município de Lisboa, no sentido de incrementar a área edificável. Tudo isto se afastando das condições que vigoravam em 2015, ano da transação do imóvel gerador do litígio, e suscitando importantes e legítimas interrogações sobre o grau de comparabilidade.

 

Em terceiro lugar, ficou provado que uma entidade independente valorizou as ações da empresa, em novembro de 2015, para efeitos de alienação da totalidade do seu património, num intervalo que se situava entre € 526 e € 705.

 

Ou seja, que o capital próprio da entidade se poderia valorizar entre € 13,15 milhões e € 17,63 milhões. Acresce que, em junho 2016, a Requerida foi efetivamente vendida a um terceiro, comprador independente, por € 13 milhões. Ainda que nesta venda o prédio sob apreciação já não constasse do património alienado, caberia à Requerida, perante este preço praticado com uma entidade compradora independente, analisar o impacto da retirada desse imóvel (em termos de impacto da área, da localização, do tipo de uso, e outros elementos) de tal forma que, partindo do referido preço global de € 13 milhões, se pudesse explicar como se chegaria a um valor (apurado pela inspeção) de € 37,36 milhões.

 

Esta manifesta discrepância valorativa não levou a inspeção tributária a qualquer interrogação acerca da comparabilidade das condições de alienação, em 2017 e 2018, e o valor pago por uma entidade independente pelas ações da Requerida em 2016. E deveria ter levado, numa correta aplicação princípio da comparabilidade.

 

Por fim, e em quarto lugar, refira-se que o processo utilizado pela AT consistiu em usar preços de transações entre a entidade Requerente e terceiros independentes, embora referentes a  exercícios posteriores ao ano sob inspeção, lançando mão de valores estatísticos constantes das bases de dados do INE, referentes à evolução dos preços por m2  das avaliações bancárias relativamente aos preços dos imóveis, do tipo de construção referente a apartamentos em Lisboa, de molde a reportar financeiramente tal valor a 2015. Ou seja, o percurso efetuado pode reconduzir-se a um preço de transação que a Requerida converte num “preço comparável interno monetariamente ajustado”, porque se refere a relações comerciais da entidade com terceiros independentes, e depois se faz reportar ao ano 2015.

 

Tal procedimento, além dos vícios que já foram apontados, exigiria que a comparabilidade (supondo que ela era apenas intertemporal, e já se viu que o não era, pois que teria de levar em conta aspetos como o estado de conservação, o destino potencial do imóvel, entre outros) não fosse apenas resolvida, ou globalmente apurada, pela AT por via do elemento de avaliação bancária. Tal procedimento calculatório fica muito distante do que a Lei exige quanto à apreciação dos fatores de comparabilidade.

 

Tanto mais que tal elemento bancário de atualização monetária respeita a apartamentos avaliados por bancos, não se sabendo de que tipo de apartamentos se trata, que estado de conservação e usos potenciais teriam, a sua localização específica, entre muitos outros elementos que afetam o grau de comparabilidade com o imóvel aqui em causa. Em suma, a questão crucial da análise da comparabilidade não foi devidamente efetuada pela Requerida, que utilizou termos de comparação sem cuidar de aferir da similitude das respetivas características/propriedades por forma a concluir sobre o indispensável grau de comparabilidade.

 

Também a quantificação do facto tributário por parte da Requerida enferma de certas imperfeições que a inquinam.

 

Convém relembrar que a Requerida avaliou o capital próprio da Requerente, para, a partir daí, apurar o valor de cada ação permutada pelo prédio em causa. Ora, na avaliação do capital de uma sociedade o valor das ações a que se chegará deve ter em conta o fator fiscal. Em avaliação de empresas pelo método patrimonial, pelo método do lucro esperado ou pelos cash flows descontados, o que os acionistas receberão será um valor estimado após impostos (after tax).   Este ponto foi ignorado na fundamentação da correção da matéria tributável. Além de que, em qualquer destes métodos, a sua boa aplicação implicaria que, numa empresa imobiliária, se considerassem não só os imóveis como os demais ativos e passivos que, na data da avaliação, influíssem sobre o valor das ações.  O que também se não fez. 

 

4.5.        CONCLUSÃO

 

Na determinação do preço de mercado da operação de permuta em análise, a Requerida não aplicou a metodologia prevista nas normas relativas a preços de transferência, nomeadamente não tendo seguido um método que proporcionasse um elevado grau de comparabilidade entre as operações vinculadas e as não vinculadas, conforme consagrado no artigo 63.º, n.º 3 do Código do IRC e no artigo 5.º da Portaria n.º 1446-C/2001, em linha com as Guidelines da OCDE.

 

De igual modo, ao usar informação ex post, a Requerida afastou-se das Guidelines da OCDE e da doutrina financeira sobre avaliação de empresas, a que acresce a jurisprudência fiscal, nacional e europeia, que tem negado pertinência à utilização de informação do tipo que a Requerida lançou mão, no caso vertente.

 

O processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este último, um meio processual de mera legalidade, que visa a declaração de ilegalidade de atos dos tipos indicados no artigo 2.º do RJAT e a eliminação dos efeitos jurídicos por eles produzidos, anulando-os, através de uma pronúncia constitutiva e cassatória, ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º daquele diploma].

 

Por isso, sendo o objeto de apreciação do Tribunal Arbitral o ato de liquidação, a sua legalidade tem de ser apreciada à face do seu teor, tal como foi praticado, não podendo o Tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua atuação poderia basear-se noutros fundamentos .

 

Por outro lado, sendo o ato impugnado o objeto do processo, não está em causa apreciar se foi correta ou não a aplicação pela Requerente do regime de preços de transferência (admitindo-se que não o tenha sido), mas apurar se a correção efetuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira tem suporte legal. E isto, mesmo na eventualidade de se demonstrar uma incorreta interpretação e aplicação do regime de Preços de Transferência por parte da Requerente.

 

Num contencioso de mera anulação, julga este Tribunal Arbitral que os vícios antes apontados são geradores de anulabilidade e não permitem manter na ordem jurídica o ato de liquidação em crise, procedendo o pedido da Requerente.

                                

                5.            JUROS COMPENSATÓRIOS

 

De acordo com o disposto no artigo 35.º, n.º 1 da LGT os juros compensatórios são devidos “quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.

 

Na situação vertente, a liquidação de IRC que originou valor de imposto a pagar é inválida (anulável) por vício substantivo de erro nos pressupostos, pelo que não se verifica o requisito constitutivo da obrigação de juros compensatórios (retardamento da liquidação de imposto devido), devendo, também, neste segmento, ser anulado o ato de liquidação aqui impugnado.

 

                6.            JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

O direito a juros indemnizatórios é regido pelo artigo 43.º da LGT que, no seu n.º 1, o faz depender da ocorrência de erro imputável aos serviços do qual tenha resultado o pagamento de prestação tributária superior à legalmente devida.

 

A jurisprudência arbitral tem reiteradamente afirmado a competência destes tribunais para proferir pronúncias condenatórias derivadas do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios originados em atos tributários ilegais que aí sejam impugnados. Havendo decisão a favor do sujeito passivo, postula-se o restabelecimento da situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e 43.º e 100.º da LGT.

 

Na situação vertente, a liquidação de IRC e juros compensatórios em crise padece de erro nos pressupostos imputável à Requerida, que resultou no pagamento de uma prestação tributária em montante superior ao legalmente devido, na importância de € 783.811,10, pelo que se verifica o pressuposto de erro imputável aos serviços e a constituição, na esfera da Requerente, do direito ao recebimento de juros indemnizatórios que a visam ressarcir da ilegal privação desta quantia pelo período de tempo que perdurar, até à sua restituição, conforme preceituado nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

                7.            QUESTÕES DE CONHECIMENTO PREJUDICADO

 

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada ou cuja apreciação seria inútil, designadamente no que se refere aos vícios formais de fundamentação e de preterição de formalidades essenciais suscitados pela Requerente (artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).

 

EM SÍNTESE,

 

A liquidação impugnada de IRC e juros compensatórios referente ao ano 2015, é anulada, em virtude da procedência de vício substantivo de erro nos pressupostos, em conformidade com o disposto no artigo 163.º, n.º 1 do novo CPA (cuja entrada em vigor ocorreu em 8 de abril de 2015), por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT.

 

V.           DECISÃO

 

De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e declarar a ilegalidade, com a consequente anulação, da liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios supra identificada, relativa ao ano 2015, resultante no valor a pagar de € 783.811,10, acrescido de juros indemnizatórios nos termos legais.

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 783.811,10, conforme indicado pela Requerente (valor do ato de IRC em causa) e não contestado pela Requerida – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 24 de abril de 2021

 

Os Árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins

António Martins

Henrique Fiúza