Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 16/2020-T
Data da decisão: 2021-04-28  IRC  
Valor do pedido: € 199.714,97
Tema: IRC – Gastos dedutíveis com perdas resultantes de perdão parcial de dívida
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SUMÁRIO:

 

I.             Não tendo havido transmissão material do crédito a dedutibilidade do gasto não pode ser aferida à luz do critério previsto no n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC.

II.            O reconhecimento e aceitação de gastos com perdas resultantes de perdão de dívidas (que, quanto a esta parte, se tornam incobráveis) depende de estarem preenchidas as condições dos artigos 28.º-A e 28.º-B e 41.º, e só nessa eventualidade estará preenchido o requisito da dedutibilidade do n.º 1 do artigo 23.º, todos do Código do IRC.

 

***

 

Acordam os Árbitros Fernanda Maçãs (Árbitro Presidente), Marisa Almeida Araújo e Nuno Pombo (Árbitros Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o presente Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

 

1.            Relatório

 

A - Geral

 

1.1.        A, …., S.A., sociedade comercial registada sob o número único de matrícula na Conservatória do Registo Comercial e de identificação de pessoa coletiva … … …, com sede em ……, ….-… ……(de ora em diante designada “Requerente”), apresentou no dia 06.01.2020 um pedido de constituição de tribunal arbitral coletivo em matéria tributária, que foi aceite, visando a anulação dos atos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (de ora em diante “IRC”) n.º 2019 ………., e de juros compensatórios n.º 2019 ………., consubstanciados na Demonstração de acerto de Contas n.º 2019 ………., referentes ao ano de 2015, como adiante melhor se verá e, por outro, o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios pelo pagamento indevido de prestação tributária.

 

1.2.        Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redação que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (de ora em diante, “RJAT”), o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitros os signatários, não tendo as partes, depois de devidamente notificadas, manifestado oposição a essas designações.

 

1.3.        Por despacho de 24.01.2020, a Administração Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada “Requerida”) procedeu à designação dos Senhores Dra. … e Dr.  ... para intervirem no presente processo arbitral, em nome e representação da Requerida.

 

1.4.        Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído a 06.07.2020.

 

1.5.        No dia 09.07.2020 foi notificado o dirigente máximo dos serviços da Requerida para remeter ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo que pudesse existir e, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar produção de prova adicional.

 

1.6.        No dia 28.09.2020 a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo.

 

B – Posição da Requerente

 

1.7.        A Requerente, em 2015, era titular, com interesse para os presentes autos, das seguintes participações sociais: i) 95% da sociedade B …, S.A. (de ora em diante “B…”) e ii) 65% da sociedade C…, S.A. (de ora em diante “C”), sociedade de direito moçambicano constituída em 2012.

 

1.8.        A B… é a sociedade operacional por excelência do Grupo de sociedades encabeçado pela Requerente e desempenha ainda a função de fornecedora de equipamentos e serviços técnicos a outras subsidiárias da Requerente, designadamente das que atuam noutros territórios (como Moçambique).

 

1.9.        A C …, ao longo dos anos de 2012 a 2014, adquiriu uma série de máquinas e equipamentos de construção civil à B… e fruto dessas aquisições passou a dever-lhe, com referência a 30.07.2015, € 5.031.004,29 (cinco milhões, trinta e um mil e quatro euros e vinte e nove cêntimos). 

 

1.10.      A crise financeira de 2007/2008 e o consequente colapso da indústria da construção e obras públicas empurraram a B… para uma situação de pré-falência, a qual só não aconteceu em virtude do apoio que lhe foi sendo prestado pela Requerente.

 

1.11.      Apesar desse apoio, a B…, em 2014, viu-se forçada a aderir a um Plano Especial de Revitalização (“PER”) para renegociar as suas dívidas perante os credores e assim criar condições para a manutenção da sua atividade operacional, plano que foi homologado por sentença de .. /../2014 no processo n.º …/...0T2AVR que correu termos no Juízo do Comércio de Aveiro.

 

1.12.      Também a C… careceu do apoio financeiro da Requerente, tendo esta realizado suprimentos no valor de € 685.000,00 (seiscentos e oitenta e cinco mil euros) a seu favor, posteriormente convertidos em prestações acessórias no dia 16.12.2013.

 

1.13.      No dia 30.07.2015, a Requerente celebrou com B… um contrato de cessão de créditos por força do qual adquiriu os créditos de que esta era titular sobre a C…, no montante de € 5.031.004,29 (cinco milhões, trinta e um mil e quatro euros e vinte e nove cêntimos).

 

1.14.      O preço da mencionada cessão de crédito foi o respetivo valor nominal, pago através de compensação com o crédito de que a Requerente era titular sobre a B….

 

1.15.      Em resultado da referida cessão de crédito, o passivo da B… reduziu-se em € 5.031.004,29 (cinco milhões, trinta e um mil e quatro euros e vinte e nove cêntimos) e a Requerente passou a ser credora deste mesmo montante perante a C….

 

1.16.      Ainda no decurso do ano de 2015, a D…, S.A., sociedade de direito moçambicano (de ora em diante “D…”) e totalmente independente da Requerente e de qualquer outra sociedade do Grupo B…, manifestou interesse em adquirir a participação social que a Requerente detinha na C…, representativa de 65% do respetivo capital social.

 

1.17.      À data, a Requerente detinha um crédito sobre a C…no valor de € 607.000 (seiscentos e sete mil euros) a título de prestações acessórias e era titular de créditos comuns, não subordinados, no valor de € 5.064.419,61 (cinco milhões, sessenta e quatro mil, quatrocentos e dezanove euros e sessenta e um cêntimos).

 

1.18.      Perante o aperto financeiro que, em geral, o Grupo B… atravessava em 2015, a alienação da participação social que detinha na C… e, sobretudo, do aludido crédito comercial, revelava-se atrativa de um ponto de vista financeiro e de tesouraria, pois permitia um encaixe imediato de liquidez e o desinvestimento numa empresa e geografia que o Grupo B… já não conseguiria explorar de forma rentável.

 

1.19.      Assim, no dia 04.11.2015, a Requerente celebrou com a D… um contrato de compra e venda de ações e cedência de prestações acessórias efetuadas à C…, pelo qual alienou: i) a participação social de que era titular na C… pelo valor de € 138.000 (cento e trinta e oito mil euros) e as prestações acessórias realizadas a favor da C… pelo seu valor nominal, no valor de € 607.000 (seiscentos e sete mil euros).

 

1.20.      Também a 04.11.2015 foi celebrado um acordo de pagamento entre a Requerente, a C…, a B…, a D… e a E…. (de ora em diante “E…”), sociedade de direito português titular de uma participação social equivalente a 73% do capital social da D… , pelo qual a Requerente, titular de créditos comerciais no valor de € 5.064.419,61 (cinco milhões, sessenta e quatro mil, quatrocentos e dezanove euros e sessenta e um cêntimos) sobre a C…, recebeu USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América), correspondentes, ao câmbio da data, a € 2.755.580,05 (dois milhões, setecentos e cinquenta e cinco euros, quinhentos e oitenta euros e cinco cêntimos), para pagamento integral daqueles créditos.

 

1.21.      Foi acordado entre as Partes que os USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América) seriam pagos em duas prestações, até 31 de Março de 2016, quantia sobre que incidiriam juros, à taxa de 15% (quinze por cento) ao ano, contados desde 01.01.2016, até efetivo e integral pagamento.

 

1.22.      Para a D…, compradora das ações da C…, era fundamental que fosse dada quitação ao crédito da Requerente pela aludida quantia de USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América), sendo que sem esse pressuposto expresso não adquiriria a aludida participação social.

 

1.23.      Para a Requerente este negócio assumia uma importância significativa, posto que lhe permitia dar um novo fôlego à sua tesouraria e viabilizar a continuação da sua atividade e das suas subsidiárias em Portugal.

 

1.24.      O negócio global de compra e venda de ações e o acordo referente ao crédito foi conduzido e concluído em plenas condições de concorrência, tendo-se alcançado o valor das ações e do crédito por mera negociação desenvolvida entre a Requerente, a C… e a E….

 

1.25.      Não se tratou, pois, de uma renegociação de um crédito comercial, de um perdão parcial ou de um desconto: substancialmente, teve lugar uma cessão do crédito pela Requerente e uma aquisição do mesmo pela E…, na medida em que esta se constituiu em imediata e principal pagadora da dívida de preço do crédito, sem benefício de excussão prévia do património da C….

 

1.26.      Consequentemente, a Requerente registou, no exercício de 2015, o gasto de € 2.308.839,56 (dois milhões, trezentos e oito mil, oitocentos e trinta e nove euros e cinquenta e seis cêntimos), correspondentes à diferença entre € 5.064.419,61 cinco milhões, sessenta e quatro mil, quatrocentos e dezanove euros e sessenta e um cêntimos) e € 2.755.580,05 (dois milhões, setecentos e cinquenta e cinco euros, quinhentos e oitenta euros e cinco cêntimos), importância equivalente aos USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América), na conta #688809800 decorrente da extinção do crédito, tendo-o deduzido ao respetivo lucro tributável do mesmo exercício.

 

1.27.      A Requerida negou a dedutibilidade do gasto em apreço, na medida em que ele traduz o “reconhecimento da incobrabilidade parcial desta dívida”, alegando que ele só seria dedutível ao lucro tributável se “enquadrado de acordo com o disposto no art. 41.º do CIRC”.

 

1.28.      Contudo, a dedutibilidade do gasto em apreço não deve ser aferida à luz do artigo 41.º do Código do IRC (“Créditos Incobráveis”), mas à luz do artigo 23.º do mesmo diploma.

 

1.29.      O regime consagrado no atual artigo 41.º do Código do IRC é uma expressão concreta e efetiva do princípio da realização e da tributação pelo lucro real – na sua função de travão da manipulação de resultados entre entidades relacionadas – que assegura que a perda fiscal está suficientemente corroborada por factos objetivos, controláveis pela administração tributária.

 

1.30.      No entanto, nem este dispositivo nem os condicionalismos fixados no artigo 28.º-B do Código do IRC impedem a dedutibilidade fiscal de perdas reais e efetivas quando a titularidade do crédito de cobrança duvidosa seja transferida para um terceiro não relacionado e por um preço fixado em condições de plena concorrência, como é o caso dos autos, em que temos uma alienação de créditos por valor inferior ao respetivo valor nominal, sendo a correspondente menos-valia dedutível nos termos do artigo 23.º do Código do IRC.

 

1.31.      Na verdade, do ponto de vista dos efeitos jurídicos do negócio, não há qualquer especificidade que o diferencie substantivamente de uma alienação de créditos: não obstante dele não resultar a alienação imediata da posição de credor da Requerente, o acordo celebrado confere-lhe a possibilidade de cobrar esse crédito à E… logo que a C… falhe uma prestação, diretamente e sem qualquer ónus de excussão, e dá-lhe ainda algo que um contrato de cessão de créditos a um terceiro moçambicano não teria, sem mais: um título executivo com força legal nos tribunais portugueses.

 

1.32.      Trata-se, pois, de uma cessão de créditos ou, pelo menos, da aquisição onerosa por parte da E… desse crédito ao se tornar fiadora, sem benefício de excussão, da C…, posição que a investe ipso iure (sub-rogação legal), nos termos do artigo 644.º do Código Civil, na posição de credora da C…, na medida em que haja satisfeito os direitos do credor (a Requerente).

 

1.33.      Ora, em matéria de efeitos contratuais fiscais o que releva não é tanto a veste jurídica do negócio, mas essencialmente a sua substância económica, que é a de uma cessão de créditos por valor inferior ao respetivo valor nominal, não se podendo pôr em dúvida a indispensabilidade desse gasto, face às dificuldades que atravessava a Requerente e que lhe impuseram a alienação de todos os interesses de que era titular na C….

 

1.34.      Ao desconsiderar a relevância fiscal do gasto em apreço, que manifestamente se traduz numa perda real e efetiva, inserida na atividade empresarial da Requerente, a Requerida postergou o princípio constitucional que impõe que as sociedades comerciais sejam tributadas pelo seu rendimento real (artigo 104.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).

 

1.35.      A manutenção na ordem jurídica da liquidação ora posta em crise violaria diretamente o disposto nos artigos 13.º, 104.º, n.º 2, e 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, 45.º, 74.º, 75.º e 76.º da Lei Geral Tributária e 17.º e 23.º do Código do IRC.

 

1.36.      Tendo a Requerente procedido ao pagamento do imposto e respetivos juros, que são ilegais, a 15.11.2019, são-lhe devidos juros indemnizatórios nos termos legais.

 

C – Posição da Requerida

 

1.37.      A Requerida contesta, em primeiro lugar, que dos factos apresentados pela Requerente se possa extrair a conclusão de que "substancialmente, teve lugar uma cessão do crédito pela Requerente e uma aquisição do mesmo pela E…, por se ter esta constituído em imediata e principal pagadora da dívida de preço dos créditos, sem benefício de excussão prévia do património da C…”.

 

1.38.      Uma cessão de créditos pressupõe, nos termos do disposto no artigo 577.º do Código Civil, a substituição do credor originário por outra pessoa, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional, o que não sucedeu quando a Requerente, enquanto titular ativa do crédito sobre a C… no valor total de € 5.064.419,61 (cinco milhões, sessenta e quatro mil quatrocentos e dezanove euros e sessenta e um cêntimos) aceitou receber da devedora, para pagamento integral do crédito por esta devido, a quantia de USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América).

 

1.39.      O acordo de pagamento celebrado, ao invés de uma cessão de crédito, que nunca poderia ser por não resultar dele uma alteração da sua titularidade, traduz-se antes num efetivo perdão parcial de dívida concedido pela Requerente à sua participada C….

 

1.40.      Quando está em causa uma redução do valor nominal do crédito mediante acordo entre o credor e o devedor, a perda apurada só pode relevar para efeitos fiscais se reunir os requisitos estabelecidos para as perdas por imparidade em créditos ou dos créditos incobráveis cuja prescrição legal se encontra prevista, respectivamente, no artigo 28.º-B e no artigo 41.º, ambos do Código do IRC.

 

1.41.      O Código do IRC regulou clara, minuciosa e extensamente a dedutibilidade dos créditos duvidosos/incobráveis e fê-lo porque desejava que esse regime fosse único e exclusivo e não apenas para facilitar a comprovação da indispensabilidade do custo pelo contribuinte, garantindo sempre, como alternativa, a possibilidade de comprovação por via do seu artigo 23.º.

 

1.42.      A lei consagra regras estritas para que um crédito não cobrado possa ser tido como um custo indispensável à atividade e, assim, para efeitos fiscais tais perdas só podem ser aceites como custo se cumprirem os requisitos daqueles artigos.

 

1.43.      Na situação em apreço, a Requerente suportou uma perda decorrente do perdão parcial de uma dívida, negócio que não é economicamente compreensível dentro dos padrões comuns de um gestor normal.

 

 

D – Conclusão do Relatório e Saneamento

 

 

1.44.      Por ter requerido a inquirição de uma testemunha, foi a Requerente convidada, por despacho de 01.10.2020, a identificar, num prazo de 10 (dez) dias, os factos que pretendia fossem submetidos a julgamento e não suscetíveis de prova documental, o que fez, tendo consequentemente sido fixada, por despacho de 17.10.2020, a data da audiência de julgamento, através de videoconferência, nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 18.º do RJAT.

 

1.45.      No dia 04.12.2020, às 10 horas, teve lugar a audiência de julgamento, através de videoconferência, tendo sido ouvidas a testemunha apresentada pela Requerente, Senhor Dr. F…., e a testemunha indicada pela Requerida, Senhor Dr. G…. O tribunal notificou as Partes para apresentarem, querendo e no prazo de 15 (quinze) dias, alegações escritas, sucessivas, o que ambas fizeram, corroborando, em termos materiais, a posição que haviam já veiculado nos respetivos articulados. Foi ainda, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 21.º do RJAT prorrogado por dois meses o prazo para prolação da decisão arbitral, a qual se previu fosse notificada até ao dia 06.03.2021, tendo, entretanto, sido decretada pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, entre os dias 22.01.2021 e 06.04.2021, a suspensão de todos os prazos para a prática de atos processuais, nomeadamente dos que devessem ser praticados no âmbito de processos arbitrais, como é o caso.

 

1.46.      O tribunal arbitral é materialmente competente, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT.

 

1.47.      As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade nos termos do art.º 4.º e do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, estão regularmente representadas, não padecendo o processo de qualquer nulidade.

 

1.48.      A cumulação de pedidos efetuada no presente pedido de pronúncia arbitral, em homenagem ao princípio da economia processual, justifica-se uma vez que o art.º 3.º do RJAT, ao admitir expressamente a possibilidade de “cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes atos”, acomoda, sem abuso hermenêutico, a apreciação de um pedido que decorre, em termos necessários, do juízo que o tribunal arbitral sufrague quanto à validade da liquidação impugnada.

 

2.            Matéria de facto

 

2.1.        Factos provados

 

Com interesse para a presente decisão arbitral, consideram-se provados os seguintes factos:

 

2.1.1.     A Requerente é uma sociedade gestora de participações sociais cujo objeto social é a gestão de participações sociais como forma indireta do exercício de atividades económicas. (facto não controvertido)

 

2.1.2.     Em 2015, a Requerente era titular de uma participação social na B…, uma sociedade dedicada sobretudo à construção civil de infraestruturas rodoviárias, sendo a subsidiária mais importante da Requerente, correspondente a 95% (noventa e cinco por cento) do respetivo capital social. (artigos 11.º a 13.º do pedido de pronúncia arbitral e depoimento do Senhor Dr. F…)

 

2.1.3.     A C…, sociedade de direito moçambicano, foi constituída em 2012 para desenvolver obras de construção civil em Moçambique. (documento n.º 4, junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral)

 

2.1.4.     Em 2015, a Requerente era titular de uma participação social na C…, correspondente a 65% (sessenta e cinco por cento) do respetivo capital social. (facto não controvertido)

 

2.1.5.     A C…, ao longo dos anos de 2012 a 2014, adquiriu máquinas, equipamentos de construção civil e mão de obra especializada à B…, razão pela qual, à data de 30.07.2015, lhe devia a quantia de € 5.031.004,29 (cinco milhões, trinta e um mil e quatro euros e vinte e nove cêntimos). (artigo 17.º do pedido de pronúncia arbitral, Relatório de Inspeção Tributária, fls. 6 e Anexo 1, e depoimento do Senhor Dr. F…)

 

2.1.6.     A B…, em 2014, aderiu a um PER para renegociar as suas dívidas perante os credores e assim criar condições para a manutenção da sua atividade operacional, tendo esse plano sido homologado por sentença de ../../2014 no processo n.º …/...0T2AVR que correu termos no Juízo do Comércio de Aveiro. (artigos 23.º e 25.º do pedido de pronúncia arbitral e depoimento do Senhor Dr. F…)

 

2.1.7.     Também a C… careceu do apoio financeiro da Requerente, tendo esta realizado suprimentos no valor de € 685.000,00 (seiscentos e oitenta e cinco mil euros) a seu favor, posteriormente convertidos em prestações acessórias no dia 16.12.2013. (artigo 32.º do pedido de pronúncia arbitral)

 

2.1.8.     Os pagamentos pelos fornecimentos devidos pela C…. à B…entraram em mora, posto que a C… não estava a auferir a liquidez que lhe permitisse fazer face a esses pagamentos (artigo 20.º do pedido de pronúncia arbitral)

 

2.1.9.     No dia 30.07.2015, a Requerente celebrou com a B… um contrato de cessão de créditos por força do qual adquiriu os créditos de que esta era titular sobre a C…, no montante de € 5.031.004,29 (cinco milhões, trinta e um mil e quatro euros e vinte e nove cêntimos). (artigo 37.º do pedido de pronúncia arbitral e Anexo 2 do Relatório de Inspeção Tributária)

 

2.1.10.  O preço da mencionada cessão de crédito foi o respetivo valor nominal, pago através de compensação com o crédito de que a Requerente era titular sobre a B…. (artigo 38.º do pedido de pronúncia arbitral e Anexo 2 do Relatório de Inspeção Tributária)

 

2.1.11.  A mencionada cessão do crédito sobre a C… da B… para a Requerente não se deveu ao PER nem ela dele constava. (artigo 12.º, xi, alínea e. das alegações apresentadas pela Requerente)

 

2.1.12.  Em resultado da referida cessão de crédito, o passivo de B… (perante a Requerente) reduziu-se em € 5.031.004,29 (cinco milhões, trinta e um mil e quatro euros e vinte e nove cêntimos) por contrapartida da diminuição, em igual montante, do ativo de B… (sobre a C…), passando a Requerente a ser credora deste mesmo montante perante a C…. (artigos 38.º e 39.º do pedido de pronúncia arbitral)

 

2.1.13.  No decurso de Outubro de 2015, a D…, detida maioritariamente por E…, manifestou interesse em adquirir a participação social que a Requerente detinha na C…, representativa de 65% do respetivo capital social. (artigo 40.º do pedido de pronúncia arbitral e depoimento do Senhor Dr. F…)

 

2.1.14.  A D…e a E…, por um lado, e a Requerente por outro lado são entidades totalmente independentes. (artigo 40.º do pedido de pronúncia arbitral e depoimento do Senhor Dr. F…)

 

2.1.15.  Aquando das negociações encetadas entre a Requerente e a D…, ou seja, em Outubro de 2015, a Requerente detinha um crédito sobre a C… no valor de € 607.000 (seiscentos e sete mil euros) a título de prestações acessórias e era titular de créditos comuns, não subordinados, no valor de € 5.064.419,61 (cinco milhões, sessenta e quatro mil quatrocentos e dezanove euros e sessenta e um cêntimos) (artigo 41.º do pedido de pronúncia arbitral e Relatório de Inspeção Tributária, fls 7.)

 

2.1.16.  A Requerente pretendia vender a participação social na C… e a totalidade dos créditos que detinha sobre a C…. (artigo 42.º do pedido de pronúncia arbitral e depoimento do Senhor Dr. F…)

 

2.1.17.  No dia 04.11.2015, a Requerente celebrou com a D… um contrato de compra e venda de ações e cedência de prestações acessórias efetuadas à C…, pelo qual alienou: i) a participação social de que era titular na C… pelo valor de € 138.000 (cento e trinta e oito mil euros) e as prestações acessórias realizadas a favor da C… pelo seu valor nominal, no valor de € 607.000 (seiscentos e sete mil euros). (Relatório de Inspeção Tributária, Anexo 4)

 

2.1.18.  Também a 04.11.2015 foi celebrado um acordo de pagamento entre a Requerente, a C…, a B…, a D… e a E…, pelo qual a Requerente, titular de créditos comerciais no valor de € 5.064.419,61 (cinco milhões, sessenta e quatro mil, quatrocentos e dezanove euros e sessenta e um cêntimos) sobre a C…, aceitou receber da sua devedora (a C…) USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América), correspondentes, ao câmbio da data, a € 2.755.580,05 (dois milhões, setecentos e cinquenta e cinco euros, quinhentos e oitenta euros e cinco cêntimos), para pagamento integral daqueles créditos. (Relatório de Inspeção Tributária, Anexo 1)

 

2.1.19.  Nos termos do referido acordo de pagamento a C… obrigou-se a pagar à Requerente os USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América) em duas prestações, até 31 de Março de 2016, vencendo-se juros, à taxa de 15% (quinze por cento) ao ano, desde 01.01.2016, até efetivo e integral pagamento. (Relatório de Inspeção Tributária, Anexo 1)

 

2.1.20.  Tanto no contrato de compra e venda de ações e cedência de prestações acessórias efetuadas à C… como no referido acordo de pagamento, a D… reconhece e aceita que a celebração do primeiro teve como pressuposto fundamental a celebração do segundo. (Relatório de Inspeção Tributária, Anexos 1 e 4)

 

2.1.21.  A E…, detentora de 73% (setenta e três por cento) do capital social da D… , intervém no mencionado acordo de pagamento na qualidade de garante, obrigando-se a substituir-se à C…, em caso de incumprimento desta de qualquer das referidas prestações, liquidando diretamente à Requerente ou à B…, e na totalidade, a quantia de USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América). (Relatório de Inspeção Tributária, Anexo 1)   

 

2.1.22.  No âmbito do mencionado acordo de pagamento, na eventualidade de ser acionada a garantia por incumprimento da C…, a Requerente poderia executar de imediato e sem reservas a E…, junto do Tribunal da Comarca de …, mesmo tendo em conta estar-se em presença de um crédito cujo devedor é moçambicano, cujo financiamento tem lugar em Moçambique e que vem fixado em dólares dos Estados Unidos da América. (Relatório de Inspeção Tributária, Anexo 1 e artigo 21.º das alegações apresentadas pela Requerente)

 

2.1.23.  Para poder honrar os compromissos que para si emergiam do acordo de pagamento, a C… contraiu um empréstimo junto do ... Banco em Moçambique, tendo esta entidade bancária constituído um penhor sobre equipamentos da C…. (Relatório de Inspeção Tributária, Anexo 1 e artigo 22º das alegações apresentadas pela Requerente)

 

2.1.24.  No acordo de pagamento, os representantes da C… são dois dos três representantes da Requerente e da B…. (Relatório de Inspeção Tributária, Anexo 1)

 

2.1.25.  A E… nunca se mostrou interessada em adquirir o crédito da Requerente sobre a C… objeto do acordo de pagamento. (artigo 12.º, xxv, alínea d. das alegações apresentadas pela Requerente e depoimento do Senhor Dr. F…) 

 

2.1.26.  A Requerente registou, no exercício de 2015, o gasto de € 2.308.839,56 (dois milhões, trezentos e oito mil, oitocentos e trinta e nove euros e cinquenta e seis cêntimos), correspondentes à diferença entre € 5.064.419,61 cinco milhões, sessenta e quatro mil, quatrocentos e dezanove euros e sessenta e um cêntimos) e € 2.755.580,05 (dois milhões, setecentos e cinquenta e cinco euros, quinhentos e oitenta euros e cinco cêntimos), importância equivalente aos USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América), na conta #688809800 decorrente da extinção do crédito, tendo-o deduzido ao respetivo lucro tributável do mesmo exercício. (artigo 57.º do pedido de pronúncia arbitral e Relatório de Inspeção Tributária, fls. 5 e 6)

 

2.1.27.  Em cumprimento da Ordem de Serviço 01…….., foi efetuada à Requerente uma ação inspetiva externa de âmbito parcial, com referência ao período de tributação de 2015. (Relatório de Inspeção Tributária)

 

2.1.28.  Consideraram os Serviços de Inspeção Tributária que o gasto contabilizado na Requerente pelo lançamento D120000008, na conta 688809800 - Outros, no montante de € 2.308.839,56, não reunia os requisitos previstos no código do IRC, para poder ser considerado um gasto fiscalmente dedutível, por não encontrar enquadramento como gasto fiscalmente aceite, nos termos do código do IRC, pelo que, concluíram, aquele montante deveria ter sido acrescido no quadro 07 da Modelo 22 de IRC do ano de 2015, para efeitos de apuramento do lucro tributável. (Relatório de Inspeção Tributária)

 

2.1.29.  A correção aritmética proposta pelos Serviços de Inspeção Tributária deu origem à liquidação ora impugnada. (ponto III, alínea t) das alegações apresentadas pela Requerida)

 

2.1.30.  A Requerente procedeu ao pagamento do IRC liquidado e dos juros no dia 15.11.2019. (documento n.º 3, junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral)

 

2.2.        Factos não provados

 

Com interesse para a presente decisão arbitral, consideram-se não provados os seguintes factos:

 

2.2.1.    A C… é alheia à negociação que esteve na origem da celebração do acordo de pagamento pelo qual a Requerente, titular de créditos comerciais no valor de € 5.064.419,61 (cinco milhões, sessenta e quatro mil, quatrocentos e dezanove euros e sessenta e um cêntimos) sobre a C…, aceitou receber desta USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América) para pagamento integral daqueles créditos, exonerando-se assim a C… da sua dívida.

 

2.2.2.    Os USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América) devidos pela C… à Requerente nos termos do mencionado acordo de pagamento foram pagos pela E… e não pela C….

 

2.3.        Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados e não provados com base nos documentos juntos aos autos pelas Partes, no depoimento das testemunhas e nas posições por elas assumidas nos articulados apresentados.

 

3.            Matéria de direito

 

3.1.        Questões a decidir

 

Resulta do que acima se deixou dito que as questões a apreciar são, no fundo, as seguintes: 

 

a)            A de saber se o gasto de € 2.308.839,56 (dois milhões, trezentos e oito mil, oitocentos e trinta e nove euros e cinquenta e seis cêntimos) deverá, à luz do Código do IRC, ser fiscalmente dedutível ao lucro tributável da Requerente; e

 

b)           Julgando-se procedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação impugnado, a de esclarecer se a Requerente, no âmbito do presente processo arbitral, poderá obter a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios relativamente à quantia por si indevidamente paga.

 

3.1.1. Entre a sociedade Requerente e as demais sociedade identificadas nos autos foram celebrados diversos negócios jurídicos, nomeadamente o acordo de pagamento sub judice, celebrado em 4 de novembro de 2015 entre a Requerente, a sociedade de direito moçambicano D…, SA, a C…, a B… e a E…, sendo esta, por sua vez, detentora de 70% do capital social da D… e garante do pagamento, mediante o qual a Requerente aceitou receber USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América) da C… para pagamento integral da dívida que ascendia ao montante de € 5.064.419,61 (cinco milhões, sessenta e quatro mil, quatrocentos e dezanove euros e sessenta e um cêntimos).

A Requerente sumariamente defende que este acordo de pagamento configura substancialmente uma cessão do crédito – ainda que não diretamente – já que a sociedade E…, ainda que se constitua formalmente como garante do pagamento no aludido acordo é, de facto e materialmente, titular deste crédito que, assim, lhe foi transmitido. Nessa esteira, defende a Requerente que, ao contrário da posição sufragada pela Requerida, não há da sua parte qualquer reconhecimento da incobrabilidade do crédito – padecendo de erro o exercício de subsunção da AT – mas sim uma transmissão do dito crédito por preço inferior ao respetivo valor nominal, preço que resultou da negociação, com terceiro independente da Requerente e em condições de mercado, para a efetiva transmissão considerando a necessidade da Requerente obter liquidez imediata em valor significativo para fazer face a compromissos financeiros que, uma cobrança litigiosa do crédito não permitiria.

Já a Requerida advoga que o facto de a E… se ter constituído em imediata e principal pagadora da dívida correspondente ao preço do crédito, sem benefício de excussão prévia do património da C…, não importa, nem mesmo substancial ou indiretamente, uma cessão do crédito da Requerente para a esfera jurídica da E…, que se assume como mera garante no acordo de pagamento que teve lugar. O acordo de pagamento celebrado, ao invés de uma cessão de crédito, que implicaria sempre uma alteração da sua titularidade, o que não ocorreu, traduz-se antes num efetivo perdão parcial de dívida concedido pela Requerente à sua participada C…

Cumpre apreciar,

 

3.1.2. A Requerente alegou que a sociedade C… adquiriu, ao longo dos anos de 2012 a 2014, uma série de máquinas e equipamentos para construção à B…. Destes negócios a C… constitui-se devedora (com referência a 30 de julho de 2015) do montante global de € 5.031.004,29 (cinco milhões, trinta e um mil e quatro euros e vinte e nove cêntimos).

Considerando o período de crise económica, a B…, para além do apoio prestado pela Requerente no valor de € 685.000,00 (seiscentos e oitenta e cinco mil euros), posteriormente convertidos em prestações acessórias no dia 16.12.2013, aderiu, em 2014, a um PER para renegociar as suas dívidas perante os credores. O plano foi homologado por sentença de ../../2014 no processo n.º …/...0T2AVR que correu termos no Juízo do Comércio de Aveiro.

No âmbito deste plano, a B…, quanto aos credores bancários garantidos, conseguiu obter um período de carência de 24 meses de amortização de capital e juros após a homologação do plano em Outubro de 2014, spreads mais baixos nos 4 anos seguintes à homologação do plano, pagamento da dívida bancária ao longo de 10/12 anos, isenções de comissões e demais encargos bancários sobre o crédito reestruturado e, quanto aos credores comuns foi possível obter um acordo para pagamento em prestações por um período de 8 anos, incluindo 2 anos de carência, e isenção da totalidade dos juros vencidos e vincendos.

Já depois deste processo de revitalização e dos acordos obtidos com os diferentes credores, a Requerente adquiriu, em 30 de julho de 2015, o crédito da B… – através de um contrato de cessão de créditos – sobre a C…, no aludido montante de € 5.031.004,29 (cinco milhões, trinta e um mil e quatro euros e vinte e nove cêntimos), tendo sido fixado o preço deste crédito por correspondência ao seu valor nominal (conforme cláusula 2.º, n.º 1 do contrato de cessão de créditos em análise).

A B… não recebeu qualquer montante em resultado da dita cessão já que esse crédito foi extinto por compensação, uma vez que a Requerente era titular de créditos relativos aos suprimentos efetuados à B…, afiliada daquela.

Desta forma, e a partir desta data, a Requerente passou a ser credora do montante objeto do contrato de cessão de crédito com a faculdade de o cobrar.

A Requerente não alegou nem demonstrou por qualquer forma que alguma vez tenha tentado cobrar o crédito da devedora, sua afiliada, judicial ou extrajudicialmente – a Requerente era detentora de 95% do capital a B… e de 65% da C….

 

3.1.3. Para além disso, ainda durante o ano de 2015, a Requerente vendeu a sua participação na C… representativa de 65% do respetivo capital social.

Invoca a Requerente que a situação do Grupo que encabeça era particularmente difícil e a alienação daquela participação e a alineação do crédito referido se revelava atrativa de um ponto de vista financeiro e de tesouraria, pois permitia um encaixe imediato de liquidez e o desinvestimento numa empresa e geografia que o Grupo B… já não conseguiria explorar de forma rentável.

Assim, no dia 04.11.2015, a Requerente celebrou com a D… um contrato de compra e venda de ações e cedência de prestações acessórias efetuadas à C…, pelo qual alienou:

i)             a participação social de que era titular na C… pelo valor de € 138.000 (cento e trinta e oito mil euros);

ii)            e as prestações acessórias realizadas a favor da C… pelo seu valor nominal, no valor de € 607.000,00 (seiscentos e sete mil euros).

 

No mesmo dia (04.11.2015), a Requerente celebrou o denominado “acordo de pagamento” do crédito sobre a C… que havia adquirido à sua afiliada B…. Deste acordo figuram como outorgantes a Requerente, na qualidade de credora, a C…, na qualidade de devedora, a B…, como credora originária, a D… e a E…, na qualidade de garante.

Do seu considerando C) resulta que a celebração deste acordo de pagamento era essencial em relação ao contrato de compra e venda de ações e de cedência de prestações acessórias, que foi celebrado no mesmo dia mas em momento logicamente posterior ao do acordo de pagamento. Na verdade, conforme resulta da cláusula J) do contrato de compra e venda de ações e de cedência de prestações acessórias, o acordo de pagamento já havia sido celebrado, só assim se explicando que constitua um anexo daquele contrato.

Esta relação de prejudicialidade entre os dois negócios, nos termos dos aludidos considerandos, afigurava-se, nos termos previstos nos contratos, essencial. Mormente nos termos do considerando C) “A Terceira Outorgante [a D…] reconhece e aceita que a celebração do referido contrato de Compra e Venda de Ações e Cedência de Prestações Acessórias pela Primeira Outorgante [a Requerente] teve como pressuposto fundamental a celebração do presente Acordo de Pagamento.”

Também nos termos do Considerando K) do contrato de compra e venda de ações e de cedência de prestações acessórias, a D… “[...] reconhece e aceita que a celebração do presente contrato pela Primeira Outorgante [a aqui Requerente] tem como pressuposto fundamental a celebração do Acordo de pagamento [...]”.

De facto, da leitura de ambos os contratos referidos, podemos concluir que a celebração deste acordo de pagamento, nos termos em que o foi, era essencial.

 

3.1.4. Por outro lado, quanto ao conteúdo do acordo de pagamento o que se pode extrair também é que a Requerente aceitou receber da C…, pelo valor total do crédito, o montante de USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América).

Montante este que foi renegociado com a afiliada da Requerente, a C…, devedora, e que, para o efeito a C… constituiria um empréstimo bancário junto do ... Banco para satisfação do direito da Requerente, garantido pela E…, detentora de 73% do capital social da D….

Nos termos do contrato foi ainda imediatamente fixado que, para quitação do montante integral do crédito, a Requerente aceitaria receber da C… os aludidos USD 3.000.000,00 ,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América) (cláusula 1.ª) em duas prestações – conforme n.º 2 da mesma cláusula – e, com o recebimento efetivo seria dada quitação integral da dívida correspondente ao crédito, conforme cláusula 3.ª.

Aliás, é a própria Requerente que aceita que o pagamento (por parte da C…) seja feito à B… – também sua afiliada – quando, por motivos não imputáveis à devedora, tal se imponha, mormente para efeitos de obtenção do prévio consentimento do Banco de Moçambique para repatriamento de capital, conforme resulta dos termos previsto no n.º 3 da cláusula 1.º do acordo de pagamento do qual se extrai que:

“[...] a Primeira Outorgante [a aqui Requerente] expressamente aceita que o pagamento daquela quantia [feito] à Quarta Outorgante [B…] tenha efeito liberatório, considerando-se este acordo integralmente cumprido.”

 

A E…, por sua vez, nos termos da cláusula 2.ª, constitui-se garante do pagamento (pela C…) do valor do crédito – não o integral ou originário, mas do valor reduzido que pelo dito contrato foi acordado.

É isto o que resulta das declarações negociais feitas pelas partes no referido acordo de pagamento.

 

3.1.5. E substancialmente, podemos concluir outra coisa?

A Requerente alega que substancialmente se tratou de uma verdadeira cessão de créditos tendo a testemunha inquirida referido que este contrato foi o que as partes se sentiram confortáveis em outorgar. Esta posição – a de que houve, em termos materiais, uma cessão de créditos e não um perdão de dívida – é para a Requerente verdadeiramente estruturante para a leitura que faz dos factos e para o seu raciocínio jurídico em torno do art.º 23.º do Código do IRC.

O nomem juris e as epígrafes das cláusulas de um contrato não devem condicionar a sua interpretação. Forçoso é extrair do contrato, objetivamente considerado, o seu sentido e alcance úteis, devendo alhear-se o intérprete de quaisquer motivações íntimas que possam ter inspirado as declarações negociais das partes, quando esse animus não encontra o mínimo suporte na letra do contrato. Assim, não é pelo facto de se ter dado ao contrato em causa o nome de “acordo de pagamento” que nos impõe essa constatação. Contudo, para se considerar que ele, no fundo, é um contrato de cessão de créditos pouco ou nada releva a vontade íntima das partes, antes importando os efeitos jurídicos e económicos que dele resultam.

Com este pressuposto, da análise das cláusulas 1.ª (pagamento) e 2.ª (garantia) do acordo de pagamento não resulta o que a Requerente sustenta. I.e. uma aquisição do crédito pela E…, ou qualquer negociação do mesmo diretamente com esta sociedade.

Na cláusula primeira, a E… não tem qualquer intervenção, i.e., não resulta desta cláusula qualquer declaração negocial desta sociedade ou a expressão da sua vontade. A intervenção da E…. encontra-se, sobretudo, na cláusula 2.ª e, da análise da mesma, não resulta que existe qualquer forma de aquisição do crédito, ainda que indireta ou substancial, mas sim – e sem que haja qualquer forma de interpretação do contrário – a constituição de uma nova relação jurídica, apenas de garantia. E, como a Requerente sustenta, não estamos a limitar-nos à interpretação da epígrafe mas sim à própria substância da cláusula e da mesma não resulta, como a Requerente sufraga, qualquer indício de que a E… tenha adquirido o crédito – ou sequer que o quisesse adquirir – e se tenha obrigado a pagar o preço acordado, mantendo-se o dito crédito, pelo seu valor originário, a ser devido pela C…, não à Requerente, mas à E….

O que resulta claro da cláusula é antes que a E… constitui uma garantia pessoal relativamente ao pagamento do crédito (já inferior ao seu valor originário) devido pela C…à Requerente. A C… que aquando da celebração do acordo de pagamento era ainda afiliada da Requerente já que, conforme resulta da cláusula J) do contrato de compra e venda de ações e de cedência de prestações acessórias, apesar de ambos os contratos terem sido celebrados no mesmo dia, o acordo de pagamento antecedeu em termos lógicos a venda das ações e a cedência das prestações acessórias, pelo que, quando da celebração do acordo de pagamento a devedora era, ainda, afiliada da Requerente.

Esse crédito, na verdade, nos termos dos contratos celebrados não é devido imediatamente pela garante – como a Requerente sustenta – mas sim, e ainda que renunciando a qualquer benefício de excussão prévia, após eventual incumprimento da devedora de qualquer uma das prestações, e após notificação de incumprimento à garante. Aliás, a C… obriga-se, nos termos do acordo, a constituir empréstimo para pagamento do montante acordado à Requerente, não resultando, por qualquer forma, que a E… tenha adquirido o crédito e, por alguma forma, se tenha constituído devedora desse montante à Requerente; constitui-se, isso sim, garante, não se podendo para estes efeitos fazer corresponder o conceito de garante ao de devedor nem muito menos se poderá confundir a prestação de uma garantia pessoal com a aquisição de um crédito. A prestação de garantia pessoal pelo pagamento de um crédito e a aquisição desse crédito são realidades juridicamente distintas, economicamente diversas e, como tal, sujeitas a um tratamento contabilístico também muito diferente.

Nem sequer resulta do acordo que de forma mediata a garante assumisse qualquer posição ativa já que se desconhece quem, quando e de que forma este crédito foi pago à Requerente.

 

3.1.6. Assim sendo, não se vislumbram nem, em abono da verdade, a Requerente indica quais os factos que permitem concluir que “substancialmente, teve lugar uma cessão do crédito pela Requerente e uma aquisição do mesmo pela E…S.A. (a sociedade mãe da D…) na medida em que esta se constituiu, por força da cláusula segunda do Acordo, em imediata e principal pagadora da dívida de preço dos créditos, sem benefício de excussão prévia do património da C…”.

Não só não existe qualquer facto que permita corroborar esta posição da Requerente como, da análise dos negócios formalizados por esta, mormente o acordo de pagamento – e independentemente do nomem – resulta, isso sim, que a E… jamais adquire qualquer crédito, não expressa qualquer declaração negocial nesse sentido, nem sequer de forma indiciária. E… não só não adquire o crédito, como não se torna em momento algum credora da C…. A E… constitui-se garante, o que é bem diferente de se constituir imediata, ou até mediatamente, credora – em relação à C… – e devedora em relação à Requerente.

O que o contrato permite concluir é que se constituiu uma nova relação jurídica – de garantia – não tendo havido cessão, mediata ou imediata, direta ou indireta, do crédito da Requerente para a E…, i.e., nos termos do acordo de pagamento celebrado mantém-se a relação jurídica entre a Requerente e a C… sem qualquer alteração subjetiva, quer quanto ao credor quer quanto ao devedor e a Requerente e a C…, na qualidade de credora e devedora respetivamente renegociaram o crédito, concedendo-lhe aquela a esta um perdão parcial da dívida.

E tanto assim é que toda a renegociação do montante do crédito, com uma redução do respetivo valor para USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América) e do respetivo plano de pagamento é integralmente feita entre a Requerente, enquanto credora, e a C…, na qualidade de devedora.

A C… obriga-se a pagar à Requerente, nos termos em que ambas acordaram e, até, é a Requerente que determina que, caso haja necessidade disso, o pagamento pode ser feito a uma sociedade sua participada, e primitiva titular do crédito, a B…, ficando expressamente estabelecido, que este pagamento, feito a entidade que não era já sua credora, tem efeito liberatório sobre a totalidade da dívida da C… perante a Requerente.

Esta interpretação é, aliás, consentânea com a cláusula primeira do acordo de pagamento, mas também com o considerando J) do contrato de compra e venda de ações e cedência de prestações acessórias – celebrado, como se viu, em momento logicamente posterior à celebração do aludido acordo de pagamento – no qual a Requerente se assume credora do crédito em apreço nos autos, sendo indicado que a C… é a sua única devedora direta.

Para além de não se verificar qualquer forma, declaração ou indício de vontade das partes no sentido de ser transmitido o crédito à E…, a verdade é que, nos termos do acordo de pagamento é à Requerente (credora) que a C… (devedora) tem que pagar o montante do crédito, os juros e, ainda, que o pagamento pode ser feito, com efeitos liberatórios a uma entidade terceira, filial da Requerente. Do contrato não resulta, pois, que a C… se possa exonerar da dívida que mantém para com a Requerente, pagando o montante devido à E…. Portanto, é a Requerente e não a E… que assume indubitavelmente a posição jurídica de credor no que respeita ao crédito que nos ocupa.

Claro que incumprindo a C… com qualquer dos pagamentos a que se obrigou perante a Requerente no âmbito do acordo de pagamentos, pode esta exigir da E…, e sem excussão prévia do património da devedora, o montante que esta lhe devia. Contudo, estes efeitos jurídicos são os que decorrem de uma normal relação de garantia e não os que resultam de uma cessão de créditos.

Mais. Não se pode ignorar, em termos gerais, a possibilidade de haver cumprimento de uma obrigação por terceiro, podendo este ficar sub-rogado nos direitos do credor. É o que sucede quando o dito terceiro tenha garantido o cumprimento da obrigação, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 592.º do Código Civil (CC). Neste caso, que é o dos autos, o devedor (C…) não se exonera da dívida perante o credor (a Requerente) com a mera celebração do contrato no qual se constitua uma garantia pessoa dada por terceiro (a E…). Na verdade, a sub-rogação só ocorrerá quando e se tiver havido cumprimento da obrigação por terceiro.

Acresce que numa simples cessão de créditos, o montante originário do crédito não sofre qualquer alteração. Passa da esfera jurídica do credor originário e cedente para a do credor cessionário, mantendo-se, na esfera jurídica do devedor a dívida pelo montante originário. Assim, mesmo que o cessionário houvesse adquirido o crédito ao cedente por valor inferior ao respetivo valor nominal, não há dúvida de que o novo credor poderia exigir do devedor o montante integral do crédito e não apenas do correspondente ao preço que pagou pela cessão. Ora, aqui, na verdade, mostra-se que o montante da dívida da C… perante a Requerente, por mero efeito da celebração do acordo de pagamento reduziu-se, passando de € 5.064.419,61 (cinco milhões, sessenta e quatro mil, quatrocentos e dezanove euros e sessenta e um cêntimos) para USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América). E ainda que a E… se visse na necessidade de cumprir, por força da garantia, a obrigação da C… perante a Requerente, nunca lhe poderia exigir mais do que os USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América).       

Não há, pois, segundo resulta dos vínculos obrigacionais assumidos pelas partes nos contratos, uma genuína cessão de créditos.  

 

3.1.7. Como resulta da posição de Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado, Vol. I (artigos 1.º a 761.º), 4.ª Ed., 1987, Coimbra Editora, Coimbra, na cessão de créditos “Em todos estes casos [em que a cessão pode ocorrer], na base das finalidades mais distintas, há um fenómeno comum: a transmissão do direito de crédito, no todo ou em parte, feita pelo credor a um terceiro.” (p. 593).

Assim sendo, como se viu, em momento algum resulta ter esta transmissão, pelo contrário.

Por outro lado, também não parece ser razoável, que seja a Requerente e a devedora a renegociar – para os efeitos de cessão de créditos que a Requerente alega – o preço do crédito para depois a credora o ceder já com um valor inferior ao (primitivo) valor nominal, mormente considerando que a lei permite a cessão de créditos independentemente do consentimento do devedor (artigo 577.º do CC), pelo que esta linha de raciocínio não se afigura conducente a uma ótica de racionalidade do negócio, mormente considerando que a alegada cessionária é outorgante do mesmo contrato. I.e., qual o interesse das partes, cedente e cessionária, num alegado contrato de cessão de créditos – da totalidade do crédito – reduzi-lo e depois cedê-lo?

Ainda que a Requerente aceitasse receber menos que o valor nominal do crédito na alegada cessão, para a Cessionária sempre seria mais vantajoso adquirir a totalidade do crédito sem qualquer exercício de redução prévio – pelo qual pagou menos que o valor nominal – e, posteriormente, considerando que o risco da cobrança já corre da sua parte tentar cobrar o valor total.

Também não se afigura razoável que, caso a E… por alguma forma tivesse adquirido o crédito aceitasse, sem outras cautelas, que o pagamento fosse feito a outrem – a B… – com efeito liberatório sobre a devedora, mormente considerando que essa sociedade estava em situação económica difícil, de pré-falência como a Requerente refere, e no âmbito de um PER.

Esta posição não é razoável numa cessão de créditos mas já o é – como resulta literalmente do texto do contrato – para uma garante pessoal, como é a posição que resulta do acordo para a E….

Desta forma, a posição que a Requerente sufraga não só não resulta dos termos do contrato – quer formal, quer substancialmente – como não se apresenta razoável face a situações negociais típicas destes negócios.

Considerando a posição do STJ, vertida no processo n.º 1550/06.0TBSTR.E1.S2 da 7.ª Secção:

“Vem sendo uniformemente entendido pelo STJ que os seus poderes de cognição no domínio da interpretação dos negócios jurídicos estão circunscritos à determinação do sentido normativo da declaração negocial, com recurso aos critérios fixados nos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do CC, por tal envolver conhecimento de matéria de direito, estando-lhe vedado o apuramento da vontade psicologicamente determinável das partes por esta constituir matéria de facto da exclusiva competência das instâncias.

V - Estando em causa um negócio formal, uma vez que foi adoptada a forma escrita (art. 221.º do CC), deve observar-se na sua interpretação a regra especial inserta no art. 238.º, n.º 1, do CC, segundo a qual “a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso, excepto quando esse sentido corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem a essa validade” (art. 238.º, n.º 2, do CC).”

 

Desta forma, ao contrário do que a Requerente alega, não podemos, de forma alguma, concluir que tenha havido qualquer forma, imediata ou não, de cessão de créditos. Nem a análise do acordo de pagamento o permite nem se afiguram possíveis exercícios interpretativos que não tendo qualquer arrimo no texto do respetivo documento – no sentido do acórdão que acabámos de citar – face a circunstâncias de normalidade do negócio apontem em sentido diverso. Não podemos esquecer que a Requerente é a mesma sociedade que cerca de quatro meses antes adquiriu este crédito através de um contrato de cessão de créditos que, agora, outorga alegadamente para alcançar o mesmo fim um “acordo de pagamento” cujas declarações negociais das partes em nada se assemelham com aquele.

 

3.1.8. Assim, podemos concluir que, no caso concreto, não houve qualquer forma de transferência para um terceiro do direito de cobrança integral do crédito em causa. Nos termos da cláusula segunda do acordo de pagamento, a E…, S.A, apenas se assumiu como garante do pagamento da quantia de USD 3.000.000,00 (três milhões de dólares dos Estados Unidos da América), obrigando-se a substituir-se à C…, apenas se e quando esta incumprisse a obrigação de pagamento por si assumida perante a Requerente.

Desta forma, o acordo de pagamento consubstancia uma renegociação da dívida entre a Requerente, e a sua afiliada C… com uma redução efetiva do valor nominal da dívida, ficando a C…, pela mera celebração do acordo de pagamento exonerada do pagamento do montante perdoado.

 

3.1.9. Em suma, a Requerente não se desfez do ativo ao preço que conseguiu obter no mercado já que a E… nunca o adquiriu. Há, isso sim, neste caso, a constituição de uma garantia, sem venda a terceiro do ativo, operando-se por via do acordo de pagamento um perdão parcial de dívida.

Nestes casos de perdão de um crédito no âmbito de um acordo particular, não se “[...] permite à sociedade que o concedeu relevar o montante que deixou de receber como custo para efeitos fiscais, a menos que respeite as regras fiscais, seja pela constituição de provisões para créditos de cobrança duvidosa (arts. 34.º e 35.º do CIRC, na redacção em vigor à data), seja pelo regime dos créditos incobráveis (art. 39.º do mesmo Código). Ac. do STA de 4/11/2015 proferido no âmbito do processo n.º 963/13.

Posição esta que resulta do acórdão 160/2018-T do CAAD (citado, aliás, pela Requerente) de onde resulta que,

“E depois, porque uma coisa é a constituição de uma perda, sem a realização (sem a venda a terceiro) do ativo, por imparidade ou créditos incobráveis e outra é a venda (cessão do ativo).

Ali, na constituição da perda sem realização ou venda, o legislador pode criar requisitos fiscais acrescidos para a aceitação fiscal da perda (art. 41.º do CIRC), justamente porque não houve realização e venda. As razões são duplas: ou é ainda uma perda potencial; ou efetiva-se fora do modelo de uma venda (cessão) do ativo, ou seja fora do quadro típico da realização, que é o ato que legitima, por excelência, o registo fiscal da perda ou do ganho, em termos qualitativos (ato jurídico-económico que sustenta o facto tributário no IRC – cfr. art. 18.º, n.º 1 e 3, do CIRC) e em termos quantitativo (o preço de venda baliza o valor do rendimento ou do gasto).”

 

Ainda que a Requerente se socorra desta e de outras decisões para fundamentar a sua posição, a verdade é que parte de uma situação de facto bem diferente; ao contrário da situação em apreço no processo cuja decisão transcrevemos, a Requerente, no caso que nos ocupa, não cedeu o crédito ou por  qualquer forma o transmitiu a um terceiro, limitando-se a acordar com o devedor uma redução do valor nominal do crédito, no âmbito de um acordo de pagamento celebrado com o devedor, que era sua (ainda naquele momento) afiliada.

Na situação sub judice, não tendo havido transmissão do crédito pela Requerente, a dedutibilidade do gasto em apreço não pode ser aferida à luz do critério previsto no n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC.

Pelo que, o reconhecimento e aceitação de gastos com perdas resultantes de perdão de dívidas (que, quanto a esta parte, se tornam incobráveis) depende, pois, de estarem preenchidas as condições previstas nos artigos 28.º-A, 28.º-B e 41.º, e só nessa eventualidade estaria preenchido o requisito da dedutibilidade do n.º 1 do artigo 23.º, todos do Código do IRC.

Ora não resulta dos autos estarem reunidos os requisitos que permitem a dedução a perda por imparidades relacionada com este crédito, em vista da sua consideração como crédito de cobrança duvidosa, nos termos do artigo 28.º-A, n.º 1 al. a) do Código do IRC, observados que sejam os critérios constantes do artigo 28.º-B ou do artigo 41.º, ambos do mesmo diploma. Assim, o gasto de € 2.308.839,56 não deverá, à luz do Código do IRC, ser fiscalmente dedutível ao lucro tributável da Requerente.

 

3.1.10. A Requerente vem ainda defender que a posição da Requerida viola o princípio da tributação pelo rendimento real, previsto no n.º 2 do artigo 104.º da Constituição da República Portuguesa.

Neste caso, e independentemente do sentido interpretativo dos preceitos em causa, o que falece, desde logo, na argumentação da Requerente é o cumprimento do ónus a que estava adstrita para demonstrar o enquadramento da perda que teve.

A Requerente fundamenta a aplicação do regime do artigo 23.º do Código do IRC considerando a existência da alegada transmissão do crédito a terceiro por montante inferior ao seu valor nominal. Facto que não só não provou, como se extrai dos autos exatamente o oposto, ou seja, que tal transmissão nunca se verificou.

E tendo havido, como houve, um perdão parcial de dívida, não estava vedada à Requerente, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 28.º-A, 28.º-B e 41.º, todos do Código do IRC, a possibilidade de ver deduzido fiscalmente o montante correspondente à perda sofrida.

Desta forma, não se evidencia qualquer violação ao aludido preceito constitucional.

 

3.1.11. Face à posição assumida as correções em apreço nos presentes autos não sofrem de qualquer vício de ilegalidade.

Perante a posição que antecede fica prejudicado o conhecimento de outras questões suscitadas no PPA.

 

4.            Decisão

 

Nos termos e com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide:

 

a)            Julgar improcedente o pedido de anulação da liquidação adicional de IRC e juros compensatórios, consubstanciados na demonstração de acerto de contas.

b)           Julgar prejudicado, face ao decidido em a), o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

c)            Condenar a Requerente nas custas.

 

5.            Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no n.º 4 do art.º 395.º e no n.º 2 do art.º 306.º, ambos do CPC, no art.º 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 199.714,97 (cento e noventa e nove mil setecentos e catorze euros e noventa e sete cêntimos).

 

6.            Custas

 

Para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 12.º e no n.º 4 do art.º 22.º do RJAT e do n.º 4 do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00 (três mil seiscentos e setenta e dois euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar integralmente pela Requerente.

 

Lisboa, 28 de abril de 2021

 

Os Árbitros

 

Árbitro Presidente

Fernanda Maçãs

 

Árbitro Adjunto

Marisa Almeida Araújo

 

Árbitro Adjunto

Nuno Pombo