Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 151/2019-T
Data da decisão: 2019-09-30  ISP  
Valor do pedido: € 263.289,79
Tema: Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros José Poças Falcão (árbitro-presidente), Nuno Cunha Rodrigues e Ricardo Marques Candeias (árbitros vogais), designa¬dos pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o presente Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

I. Relatório

A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede em ..., ..., ..., ...-... ..., ..., com o capital social de € 47.000.000,00, (doravante “Requerente”) notificada do despacho proferido pela Subdiretora Geral da Área do Imposto sobre o Rendimento, no exercício de competência delegada, no sentido do indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2018..., apresentado devido ao precedente indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018..., que teve por objeto a não dedutibilidade para efeitos fiscais do encargo incorrido com a contribuição extraordinária sobre o sector energético (CESE), o que originou um montante de imposto (IRC e derramas incluídos) indevidamente liquidado no valor de € 263.289,79, veio nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º, na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º, in fine, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, (RJAT)) requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo designado nos termos da alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e na alínea a) do n.º 3 do art. 5.º do RJAT.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 07 de março de 2019, pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, no dia 26 de abril de 2019, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram devidamente notificadas dessa designação no dia 26 de abril de 2019, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos art.s 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 16 de maio de 2019.

 

Na sua Resposta, apresentada a 24 de junho de 2019, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT ou Requerida) veio sustentar a procedência das exceções perentórias invocadas, absolvendo-se a Requerida da instância, bem como, caso assim não se entendesse, a improcedência da presente ação, por não provada, devendo a mesma ser absolvida do pedido, com as legais consequências. 

 

A fundamentar o presente pedido, a Requerente vem aos autos afirmar, em síntese, o seguinte: 

a)            A requerente é uma sociedade comercial anónima que tem como objeto social a “importação, distribuição e comercialização de gás de petróleo liquefeito, bem como a prossecução de qualquer atividade industrial ou comercial, relacionada, direta ou indiretamente, com aquelas atividades e a prestação de qualquer serviço relacionado com o desenvolvimento das atividades mencionadas”;

b)           Em face da atividade por si exercida, a requerente procedeu, no dia 9 de outubro de 2015, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 7.º do regime que criou a CESE , à autoliquidação daquele tributo com referência ao período de 2015, tendo apurado um montante total a pagar de € 957.417,41 e que foi integralmente pago em 27 de outubro de 2015.

c)            Em 30 de maio de 2016, a requerente submeteu a sua declaração Modelo 22 de IRC relativa ao período de tributação de 2015, tendo apurado um lucro tributável que ascendeu a € 20.004.849,82, para cujo apuramento a requerente efetuou um ajustamento ao lucro tributável do período de tributação de 2015, correspondente à não consideração, para efeitos fiscais, do encargo no montante de € 957.417,41, referente ao montante de CESE suportado nesse período de tributação.

d)           Na sequência da entrega daquela declaração Modelo 22, a requerente procedeu, na mesma data, ao pagamento do montante de imposto (IRC e derramas) autoliquidado.

e)           Sucede que, não obstante a requerente ter procedido à autoliquidação e pagamento de IRC e derramas como se o seu lucro não tivesse sido afetado (reduzido) pelo encargo fiscal com a CESE, considera que esta circunstância, isto é, o afastamento da CESE no cômputo do lucro tributável em IRC e derramas, está ferido de inconstitucionalidade material.

f)            A requerente contestou a autoliquidação de IRC (e derramas) respeitante ao período de tributação de 2015, primeiro através da apresentação de uma reclamação graciosa contra aquele mesmo ato, e, posteriormente, através da interposição de recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa previamente apresentada, que teve idêntico destino.

g)            O que está em causa é o apuramento do lucro tributável em sede de IRC e derramas com exclusão da consideração (é como se não existisse) do encargo fiscal com a CESE.

h)           A omissão de dedução ao lucro tributável do encargo com a CESE em 2015, no montante de € 957.417,41, traduziu-se num empolamento do IRC e derramas nesse exercício no montante de € 263.289,79, conforme quadro discriminativo infra:

 

 

i)             a proibição da consideração, para efeitos de IRC e derramas, do encargo efetivamente suportado com o pagamento da CESE (cfr. artigo 12.º do regime jurídico da CESE e a alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC) resulta numa clara violação dos princípios constitucionalmente consagrados da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real.

j)             Desde logo, é de admitir a dedutibilidade do encargo suportado com a CESE ao abrigo dos critérios que visam o apuramento do lucro real previstos no artigo 23.º do Código do IRC, porquanto, por contraste com a redação anterior do referido preceito, saltam à vista as seguintes principais alterações: (i) passou a estabelecer-se claramente a necessidade de prova documental, admitindo-se para esse efeito qualquer documento, sendo que quando esteja em causa uma aquisição de bens e serviços, enumeram-se os elementos que o documento comprovativo desta operação deverá conter, e estabelece-se que esse documento deverá obrigatoriamente assumir a forma de uma fatura ou documento legalmente equiparado, quando o fornecedor dos bens ou prestador de serviços seja sujeito passivo de IVA; (ii) foi eliminada a referência expressa ao requisito da indispensabilidade do gasto, passando a prever-se apenas genericamente que são dedutíveis os gastos que sirvam para “obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”.

k)            Daqui resulta que, enquanto o regime jurídico da CESE se mantiver, atentas as regras de incidência subjetiva aí previstas (cfr. referido artigo 2.º do regime jurídico da CESE), vê-se a requerente obrigada a suportar tal encargo em virtude da atividade que exerce, de onde a inevitável indispensabilidade (legalmente imposta) do encargo assim incorrido para a prossecução da sua atividade.

l)             Ademais, o encargo em causa (no que ora aqui releva, o que corresponde ao pagamento da CESE relativa ao período de tributação de 2015é efetivamente suportado em exclusivo pela requerente, na medida em que o próprio regime jurídico da CESE impõe a não repercussão, direta ou indireta, deste encargo (cfr. artigo 5.º do regime jurídico da CESE).

m)          De onde se conclui que o encargo suportado com a CESE é, em si mesmo, um gasto ou perda dedutível para efeitos da determinação do lucro tributável, ao abrigo dos critérios gerais de dedutibilidade previstos no artigo 23.º do Código do IRC, i.e., ao abrigo do conceito de lucro real.

n)           Acresce ainda que está aqui em causa a tributação deliberada de um lucro fictício por determinação da desconsideração em IRC de um encargo fiscal real (com a CESE), a par de outros encargos igualmente desconsiderados em IRC, sem que se apresente razão legítima para tal (nem o legislador a deu), forte ou fraca.

o)           Com a CESE é claríssimo que a sua dedução fiscal não provoca a subtração de lucro real à tributação: este encargo é real, é imposto por lei, e é imposto por lei aos sujeitos passivos em causa em razão da sua atividade sujeita a tributação em IRC.

p)           A impossibilidade de deduzir a CESE no apuramento do lucro tributável em IRC é violadora dos princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real: a indedutibilidade da CESE não resulta da aplicação de conceito ou critério alternativo algum àquele que busca a determinação do rendimento real. É simplesmente uma negação do critério da busca do rendimento real, porque sim, para em seu lugar tributar rendimento fictício, inexistente, porque sim, porque o legislador quer.

q)           Daqui resulta que a CESE tem um efeito de sobreposição com o IRC que é inaceitável, até porque potencia também, em benefício do Estado, um efeito de “fraude” à tributação em sede do referido imposto: o Estado está a tributar, por um lado, o sujeito passivo, fazendo incidir uma contribuição sobre os seus activos, e por outro a acrescer ao lucro tributável do IRC o valor deste encargo fiscal, ficcionando assim a sua inexistência e com isso a existência de lucro que realmente (e por imposição do Estado) lhe foi subtraído.

r)            Não existe, no caso em apreço, qualquer razão de ordem jurídica que justifique a não dedutibilidade do encargo suportado com a CESE, sendo os artigos 23.º-A, n.º 1, al. q) do Código do IRC e 12.º do regime jurídico da CESE contrários aos princípios da capacidade contributiva e tributação do rendimento real, tal como postulado no artigo 104.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, com a consequente invalidade destas normas e anulação, na parte gerada pela indedutibilidade da CESE, do acto de liquidação objecto do presente pedido de pronúncia arbitral.

s)            A CESE deve ser fiscalmente dedutível em IRC tendo em conta que os impostos em geral entram como custo no apuramento do lucro tributável (cfr. a regra da dedutibilidade em IRC dos encargos fiscais no artigo 23.º, n.º 2, alínea f), do CIRC)

t)            Deve ser considerada inconstitucional a alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC e do artigo 12.º do regime jurídico da CESE.

u)           Da leitura do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/2019, de 08 de janeiro de 2019, resulta que i) não há qualquer sinalagma, sequer difuso, entre o financiamento por parte de 1/3 da CESE do défice tarifário do SEN (Sistema Eléctrico Nacional), e os sujeitos passivos da CESE (como a requerente) que não operam no sub-sector da energia denominado de sector eléctrico; ii) mas ainda assim, porque os outros 2/3 da CESE servem (se esse alegado propósito for honrado) também para financiar “políticas sociais e ambientais, relacionadas com medidas de eficiência energética”, conclui que isso é suficiente para se encontrar um sinalagma, ainda que difuso, entres os sujeitos passivos da CESE em geral e os benefícios, presumidos (por oposição a verificáveis), gerados pela implementação das referidas políticas sociais e ambientais, relacionadas com medidas de eficiência energética”; iii) o efectivo dispêndio desses restantes 2/3 da CESE em “políticas sociais e ambientais, relacionadas com medidas de eficiência energética” que presumivelmente beneficiariam um grupo delimitado de contribuintes (os sujeitos passivos da CESE), por oposição aos contribuintes, cidadãos e consumidores em geral, será ele próprio de presumir (se a lei o diz, ainda que sem exemplificar em concreto que políticas serão essas, é porque haverá efetivo dispêndio de 2/3 da CESE em políticas sociais e ambientais), não cabendo ao órgão de fiscalização da constitucionalidade “apurar do posterior e efetivo grau de desenvolvimento de concretas políticas sociais e ambientais, relacionadas com medidas de eficiência energética”; iv) em suma, a qualificação de um tributo como contribuição financeira confere-lhe as seguintes prerrogativas: embora “não se dispens[e] alguma objetividade mínima no estabelecimento da relação entre a contribuição a pagar e a vantagem para um grupo determinado ou determinável de contribuintes que a suportará, acontece que, sendo esta vantagem presumida, contrariamente ao que sucede nas taxas, em que a vantagem que lhe dá origem é real e singularizável, permitindo melhor adequar o tributo ao custo ou benefício do sujeito passivo, já no caso das contribuições, pela natureza da relação, mais difusa ou reflexa, o grau de exigência na objetividade exigida será ainda mais atenuado.”

v)            A requerente procurou por diversas vias, incluindo os relatórios anuais do Tribunal de Contas sobre as contas anuais do Estado, informar-se sobre aquilo a que em concreto se traduziu a aplicação dos dinheiros da CESE por parte do FSSSE no que respeita aos referidos 2/3 alegadamente afetos a políticas sociais e ambientais, e nada pôde identificar, não obstante serem passados mais de 5 anos desde a instituição da CESE.

w)          Se com respeito às contribuições financeiras clássicas, que nenhuma dúvida suscitam sobre a legitimidade de as fazer incidir sobre um grupo delimitado de contribuintes (contribuições pelas empresas reguladas para a sua entidade reguladora), se mantém a regra da relevância desse encargo fiscal no apuramento do lucro em IRC, se mantém, portanto, o princípio da tributação pelo rendimento real, por identidade e maioria de razão tem o legislador de manter a relevância do encargo fiscal com a CESE no apuramento do lucro em IRC, sob pena de discriminação arbitrária em IRC e fora de qualquer justa medida (violação também do princípio da proporcionalidade) do grupo delimitado de contribuintes sujeito à CESE.

x)            Esta discriminação arbitrária e injustificável é igualmente objetivamente revelada, e igualmente por maioria de razão, pelo tratamento em IRC dos impostos em geral respeitadores dos princípios da generalidade, igualdade e capacidade contributiva: como encargos que são, que subtraem o lucro, são (e muito bem) fiscalmente relevantes.

y)            Esta discriminação arbitrária e injustificável (caprichosa), em IRC, é objetivamente revelada, por maioria de razão novamente, pelo contraste com as taxas: se a taxa suportada por um contribuinte em razão de uma concreta e singularizável vantagem (contrapartida) por si obtida, releva para efeitos de apuramento do lucro em IRC, partindo do pressuposto de que o capricho e a arbitrariedade estão vedados ao legislador fiscal, a CESE, que subtrai igualmente o lucro sujeito a IRC, não deve ser afastada do cômputo deste, por maioria de razão: a legitimidade constitucional do esforço fiscal adicional que é a CESE é duvidosa como não o é a legitimidade de uma taxa.

z)            Se um grupo particular de contribuintes é segregado dos restantes para lhe ser imposto pelo legislador um esforço fiscal adicional cuja justificação constitucional é duvidosa, o encargo com esse esforço fiscal adicional tem de relevar para o cômputo do lucro em IRC (lucro que fica diminuído por esse encargo) por maioria de razão em relação aos tributos dedutíveis em IRC (impostos, contribuições financeiras verdadeiras e próprias, e taxas) que nenhum esforço adicional em igualdade de circunstâncias representam a cargo de qualquer grupo de contribuintes em particular.

aa)         Donde ser inconstitucional a norma de indedutibilidade (desconsideração) da CESE no apuramento do lucro tributável do IRC e derramas (estadual e municipal), constante da alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC, e do artigo 12.º do regime jurídico da CESE, por violação arbitrária e discriminatória dos princípios do rendimento real e da capacidade contributiva, do princípio da igualdade, do princípio da proporcionalidade ou da justa medida, e da propriedade privada, previstos e consagrados (por ordem de numeração) nos artigos 2.º (Estado de direito), 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 62.º e 104.º, n.º 2, da Constituição.

bb)         Importa também considerar que a requerente e demais empresas do sector energético encontravam-se, no período de tributação que aqui se discute, numa situação desigual face a sociedades do sector farmacêutico, quando o tipo de contribuição, natureza e finalidade são semelhantes, pelo que, ao excluir a dedutibilidade da CESE, por um lado, e ao aceitar a dedutibilidade da CEIF, por outro, o legislador concede um tratamento diferenciador sem qualquer justificação plausível (e efetivamente nenhuma indica).

cc)          Tal traduz, inequivocamente, uma clara arbitrariedade e uma violação adicional do aludido princípio da igualdade.

dd)         Deste modo, entende a requerente que as normas contidas nos artigos 23.º-A, n.º 1, al. q), do Código do IRC, e 12.º do Regime da CESE, padecem de inconstitucionalidade por esta violação adicional do princípio da igualdade, para além das outras inconstitucionalidades supra identificadas.

Em face do exposto, o Requerente vem peticionar que a presente ação arbitral seja julgada procedente, por provada, porquanto resulta que quer o indeferimento do recurso hierárquico supra melhor identificado, quer o indeferimento da precedente reclamação graciosa, quer a autoliquidação de IRC (e derramas) relativa ao exercício de 2015 é ilegal, por padecer de vício de violação de lei (invalidade da lei, por inconstitucionalidade, em que repousa a parte aqui contestada), devendo: a) ser declarada a ilegalidade e anulado o indeferimento do recurso hierárquico, e bem assim o indeferimento da precedente reclamação graciosa, na medida em que recusaram a anulação da parte ilegal, nos termos que aqui se discutiram, da autoliquidação de IRC (e derramas) do exercício de 2015, com isso violando o princípio da legalidade; b) ser declarada a ilegalidade parcial desta autoliquidação (e ser consequentemente anulada); c) ser, consequentemente, reconhecido o direito ao reembolso do montante pago de € 263.289,79, e o direito a juros indemnizatórios calculados sobre esta quantia indevidamente paga e contados desde o seu pagamento em 30 de Maio de 2016 até integral reembolso.

 

Na Resposta, a Requerida respondeu, por exceção e por impugnação, sustentando que o presente pedido deve ser julgado improcedente, com os seguintes fundamentos:

 

Por exceção:

a)            O Tribunal arbitral é materialmente incompetente, por estar em causa a inconstitucionalidade de norma atinente ao regime jurídico da CESE, pois tal competência é exclusivamente atribuída ao Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 280.º, n.º 2, alíneas a) e d) e 281.º, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 3 da CRP e artigos 6.º e 66.º da Lei do Tribunal Constitucional

b)           Carecendo de competência para a fiscalização abstracta da constitucionalidade, não pode o Tribunal Arbitral, in casu, declarar a ilegalidade ou de inconstitucionalidade das normas legais que impõem o pagamento da CESE, pois tal pronúncia está-lhe vedada, excluída da sua jurisdição, de acordo com o disposto no artigo 2.º do RJAT conjugado com os artigos 2.º da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março e 4.º, n.º 2, al. a), do ETAF ex vi artigo 29.º do RJAT.

c)            A arbitrabilidade pedida terá que ser referente ao acto de liquidação e não à (i)legalidade das normas que permitem o acto de liquidação, in casu, os artigos 23.º, n.º 1, alínea q), do CIRC e 12.º do Regime da CESE, invocados pela Requerente.

d)           Assim, na sequência de todo o exposto, conclui-se que o Tribunal Arbitral constituído é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objecto do litígio sub judice, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT e dos artigos 1.º e 2.º, alínea a) ambos da Portaria n.º 112-A/2011;

e)           Além disso, o tribunal Arbitral é materialmente incompetente, por se tratar de uma contribuição financeira e não de um imposto, conforme se pronunciou o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 7/2019 sobre a natureza jurídica da CESE.

f)            Entendem Sérgio Vasques e Carla Castelo Trindade em artigo publicado nos Cadernos de Justiça Tributária n.º 00 (Abril/Junho 2013) que “o âmbito material da arbitragem se resume à análise de questões relativas a impostos, não sendo, portanto, susceptíveis de recurso à arbitragem, porquanto fogem aos termos de vinculação da administração tributária as questões relativas a taxas e contribuições”;

g)            Conjugados o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT e o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, o Tribunal é materialmente incompetente para apreciar o mérito da presente causa, nos termos do disposto no artigo 576.º, n.ºs 1 e 2 do CPC ex vi artigo 2.º alínea e) do CPPT e artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

Por impugnação:

h)           O art.º 5.º do RCESE consagra o princípio de não repercussão.

i)             O artigo 12.º do RCESE contém a regra de não dedutibilidade das importâncias suportadas pelos sujeitos passivos a título de contribuição extraordinária sobre o setor energético

j)             a regra geral da dedutibilidade dos gastos e perdas comporta diversas exceções ditadas por uma multiplicidade de razões que o legislador dentro da sua margem de liberdade de conformação normativa considerou atendíveis e não violadoras do princípio de tributação pelo lucro real tal como tem sido interpretado pela doutrina e pela jurisprudência do Tribunal Constitucional.

k)            Entre as exceções à regra geral de dedutibilidade dos gastos e perdas, conta-se a prevista na alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A  do Código do IRC que mais não é do que a transposição para este Código, pelo artigo 3.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, do disposto no artigo 12.º do Regime da CESE: “A contribuição extraordinária sobre o setor energético não é considerada um gasto dedutível para efeitos de aplicação do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.”

l)             O sentido teleológico deste artigo 12.º só se apreende no quadro do Regime da CESE, mediante a conjugação do objeto definido no n.º 2 do artigo 1.º, da proibição de repercussão (art.º 5.º) e da consignação da receita cobrada ao FSSS (art.º 11.º), donde resulta bem claro o propósito do legislador em estabelecer um “anel” de separação (ring fencing) desta contribuição financeira, ao circunscrever ao sector energético tanto o ónus tributário como os potenciais benefícios da afetação da receita, isolando-o do resto da economia.

m)          Com efeito, os sujeitos passivos definidos no artigo 2.º do RCESE são apenas operadores do sector que integram o setor energético nacional, a receita obtida é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE), e há uma interdição geral de repercussão direta ou indiretamente sobre o tarifário e para efeitos de determinação do respetivo custo de capital e do custo médio das quantidades adquiridas de gás natural contratadas.

n)           Neste contexto, seria incoerente que fosse admitida a aceitação como gasto dedutível para a determinação do lucro tributável das importâncias suportadas pelos sujeitos passivos a título da CESE, porquanto, a dedução equivaleria a uma repercussão indireta da CESE sobre o Estado (e Autarquias, relativamente à derrama municipal), na exata medida em que a consequente diminuição ao lucro tributável redundaria em redução do IRC (e derramas) liquidado e pago.

o)           Os motivos que subjazem à exclusão da dedutibilidade dos gastos suportados com a CESE, prevista no art.º 12.º do RCESE e na alínea q) do n.º 1 do art.º 23.º-A do Código do IRC, devem ser encontrados no desenho e objetivos da regulamentação desta contribuição financeira e não na regra geral de dedutibilidade dos gastos e perdas enunciada no n.º 1 do art.º 23.º do mesmo Código.

p)           Pode extrair-se de diversa jurisprudência do TC que o princípio da tributação pelo lucro real é compaginável com uma certa margem de liberdade do legislador que introduza alguns “desvios” à regra geral de dedutibilidade dos gastos suportados no âmbito da atividade empresarial, desde que as limitações ou exclusões tenham um fundamento racional e que não colida com o princípio da igualdade.

q)           A solução normativa de não dedutibilidade da CESE constitui uma decorrência natural da sua configuração como um tributo: (i) com um âmbito de incidência delimitado a um especial conjunto de sujeitos passivos – operadores económicos do sector elétrico e do gás natural; (ii) cuja receita é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE), i.e., não reverte para o financiamento das despesas públicas gerais do Estado, mas, antes, para o financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, e de medidas relacionadas com a eficiência energética, de que o setor económico beneficiará; (iii) em que foi assegurado que os seus efeitos não se repercutem no resto da economia, ou seja, “não a impondo à generalidade dos contribuintes, e procurando a acomodação da contribuição ao custo/benefício presumidos” (cf. Acórdão do TC n.º 7/2019).

r)            Trata-se, portanto, de uma opção de política fiscal que exigiu ao legislador a elaboração de normas cuja aplicação e execução seja eficaz, i.e., que conduzam a resultados consonantes com os objetivos pretendidos sendo que, no caso, o propósito do legislador foi claramente o de afastar a imposição do encargo com a CESE à generalidade dos contribuintes, desiderato que só poderia ser efetivamente alcançado completando a proibição da repercussão com a não dedutibilidade do correspondente gasto ao lucro tributável do IRC. 

s)            A interpretação da AT do artigo 12.º da RCESE e da alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC, estriba-se na convocação dos elementos gerais de interpretação das normas fiscais, deles se extraindo por mera interpretação declarativa a exclusão da dedutibilidade da CESE.

t)            A interpretação da AT não afronta o princípio segundo o qual a tributação deve incidir sobre o rendimento real, porquanto tal princípio, consagrado no n.º 2, do art. 104.º da CRP, é o regime regra mas admite exceções, quais sejam, entre muitas outras, as limitações à dedutibilidade dos encargos para efeitos fiscais.

u)           Tal como não viola o princípio da igualdade, uma vez que o n.º 1 do artigo 13.º da CRP consagra a observância de uma igualdade material, que não meramente formal, devendo tratar-se por “igual o que é igual e desigualmente o que é desigual”.

v)            Quanto ao invocado principio da proporcionalidade previsto no n.º 2 do artigo 18.º da CRP, diga-se apenas que tal comando constitucional se aplica aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, designadamente aos “Direitos e deveres fundamentais” que integram a Parte I da CRP e onde não se inclui o princípio da tributação pelo lucro real previsto no n.º  2 do artigo 104.º, norma inserida na Parte II da CRP, onde se regula a matéria atinente à “Organização económica”.

w)          É inconstitucional a interpretação normativa proposta pela Requerente no sentido da dedutibilidade para efeitos fiscais dos gastos suportados com a CESE, em absoluta contradição com a previsão legal de não-dedutibilidade de tais gastos expressamente determinada pelo legislador no artigo 12.º da RCESE e no artigo 23.º-A, n.º 1, alínea q) do Código do IRC, por violação do princípio da legalidade tributária, pois tal interpretação contraria frontalmente a regra de não-dedutibilidade de tais gastos expressamente determinada pelo legislador sendo, pois, materialmente inconstitucional, por violação do princípio do Estado de Direito democrático, da reserva da lei fiscal, e da separação de poderes, com a consequente subordinação dos tribunais à lei, os quais decorrem, nomeadamente, do disposto nos artigos 2.º, 103.º, 165.º e 202.º da CRP.

x)            Reputa-se tal interpretação normativa de materialmente inconstitucional, também por violação do princípio da legalidade tributária, na vertente da generalidade e abstração da lei fiscal, decorrentes do princípio da legalidade e enquanto instrumentos da igualdade fiscal e, portanto, igualmente por violação do princípio da igualdade tributária, os quais decorrem, nomeadamente, do disposto no artigo 13.º e no artigo 103.º da CRP

y)            Por fim, reputa-se de materialmente inconstitucional a interpretação normativa no sentido de que a alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC e o artigo 12.º daquele RCESE deveriam ser interpretados de modo diferente para as entidades que aproveitam matérias-primas derivadas da sua atividade principal para a produção de energia, mesmo quando esta pode destinar-se a satisfazer as suas próprias necessidades de consumo, porquanto um tratamento desigual dos sujeitos passivos da CESE representaria o desrespeito do princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da CRP, sem qualquer justificação aceitável, já que a comparação a estabelecer será entre as categorias de operadores abrangidos pela norma de incidência – art.º 2.º do RCESE – e não entre o universo de sujeitos passivos do IRC.

 

Por despacho proferido a 25-06-2019 foi notificada a Requerente para se pronunciar relativamente à matéria das exceções suscitadas pela AT, o que cumpriu, por requerimento apresentado a 04 de julho de 2019, tendo concluído que devem as mesmas improceder.

 

Para o efeito, alegou a requente, sumariamente, que: i) não pretende a requerente discutir a legalidade da liquidação da CESE. Pretende discutir a legalidade da liquidação de IRC referente ao exercício de 2015, e a legalidade das decisões administrativas que recusaram reconhecer as ilegalidades apontadas a essa liquidação de IRC; ii) por outro lado, a inconstitucionalidade é mera causa de pedir, não pedido. Pedido este que incide antes na declaração de ilegalidade de um concreto ato tributário. A inconstitucionalidade é suscitada no âmbito da aplicação de uma norma a um caso concreto (o concreto ato de liquidação de IRC da requerente referente ao exercício de 2015), tão-somente para efeitos da aplicação que foi feita da norma em causa nesse caso concreto. E não para efeitos de declaração em abstrato (desligadamente de um caso concreto) da inconstitucionalidade dessa norma.

 

A 05-07-2019 foi proferido despacho arbitral determinando a dispensa da reunião prevista no art. 18.º, do RJAT, bem como estabelecidos os termos subsequentes, e respetivos prazos, tudo de acordo com o disposto nos arts 29.º, do RJAT, 91.º, 5, e 91.º-A, ambos do CPTA, nomeadamente, para as partes apresentarem alegações escritas no prazo de 20 dias bem como que a decisão final seria proferida, previsivelmente, até ao dia 30.09.2019.

 

Os Requerentes e a Requerida apresentaram alegações reiterando os argumentos apresentados nas anteriores peças processuais, sendo que a Requerida ainda juntou, a 18.09.2019, documento que tinha oportunamente protestado juntar.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT, e 10.º, n.º 1, do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. art.s 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e art.s 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades.

Antes de mais, importa apreciar as exceções alegadas pela AT.

II. Questão da competência material por estar em causa a inconstitucionalidade de norma atinente ao regime jurídico da CESE

Sustenta a AT, na sua resposta, que não é parte legítima neste processo, uma vez que a Requerente não imputa vícios intrínsecos à liquidação, mas o que pretende “é a desaplicação do normativo constante dos artigos 23.º, n.º 1, alínea q), do CIRC, e 12.º do Regime da CESE, em virtude da sua alegada inconstitucionalidade e não por qualquer ilegalidade ocorrida na sua aplicação aos factos concretos.”

Consequentemente, entende a Requerida AT que “não se pode recusar a aplicar normas com fundamento na sua inconstitucionalidade ou ilegalidade, pois está sujeita ao princípio da legalidade, conforme estatuído nos artigos 266.º n.º 2 da CRP, 3.º, n.º 1 do CPA e 55.º da LGT.”

Considera-se que a Requerida atende aqui à circunstância de, enquanto entidade administrativa, não poder recusar a aplicação de normas legais, com fundamento na sua inconstitucionalidade.

Pode, a este propósito, convocar-se o entendimento constante do acórdão do CAAD n.º 312/2015-T e, mais recentemente, do acórdão do CAAD n.º 706/2018-T.

Assim, é “exato que uma tal impossibilidade – comummente reconhecida em princípio e em termos gerais – se estende também, naturalmente, à AT. Mas o argumento que daí pretende extrair, para concluir pela sua ilegitimidade neste processo, é completa e manifestamente improbante.

É que essa impossibilidade não obsta, como é óbvio, a que, realizada pela AT a liquidação de qualquer tributo, o sujeito passivo possa impugnar judicialmente essa liquidação com fundamento na inconstitucionalidade da norma em que a mesma se baseou – e de tal modo que, se o tribunal julgar procedente o vício e, consequentemente, anular a liquidação, nada mais restará à AT senão «executar» a decisão judicial (seja reformando a liquidação, em função do judicialmente decidido, seja pura e simplesmente promovendo o reembolso do sujeito passivo).”

Nos presentes autos é disto que se trata justamente.

Não está em causa, em abstrato, a inconstitucionalidade das normas que aprovaram a CESE mas antes a ilegalidade e a anulação do indeferimento do recurso hierárquico, e bem assim o indeferimento da precedente reclamação graciosa, na medida em que recusaram a anulação da parte ilegal, nos termos que aqui se discutem, da autoliquidação de IRC (e derramas) do exercício de 2015, com isso violando o princípio da legalidade.

Trata-se de um controlo difuso, concreto e incidental, nos termos do qual a norma legal que fundamenta o ato de liquidação pode ser julgada inconstitucional e, consequentemente, desaplicada no caso concreto, fundamentando assim a ilegalidade derivada do ato de liquidação – ilegalidade no sentido de ilegitimidade jurídica, por se fundamentar, neste caso, na violação da Constituição, e derivada, por não se tratar de um vício intrínseco ao próprio ato, mas sim de um vício do qual o mesmo acaba por enfermar na sua génese em razão do vício originário de inconstitucionalidade de que padece a norma que é sua condição de validade.

É o controlo previsto no artigo 204.º da C.R.P., segundo o qual os tribunais podem desaplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.

E é um controlo que o presente Tribunal Arbitral, por constituir uma das categorias de tribunais à luz do regime jurídico-constitucional vigente (ex vi o n.º 2 do artigo 209.º da C.R.P.), pode levar a cabo, no âmbito do controlo de legalidade dos atos tributários supra mencionados.

Assim, caso o Tribunal Arbitral venha a decidir pela ilegalidade e a anulação do indeferimento do recurso hierárquico, e bem assim o indeferimento da precedente reclamação graciosa, na medida em que recusaram a anulação da parte ilegal da autoliquidação de IRC (e derramas) do exercício de 2015, não pode a AT deixar de se conformar com os efeitos da decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 24.º do RJAT – sem prejuízo de um eventual recurso para o Tribunal Constitucional, relativo à questão incidental da inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 280.º da C.R.P..

Eis o que assegura que a Requerida é parte legítima no processo – pelo que haverá de ser julgada improcedente a exceção da sua ilegitimidade passiva.

 

III. Questão da competência material por se tratar de uma contribuição financeira e não de um imposto

Invoca ainda a Requerida a incompetência material do tribunal fundamentada na não vinculação formal da AT aos tribunais arbitrais constituídos para a apreciação de quaisquer questões que não estejam relacionadas com “impostos”.

Por outras palavras, entende a AT que a pretensão da Requerente visa não a apreciação da legalidade do acto de liquidação, mas a apreciação da legalidade (e inconstitucionalidade) e desaplicação de normas que se reportam ao regime jurídico específico da CESE.

A esta luz, entende a Requerida AT que estamos perante um litígio atinente aos gastos suportados por um sujeito passivo da contribuição extraordinária sobre o setor energético com essa mesma contribuição, a qual tem natureza de contribuição financeira, sendo que para dirimi-lo terá o tribunal arbitral que subsumir a factualidade apurada nos normativos legais respeitantes ao regime jurídico da CESE (em concreto, terá que atender aos artigos 1.º, 2.º, 5.º e 11.º do RCESE) e não apenas à cláusula geral que se limita a enunciar o elenco de encargos não dedutíveis para efeitos fiscais, constante do artigo artigo 23.º-A do Código do IRC.

Consequentemente, entende a Requerida AT, de harmonia com os artigos conjugados 4.º, n.º 1, do RJAT e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, que o Tribunal é materialmente incompetente para apreciar o mérito da presente causa, nos termos do disposto no artigo 576.º, n.ºs 1 e 2 do CPC ex vi artigo 2.º alínea e) do CPPT e artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

Vejamos.

Em outras palavras, o que a AT defende é que, na eventualidade de o tribunal concluir que o tributo em apreço é juridicamente uma “contribuição” e não um “imposto”, uma tal decisão não será oponível à AT, na medida em que esta, por efeito do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, apenas se encontra vinculada à “jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º [do RJAT]”.

Todavia, uma tal interpretação não se nos afigura juridicamente correta.

Também aqui socorremo-nos do afirmado no acórdão do CAAD n.º 312/2015-T uma vez que, em primeiro lugar, “o teor literal e a articulação sistemática dos preceitos não permitem um esclarecimento direto e evidente do sentido das normas. Em segundo lugar, a convocação dos elementos teleológico e racional da interpretação jurídica também não apontam para a razoabilidade de uma tal restrição, mas apenas para a “limitação do âmbito de vinculação da AT através da titularidade dos poderes para administrar os tributos”, sendo esse, de resto, o limite lógico da vinculação – não abrangendo a restrição assim os relacionados com “contribuições” também por ela liquidadas.

O facto é que o procedimento de liquidação e cobrança dessas “contribuições” em nada se distingue, na sua natureza e estrutura, do dos “impostos” (a AT atua aí como se de impostos se tratasse), donde não há razão válida para excluir a vinculação da AT, nesses casos, à arbitrabilidade.”

Considera-se assim este Tribunal competente para dirimir o assunto.

 

IV. Matéria de facto

IV.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

a)            A requerente é uma sociedade comercial anónima que tem como objeto social a “importação, distribuição e comercialização de gás de petróleo liquefeito, bem como a prossecução de qualquer atividade industrial ou comercial, relacionada, direta ou indiretamente, com aquelas atividades e a prestação de qualquer serviço relacionado com o desenvolvimento das atividades mencionadas”;

b)           Da declaração modelo 27, da CESE, datada do dia 9 de outubro de 2015, com referência ao ano de 2015, resulta que o total de contribuição extraordinária a pagar pela Requerente é de € 957.417,41.

c)            Com data de pedido de 9 de outubro de 2015 e com data de transação de 27 de outubro de 2015, a Requerente deu ordem de pagamento de € 957.417,41, tendo como referência “Contribuição extraordinária”.

d)           No dia 30 de maio de 2016, a requerente submeteu a sua declaração Modelo 22 de IRC relativa ao período de tributação de 2015, identificado com o n.º ..., tendo apurado um lucro tributável de € 20.004.849,82, e do qual resultou imposto a pagar no montante de € 3.556.130,76.

e)           O ajustamento ao resultado líquido apurado em 2015 em resultado da não dedutibilidade do gasto com a CESE correspondeu ao acréscimo, no campo 785 do quadro 07, do Modelo 22 de IRC, do montante de € 957.417,41.

f)            Esse ajustamento originou um aumento da importância paga a título de IRC e derramas no montante de € 263.289,79, conforme quadro discriminativo infra:

 

g)            A requerente procedeu ao pagamento do montante de imposto (IRC e derramas) do período de tributação de 2015 — IRC n.º 2016...—, no montante de € 3.556.130,76.

h)           A requerente contestou a autoliquidação de IRC (e derramas) respeitante ao período de tributação de 2015, primeiro através da apresentação de uma reclamação graciosa contra aquele mesmo ato e, posteriormente, através da interposição de recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa previamente apresentada, que teve idêntico destino.

 

IV.2. Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a apreciação da causa que não se tenham provado.

 

IV.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT, e art. 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

35. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (vd. art. 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

36. Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do disposto no art. 110.º, n.º 7, do CPPT, as provas documentais apresentadas, bem como as posição assumidas pelas partes nas suas exposições, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

V. Matéria de direito

A questão controvertida relaciona-se com a não dedutibilidade fiscal do gasto suportado com a contribuição extraordinária sobre o setor energético (CESE).

Constitui objeto da presente ação saber se o ato de liquidação impugnado é ou não ilegal por ser inconstitucional o disposto no artigo 23.º-A, n.º 1, alínea q) do CIRC e no artigo 12.º do regime da CESE os quais determinam que esta não é considerada um gasto dedutível para efeitos de aplicação do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas,

Entende a Requerente que a solução prevista na alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A, do Código do IRC, ao não permitir a dedução de gastos com a CESE, é lesiva dos princípios da tributação pelo lucro real, da capacidade contributiva, da igualdade e da proporcionalidade, previstos respetivamente nos artigos 104.º, n.º 2, 13.º e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Consequentemente, considera ainda a Requerente, a contribuição extraordinária sobre o setor energético (CESE) devia ser dedutível, à luz do disposto no artigo 23.º do CIRC.

Vejamos.

O n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC dispõe que “para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”, neles se incluindo (cf., alínea f), n.º 2 do art.º 23.º) os gastos «De natureza fiscal e parafiscal».

Está assim consagrado o princípio da dedutibilidade dos custos que concorrem para o exercício à actividade empresarial social ou que se inscrevem na esfera de interesses do objecto social prosseguido.

Porém, é igualmente certo que a regra geral da dedutibilidade dos gastos e perdas comporta diversas excepções ditadas por uma multiplicidade de razões que o legislador, dentro da sua margem de liberdade de conformação normativa, considerou atendíveis.

Assim, o artigo 23.º-A do CIRC, aditado pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro – correspondente ao antigo artigo 42.º do CIRC - veio elencar, através de enumeração taxativa, um conjunto de encargos que, tendo sido efectiva e comprovadamente suportados pelas empresas, não podem ser levados em conta para efeito do cálculo do lucro tributável.

A este propósito, como observava SALDANHA SANCHES (cfr. Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, 2007, Coimbra Editora, págs. 393-394), os diversos dispositivos do (anterior) artigo 42.º do CIRC – os quais são “normas anti-sistémicas que se podem manter apenas com base nas razões especiais que as legitimam” -, prevendo a não dedutibilidade de encargos para efeitos fiscais, poderiam ser enquadrados, em tese geral, em três grupos:

(a)          Normas de mera técnica de quantificação do imposto, como sucede quando se proíbe a dedução da coleta do IRC;

(b)          Normas que procuram evitar a dedução de custos que correspondem a actos que são reprováveis à luz do ordenamento jurídico, como é o caso das multas, coimas e despesas ilícitas;

(c)          Normas que visam excluir os custos que se inserem na zona de confluência entre esfera privada dos sócios e esfera empresarial, tais como despesas de ajudas de custo e compensação pela deslocação do trabalhador;

Entre as excepções à regra geral de dedutibilidade dos gastos e perdas conta-se a prevista na alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC que mais não é do que a transposição, para este Código, pelo artigo 3.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, do disposto no artigo 12.º do Regime da CESE que determina o seguinte: “A contribuição extraordinária sobre o setor energético não é considerada um gasto dedutível para efeitos de aplicação do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.”

A apreciação deste último regime – da CESE – é, portanto, relevante porquanto permite compreender o sentido teleológico das duas normas – a alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC e o artigo 12.º do Regime da CESE.

Tal observação ocorre porque, como observa SALDANHA SANCHES, a legitimação específica para instituir excepções à regra da dedutibilidade dos custos comprovados e necessários para o desenvolvimento da actividade empresarial terá de ser analisada a partir do elemento teleológico de interpretação que permita ter em conta a valoração e ponderação dos diversos interesses que a norma pretende regular e possam revelar a razão de ser da lei.

É no regime da CESE que encontramos o objecto (cfr. o artigo 1.º, n.º 2); a incidência subjectiva (artigo 2.º) e objectiva (artigo 3.º); a proibição de repercussão (art.º 5.º) e a consignação da receita cobrada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE) (art.º 11.º).

Como assinala a Requerida AT, verifica-se que entre os sujeitos passivos definidos no artigo 2.º do RCESE encontram-se operadores do sector que integram o setor energético nacional, sendo a receita obtida consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE), havendo uma interdição geral de repercussão directa ou indirectamente sobre o tarifário e para efeitos de determinação do respetivo custo de capital e do custo médio das quantidades adquiridas de gás natural contratadas.

Neste contexto, seria incoerente que fosse admitida a aceitação, como gasto dedutível, para a determinação do lucro tributável das importâncias suportadas pelos sujeitos passivos a título da CESE, porquanto, a dedução equivaleria a uma repercussão indirecta da CESE sobre o Estado (e Autarquias, relativamente à derrama municipal), na exacta medida em que a consequente diminuição ao lucro tributável redundaria em redução do IRC (e derramas) liquidado e pago, o que o legislador quis salvaguardar nos artigos 5.º e 12.º do RCESE e porque faria onerar sobre todos os contribuintes esta contribuição que visa financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético (cfr. artigo 1.º, n.º 2 do regime da CESE).

Pode, a este propósito, invocar-se o entendimento constante do acórdão n.º 706/2018-T do CAAD (ainda que, naquele caso, proferido a propósito da contribuição para o sector bancário):

“Em todo este contexto, não pode deixar de reconhecer-se que subsiste uma justificação plausível para a não dedutibilidade do encargo como meio de evitar a redução do impacto financeiro que a medida legislativa pretende alcançar. E não pode ignorar-se que o legislador adoptou idêntico tratamento legislativo em relação à contribuição para o sector energético, que igualmente em vista financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético, e à contribuição sobre a indústria farmacêutica, que tem por objetivo garantir sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde na vertente dos gastos com medicamentos.”

A não dedução da CESE ao lucro tributável representa, por isso, uma opção de política legislativa sobre o financiamento do sector energético através desta contribuição – de forma semelhante à que é aplicável ao sector bancário ou ao sector farmacêutico -, afastando assim que o encargo com a CESE fosse suportado pelos contribuintes através da (eventual) dedutibilidade do correspondente gasto ao lucro tributável do IRC, que o legislador rejeitou.

Feito este percurso cumpre agora apreciar o entendimento da Requerente a propósito das normas em questão – reitere-se, a alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC e o artigo 12.º do Regime da CESE – uma vez que esta considera que tais normas seriam inconstitucionais por violação dos princípios da tributação do lucro real, da capacidade contributiva, da igualdade e proporcionalidade.

Coloca-se, prima facie, a questão de saber se a desconsideração fiscal dos gastos suportados com a CESE não constitui uma lesão desproporcionada do princípio da tributação segundo o lucro real e sobre o princípio espelho da capacidade contributiva.

Este princípio encontra-se consagrado no artigo 104.º, n.º 2 da CRP e dele decorre que a determinação do lucro tributável das empresas deva assentar fundamentalmente na respectiva contabilidade, como forma de dar a conhecer a situação económica das empresas.

A tributação segundo o rendimento real corresponde assim a um quadro tipíco que pode ser sujeito a desvios que se mostrem justificados no plano constitucional devendo, por isso, atender aos princípios de praticabilidade e de operacionalidade do sistema (assim, cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 162/2004).

A este propósito, o Tribunal Constitucional (TC) já abordou, em diversos momentos, a questão de saber se a não dedutibilidade dos gastos constitui uma restrição inaceitável ao direito de ser tributado segundo o lucro real;

Fê-lo, nomeadamente, a propósito da norma do n.º 3 do art.º 42.º (na anterior redacção) do Código do IRC, no Acórdão n.º 85/2010, e da norma do n.º 7 do art.º 23.º do mesmo Código, no Acórdão n.º 753/2014, no qual se procedeu ao recorte, em termos genéricos, do princípio da tributação segundo o lucro real:

“4 - Em matéria de tributação de pessoas coletivas, a Constituição consagrou expressamente o princípio segundo o qual «a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real» (artigo 104.º, n.º 2).

Este princípio reflete o direito do contribuinte de ser tributado sobre os lucros efetivamente verificados, e que são variáveis de ano para ano, e não sobre os lucros normais, isto é, sobre os lucros que a empresa poderia obter operando em condições normais e que poderiam exceder ou ficar aquém dos efetivamente obtidos. Neste sentido, o preceito constitucional constitui uma concretização dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade fiscal.

A tributação segundo o lucro real pressupõe que a determinação do lucro tributável seja efetuada de acordo com a contabilidade da empresa, com base na documentação e comprovação das receitas e dos custos do sujeito passivo, e, por isso, exige um sistema fiável de informação sobre os resultados empresariais. Não sendo possível determinar o rendimento real da empresa através de métodos contabilísticos, a base da tributação terá de ser definida, não através dos lucros efetivamente auferidos, mas dos lucros presumivelmente realizados, assim se compreendendo que a norma constitucional explicite que a tributação incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real (neste sentido, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4.ª edição, Coimbra, pág. 1100).”

Em ambos os casos, o Tribunal começou por admitir que a não dedutibilidade dos gastos para efeitos fiscais, embora sendo susceptível de representar potencialmente uma limitação ao princípio da tributação segundo o lucro real, pode encontrar justificação em diversas ordens de razões,

Assim, o TC, no acórdão n.º 753/2014, entendeu o seguinte:

“E ainda que, em tese geral, o princípio da capacidade contributiva implique que deva ser considerado como tributável apenas o rendimento líquido, com a consequente exclusão de todos os gastos necessários à produção ou obtenção do rendimento, o certo é que não pode deixar de reconhecer-se ao legislador - como admite a doutrina - «uma certa margem de liberdade para limitar a certo montante, ou mesmo excluir, certas deduções específicas, que, embora relativas a despesas necessárias à obtenção do correspondente rendimento, se revelem de difícil apuramento» (Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, p. 521). O ponto é que tais limitações ou exclusões tenham um fundamento racional adequado e se apliquem à generalidade dos rendimentos em causa.”

Deste modo pode extrair-se da jurisprudência do Tribunal Constitucional, que o princípio da tributação pelo lucro real é compaginável com uma certa margem de liberdade do legislador que introduza alguns “desvios” à regra geral de dedutibilidade dos gastos suportados no âmbito da actividade empresarial, desde que as limitações ou exclusões tenham um fundamento racional e que não colida com o princípio da igualdade.

Neste contexto o TC, no acórdão n.º 7/2019, referiu-se justamente à intenção do legislador de limitar os efeitos da CESE aos operadores do sector eléctrico e do gás natural:

“No caso, ao lançar esta contribuição, o legislador definiu uma base de incidência subjetiva suficientemente estreita, com a preocupação de delimitar, com a certeza possível, os sujeitos passivos que virão a beneficiar de presumida prestação, em troca da sujeição a este tributo. Deliberadamente, afastou a solução de fazer repercutir a responsabilidade desta contraprestação em toda a comunidade, que, se assim não fosse, custearia, através dos impostos, prestações públicas de que a sociedade, no seu todo, não seria causadora ou beneficiária. Concebido como encargo a suportar por estes operadores económicos, a consagração deste tributo é, desde logo, acompanhada da proibição da sua repercussão nos consumidores, por via tarifária (artigo 5.º do Regime jurídico da CESE).”

Consequentemente, pode afirmar-se que a solução normativa de não dedutibilidade da CESE constitui uma decorrência natural da sua configuração como um tributo atendendo a que:

(i)           Tem um âmbito de incidência delimitado a um especial conjunto de sujeitos passivos – operadores económicos do sector eléctrico e do gás natural;

(ii)          A receita é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE), i.e., não reverte para o financiamento das despesas públicas gerais do Estado, mas, antes, para o financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, e de medidas relacionadas com a eficiência energética, de que o setor económico beneficiará;

(iii)         Foi assegurado que os seus efeitos não se repercutem no resto da economia, ou seja, “não a impondo à generalidade dos contribuintes, e procurando a acomodação da contribuição ao custo/benefício presumidos” (cfr., neste sentido, o acórdão do TC n.º 7/2019).

Pode então afirmar-se que a interpretação da AT não afronta o princípio segundo o qual a tributação deve incidir sobre o rendimento real, porquanto tal princípio, consagrado no n.º 2, do art. 104.º da CRP, é o regime regra mas admite exceções, quais sejam, entre muitas outras, as limitações à dedutibilidade dos encargos para efeitos fiscais.

Analisemos agora o disposto na alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC e o artigo 12.º do Regime da CESE à luz dos princípios da capacidade contributiva, da igualdade e da proporcionalidade.

É sabido que o princípio da capacidade contributiva não carece dum específico e directo preceito constitucional repousando o fundamento deste no princípio da igualdade articulado com os demais princípios e preceitos da respectiva “constituição fiscal” e, em especial, aqueles que decorrem já dos princípios estruturantes do sistema fiscal que constam dos artigos 103.º e 104.º da Constituição (assim, cfr. acórdão do CAAD n.º 706/2018 – P e CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 5.ª edição, Coimbra, 2009, p. 152).

O n.º 1 do artigo 13.º da CRP consagra a observância de uma igualdade material, que não meramente formal, devendo tratar-se por “igual o que é igual e desigualmente o que é desigual”.

Assim, como bem observa GOMES CANOTLHO, “Diferentemente da estrutura lógica formal da identidade, a igualdade pressupõe diferenciações. (…) [Por seu turno] existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável.”

A igualdade, para fins fiscais, comporta duas acepções: a primeira, de índole jurídica, está consagrada no artigo 13.º da CRP; a segunda, de carácter económico, tem por base a capacidade contributiva dos sujeitos passivos.

Em termos económicos, a igualdade assenta na capacidade contributiva, exigindo que idênticas capacidades contributivas suportem cargas fiscais idênticas e adoptando-se (especialmente na tributação directa das pessoas singulares) taxas progressivas.

De acordo com este princípio, os tributos devem ser adequados às possibilidades económicas e financeiras do sujeito passivo, respeitando-se a uniformidade, conseguida através da tributação de modo igual para os rendimentos iguais (igualdade horizontal) e de modo diferente para rendimentos diferentes (igualdade vertical).

A este propósito, no acórdão n.º 139/2016, o TC pronuncia-se sobre o princípio da igualdade, nos seguintes termos:

“A ponderação acerca do princípio da igualdade constitui, sem surpresa, um momento recorrente na jurisprudência do Tribunal, sendo inúmeras as decisões que contribuem para o recorte da figura. No Acórdão n.º 68/97, por exemplo, salientam-se as dimensões em que se desdobra o princípio:

"[...]

[A] proibição do arbítrio, que torna inadmissível não só a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, apreciada esta de acordo com critérios objetivos de relevo constitucional, como também o tratamento idêntico de situações manifestamente desiguais; a proibição de discriminação, que impede quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos, baseadas em categorias meramente subjetivas ou em razão dessas categorias; a obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127; entre tantos outros, o Acórdão n.º 523/95).

Consistindo a igualdade em tratar por igual o que é essencialmente igual e diferentemente o que essencialmente for diferente, não proíbe se estabeleçam distinções a não ser que estas sejam arbitrárias ou sem fundamento material bastante. Ou seja, as distinções são só materialmente infundadas quando assentem em motivos que não oferecem caráter objetivo e razoável, ou, por outras palavras, quando a norma em causa não apresenta qualquer fundamento material razoável.

Para que haja violação do princípio constitucional da igualdade, ponderou-se [...] no Acórdão n.º 1007/96 [...] torna-se necessário verificar, preliminarmente, 'a existência de uma concreta e efetiva situação de diferenciação injustificada ou discriminação'.

[...]"

Especificamente sobre o princípio da igualdade no domínio tributário o TC considerou o seguinte, no acórdão n.º 348/97:

"[...] Conforme o Tribunal tem dito, em jurisprudência de tal modo constante que se dispensa agora a enunciação exaustiva dos lugares em que foi enunciada - vejam-se apenas, e a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 232/2003, 442/2007 e 620/2007 [...] - só podem ser censuradas, com fundamento em lesão do princípio da igualdade, as escolhas de regime feitas pelo legislador ordinário naqueles casos em que se prove que delas resultam diferenças de tratamento entre as pessoas que não encontrem justificação em fundamentos razoáveis, percetíveis ou inteligíveis, tendo em conta os fins constitucionais que, com a medida da diferença, se prosseguem.[...]”.

Em síntese, e retomando aqui o vertido no acórdão do CAAD n.º 706/2018-P, o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem excepção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; esta última está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional.

Olhando agora para a CESE à luz do artigo 13.º da CRP, o que este exige é que se estabeleça uma comparação entre as categorias de operadores abrangidos pela norma de incidência constante do artigo 2.º do RCESE e não entre o universo de sujeitos passivos do IRC, pois aquele princípio exige apenas o tratamento igual de situações iguais entre si e um tratamento desigual de situações desiguais.

No caso da CESE, retoma-se o vertido no acórdão do CAAD n.º 312/2015-T no qual se entendeu o seguinte:

“i) os sujeitos passivos da CESE e os operadores económicos dela isentos nos termos do disposto no artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE contribuem ambos, embora em medidas diferentes, para a finalidade principal da CESE – implementação de medidas sociais e ambientais em matéria de eficiência energética; ii) ambos contribuem também, em diferente medida e por diferentes vias, para a finalidade acessória da CESE – redução do défice e da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional – sendo neste caso o contributo imposto às entidades isentas de natureza permanente (para eliminar o défice), e o contributo imposto aos sujeitos passivos da CESE de natureza extraordinária e temporária (redução de uma parte do stock da dívida acumulada).”

Assim, não é possível afirmar-se que a delimitação do âmbito de incidência subjetiva da CESE seja arbitrária ou que dela resulte uma violação do princípio da igual proporcionalidade, pois, tal como resulta do conteúdo deste princípio, os esforços dos contribuintes não têm de ser idênticos, bastando que a diferença entre esses esforços não seja arbitrária ou excessiva.

                Nesse mesmo acórdão concluiu-se da seguinte forma:

“Não é, por isso, possível afirmar que a delimitação do âmbito de incidência subjetiva da CESE seja arbitrária ou que dela resulte uma violação do princípio da igual proporcionalidade, pois, tal como resulta do conteúdo deste princípio, os esforços dos contribuintes não têm de ser idênticos, bastando que a diferença entre esses esforços não seja arbitrária ou excessiva.”

A propósito do critério seguido pelo legislador para delimitar a base de incidência, agora objetiva, da CESE pode afirmar-se, na esteira do acórdão do CAAD n.º 312-2015-T que “(…) não é imediata e diretamente visível uma relação causal entre o valor dos ativos e o contributo destes para as políticas e medidas de eficiência energética, pelo que haverá de concluir-se que se trata apenas de um critério objetivo relacionado com o sujeito passivo do tributo e com a sua capacidade (potencial) económica no contexto do sector em referência e, nessa medida, de capacidade (potencial) de impacto no contexto das políticas de eficiência energética relativamente às quais irão incidir as medidas a adotar.”

Porém, como concluiu aquele Tribunal, “(…) o que cabe ao tribunal neste contexto não é avaliar se o critério escolhido é o mais adequado, mas apenas o de saber se o critério é totalmente desligado da finalidade do tributo – se essa relação é inexistente ou de tal modo ténue que conduza a uma ‘interrupção’ do nexo causal, obstando à sua qualificação como contribuição financeira – ou se a ligação existente é bastante para que se possa ainda estabelecer uma relação de causalidade suficiente. Trata-se, portanto, de um mero juízo de razoabilidade e não de um controlo intenso da proporcionalidade da medida” para, mais adiante, concluir que a taxa (alíquota) aplicável “(…) está muito distante de se poder considerar manifestamente excessivo, desproporcionado ou confiscatório” não havendo, também em conclusão, qualquer violação do direito de propriedade privada.

A esta luz conclui-se que o regime desta contribuição financeira - a CESE - não viola os princípios da capacidade contributiva; da igualdade e da proporcionalidade.

Consequentemente julga-se que o disposto na alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC e o artigo 12.º do Regime da CESE não viola os princípios da tributação pelo rendimento real; da capacidade contributiva; da igualdade e da proporcionalidade.

Assim, e face a todo o exposto, deverá improceder o pedido arbitral, absolvendo-se a Requerida do mesmo.

 

VI. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)            Julgar totalmente improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência,

b)           Manter na ordem jurídica o despacho proferido pela Subdiretora Geral da Área do Imposto sobre o Rendimento, no exercício de competência delegada, no sentido do indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2018..., apresentado devido ao precedente indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018..., que teve por objeto a não dedutibilidade para efeitos fiscais do encargo incorrido com a contribuição extraordinária sobre o sector energético (CESE), o que originou um montante de imposto (IRC e derramas incluídos) liquidado no valor de € 263.289,79;

c)            Manter na ordem jurídica o ato de autoliquidação de IRC relativo ao exercício de 2015 e ora objeto de impugnação

d)           Condenar o Requerente nas custas do processo, abaixo fixadas.

 

V. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em 263.289,79€ (duzentos e sessenta e três mil euros e setenta e nove cêntimos), nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI. Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 4.896€ (quatro mil oitocentos e noventa e seis euros), a pagar pelo Requerente, conformemente ao disposto nos art.s 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e art. 4.º, n.º 5, do RCPAT.

 

             Notifique-se.

                               Lisboa, 30 de setembro de 2019

 

O Árbitro Presidente

(José Poças Falcão)

 

O Árbitro Vogal

(Nuno Cunha Rodrigues)

 

O Árbitro Vogal

(Ricardo Marques Candeias)

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.