Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 126/2020-T
Data da decisão: 2021-02-09  IRC  
Valor do pedido: € 130.930,59
Tema: IRC - artigo 14º, nº 3, alínea c) do CIRC. Juros Compensatórios
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Sumário:

 

I.             Os juros compensatórios devidos nos termos da referida disposição [o artigo 35.º, n.º 1, da LGT] constituem uma reparação de natureza civil que se destina a indemnizar a Administração Tributária pela perda de disponibilidade de uma quantia que não foi liquidada atempadamente;

II.            Tratando-se de uma indemnização de natureza civil, ela não pode ser aplicada de forma automática sendo apenas exigível se se verificar um nexo de causalidade entre a atuação do sujeito passivo e o atraso na liquidação e essa atuação possa ser censurável a título de dolo ou negligência.

 

Decisão Arbitral (consultar versão completa no PDF)

 

                Fernanda Maças (árbitro-presidente), Prof. Doutora Maria do Rosário Anjos e Dr. Marcolino Pisão Pedreiro (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 05-08-2020, acordam no seguinte:

             

                1. Relatório

 

A..., S.G.P.S., S.E., pessoa coletiva n.º..., com sede no ..., n.º..., ...-... Lisboa (doravante abreviadamente designada por “REQUERENTE”), apresentou pedido de pronúncia arbitral ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito do Recurso Hierárquico n.º ...2019..., em que se discute a legalidade dos atos de liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) e de juros compensatórios a seguir identificados:

(i)           Demonstração de liquidação de retenções na fonte de IR n.º 2018..., que integra: (a) a nota de apuramento de IRC (retenções na fonte) n.º 2018...; e (b) a liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., ambas relativas ao exercício de 2014;

(ii)          Demonstração de acerto de contas n.º 2018..., igualmente relativa ao exercício de 2014, que complementa os atos anteriores,

Tudo conforme consta dos documentos nºs 1 a 3 juntos em anexo ao pedido arbitral.

O pedido arbitral tem como objeto a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários constantes daqueles documentos, todos praticados pela Senhora DIRETORA-GERAL DA AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA e, bem assim, da presumida decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 26-02-2020 e automaticamente notificado à AT em 27-02-2020.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram  devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 05-08-2020.

Em 06-08-2020 a AT foi notificada para apresentar Resposta, nos termos previstos no artigo 17º do RJAT.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em 28-09-2020, na qual defendeu a improcedência da do pedido de pronúncia arbitral.

Em 01-10-2020 foi proferido despacho arbitral, devidamente notificado ao sujeito passivo, para este vir exercer o contraditório quanto à questão prévia suscitada pela Requerida, relativa à da revogação parcial da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, a qual se pronunciou por requerimento junto aos autos em 13-10-2020.

Nesta sede veio a AT alegar, como questão prévia que: “

E como referido, já se procedeu à concretização da revogação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, através dos reembolsos n.º 2019... e 2020 ... (cf. documento n.º 3 junto).

Nestes termos, atenta a circunscrição do objeto dos presentes autos, o presente Tribunal apenas pode relevar e, consequentemente condenar a AT, na parte que não foi objeto de deferimento na decisão de reclamação graciosa, por força da revogação operada. Pois é certo que, atento o disposto no artigo 100.º da LGT a administração tributária apenas está necessariamente obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.

Com efeito, a condenação da AT ao reembolso das quantias indevidamente pagas e ao pagamento dos respetivos juros indemnizatórios não pode exceder, na instância arbitral em caso de eventual procedência, o montante efetivamente pago pela Requerente que ainda não deferido pela Requerida na instância graciosa.

Pelo que, sob pena de vício de excesso de pronúncia, a condenação no presente processo bem como na fixação do valor do processo pelo Tribunal tem necessariamente de ter por referência o objeto mediato e imediato do pedido de pronúncia arbitral, o qual como se viu comporta a revogação parcial da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e os consequentes atos de liquidação emitidos.”

Na resposta à questão suscitada veio a Requerente concordar com a premissa invocada pela AT e especificar que os presentes autos devem prosseguir para conhecimento da ilegalidade dos atos impugnados quanto à parte subsistente, após a referida revogação parcial. Em síntese, veio a Requerente circunscrever o objeto da lide nos termos seguintes:

“ (…)

 

Nesta conformidade, o objeto do pedido arbitral ficou, assim, delimitado ao conhecimento da ilegalidade dos atos impugnados, na parte subsistente, após a mencionada revogação parcial operada pela AT.

Em 16-10-2020 foi proferido despacho arbitral com o seguinte conteúdo:

“1. Não havendo lugar a produção de prova constituenda, por um lado, e tendo sido exercido contraditório em relação à questão prévia suscitada, por escrito, por outro, o Tribunal dispensa a realização da reunião prevista no art. 18.º do RJAT, o que faz ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo, e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste. Vd. arts. 19.º, n.º 2 e 29.º, n.º 2 do RJAT.

2. Notifiquem-se ambas as partes para produzirem alegações escritas, no prazo de quinze dias a partir da notificação do presente despacho, sendo que se concede à Requerida a faculdade de, caso assim o entenda, juntar as suas alegações com carácter sucessivo relativamente às produzidas pelo sujeito passivo.

3. Designa-se o dia 5 de Fevereiro de 2021 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral.

 

4. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em formato WORD.”

As Partes apresentaram alegações, respetivamente, em 04-11-2020 a Requerente e em 19-11-2020 a Requerida.

Em 20-11-2020 veio a Requerida juntar aos autos a Decisão arbitral proferida no processo arbitral nº 125/2020 T. A este requerimento veio a Requerente responder em 2-12-2020.

Nestes termos, constata-se que o Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

No que se refere ao valor da causa, como vimos, a Requerida veio, na contestação, a título de questão prévia, dizer que no âmbito do recurso hierárquico foi determinada a revogação parcial do indeferimento da reclamação graciosa, alegando que o Tribunal apenas pode relevar e, consequentemente condenar a Requerida, a parte não objeto de deferimento. Mais defende que tal revogação parcial tem necessariamente de ser tida em conta na fixação do valor da causa.

Por sua vez, em exercício do contraditório, veio a Requerente defender que apenas não limitou quantitativamente o seu pedido porque, aquando da submissão do pedido de pronúncia arbitral, a Administração Tributária ainda não tinha concretizado totalmente as suas decisões de anulação parcial (essa concretização só terminou em abril de 2020) e não tinha proferido uma decisão final no âmbito do recurso hierárquico apresentado.  A Requerente tinha fixado o valor da causa no pedido arbitral em €130.903,59 e concretizando-se a anulação parcial no valor de €24.07,90, os autos devem prosseguir para a declaração da ilegalidade e consequente anulação da parte remanescente no valor de €106.853,69. 

Cumpre apreciar.

Na determinação do valor da causa deve atender-se ao momento em que a ação é proposta, exceto quando haja reconvenção ou intervenção principal, como decorre do disposto no artigo 299.º, n.º 1, do CPC (aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Como flui do estatuído no artigo 259.º, n.º 1, do CPC (aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT), a instância inicia-se pela propositura da ação e esta considera-se proposta, intentada ou pendente logo que seja recebida na secretaria a respetiva petição inicial, ou seja, no caso do processo arbitral tributário, logo que seja recebida na secretaria do CAAD o pedido de constituição do Tribunal Arbitral.

Destarte, como afirma Jorge Lopes de Sousa (Guia da Arbitragem Tributária, revisto e atualizado, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, p. 153), “são irrelevantes as modificações de valor que possam advir da revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada ou de desistência ou redução de pedidos.

Da mesma forma não implicarão alteração ao valor da causa, eventuais ampliações do pedido primitivo que se considerem admissíveis, por serem, desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo (artigo 265.º, n.º 2, do CPC), como, por exemplo, aumento derivado de juros indemnizatórios ou de indemnização por garantia indevida.”

Como vimos, no caso concreto, foi indicado no pedido de pronúncia arbitral o montante de € 130.930,59 como sendo o valor da utilidade económica do pedido, termos em que o valor da causa é fixado em € 130.930,59, sendo indeferida a pretensão da Requerida.

O processo não enferma de nulidades.

Cumpre apreciar e decidir.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

1.            A Requerente é uma sociedade anónima europeia, que se dedica à gestão de participações sociais;

 

2.            Até 9 de dezembro de 2013, a sociedade de direito holandês B..., B.V. (adiante abreviadamente designada por “B...”) detinha – através da sua subsidiária C..., S.G.P.S., S.A. (doravante simplesmente designada por “C...”) – uma participação indireta de 38,67% no capital social da Requerente;

3.            A estrutura relativa a esta participação indireta era, portanto, a que melhor se compreende através do seguinte diagrama:

 

4.            Naquele período, a B... podia receber indiretamente os lucros e as reservas da Requerente, sem sofrer retenções na fonte de IRC, uma vez que, quer as distribuições realizadas pela Requerente em benefício da C..., quer as distribuições realizadas pela C... em benefício da B..., se encontravam inequivocamente isentas de imposto e dispensadas de retenção, nos termos previstos no artigo 51.º, n.º 1, e 14.º, n.º 3, do Código do IRC, na redação então em vigor;

5.            No dia 9 de dezembro de 2013, foi deliberada uma redução do capital social da C... no valor de € 1.859.570,00 (um milhão oitocentos e cinquenta e nove mil quinhentos e setenta euros);

6.            Uma parte da contrapartida pela redução do valor das ações da C... foi feita mediante a transmissão para a B... (acionista única da C...) de uma parte dos títulos representativos do capital social da Requerente, que até aí eram detidos diretamente pela  C... (e indiretamente pela B...) (cf. cit. DOC. 5).

7.            Em resultado desta operação, a B... manteve a sua participação global de 38,67% no capital social da Requerente, mas passou a deter essa participação global cumulativamente de forma direta (em 33,46%) e de forma indireta (em 5,21%), nos termos que melhor se compreendem através do seguinte diagrama:

 

8.            Os títulos representativos dos mencionados 38,67% do capital social da REQUERENTE, que antes eram (todos) indiretamente detidos pela B..., passaram a estar divididos em dois subgrupos: (i) o primeiro, representativo de 33,46%, passou a ser detido diretamente pela B...; e (ii) o segundo, representativo de 5,21%, continuou a ser detido diretamente pela C... e indiretamente pela B... .

9.            No dia 14 de maio de 2014, a Requerente colocou à disposição da B... lucros no montante de € 18.157.570,00 (dezoito milhões cento e cinquenta e sete mil quinhentos e setenta euros);

10.          A Requerente não fez qualquer retenção de IRC sobre o valor dos dividendos colocados à disposição da B...;

11.          Em outubro de 2018, a REQUERENTE foi notificada Relatório de Inspeção Tributária emitido pela UNIDADE DOS GRANDES CONTRIBUINTES ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2018..., referente ao exercício de 2014;

12.          No RIT relativo à inspeção efetuada encontram-se explicitados o motivo, âmbito, incidência temporal da ação de fiscalização e fundamentos para a decisão final, assentes do seguinte modo:

 

“(…)

 

13.          Quanto aos factos e fundamentos das correções meramente aritméticas, consta do RIT o seguinte:

“(…) 

(…)

14.          Quanto aos juros compensatórios, a motivação de facto e de direito constante do RIT é a seguinte:

“(…)

(…)

15.         No dia 5 de novembro de 2018, a Administração tributária notificou a Requerente da demonstração de liquidação de retenções na fonte de IR n.º 2018..., que integra as seguintes liquidações oficiosas:

a)            A nota de apuramento de retenções na fonte n.º 2018..., na qual é apurado o valor de € 1.815.716,70 (um milhão oitocentos e quinze mil setecentos e dezasseis euros e setenta cêntimos) a título de imposto relativo ao mês de maio de 2014;

b)           A liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., na qual é apurado o montante de € 68.649,01 (sessenta e oito mil seiscentos e quarenta e nove euros e um cêntimo) a título de juros compensatórios devidos pela indisponibilidade do imposto entre 21 de junho de 2014 e 31 de maio de 2015.

 

16.          Em dezembro de 2018, a REQUERENTE foi ainda notificada da demonstração de acerto de contas n.º 2018..., na qual a Administração tributária apurou um novo saldo a pagar, no montante de € 62.281,57 (sessenta e dois mil duzentos e oitenta e um euros e cinquenta e sete cêntimos);

 

17.          Em resposta a um pedido da REQUERENTE, a Administração tributária certificou, ao abrigo do disposto no artigo 37.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, que:

a)            “I) A Demonstração de Liquidação de Retenções na Fonte de IR n.º 2018 ... tem por fundamento a correção de juros compensatórios no montante de € 130.930,59 efetuada em sede de Inspeção Tributária ao período de 2014 [OI2018...] cujo relatório foi notificado à A... SGPS em 25.10.2018 [RF...PT] e que originou a Liquidação de Juros Compensatórios n.º 2018... .

b)           A Nota de Apuramento de Retenções na Fonte n.º 2018..., que também integra a referida demonstração apenas indica o valor do imposto que deveria ter sido retido pelo sujeito passivo no âmbito da substituição tributária cuja entrega foi retardada (€ 1.815.716,60), o qual, não sendo objeto de cobrança, serve de base ao cálculo dos juros compensatórios.

c)            O montante de € 62.281,57 cobrado na Demonstração de Acerto de Contas n.º 2018... corresponde à diferença entre a quantia de juros compensatórios referida em I) e o valor apurado na Liquidação de Juros Compensatórios n.º 2018... (€ 68.649,01)”;

 

18.          No dia 1 de março de 2019, a REQUERENTE apresentou uma Reclamação Graciosa contra aqueles atos tributários, a qual veio a ser indeferida;

 

19.          Deste indeferimento foi apresentado recurso hierárquico foi deduzido, no dia 6 de novembro de 2019, o Recurso Hierárquico n.º ..2019...,

 

20.          No dia 18 de novembro de 2019, a REQUERENTE foi notificada de que o órgão decisor da Reclamação Graciosa recorrida: (i) revogou parcialmente os atos tributários contestados ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 66.º do Código do de Procedimento e de Processo Tributário; e (ii) remeteu o Recurso Hierárquico para a DIREÇÃO DE SERVIÇOS DO IRC, a fim de ser analisado na parte que ainda não foi deferida, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 66.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e no artigo 195.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo;

 

21.          A Requerente não foi notificada da demonstração de acerto de contas que reflete a revogação parcial dos atos, nem foi reembolsada do valor que a Administração tributária reconhece ter sido paga a mais.

 

22.          Em 26-02-2020, a Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo, com base na presunção de indeferimento tácito do Recurso Hierárquico n.º ...2019... .

 

                2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

2.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

A matéria considerada como provada tem suporte documental junto aos autos pelo Requerente e no Processo Administrativo (PA) junto aos autos pela Requerida, do qual faz parte o Relatório de Inspeção Tributária (RIT) produzido no âmbito da ação inspetiva.

De salientar que, relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).  Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, nº 7 do CPPT, a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

No caso dos presentes autos os factos assentes foram destacados pela sua relevância para a decisão da matéria de direito em apreciação.

 

                3. Matéria de direito

 

§1.º Delimitação do objeto do processo

A Requerente, na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito do Recurso Hierárquico n.º ...2019..., questiona a legalidade dos atos de liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) e de juros compensatórios constantes:

(i)           Da demonstração de liquidação de retenções na fonte de IR n.º 2018..., que integra: (a) a nota de apuramento de IRC (retenções na fonte) n.º 2018...; e (b) a liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., ambas relativas ao exercício de 2014 e, bem assim,

(ii)          Da demonstração de acerto de contas n.º 2018..., igualmente relativa ao exercício de 2014, que complementa os atos anteriores.

 

No caso em apreço e, em síntese, os serviços de inspeção tributária consideraram que a participação direta na Requerente por parte da B... BV apenas era detida desde 08.04.2014 (data do registo das ações na Holanda), concluindo, assim, que na situação em causa não se podia aplicar a isenção de IRC consignada no n.º 3 do art.º 14.º do CIRC, havendo lugar à tributação por retenção na fonte a título definitivo dos dividendos pagos, no montante de €18.157.167,04, nos termos da alínea e) do n.º 1 e d alínea b) do n.º 3, ambos do artigo 94.º do CIRC.

Mais foi considerado que, embora esteja prevista uma taxa de 25% no n.º 4 do artigo 87.º, por remissão do n.º 5 do artigo 94.º do CIRC, no artigo 10.º, n.º 2 da CEDT celebrado entre Portugal e o Reino dos Países Baixos estabelece-se uma taxa máxima de 10%, razão pela qual cabia, então, à Requerente, na qualidade de substituto tributário, à data do facto tributário, efetuar uma dedução de € 1.815.716,70 ao montante colocado à disposição da B...BV, a título de retenção na fonte, como exigido nos termos do n.º 5 do artigo 98.º e no n.º 6 do artigo 94.º, ambos do CIRC, não o tendo feito.

De qualquer modo, atento o tempo entretanto decorrido, mais consideraram os serviços de inspeção tributária que aquando do início do procedimento inspetivo relativo ao período de 2014, em 17.05.2018, já se encontrava cumprido o requisito temporal de detenção da participação, pelo que não se procedeu à correção do IRC que deveria ter sido deduzido e entregue nos termos da lei pela A... SGPS, no montante de €1.815.716,70.

Sublinham os serviços que, no entanto, se impõe a liquidação de juros compensatórios desde 21.06.2014 (dia seguinte ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega do imposto ao Estado) até ao dia 08.04.2016; (data em que se completa o período de 24 meses de detenção da participação exigida na alínea c) do n.º 3 do artigo 14.º do CIRC), devidos nos termos do n.º 1 e da alínea a) do n.º 3 do artigo 102.º do CIRC, conjugadas com os n.ºs 1, 3 e 10 do artigo 35.º da LGT, na importância de € 130.930,59.

Em 05.11.2018 a Requerente foi notificada da demonstração da liquidação de retenções na fonte de IR n.º 2018... que integra:

-              A nota de apuramento de retenções na fonte n.º 2018... na qual é apurado o valor de € 1.815.716,70, a título de imposto relativo ao mês de maio de 2014; e

-              A liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., na qual é apurado o montante de € 68.649,01, a título de juros compensatórios devidos pela indisponibilidade do imposto entre 21.06.2014 e 31.05.2015.

Em dezembro de 2018, a Requerente foi notificada da demonstração de acerto de contas n.º 2018..., no qual a AT apurou um saldo a pagar no montante de € 62.281,57, tendo a Requerente procedido ao pagamento integral dos juros compensatórios liquidados pela AT.

A Requerente deduziu reclamação graciosa contra os atos tributários acima identificados, alegando mais uma vez que a situação em questão se encontrava dispensada de qualquer retenção na fonte, tal como até aí, dado que a alteração da estrutura societária não coloca em causa essa mesma dispensa, pelo que não seriam devidos quaisquer juros compensatórios nos termos do artigo 43.º da LGT, e, mesmo que o fossem, nunca seriam devidos por aquele período de tempo.

Como ficou dito, a reclamação veio a ser indeferida, alegando-se, no essencial, não merecer provimento a pretensão da Reclamante cabendo, portanto, o pagamento dos juros compensatórios apurados pelos Serviços de Inspeção Tributária e a partir de 8 de abril de 2014.

Inconformada, a Requerente interpôs recurso hierárquico, no âmbito do qual a foi notificada da revogação parcial da decisão de indeferimento da reclamação graciosa. Para tanto consideraram os serviços tributários, entre o mais, que “o início do prazo de contagem, que corresponde ao início da permanência da participação relevante, deve ser não o momento do registo desta, da mera publicidade, ou um outro qualquer, mas sim o momento do facto constitutivo do direito, o qual, de acordo com os elementos dos autos, é o dia em que ocorreu a redução do capital e a consequente transmissão da participação como contrapartida ao sócio. (…) o dies ad quo é, portanto, o dia 09 de dezembro de 2013, importando, assim, que o prazo mínimo de permanência relevante se complete no dia 08 de dezembro de 2015, com todas as consequências legais.”

 Daqui decorre que “sobre as entregas efetuadas após este momento não há lugar a retenção e, como tal, também não há lugar a juros compensatórios. Por outro lado, relativamente às entregas feitas antes de decorrido esse período, não obstante não ter sido liquidado imposto em razão do prazo de 24 meses ter ficado posteriormente preenchido, o certo é que haverá lugar aos referidos juros pelo período contado desde o momento e que o imposto deveria ter sido entregue, até ao referido dia 08 de dezembro de 2015, momento este em que se completou o referido prazo de permanência”.

Com base nesta fundamentação foi promovida a revogação parcial dos juros em questão.

Notificada a Requerente desta revogação parcial, na sequência da notificação da contestação, veio a mesma aceitar a anulação parcial no montante de €24. 076,90 dos atos contestados que tinham originariamente o valor global de €130.930,59, devendo os autos prosseguir para declaração da ilegalidade e consequente anulação da parte remanescente, no montante de €106.853,69.

 

§2.º Quanto à ilegalidade da liquidação de juros compensatórios

 

Refere o artigo 102.º, n.º1 do CIRC que “Sempre que, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega do imposto a pagar antecipadamente ou a reter no âmbito da substituição tributária ou obtido reembolso indevido, acrescem ao montante do imposto juros compensatórios à taxa e nos termos previstos no artigo 35.º da Lei Geral Tributária” .

Por sua vez, o n.º 1 do artigo 35.º da Lei Geral Tributária, estabelece, em termos muito próximos, que “São devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.

Da conjugação destes preceitos resulta, segundo jurisprudência e doutrina uniformes que os juros compensatórios não são um mero adicional ao imposto, a liquidar automaticamente sempre que houver um retardamento na entrega da prestação tributária.

Como bem refere a Requerente, para que haja lugar a uma liquidação válida de juros compensatórios é preciso que esteja demonstrado que aquele retardamento (o pressuposto objetivo dos juros) se deveu a um facto imputável ao sujeito passivo, ou seja, que este teve culpa no atraso (o pressuposto subjetivo dos juros).

Nas alegações, a Requerente reitera, entre o mais, que não está verificada (nem muito menos demonstrada) a culpa da REQUERENTE na falta de retenção e entrega do imposto, alegando que falta desde logo aos juros compensatórios o seu pressuposto subjetivo, ao arrepio da jurisprudência pacífica.

A Requerente aponta a ser favor vasta jurisprudência (Neste sentido podem ver-se os seguintes acórdãos do STA: de 8-7-92, proferido no recurso nº 12147; de 28-6-95, proferido no recurso nº 19014; de 20-3-96, proferido no recurso nº 20042; de 2-10-96, proferido no recurso nº 20605; de 18-2-98, proferido no recurso nº 22325; de 3-10-2001, proferido no recurso nº 25034; de 16-02-2005, proferido no recurso nº 1006/04; de 12-07-2005 proferido no recurso nº 12649 e de 19-11-2008, proferido no recurso nº 325/08.) que a responsabilidade por juros compensatórios tem a natureza de uma reparação civil e que, por isso, depende do nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a atuação do contribuinte e da possibilidade de formular um juízo de censura à sua atuação (…)” (cf. Acórdão proferido pelo Pleno da Secção de Contencioso do Supremo Tribunal Administrativo em 22 de janeiro de 2014 no Processo 01490/13, disponível, como os demais arestos dos tribunais superiores referidos neste pedido de pronúncia arbitral, em www.dgsi.pt; realce acrescentado).

Acrescenta a Requerente que a validade da liquidação de juros compensatórios “depende, da existência de culpa, a qual consiste na omissão reprovável de um dever de diligência, que é de aferir em abstrato (face à diligência de um bom pai de família) e que, por isso, tem de ser apreciada segundo os deveres gerais de diligência e aptidão de um bonus pater famílias (...)” (ibidem; realce acrescentado).”

Argumenta a Requerente que este entendimento dos tribunais superiores tem também vindo a ser seguido uniformemente na jurisprudência arbitral (neste sentido, vejam-se a Decisão Arbitral proferida em 10 de julho de 2013 no Processo n.º 5/2013-T, a Decisão Arbitral proferida em 11 de abril de 2013 no Processo n.º 109/2012-T, a Decisão Arbitral proferida em 2 de maio de 2014 no Processo n.º 220/2013-T, a Decisão Arbitral proferida em 27 de abril de 2015 no Processo n.º 675/2014-T e a Decisão Arbitral proferida em 1 de maio de 2017 no Processo n.º 675/2014-T, todas disponíveis em www.caad.org.pt). Mais recentemente, ver também a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 866/2019-T.

No caso em apreço, no âmbito do relatório de inspeção tributária referente ao procedimento inspetivo pode ler-se apenas que são devidos juros compensatórios desde a data em que deveria ter tido lugar a retenção na fonte, sendo “O valor apurado em observância com o estabelecido no n.º 1 e na al. a) do n.º 3 do art.º 102.º do CIRC, conjugados com os n.ºs 1, 3 e 10 do art. 35.º da Lei Geral Tributária (LGT) (…)” (cfr. ponto 13 do probatório).

A AT não faz qualquer menção à culpa da requerente no suposto atraso na liquidação de imposto, e muito menos procedendo à demonstração dessa culpa. Pelo contrário, a AT limitou-se “a exigir, de forma automática, Juros Compensatórios, ultrapassando os ónus e exigências legais estabelecidas para a respetiva liquidação.

“Tal como se referiu na decisão arbitral, datada de 29 de Abril de 2019, proferida no âmbito do processo n.º 405/2018-T “os juros compensatórios devidos nos termos da referida disposição [o artigo 35.º, n.º 1, da LGT] constituem uma reparação de natureza civil que se destina a indemnizar a Administração Tributária pela perda de disponibilidade de uma quantia que não foi liquidada atempadamente. Tratando-se de uma indemnização de natureza civil, ela só é exigível se se verificar um nexo de causalidade entre a actuação do sujeito passivo e o atraso na liquidação e essa actuação possa ser censurável a título de dolo ou negligência”.

Deste modo, não pode considerar-se que a AT tenha logrado demonstrar e provar os factos constitutivos do direito à liquidação de juros compensatórios, dado que a fundamentação por esta apresentada não permite concluir pela existência de um nexo de causalidade entre a atuação do sujeito passivo e o atraso na liquidação, sendo que a AT não aprecia nem demonstra o dolo ou a negligência naquela atuação.

Em suma, e conforme alega a Requerente, a AT “limita-se, na senda da sua posição habitual – reiteradamente afastada pelos Tribunais superiores- a defender que qualquer erro na aplicação da lei dá lugar a juros indemnizatórios(…)”, o que tem como consequência a ilegalidade da liquidação em apreço.

Termos em que se dá provimento ao pedido de pronúncia arbitral com todas as legais consequências.

 

§3. Questões prejudicadas

 

Procedendo o pedido de pronúncia arbitral com fundamento no vício atrás referido, o que assegura uma efetiva e estável tutela dos direitos dos Requerentes, fica prejudicado o conhecimento dos outros vícios que lhe são imputados.

Na verdade, como está ínsito no estabelecimento de uma ordem de conhecimento de vícios, no artigo 124.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), julgado procedente um vício que obste à renovação do ato impugnado, não há necessidade de se apreciar os outros que lhe sejam imputados.

Por isso, julgado procedente o pedido com fundamento num vício que impede a renovação do ato impugnado com o mesmo sentido, fica prejudicado o conhecimento dos outros vícios que lhe são imputados, sejam formais e procedimentais, seja também de violação da lei.

 

§4.º Quanto ao pedido de juros indemnizatórios

 

Quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. No caso, o erro que afeta a legalidade do ato tributário é de considerar imputável à Requerida, que a praticou sem o necessário suporte factual e legal.

Tem, pois, direito a Requerente a ser reembolsada da quantia que pagou indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força do ato parcialmente anulado e, ainda, a ser indemnizada do pagamento indevido através de juros indemnizatórios, desde a data do correspondente pagamento, até ao seu reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

4.Decisão

 

Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:

a.            Conceder provimento do pedido arbitral com a consequente anulação do presumido indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2019...;

b.            Anulação do ato de liquidação de juros compensatórios subjacente à liquidação oficiosa de imposto sobre o IRC relativo ao ano de 2014;

c.            Condenar a Requerida a restituir o valor indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios, nos termos legais.  

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 305.º, n.º 2, e 306.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor € 130.930,59.

 

6. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00 de harmonia com a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

               

Notifique-se.

 

Lisboa, 09-02-2021

 

Os Árbitros

 

(Fernanda Maças)

(Maria do Rosário Anjos)

(Marcolino Pisão Pedreiro)