Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 200/2014-T
Data da decisão: 2014-12-19  IRS  
Valor do pedido: € 4.367.052,77
Tema: IRS – Cláusula geral anti-abuso
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

Processo n.º 200/2014-T

 

 

Os Árbitros Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (designado por acordo dos outros Árbitros), Dr. Ricardo da Palma Borges e Prof. Doutor Manuel Pires, designados, respectivamente, pela Requerente e pela Requerida, para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 20-06-2014, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

 

A - SGPS, S.A., NIPC …, (doravante “A SGPS” ou “ Requerente”) apresentou no dia 27-02-2014, a um pedido de constituição do tribunal arbitral colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

No exercício da opção de designação de árbitro prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT e em cumprimento do disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 10.º e no n.º 2 do artigo 11.º, do mesmo diploma, a Requerente designou como Árbitro o Prof. Doutor Tomás Cantista Tavares.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 03-03-2014.

Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º e do n.º 3 do artigo 11.º do RJAT, e dentro do prazo previsto no n.º l do artigo 13.º do RJAT, o dirigente máximo do serviço da Administração Tributária designou como Árbitro o Prof. Doutor Manuel Pires.

De acordo com o disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do CAAD notificou a Requerente da designação do Árbitro pelo dirigente máximo do serviço da Administração Tributária em 14-04-2014, e notificou os árbitros designados pelas partes para designarem o terceiro árbitro que assume a qualidade de árbitro presidente.

Em 28-04-2014 e 29-04-2014 os Exmos. Árbitros designados pelas partes comunicaram ao CAAD a designação do Conselheiro Jorge Lopes de Sousa como árbitro Presidente.

Posteriormente, na sequência de pedido de escusa do Árbitro designado pela Requerente, esta designou o Dr. Ricardo da Palma Borges.

Os signatários designados para integrar o presente Tribunal Arbitral colectivo aceitaram as designações, nos termos legalmente previstos.

 Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do artigo II.º do RJAT, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes dessa designação em 30-05-2014.

Em 03-6-2014, a Requerente veio requerer a ampliação do pedido à anulação da decisão expressa de indeferimento da reclamação graciosa que apresentara.

Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 7 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 20-06-2014.

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pediu a declaração de ilegalidade:

(i)        da demonstração de liquidação de retenções na fonte de Imposto sobre o Rendimento (IR) n.º 2013 ...02, de 30-01-2013 e correspondente demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2013 ...34, referentes ao ano 2009;

(ii)       da demonstração de liquidação de retenções na fonte de IR n.º 2013 ...03, de 30-01-2013 e correspondentes liquidações de juros compensatórios n.ºs 2013 ...35 e 2013 ...36, referentes ao ano 2010, e

(iii)      da demonstração de liquidação de retenções na fonte de IR n.º 2013 ...04, de 30-01-2013 e correspondente liquidação de juros compensatórios n.º 2013 ...37, referentes ao ano 2011.

 

Na sequência da ampliação do pedido, a Requerente pede a anulação do despacho de 24-04-2014, que indeferiu a reclamação graciosa n.º ... REC …/13, cuja cópia juntou com o pedido de ampliação apresentado em 03-06-2014.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que terminou dizendo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente, absolvendo-se a Entidade Requerida dos pedidos, mantendo-se as liquidações nos termos em que foram efectuadas.

No dia 29-09-2014, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT em que se teve lugar a prestação de declarações de parte e a inquirição de duas testemunhas.

Nessa reunião acordou-se que o processo prosseguisse com alegações sucessivas com prazo de 15 dias.

A Requerente apresentou alegações que conclui nos seguintes termos:

 

Termos em que se requer a V. Exa. se digne dar provimento ao presente pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral sobre os atos melhor identificados no intróito e, cm consequência:

i)          declarar-se a ilegalidade dos atos tributários identificados no intróito, determinando-se a sua anulação;

ii)         declarar-se a ilegalidade da decisão expressa de indeferimento da reclamação graciosa proferida na pendência do presente processo arbitral, determinando-se a sua anulação;

iii)        determinar-se a indemnização à Requerente, nos termos do artigo 53.º da LGT, pelos eventuais encargos incorridos com a prestação indevida de garantia com vista à suspensão do processo de execução fiscal; e,

iv)        determinar-se a restituição do imposto e juros compensatórios indevidamente pagos, acrescidos de juros indemnizatórios.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou alegações em que termina dizendo que entende que se verificam todos os requisitos da aplicação da cláusula geral antiabuso, pelo que deve o pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente, absolvendo-se a Entidade Requerida dos pedidos, mantendo-se as liquidações nos termos em que foram efectuadas, como é de Direito e Justiça.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente para apreciar os pedidos.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas mais excepções.

 

2. Matéria de facto

           

2.1. Factos provados

           

Com base nos elementos que constam do processo e do processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

a)         A A –, SA (doravante “A SA”) é uma sociedade financeira de corretagem sujeita à supervisão do Banco de Portugal (BP) e Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) que foi constituída em 01-06-1999, com a firma “B, S.A.;

b)         A empresa C, SA, NIPC …, doravante “C”) tinha como mercado preferencial os clientes institucionais: fundo de pensões, seguros e banca entre outros;

c)         A fim de entrarem no mercado dos clientes institucionais, entre o final de 2004 e meados de 2005, os accionistas de ambas as empresas procederam à compra e venda de acções da A SA e da C com o objectivo de virem a deter a mesma estrutura accionista com o objectivo de procederem à fusão de ambas as empresas;

d)        Os accionistas da A SA e da C optaram por uma estratégia de tomar posições accionistas idênticas em ambas as empresas, através da compra e venda entre os accionistas envolvidos de acções de ambas as empresas, para posteriormente facilitar o processo de fusão de ambas as empresas;

e)         A 20-10-2005 é realizada a escritura de fusão e aumento de capital entre a C e a A SA, em que o representante da C é D;

f)         Em 04-08-2005 foi registado o projecto de fusão por incorporação, mediante a transferência global do património da sociedade incorporada, C, SA, para a sociedade incorporante, A SA, com reforço de capital no montante de € 242.109,00.

g)         Em 02-12-2005 é registada a fusão, em que o capital social da A SA passa a ser de € 3.742.109.00. representado por 1.069.174 acções nominativas com o valor nominal de €3.50, sendo as novas 69.174 acções distribuídas pelos accionistas com respeito pela percentagem no capital social e direitos de voto, que se mantiveram inalterados depois da fusão, nos seguintes termos:

 

R

Q

F

P

O

D

      N

M

    K

I

 

 

 h)        A partir de 2007 a A SA passa a adquirir acções próprias e também a vender a novos accionistas, os quais são admitidos no capital social da sociedade na sequência da filosofia de "partnership", accionistas estes que vieram liderar novas áreas de negócio ou trouxeram para a empresa carteiras de títulos relevantes;

i)          A 30-03-2007 a A, SA procede à aquisição de 53.456 acções próprias ao valor unitário de € 28,81, no total de € 1.540.124,98;

j)          A aquisição de acções referida na alínea anterior foi deliberada em acta (acta 21 no anexo 9 ao Relatório da Inspecção Tributária) foi efectuada com respeito pela proporção na percentagem do capital social e direitos de voto da sociedade e representa 0,5% das acções de cada um dos sócios que representam 5% do capital social total;

k)         A 02-10-2007 é admitido o accionista E, residente em Espanha, que adquire 15.236 acções ao valor unitário de € 28,90, no total de € 440.437,25 e passa a deter 1,43% do capital social da A SA;

l)          Com a entrada do accionista E, a A SA passa também a exercer sua actividade em Espanha através da livre prestação de serviços, pela qual uma empresa que se encontra registada num país e com autorização do órgão supervisor do seu país comunica ao órgão supervisor do país de destino que também lá vai exercer a sua actividade de prestação de serviços;

m)        Em 16-01-2008 é reforçada a percentagem do capital social do accionista F de 1,5% para 2,87%, através da aquisição de 15.464 acções pelo valor unitário de €8,61, no total de €133.145,04;

n)         Em 20-02-2008 verifica-se a entrada do accionista G, NIF …, que adquire um total de 15.236 acções aos accionistas maioritários e que representam mais de 90% do capital social pelo valor unitário de €10,30;

o)         No mesmo dia 20-02-2008 o referido accionista vende 5.232 acções à A SGPS pelo preço global de €140.000,00, o qual foi deliberado em acta (acta 24 no anexo 14 ao Relatório da Inspecção Tributária) e que corresponde ao valor unitário de € 26,75;

p)         O valor total da aquisição efectuada pelo accionista G é de (15.236 x €10,30 = 6.156.930,80) enquanto o valor da venda das 5.232 acções à própria sociedade é de (5.232 x €26,75 = €139.956,00), continuando este accionista com 10.004 = (15.236 - 5.232) acções em carteira, pelo custo líquido de €16.974,80 = (€156.930,80 - €139.956,00), valor este inferior ao valor nominal (€16.974,80 / 10.004 =€1,6968);

q)         Em 16-04-2008, a A SA volta a adquirir acções próprias, no total de 57.267, ao valor unitário de €44,06, no total de €2.523.184,02, que representam 5,3% do capital social total, tendo esta aquisição sido deliberada em acta (acta 26 no anexo 15 ao Relatório da Inspecção Tributária);

r)         A 03-07-2008, por motivo da doença, o accionista G manifesta a sua intenção de sair da sociedade, pelo que as suas 9.454 acções são vendidas à H, SA, doravante designada por “H”, com sede na Suíça;

s)         A 20-07-2009, as 9.454 acções delidas pela H foram vendidas à A SA pelo valor unitário de €27,56;

t)         No contrato de venda das acções da H à A SA, quem assina pela H é D, NIF …, residente na Suíça e também um dos accionistas com maior percentagem no capital social e direitos de voto da A SA, respectivamente 12,0555% e 13,2272%;

u)         O preço de venda das acções variou ao longo do tempo, e sobretudo em função do adquirente, nestes termos:

 

G

H

A

A

G

E

F

A

A

A

A

 

 

v)         A partir de Dezembro de 2004, a A SA passou a deter uma estrutura accionista maioritária de referência e estável, bem como um conselho de administração que tem sido sucessivamente renovado para os triénios 2006/2007, 2008/2010 e 2011/2013;

w)        De acordo com a certidão permanente, a estrutura da administração da A SA compete a um conselho composto por três a vinte e um membros, eleito para mandatos de três anos, mas nos sucessivos mandatos para os triénios de 2005/2007, 2008/2010 e 2011/2013, a composição do conselho de administração tem-se mantido inalterada, conforme nomeação que consta da referida certidão permanente:

Presidente: I NIF: …;

Vogal: J NIF: …;

Vogal: K NIF: ….

x)         A Requerente A SGPS é uma sociedade gestora de participações sociais constituída em 27-07-2009, pelos mesmos accionistas da A SA;

y)         A A SGPS foi constituída com um capital social de €50.000,00 correspondentes a 50.000 acções nominativas com o valor nominal de €1,00, distribuídas pelos seguintes accionistas:

 

A

I

N

D

O

P

K

M

F

R

Q

E

 

 

 

z)         A administração da A SGPS compete a um conselho de administração composto por três membros, eleito para mandatos de quatro anos;

No mandato para o quadriénio de 2009/2012, a composição do conselho de administração é:

Presidente: I NIF: …;

Vogal: J NIF: …;

Vogal: K NIF: …,

aa)       Em 31-07-2009, imediatamente antes da venda das acções disponíveis da A SA à A SGPS, o capital social da A SA encontrava-se assim distribuído:

 

 

 
 

Caixa de texto:

 

 bb)      Em 31-07-2009 os accionistas da A SA venderam pelo preço de 660.000.000,00 a totalidade das 974.463 acções disponíveis desta empresa à A SGPS, nos termos do quadro que se segue:

 

I

P

K

M

N

D

O

F

R

Q

E

 

 

 

 

cc)       Todas as acções eram detidas pelos seus titulares há mais de um ano;

dd)      Até 31-07-2009, não se verificou na A SA nenhuma distribuição de reservas para pagamento de dividendos;

ee)       Até 31-07-2009, a alteração nos capitais próprios da A SA verificava-se por pagamento de gratificações (€38.075,00 no ano de 2005, €100.250,00 no ano de 2006) ou aquisição de acções próprias (no total, de 2007 a 2009, de €3,566,698,54);

ff)        A partir de 04-08-2009 (4 dias depois da alienação das acções da A SA à A SGPS), a A SA passa a proceder à distribuição de reservas livres para pagamento de dividendos, os quais constituem os únicos proveitos/réditos operacionais da A SGPS, tendo a distribuição de dividendos sido deliberada na acta n.° 30 da assembleia geral da A SA;

gg)       Estes rendimentos da A SGPS, que constituem fluxos financeiros vindos da A SA, são depois utilizados para reembolso dos suprimentos e prestações suplementares prestadas pelos accionistas da primeira, com respeito pelos direitos de voto e percentagens de capital detidas pelos mesmos accionistas;

hh)       As mais-valias obtidas pelos accionistas com a venda de acções, nos anos de 2007 a 2009, foram declaradas em sede de IRS;

ii)         De acordo com a informação fornecida pela A SGPS à Autoridade Tributária e Aduaneira, o motivo da constituição de uma SGPS relaciona-se com o objectivo de promover a expansão e diversificação das actividades da A SA, através da entrada em novos áreas de negócio no sector financeiro e também fora do território nacional, nomeadamente no mercado angolano;

jj)         As novas actividades a prosseguir não poderiam ser exercidas pela A SA atendendo a vários factores:

> o objecto social de "sociedade financeira de corretagem"',

> as novas actividades só podem ser exercidas por uma determinada tipologia de sociedade financeira, como por ex. "sociedade gestora de fundos de investimento mobiliário";

> a expansão para outros mercados como seja Angola, coloca a questão de diferentes jurisdições e diferentes reguladores atendendo a que uma sociedade financeira só pode em principio desenvolver actividade no país onde é autorizada e supervisionada;

kk)       A A SGPS informou ainda a Autoridade Tributária e Aduaneira que o Banco de Portugal pretende que as diferentes sociedades de um mesmo grupo accionista sejam congregadas sob uma mesma sociedade "holding" para que possa exercer a supervisão prudencial em base consolidada;

ll)         Em 04-08-2009 a A SA deliberou em assembleia geral a distribuição aos accionistas de reservas livras no valor de €12.450.000,00;

mm)     Os dividendos referidos na alínea anterior foram objecto de retenção na fonte no valor de €2.490.000,00, pelo que o valor recebido pela A SGPS foi de €9.960.000,00 tendo este valor sido creditado na conta da … da A SGPS;

nn)       Em 07-08-2009, foi efectuado o reembolso aos sócios de suprimentos no total de €9.960.000,00;

oo)       Em 30-07-2010, a A SGPS recebeu o valor de €2.490.000,00 relativo ao reembolso de IRC que resulta da autoliquidação efectuada na declaração mod. 22 do IRC relativo ao exercício de 2009;

pp)       O valor deste reembolso refere-se integralmente à retenção na fonte efectuada pela A SA em Agosto de 2009 pelo pagamento de dividendos à A SGPS;

qq)       Na sequência desta entrada de dinheiro, a A SGPS procedeu ao reembolso aos sócios de suprimentos no total de €2.490.000,00;

rr)        Em 10-09-2010 a A SA deliberou em assembleia geral a distribuição aos accionistas de reservas livres no valor de €6.398.000,00, encontrando-se estes dividendos dispensados de retenção na fonte nos termos do artigo 97° do Código do IRC.

ss)        Em 17-09-2010 foi deliberado em acta do conselho de administração da A SGPS o reembolso de prestações suplementares de €3.448.000,00, tendo os accionistas sido reembolsados do saldo de suprimentos no total de €50.000,00 e de prestações suplementares no montante deliberado em acta, de €3.448.000,00

tt)        A 05-05-2011, a A SGPS recebeu dividendos no total de €6.511.964,55 e em 07-07-2011 o conselho de administração da A SGPS, delibera em acta o reembolso de prestações suplementares de €6.500.000,00, sendo o reembolso aos accionistas efectuado no mesmo dia, conforme extracto contabilístico da conta bancária, decisão esta que ocorreu depois de efectuada a comunicação e obtida a autorização ao Banco de Portugal;

uu)       Tanto a A SA como a A SGPS se encontram sujeitas à supervisão do Banco de Portugal;

vv)       A Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu a uma acção inspectiva externa à Requerente relativa aos anos de 2009, 2010 e 2011, em cumprimento das Ordens de Serviço n.ºs OI…, OI… e OI…, respectivamente;

ww)     No decurso da acção inspectiva externa, foi proposta a aplicação do procedimento de norma antiabuso, a que se refere o artigo 63º do Código do Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), o qual foi autorizada por despacho do Senhor Director Geral da Administração Tributária e Aduaneira, em 14-11-2012;

xx)       No Relatório da Inspecção Tributária, cujo teor se dá como reproduzido, refere-se, além do mais, o seguinte:

III - 4.6. Origem e destino dos fluxos financeiros da A SGPS

Resulta do exposto que os fluxos financeiros relevantes da A SGPS consistem no recebimento de dividendos da A SA, os quais são utilizados no reembolso dos suprimentos e prestações suplementares escriturados na contabilidade da A SGPS a favor dos seus acionistas.

Conclui-se que a vantagem da valorização das ações no momento da sua alienação à A SGPS é permitir a saída de fluxos financeiros relativos a distribuição de lucros da A SA os quais são depois encaminhados para os accionistas a título de reembolso de suprimentos e prestações suplementares.

Verifica-se uma vantagem fiscal nos fluxos financeiros decorrentes da celebração destes negócios jurídicos: constituição da A SGPS e alienação das ações por um valor acima do valor nominal. A celebração dos mesmos negócios jurídicos com a alienação das acções ao valor nominal teria como consequência dois momentos diferentes de distribuição de dividendos:

1.         em primeiro lugar a distribuição de dividendos da A SA à A SGPS, a qual se encontra dispensada de retenção na fonte (artigo 97° do CIRC) e também excluída de tributação em virtude da dedução a que se refere o artigo 51° do CIRC;

2.         em segundo lugar a distribuição de dividendos da A SGPS aos seus accionistas, no entanto estes dividendos seriam tributados em sede do IRS de cada um destes accionistas como rendimento da Categoria E.

(...)

Apesar de terem vendido a totalidade das ações disponíveis da A SA à A SGPS, os acionistas permaneceram com a titularidade e mesmo direitos de voto da A SA, mas por via indireta, através da detenção da A SGPS, na mesma proporção de percentagem de capital social e direitos de voto.

Conclui-se que os acionistas da A SGPS são os mesmos acionistas da A SA, antes da venda das ações à A SGPS, com a mesma percentagem de direitos de voto e que há total coincidência no conselho de administração de ambas as empresas.

Os membros do conselho de administração da A SGPS auferem rendimentos da categoria A que são pagos pela empresa A SA,

Em suma, a ausência de indicadores objetivos, como sejam gastos com pessoal, imobilizado ou outro equipamento, demonstram a inexistência de meios humanos e técnicos, com que a A SGPS possa prosseguir o seu restrito objeto social pelo que, não possuindo a A SGPS qualquer estrutura física e humana, constata-se que todos os serviços administrativos e financeiros desta sociedade são assegurados pela A SA.

Esta situação conjugada com a coincidência/proximidade de datas entre a distribuição de dividendos da A SA à A SGPS e reembolso de suprimentos e prestações suplementares aos acionistas, evidencia que é a A SA e os seus acionistas (por via indireta) que são a entidade decisora e gestora destas operações de valorização das ações, distribuição de dividendos e reembolso aos acionistas. O envolvimento dos acionistas é tão elevado, que não existe outra razão que não a fiscal para a valorização das ações acima do valor nominal no momento da sua venda à A SGPS.

Importa realçar e clarificar que não é a constituição da A SGPS, enquanto empresa holding, que a Administração Tributária coloca em causa mas tão somente os dividendos que ela recebe e que depois paga aos acionistas sob a forma de reembolso de suprimentos e prestações suplementares. Nesse sentido o ato tributário colocado em causa pela Administração Tributária, encontra-se relacionado com o reembolso aos acionistas de suprimentos e prestações suplementares, que deviam contudo face aos elementos provados no presente relatório consubstanciar-se como recebimento de dividendos.

 

III-4.10. Entrada do Novo Sócio

Em 26 de Julho de 2011 foi deliberado em assembleia Geral (anexo 45), no seu ponto um, a entrada de um novo sócio, L, a qual será efetuada através da aquisição de 105 ações ao preço unitário de €1 cada, durante os próximos 5 anos a cada um dos sócios I, K, M, N, O e P. No segundo ponto da ordem de trabalhos desta Assembleia Geral foi deliberado que os mesmos sócios vão ceder parcialmente ao novo sócio L a respetiva posição contratual no Contrato de Suprimentos e prestações Suplementares celebrado entre os acionistas e a sociedade a 31 de Julho de 2009.

Em 26 de Julho de 2011, foi deliberado na ata n.º 4 da assembleia-geral da A SGPS que;

"... no decurso dos próximos 5 anos, cada um dos seguintes acionistas da sociedade, I, K, M, N, D, O e P, pretendo vender a L, 105 ações da sociedade, num total de 735 ações. Cada ação será vendida ao preço unitário de 1 € por ação e a venda será efetuada nos termos da minuta de contrato que foi exibida para o efeito ficando anexa a esta ata ou em termos análogos. ...] Deliberaram então os acionistas, por unanimidade, que a sociedade não exerce o seu direito de preferência na compre das ações.

Deliberaram ainda que "...cada um dos seguintes acionistas da sociedade, I, K, M, N, D, O e P, pretende ceder parcialmente a L, que a deseja assumir a respetiva posição contratual no Contrato de Suprimentos e Prestações suplementares celebrado entre os acionistas e a sociedade a 31 de Julho de 2009 f...) Mais acrescentou que, no decurso dos próximos 5 anos, e no contexto da venda das ações referida no ponto, será também cedida parte da posição contratual de cada um dos acionistas acima referidos no Contrato de Suprimentos e Prestações Suplementares celebrado entre os acionistas a e sociedade a 31 de Julho de 2009, em termos proporcionais às ações vendidas. Deliberaram então os acionistas, por unanimidade, dar o consentimento da sociedade à acima mencionada cessão parcial da posição contratual de cada um dos acionistas no Contrato de Suprimentos e Prestações Suplementares celebrado entre os acionistas e a sociedade a 31 de Julho de 2009.

Esta cedência de posição contratual no contrato de suprimentos e prestações suplementares contraria o disposto no n°4 do artigo 213° do CSC "A restituição das prestações suplementares deve respeitar a igualdade entre os sócios que as tenham efetuado".

No entanto vem confirmar que se trata de uma política de remuneração dos acionistas, pelo que a remuneração equivalente de um novo sócio conduz à cedência da posição contratual no referido contrato, conforme se passa a explicar nos parágrafos seguintes.

Com efeito o capital social da A SGPS foi subscrito e realizado por 50.000 ações a um valor unitário de €1,00, no entanto ao adquirir as ações da A SA por um valor unitário de €61,57, a A SGPS torna-se a única acionista do total do capital da A SA adquirido pelo valor global de €60.000.000,00.

Os suprimentos e prestações suplementares referem-se ao financiamento efetuado pelos acionistas a A SGPS para esta empresa pagar aos acionistas, as ações da A SA adquiridas aos mesmos acionistas pelo valor unitário de €61,57, no total de €60.000.000,00.

O novo acionista L não participou neste financiamento efetuado à A SGPS, não consta do referido contrato de suprimentos e prestações suplementares, pelo que não efetuou qualquer suprimento ou prestação suplementar à A SGPS.

Quando se verifica a entrada de um novo acionista [L] na A SGPS, através da aquisição de 735 ações [da A SGPS] a sete acionistas [da A SGPS] pelo valor nominal de €1,00, e lhe é facultada a cedência de posição contratual no contrato de suprimentos e prestações suplementares, significa que no futuro este novo acionista [L] irá ser reembolsado de suprimentos na parte relativa às 735 ações que adquiriu por€1,00, tendo como referência o valor de venda das ações da A SA à A SGPS por €61,57.

Confirma-se assim, que a motivação real para a venda das ações da A SA à A SGPS por €60,000,000,00, com respeito pela proporção no capital social e direitos de voto de cada acionista, com recurso a um contrato de suprimentos e prestações suplementares, é remunerar os acionistas através da distribuição indireta de dividendos excluídos de qualquer tributação em sede de IRS.

(...)

III- 6.1. Jurisprudência recente do TCAS (Proc. 5105 de 31/01/2012)

De acordo com a jurisprudência recente do Tribunal Central Administrativo do Sul (proc. 5105/11 de 31-01-2012) "Esta legislação [art. 38° da LGT e art. 63° do CPPT) tem aplicabilidade sempre que as empresas praticam uma série de aios anómalos, desadequados face ao fim económico pretendido, mas que em si mesmo são legais se produzem o mesmo resultado económico (mas não fiscal) dos atos usuais e adequados que estão definidos nas normas de incidência de IRC. De notar que no caso em apreço as normas de incidência referem-se a IRS.

E continua "Os atos que a Administração Tributária classifica como inseridos no n°2 do art. 38° da LGT, não tem como propósito a poupança fiscal, mas sim uma actuação contra os fins essenciais do ordenamento Jurídico tributário. O que se pretende neste caso é combater a elisão fiscal, concretizada em atos Jurídicos formalmente lícitos.

Em analogia a esta decisão, podem concretizar para o caso em apreço, que os reembolsos de suprimentos e prestações suplementares constituem a prática de um ato com a intenção de obter rendimentos isentos de tributação, através de um ato jurídico formalmente lícito, que de outra forma, mais concretamente sob a forma de dividendos, estariam sujeitos a efetiva tributação.

De acordo com a legislação descrita, os reembolsos de suprimentos e prestações suplementares constituem atos dirigidos, por meios artificiosos, através da utilização desnecessária da valorização do preço de venda das ações acima do valor nominal, e com abuso das formas jurídicas, com vista a eliminação de imposto que seria devido se os dividendos provenientes dessas ações fossem pagos diretamente aos acionistas que as detêm (por via direta ou indireta), e que sem a valorização do preço de venda das ações acima do valor nominal, seriam corretamente tributados em sede de IRS.

Efetivamente a A SGPS ao transformar os dividendos que recebe em reembolso de suprimentos e prestações suplementares, produz um efeito de fuga ao imposto, pois este seria exigido se a empresa tivesse optado por uma distribuição direta de dividendos, com resultados económicos equivalentes.

A valorização do preço de venda das ações, acima do valor nominal, não constitui qualquer mais-valia incorporando este conceito qualquer vantagem negocial que a sua valorização pode acarretar para qualquer das partes intervenientes, numa clara alusão de que a utilização desta valorização teve como única e principal finalidade um aproveitamento abusivo das formas legais com o intuito de obter rendimentos, quê sem o uso de tais formas, ficariam sujeitos a tributação.

A valorização do preço de venda das ações, acima do valor nominal teve um único, claro e inequívoco objetivo: a eliminação da carga fiscal sobre os respetivos dividendos.

Ao longo desta informação ficou demonstrado que era totalmente dispensável a venda das ações por um valor acima do valor nominal, para a concretização dos objetivos dos acionistas em termos de expansão das atividades da A SA.

Para tanto, atendendo ao disposto no mecanismo do artigo 63° do CPPT para aplicação da cláusula geral antiabuso, bem como atendendo ao entendimento da jurisprudência recente do Tribunal Central Administrativo do Sul (proc. 04255/10, de 15-02-2011, www.dasl.pt). cumpre preencher os requisitos aí enumerados, que são:

1. Elemento meio utilizado para a concretização da operação económica conducente à vantagem fiscal, que se relaciona com as formas utilizadas pelo contribuinte, por via dos atos e negócios jurídicos lícitos celebrados com que se propõe obter a redução ou eliminação do tributo;

ii. Elemento resultado obtido, respeitante à vantagem propriamente dita, à ilicitude do fim, à consequência fiscal pretendida pelo contribuinte, indissociável quer dos meios lícitos de que se socorreu, quer da motivação fiscal sobre que assenta a sua conduta;

iii. Elemento intelectual, respeitante à motivação fiscal que serviu de base à conduta do contribuinte para efeitos de redução ou eliminação da tributação, não obstante a sua atuação poder ter natureza exclusivamente fiscal ou não;

iv. Elemento normativo, respeitante à proibição legal de evasão fiscal, vertido nas normas de antiabuso, de que a Administração Tributária lança mão para neutralizar potenciais planeamentos fiscais agressivos e que merecem reprovação sob o ponto de vista normativo sistemático, uma vez que para a obtenção de vantagens fiscais o contribuinte recorre a formas jurídicas manifestamente abusivas, cujo efeito fiscal tem que ser desconsiderado.

 

III- 6.2. Elemento Meio

1. Foi constituída em 27/07/2009 a A SGPS, tendo como accionistas os contribuintes constantes no Quadro 1, detendo as mesmas percentagens de voto e percentagens no capital social que detinham na A SA, objeto de venda à A SGPS;

2. Em 31/07/2009, aqueles acionistas procederam à venda das acões disponíveis da sociedade A SA à sociedade A SGPS, ações que detinham há mais de um ano, por um valor total de €60.000.000,00;

3. O valor de venda das ações foi-o por valor superior ao seu valor nominal (3,50€), atingindo, no momento da alienação, o quantitativo de €61,57;

4. Em simultâneo, naquela data, por via da contratualização de suprimentos e de prestações suplementares, os acionistas realizaram uma transferência para a conta bancária da A SGPS, sedeada no Banco X, num valor total de €60.000.000,00, a título de suprimentos (€12.500.000,00) e de prestações suplementares (€47.500.000,00).

5. As ditas transferências obedeceram a razões de proporcionalidade, com respeito à participação de cada sócio no capital social;

6. A transferência bancária do Banco X (Anexo 10), contabilizada como suprimentos e prestações suplementares, foi utilizada para pagamento das ações alienadas à A SGPS;

7. Em simultâneo, naquela mesma data, são debitados valores na dita conta bancária, em que o descritivo se refere à transferência a favor dos acionistas, por conta do valor aquisitivo das ações alienadas, totalizando o valor de €60.000.000,00;

8, Por restituir, ficam os valores contabilizados a título de suprimentos (€12.500.000,00) e de prestações suplementares (€47.500.000,00), funcionando como crédito a favor dos acionistas, no total de €60.000.000,00;

 

 

III- 6.3. Elemento Resultado

1. Em 04/08/2009, a A SA deliberou em assembleia geral a distribuição de reservas livres no valor de €12.450.000,00, tendo estes dividendos sido objeto de retenção na fonte no valor de €2,490.000,00. Desta distribuição, a A SGPS recebeu o valor de €9.960.000,00.

2. Em 07/08/2009, os acionistas da A SGPS são reembolsados pelo crédito havido a título de suprimentos, pelo valor de €9.960.000,00.

3. Em 30/07/2010, a A SGPS recebe o valor de €2.490.000,00, relativo ao reembolso de IRC, sendo também este valor utilizado na totalidade para reembolsar os sócios a título de suprimentos.

4. Em 10/09/2010, a A SA deliberou em assembleia geral a distribuição de reservas livres no valor de €5.396.000,00.

5. Nesta data, a A SGPS procedeu a novo reembolso aos sócios por conta de suprimentos e de prestações suplementares, no valor de €3.498.000,00.

6. Em Julho de 2011, o conselho de administração decide por mais um reembolso, a título de prestações suplementares, no montante de €6.500,000,00.

7. Nenhum dos valores reembolsados a título de suprimentos ou de prestações suplementares ficaram sujeitos a tributação em sede de IRS, na esfera dos sócios.

8. Atento o ponto 2 da Quantificação da Vantagem Fiscal Obtida, infere-se que a exclusão de tributação em sede de IRS resultou numa vantagem fiscal quantificada no valor de €3.994.795,80.

9. Todavia, encontra-se ainda por reembolsar, a título de prestações suplementares, o valor de €37.552.000,00. Deste modo, assumindo a manutenção da actual taxa de retenção na fonte de 25%, a vantagem fiscal a obter em reembolsos futuros será de €9.388.000,00.

 

III- 6.4. Elemento Intelectual

1. Atenta a operação financeira levada a cabo, a A SA informou o … de que a constituição de uma sociedade gestora de participações sociais se deveu, por um lado, (1) à necessidade premente de expansão para novos mercados, como seja o de Angola, e, por outro, (2) a razões que se prendem com a imposição de regras regulatórias e de supervisão financeira;

2. É ainda reconhecido pela sociedade que, apesar da celebração do negócio jurídico da alienação das ações, não está em causa uma efectiva alienação das participações sociais, mas sim a manutenção dos direitos de voto que os acionistas deterão na A SGPS e indirectamente na A SA;

3. Todavia, por referir ficou a questão explanada na descrição da operação supra, uma motivação de âmbito fiscal, e que assistiu à constituição da A SGPS. A impossibilidade de, a partir do ano de 2009, os acionistas alienarem mais que 1% das suas ações em favor da A SA.

A. Veja-se que, desde 2007, a A SA vem adquirindo acções próprias, com respeito e manutenção da proporção no capital social e direitos de voto dos acionistas, perfazendo um total de cerca de 9% do seu capital social.

5. Em 2007, as ações foram vendidas pelo valor de €28,81€ e em 2008, pelo valor de €44,06. Sempre acima do seu valor nominal,

6. Atente-se que nos anos de 2007 e 2008, conforme ponto 1 da Quantificação da Vantagem Fiscal Obtida, resultou uma vantagem fiscal para os sócios - que se cifra em cerca de €661.229,26€ - dada a exclusão de tributação da alienação de ações detidas há mais de um ano (pretérito n° 2 do artigo 10" do CIRS)

7. Atingido (quase) o teto máximo da aquisição de ações próprias na razão de 10%, a A SA ficou impossibilitada de continuar a participar no seu próprio capital. E os acionistas, de continuarem a alienarem as participações sociais a uma sociedade cuja maioria do capital lhes pertence.

8. Dada aquela limitação, viram-se obrigados a obter uma solução que lhes permitisse, a um só tempo, a alienação das suas ações para uma sociedade sobre a qual detivessem total controlo, à semelhança do que acontecia com a A SA.

9. Constituíram a A SGPS, e, de seguida, procederam à alienação das suas participações sociais em favor desta nova sociedade, por um valor unitário por ação de €61,57. E, com isto, removeram, temporariamente, a limitação da aquisição de capital próprio de 10% de ações, de que padecia a A SA.

10. Verifica-se total coincidência entre os sócios da A SA e A SGPS, quer no que diz respeito aos direitos de voto, quer quanto às percentagens no capital social. Os acionistas da A SGPS mantêm, por via indireta, exatamente o mesmo controlo que detinham anteriormente, por via direta, da A SA.

11. O conselho de administração é o mesmo da A SA e da A SGPS, sendo os seus membros remunerados apenas pela A SA.

12. Ademais, os pretensos montantes pecuniários realizados junto da A SGPS, no valor de €60.000.000,00, por conta de suprimentos e prestações suplementares, serviram para pagar aos sócios as ações que alienaram àquela sociedade.

13. Em termos líquidos, por restituir ficam os montantes de suprimentos e de prestações suplementares que, por se tratar de pagamentos de um crédito ou obrigação contratual, não se encontram sujeitos a imposto.

14. Suprimentos e prestações suplementares cujos valores a restituir equivalem, verdadeiramente, ao pagamento de dividendos aos sócios, excluídos de tributação.

 

III- 6.5. Elemento Normativo

1. Dado se estar perante dividendos, os mesmos encontram-se sujeitos a tributação, nos termos do CIRS.

2. De acordo com o disposto no n° 1 do artigo 1° do CIRS "O imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) incide sobre o valor anual dos rendimentos das categorias seguintes, mesmo quando provenientes de aios ilícitos, depois de efectuadas as correspondentes deduções e abatimentos: ... Categoria E- Rendimentos de capitais;

3. Nos termos do disposto no n° 2 do artigo 5° do CIRS "Os frutos e vantagens económicas referidas no número anterior compreendem, designadamente: ...h) Os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20°;"

4. Porque o cidadão contribuinte, dotado de capacidade contributiva, tem o dever de prestar tributo fiscal, proveniente da qualidade de ser social que é, decorre daqui a obrigação de proporcionar ao Estado os meios para apurar e determinar o montante tributável em sede de imposto, prosseguindo-se alguns dos princípios constitucionais, como sejam os da igualdade e da justa repartição de rendimento e de encargos tributários. Tal dever não se coaduna com esquemas de planeamento fiscal que defraudem a lei.

5. Deste modo, as operações que sejam levadas a cabo, a fim de evitar a tributação, são proibidas por lei, nos termos do artigo 38° da LGT.

Analisada a operação financeira em causa, a sua factualidade e os elementos documentais, conclui-se que se está perante uma situação de planeamento fiscal manifestamente agressivo, atendendo às vantagens fiscais obtidas por via do valor de alienação das ações dos acionistas à A SGPS - que até data se cifra em €3.994.795,80, prevendo-se ganhos futuros de €9.388.000,00 - sociedade que, de igual forma, dominam, e com quem mantêm relações especiais, nos termos do disposto no n° 4 alínea a) do artigo 63° do CIRC, detendo as mesmas percentagens de voto e percentagens no capital social que, antes, detinham na A SA.

Nos termos do disposto no n° 2 do artigo 38° da LGT "São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, ... à obtenção de vantagens fiscais que não seriam abancadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios ....

Conforme já exposto, a Administração Tributaria não coloca em causa a alienação da ações, o modo como as mesmas se valorizaram ou a constituição da A SGPS. São tudo atos e negócios lícitos.

É colocada antes em causa a razão de ser, a necessidade da referida valorização das ações - valor nominal por contraposição ao valor efetivo da venda - uma vez que, atendendo à informação da A SA junto do BP, aquando da dita alienação das ações para a A SGPS, não se estava perante uma efetiva alienação de participações sociais qualificadas, mas sim perante uma mera alteração do modo de imputação dos direitos de voto.

Daquela valorização, encandeando-se esta com a constituição de uma nova sociedade, bem como com a venda das participações sociais dos acionistas, e ainda com o facto de, em 2009, a A SA se encontrar a pouco mais de 1% de ultrapassar o limite legal máximo de aquisição de ações próprias, nos termos do disposto no n° 2 do artigo 317° do CSC, resulta a vantagem fiscal proibida por lei.

Considera-se preenchido o teor do artigo 38° n°2 da LGT visto estar-se perante um negócio jurídico artificioso e fraudulento, uma vez que o ato de valorização das ações, no âmbito daquele negócio, que visava somente a finalidade já supra descrita, pode ser explicado por razões de natureza fiscal, e deve-se a razões da mesma natureza: a manifesta intenção de eliminação de oneração fiscal, por via da utilização e do aproveitamento abusivo da legítima constituição societária da A SGPS e do legítimo negócio da venda das ações.

Atenta a factualidade que envolveu toda a operação em causa, é de transcrever o teor do Acórdão do TCA Sul (proc. 04255/10, de 15-02-2011, www.dgsi.pt), onde consta que: "Estamos aqui perante as denominadas step by step transactions nas quais se encontra uma facti species complexa, envolvendo uma sucessão de atos/negócios coordenados entre si, embora possam ocorrer em momento temporais diversos e com o objectivo comum de conseguir uma vantagem fiscal. Face a esta espécie de operações, deve o aplicador da lei operar um tratamento integrado visualizando-as como uma única transacção, propendendo para um único e final resultado.

 

III- 7. Fundamentação da Aplicação da Norma Antiabuso

Nestes termos, outra conclusão não se infere que não seja a de que, não obstante a contratualização de suprimentos e de prestações suplementares pelos sócios em favor da A SGPS no valor de €60.000,000,00, o reembolso diferido no tempo da referida quantia e a título de suprimentos e de prestações suplementares assume, materialmente, a natureza de verdadeiros dividendos que, por tranches, vão sendo distribuídos pelos acionistas e vão integrando a sua esfera patrimonial, sem sofrerem qualquer tipo de tributação.

Demonstrou-se, ao longo desta informação, que o objectivo da constituição da empresa A SGPS [constituição de sociedade "holding"/SGPS com manutenção do controlo societário] não depende da valorização efetuada às ações da A SA, alienadas pelos acionistas à A SGPS.

Conclui-se, no entanto, que o objetivo e consequência da realização destes sucessivos negócios jurídicos, com a valorização das ações acima do valor nominal, é a retirada de dinheiro excluída de tributação através da A SGPS, para os acionistas.

Estes fluxos financeiros assumem a verdadeira natureza de distribuição de dividendos, os quais, na sequência destes atos ou negócios jurídicos, proporcionam a disponibilidade do dinheiro aos sócios sem sofrer qualquer tributação em sede de IRS.

Atendendo aos fatos expostos e demonstrados nesta informação, propõe-se a desconsideração para efeitos fiscais destas operações, com a consequente tributação em sede de IRS, dos valores recebidos pelos acionistas, a título de reembolso de suprimentos e prestações suplementares como dividendos.

Tal como exposto no enquadramento fiscal dos dividendos, e de acordo com o artigo 102° n°1 alínea a) do CIRS, a obrigação de proceder à retenção na fonte compete à A SGPS, uma vez que é esta entidade que coloca estes rendimentos a disposição dos acionistas.

A taxa de retenção encontra-se prevista na alínea c) do n.º 3 do art. 71° do CIRS, sendo de aplicar a taxa que estivesse em vigor à data da colocação à disposição dos rendimentos, conforme quadro 3 com as diferentes taxas e redações.

A tributação dos dividendos distribuídos a sujeitos passivos residentes através da retenção na fonte à taxa liberatória prevista no art. 71° do CIRC tem a natureza de pagamento por conta, atendendo a que se encontra prevista a opção pelo englobamento nos termos do art. 71° n° 6 alínea c) do CIRS, com a redação em vigor dada pela Lei n° 3-B/2010 de 28/04 e art. 71° n» 6 alínea b) com a redação anteriormente em vigor dada pelo DL 192/2005 de 7/11.

O artigo 103° do CIRS tipifica a responsabilidade em caso de substituição, indicando a entidade a quem é exigível o imposto em falta, bem como os juros compensatórios, atendendo à qualidade de residente, ou não, em território português dos beneficiários destes rendimentos.

Tributação dos Accionistas Não Residentes

O accionista E, NIF … consta como não residente em território português, pelo que a retenção na fonte, prevista no art. 71° do CIRS é a título definitivo, não existindo a opção pelo englobamento referida no parágrafo anterior.

Nos termos do n°1 do art. 103° do CIRS a retenção na fonte é exigível à A SGPS, ficando estes acionistas desobrigados de qualquer responsabilidade.

Tributação dos Acionistas Residentes

Relativamente aos acionistas residentes em território português, a obrigação de efetuar e entregar nos cofres do Estado a devida retenção na fonte compete à A SGPS, bem como os respetivos juros compensatórios.

 

yy)       Conclui-se no Relatório da Inspecção Tributária o seguinte:

 Da análise efetuada, foram apurados negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, à redução de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios, que constituem fundamento para proceder à aplicação da norma legal antiabuso prevista no n°2 do art. 38° da Lei Geral Tributária (LGT).

Da autorização para aplicação da norma antiabuso, a que se refere o n° 7 do art. 63° do CPPT, resulta a desconsideração, para efeitos fiscais, dos reembolsos já efetuados aos acionistas, a título de suprimentos e prestações suplementares, e consequente tributação como pagamento de dividendos, os quais se encontram sujeitos a retenção na fonte de IRS, conforme dispõe art° 71° n°1 alínea c) do CIRS. Foi apurado IRS não retido e não entregue nos cofres do Estado de €1.309.875,80, €1.287.420,00 e €1.397.500,00 respetivamente para os anos de 2009, 2010 e 2011, correções estas que se encontram discriminadas e fundamentadas no capítulo III do presente relatório, e que sucintamente se identificam:

 

zz)       A Requerente pagou aos seus accionistas as quantias referidas na alínea anterior, a título de reembolsos de suprimentos e prestações suplementares;

aaa)     Em 17-01-2013, o Senhor Chefe de Equipa da Direcção de Finanças de Lisboa proferiu despacho, reportando-se ao Relatório da Inspecção Tributária, nos seguintes termos:

Confirmo.

Face ao despacho do Exmº Sr. Diretor Geral da AT de 2012/11/14, exarado na informação n° … da DSPCIT de 2012/10/16 e de acordo com o teor do presente relatório, encontram-se reunidos os pressupostos para aplicação da cláusula geral antiabuso constante no n° 2 do art. 38° da LGT.

Assim vai-se proceder ao apuramento do IRS em falta nos termos do art. 71° n° 1 alínea c) e art.98°, ambos do CIRS (redacção atual) e artigos 81 ° e 84° da LGT, pelo que foi apurado IRS não retido e não entregue nos cofres do Estado:

2009 - Imposto em falta ..,€ 1.309.875,80

2010- " " €1.287.420,00

2011- " " €1.397.500,00

Foram elaborados os respectivos DC- únicos para efeitos das respetivas correções.

bbb)     Em 18-01-2013, a Senhora Directora de Finanças de Lisboa proferiu despacho nos seguintes termos, reportando-se ao Relatório da Inspecção Tributária e pareceres que sobre ele recaíram:

Concordo com o parecer da Directora adjunta e do Chefe de Divisão, bem como com o relatório da acção inspetiva, em anexo.

Dos fundamentos deles constante resulta que se encontram verificados os pressupostos legais e de facto para, mantendo-se a avaliação direta, proceder às correções técnicas propostas, nos termos dos artigos 98° e 101° do código do IRS, tem coma dos artigos 31° e 84° da LGT nos montantes propostos.

Neste contexto, determina-se:

• A elaboração dos documentos corretivos para efeitos de liquidação;

• A notificação do contribuinte com remessa de cópia do relatório

ccc)     A Requerente não procedeu a retenção na fonte de qualquer quantia relativamente aos pagamentos que efectuou aos seus accionistas nos anos de 2009, 2010, e 2011, a título de reembolsos;

ddd)    Na sequência dos actos referidos nas alíneas anteriores vieram ser efectuadas as seguintes demonstrações de liquidação e liquidações:

– a demonstração de liquidação de retenções na fonte de Imposto sobre o Rendimento (IR) em que se incluem a liquidação de IRS n.º 2013 ...02, de 30-01-2013, no montante de € 1.309.875,80, e correspondente demonstração de liquidação de juros compensatórios em que se inclui a liquidação n.º 2013 ...34, no montante de € 174.267,31, referentes ao ano 2009;

– da demonstração de liquidação de retenções na fonte de IR em que se incluem a liquidação de IRS n.º 2013 ...03, de 30-01-2013, no montante de € 1.287.420,00, e correspondentes liquidações de juros compensatórios em que incluem as liquidações n.ºs 2013 ...35 e 2013 ...36, nos montantes de € 51.686,94 e € 67.583,27, respectivamente, referentes ao ano 2010, e

– a demonstração de liquidação de retenções na fonte de IR em que se incluem a liquidação de IRS n.º 2013 ...04, de 30-01-2013, no montante de € 1.397.500,00, e correspondente liquidação de juros compensatórios em que se inclui a liquidação n.º 2013 ...37, no montante de € 78.719,45, referentes ao ano 2011.

eee)     Em 30-07-2103, a Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações referidas;

fff)      A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 24-04-2014, proferido pelo Senhor Director de Finanças Adjunto em regime de substituição, que manifesta concordância com o parecer que consta do documento n.º 1 junto com o requerimento de ampliação do pedido, cujo teor se dá como reproduzido;

ggg)     Em 27-02-2014, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados

 

Não se provou que a valorização das acções tivesse exclusiva ou principalmente obter vantagens fiscais.

 

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

            A matéria de facto foi fixada com base nos elementos que constam do Relatório da Inspecção Tributária. 

Quanto ao facto referido como não provado o juízo probatório baseia-se na total falta de elementos probatórios e ser perfeitamente admissível que a fixação dos valores das acções tivesse outros motivos, inclusivamente o cumprimento do dever previsto no artigo 63.º, n.º 1, do CIRC.

 

 

3. Matéria de direito

           

A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu aplicar à Requerente a cláusula geral antiabuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT

No caso em apreço, está em causa a transmissão para a Requerente de 974.453 acções representativas do capital social da A, SA, efectuada em 31-07-2009, pelo preço de € 60.000.000,00.

Para pagamento daquele preço, a Requerente financiou-se através de prestações suplementares no montante de € 47.500.000,00, e suprimentos no montante de € 12.500.000,00, realizados pelos accionistas na proporção da respectiva participação social.

Entendeu a Autoridade Tributária e Aduaneira que, sendo de € 3,50 o valor nominal de cada acção, a valorização das acções transmitidas acima do valor nominal teve o objectivo de possibilitar o reembolso diferido no tempo da referida quantia paga a título de suprimentos e de prestações suplementares, à medida da ocorrência da distribuição de dividendos pela A, SA.

Por isso, a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu, com base na aplicação da cláusula geral antiabuso, que às quantias pagas nos anos de 2009, 2010 e 2011 pela Requerente aos seus accionistas a título de reembolso, na parte em que excederam o valor nominal das acções alienadas, devem ser tratadas fiscalmente como se fossem dividendos que, por tranches, foram pagos aos accionistas, sem qualquer tipo de tributação em sede de IRS.

Assim, a Autoridade Tributária e Aduaneira quantificou em € 3.994.795,80 que liquidou relativamente àqueles três anos, juntamente com juros compensatórios no montante global de € 372.256,97, imputando o pagamento à Requerente, por entender que devia efectuar e não efectuou retenções na fonte relativamente às quantias pagas a título de reembolsos de suprimentos e prestações suplementares, que a Autoridade Tributária e Aduaneira entende deverem ser tratadas fiscalmente como se fossem dividendos.

A Requerente discorda do entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira e imputa aos actos de liquidação, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, por vários motivos, que agrupa desta forma, em suma:

– inexistência de obrigação tributária na esfera da Requerente;

– obrigatoriedade de observância do preço de mercado ao invés do valor nominal;

– mesmo considerando que foi a globalidade dos actos praticados que foi objecto de aplicação da cláusula geral antiabuso não se verificam os seus pressupostos.

 

3.1. Planeamento fiscal legítimo e ilegítimo

 

Nas definições elaboradas por SALDANHA SANCHES (…): o planeamento fiscal legítimo «consiste numa técnica de redução da carga fiscal pela qual o sujeito passivo renuncia a um certo comportamento por este estar ligado a uma obrigação tributária ou escolhe, entre as várias soluções que lhe são proporcionadas pelo ordenamento jurídico, aquela que, por acção intencional ou omissão do legislador fiscal, está acompanhada de menos encargos fiscais»; enquanto o planeamento fiscal ilegítimo «consiste em qualquer comportamento de redução indevida, por contrariar princípios ou regras do ordenamento jurídico-tributário, das onerações fiscais de um determinado sujeito passivo».

Dentro do quadro do planeamento fiscal podemos, assim, distinguir as situações em que o sujeito passivo actua contra legem, extra legem e intra legem.

Quando este actua contra legem, a sua actuação é frontal e inequivocamente ilícita, pois infringe directamente a lei fiscal, e configura uma fraude fiscal (…) passível, inclusive, de ser objecto de censura contra-ordenacional ou criminal.

A actuação extra legem ocorre quando o sujeito passivo aproveita de forma abusiva a lei para chegar a um resultado fiscal mais favorável, pese embora este não a violar directamente. Este adopta «um comportamento que tem como finalidade exclusiva ou principal contornar uma ou várias normas jurídico-fiscais, de modo a conseguir a redução ou a supressão do encargo fiscal» (…). Sendo que dessa ou dessas normas jurídico-fiscais se deve detectar uma tentativa de contornar «uma clara intenção de tributar afirmada pelos princípios estruturantes do sistema» (…). Este tipo de actuação é comummente designada de «fraude à lei fiscal» mas, conforme alerta SALDANHA SANCHES, pretendendo melhor ilustrar e distinguir estas situações das de fraude fiscal, é também designada de «evitação abusiva de encargos fiscais», «evitação fiscal abusiva» ou ainda «elisão fiscal» (…).

Só se afigura legítima – e, assim, planeamento fiscal legítimo ou não abusivo – a actuação intra legem. Com efeito, a obtenção de uma poupança fiscal não constitui um comportamento proibido pela lei, desde que a actuação não se enquadre na supra referida actuação extra legem (…).

Assim sendo, a questão colocada a este tribunal, na sequência do procedimento de aplicação da cláusula geral antiabuso — um dos mecanismos legais a que o legislador recorre para dar resposta aos comportamentos de planeamento fiscal abusivo —, reside em saber se a actuação dos sujeitos passivos se situa ou não extra legem, ou seja, se há um planeamento fiscal ilegítimo, se ele foi abusivo.

 

3.2. Elementos da cláusula geral antiabuso

 

 

Sob a epígrafe «Ineficácia de actos e negócios jurídicos», dispõe o artigo 38.º, n.º 2 da LGT em relação à denominada cláusula geral antiabuso (CGAA) no direito tributário.

A letra plasmada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, passou a ser a seguinte:

 

«São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas».

 

Esta norma é complementada pelo extenso artigo 63.º do CPPT, que contém um conjunto disposições que concretizam os parâmetros conformadores do procedimento de aplicação das disposições antiabuso.

A doutrina e a jurisprudência têm vindo a desconstruir a letra da norma apontando cinco elementos nela patentes. Correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatro afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir – como se de um teste se tratasse – quanto à verificação de uma actividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo (…).

Estes elementos, em torno dos quais ambas as partes aliás constroem a sua argumentação, consistem:

– no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida – acto ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de actos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal (…);

– no elemento resultado, que contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos actos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente (…);

– no elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja «essencial ou principalmente dirigid[a] [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objectivamente, se o contribuinte «pretende um acto, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam» (…);

– no elemento normativo, que «tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela »(…);

– e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT).

Apesar desta desconstrução, a análise dos elementos não pode ser estanque, pois, como realça COURINHA, «a fixação de um elemento pode, na prática, depender de um outro», pelo que estes «não deixarão com frequência [...] de auxiliar-se mutuamente» (…).

Apreciemos, tendo este aspecto em consideração, os elementos da cláusula geral antiabuso à luz da fundamentação da decisão, os factos provados, e a argumentação jurídica das partes, designadamente os vícios que a Requerente imputa.

Nesta análise, tem de partir-se do pressuposto de que a fundamentação do acto que decidiu a aplicação da cláusula geral antiabuso que se tem de apreciar é apenas a que consta do próprio acto e elementos para que remete, pois o processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por actos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele]. Por isso, os actos que são objecto do processo têm de ser apreciados tal como foram praticados, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos.

 

3.3. Questão da inexistência de obrigação tributária na esfera da Requerente

 

3.3.1. Posição da Requerente

 

A primeira questão suscitada pela Requerente é a da inexistência de obrigação tributária na esfera da Requerente que coloca sob várias perspectivas:

– por a aplicação da cláusula geral antiabuso não dever ser aplicada ao substituto tributário;

– por não estarem preenchidos em relação à Requerente os pressupostos da cláusula geral antiabuso;

– por a obrigação de efectuar a retenção depender da verificação dos respectivos pressupostos típicos previstos na norma que estabelece o dever de retenção, no caso de serem pagos dividendos, o que não sucedeu;

– por a obrigação de retenção na fonte ser um dever autónomo, vinculado e sujeito ao princípio da legalidade, insusceptível de ser ficcionado por via da aplicação da cláusula geral antiabuso;

– os destinatários da cláusula geral antiabuso em relação aos quais, de resto, se deverão verificar os correspondentes elementos, são os titulares do rendimento que supostamente é atribuído, não sendo admissível deferir a terceiros, por via de uma responsabilidade que lhes advém da mera intervenção no pagamento, a responsabilidade originária do imposto devido em resultado da desconsideração a posteriori da natureza jurídica dos actos de pagamento em que efectivamente interveio;

– sendo os beneficiários da alegada vantagem fiscal os accionistas da Requerente, é sobre estes, e não sobre a Requerente, que recai a obrigação de pagamento de imposto;

– interpretar-se a cláusula geral antiabuso no sentido de produzir efeitos fiscais sobre terceiros que não o contribuinte que agiu motivado para a obtenção de vantagem fiscal, para além de constituir violação do princípio da determinação legal da obrigação de retenção na fonte, atenta contra outros princípios da Constituição da República Portuguesa.

 

3.3.2. Posição da Autoridade Tributária e Aduaneira

 

            Não se encontra quer na longa Resposta da Autoridade Tributária e Aduaneira quer nas alegações qualquer referência específica a esta questão, especialmente na vertente essencial da ligação entre a aplicação da cláusula geral antiabuso e a não produção de vantagens fiscais que se refere na parte final do n.º 2 do artigo 38.º da LGT: «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas».

É de notar mesmo que no artigo 71.º da Resposta, a Autoridade Tributária e Aduaneira reproduz o n.º 2 do artigo 38.º, mas omite esta parte do texto, e em todo o articulado não se inclui sequer a palavra «produzindo».

Por outro lado, o único ponto em a Autoridade Tributária e Aduaneira faz uma referência genérica em que pode detectar alguma conexão com esta primeira questão colocada pela Requerente da inexistência de obrigação tributária na esfera da Requerente é a que consta do artigo 63.º das alegações, em que refere que «impõe-se, por isso, reconstituir a situação tributária que existira caso não se tivesse verificado o esquema abusivo, tributando pela substancia económica e de acordo com a sua real capacidade contributiva, na salvaguarda da prossecução da justa repartição da carga tributária e na prossecução das necessidades financeiras do Estado (ver artigo 103º nº. 1 da CRP)» o que corrobora a tese da Requerente, já que a realidade em termos de substância económica é inequivocamente a de os accionistas - e não a Requerente - terem recebidos quantias sem pagarem IRS e a capacidade contributiva que este imposto visa tributar é a das pessoas singulares e não a das pessoas colectivas a quem legalmente são impostas obrigações de cobrança, obrigações estas que não dependem da capacidade contributiva do cobrador mas do destinatário das quantias que devem ser cobradas.

 

3.3.3. Apreciação da questão

 

Como se referiu, o artigo 38.º, n.º 2, da LGT estabelece que

 

São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.

 

A pertinência das questões colocadas pela Requerente é manifesta, apesar de não ser habitualmente colocada nos processos que têm por objecto a aplicação da cláusula geral antiabuso e, por isso, não ser objecto de decisões jurisdicionais, em face da limitação dos poderes de cognição dos tribunais pelos vícios (causas de pedir) imputadas aos actos impugnados.

Na verdade, a parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT (redacção da Lei n.º pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro), ao estabelecer as consequências da aplicação da cláusula geral antiabuso «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» aponta decisivamente no sentido de a aplicação ter de ser efectuada em moldes que permitam afastar a produção das vantagens fiscais.

Com efeito, embora a primeira parte deste artigo 38.º, n.º 2, contenha uma aparente distinção entre os objectivos visados pelo contribuinte entre «redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico e «obtenção de vantagens fiscais», é manifesto que o que está causa na redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos é sempre a obtenção de vantagens fiscais, tendo a referência expressa e genérica às vantagens fiscais apenas o objectivo de estender o alcance da norma a quaisquer vantagens fiscais, para além das especificamente indicadas, que são claramente os casos mais frequentes de concretização das vantagens fiscais, que são a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos.

Isto é, com a redacção dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, a cláusula geral antiabuso passou a poder aplicar-se a todas as situações de obtenção vantagens fiscais e não apenas às situações de redução ou eliminação dos impostos, já previstas na redacção inicial, e à de diferimento temporal, que também foi expressamente aditada na nova redacção. (…)

A esta luz, a referência feita na parte final do artigo 38.º, n.º 2, à não produção das «vantagens fiscais referidas» reporta-se a todas as referidas, quer as mais comuns que são especificamente referidas (redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos) quer as genericamente referidas, através da alusão às «vantagens fiscais que não seriam alcançadas».

Aliás, nem outra interpretação seria constitucionalmente admissível, já que, tratando-se, em todos os casos de obtenção de vantagens fiscais abusivas, seria arbitrária e violadora do princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º da CRP) uma hipotética distinção de tratamento entre as situações expressamente referidas e as genericamente referidas.

Sendo esta eliminação das vantagens fiscais o manifesto objectivo da cláusula geral antiabuso, o destinatário da aplicação, em cujo património se irão produzir os efeitos da aplicação, não pode deixar de ser quem usufruiu dessas vantagens fiscais.

No caso em apreço, as vantagens fiscais detectadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira que justificaram a aplicação da cláusula geral antiabuso não se verificaram no património da Requerente, pois todas as quantias que pagou sem retenção na fonte foram entregues aos seus accionistas.

A existirem vantagens fiscais indevidas na situação em apreço, designadamente por parte das quantias recebidas dever ser tributada a título de dividendos, como defende a Autoridade Tributária e Aduaneira, é manifesto que quem as obteve foram os accionistas, que receberam as quantias sem qualquer dedução de imposto, e não a Requerente, que pagou integralmente as quantias em causa.

Sendo os accionistas os beneficiários das vantagens referidas, a aplicação da cláusula geral antiabuso nos termos em que foi efectuada não permite afastar essas vantagens, pois, impondo à Requerente o pagamento das quantias equivalentes a essas vantagens, é apenas a ela que é imposto estes ónus, permanecendo os accionistas na titularidade intacta das quantias recebidas.

É certo que se pode aventar que, mais cedo ou mais tarde, o prejuízo patrimonial com a tributação que é imposta à sociedade se repercutirá sobre os accionistas, mas é também evidente que isso pode não suceder em relação aos accionistas que beneficiaram das vantagens indevidas, pois podem deixar de ser accionistas antes de o prejuízo imposto à sociedade ter uma efectiva repercussão no valor das suas acções. Apesar de, no caso em apreço, se estar perante uma sociedade com uma estrutura accionista que tem mantido considerável estabilidade, não deixaram de existir alterações, relatadas na matéria de facto fixada, e não há qualquer certeza de que isso não se possa vir a repetir.

No entanto, a interpretação da parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, como norma jurídica tributária de que resulta a imposição de tributação, não pode deixar de ter em conta a característica da generalidade, indispensável nas normas de tributação por força do disposto no artigo 5.º, n.º 2, da LGT, que é corolário do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos. Por isso, a interpretação correcta do artigo 38.º, n.º 2, terá de valer generalizadamente, em relação a qualquer tipo de sociedades anónimas, inclusivamente as cotadas em bolsa em que a estrutura accionista se altera constantemente, relativamente às quais é evidente que a imposição da tributação à sociedade por com a sua intermediação os accionistas terem criado para si próprios vantagens fiscais indevidas não ter qualquer efeito sobre quem usufruiu dessas vantagens e deixou, depois, de ser accionista.

Ora, a esta luz, é evidente que o alcance daquele artigo 38.º, n.º 2, ao estabelecer como efeito necessário da aplicação da cláusula geral antiabuso a não produção das vantagens fiscais, pressupõe o entendimento legislativo de que a «tributação de acordo com as normas aplicáveis» incida sobre quem obteve as vantagens e não sobre quem meramente teve intervenção nos actos de que elas resultam sem beneficiar daquelas, pois só assim, é possível garantir o efeito pretendido de não se produzirem as vantagens fiscais especialmente ou genericamente referidas.

Na verdade, conclui-se da parte final do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redacção da Lei n. 30-G/2000, que a cláusula geral antiabuso não tem em vista meramente atribuir à Administração Tributária compensação por actos que lhe tenham provocado perda de receita fiscal, antes visa, concomitantemente, eliminar as vantagens fiscais ilegítimas que alguém obteve, o que revela que lhe estão subjacentes preocupações de igualdade e justiça tributária, que só podem satisfazer-se com a imposição da tributação omitida a quem obteve essas vantagens.   

De resto é esta a única interpretação que se compatibiliza com o princípio constitucional da tributação segundo a capacidade contributiva (artigo 104.º, n.º 2, da CRP) e o princípio da tributação com respeito pela justiça material (artigo 5.º, n.º 2, da LGT).

Com efeito, estes princípios impõem que seja tributado em impostos sobre o rendimento quem obteve os rendimentos e não quem os não obteve e o valor da justiça material é claramente violado quando, numa situação em que existam vantagens fiscais indevidas, vá ser exigida a quantia correspondente a quem não beneficiou dessas vantagens, deixando intocados os que indevidamente delas beneficiaram.

Na verdade, a existir dever de retenção na fonte a título definitivo nos pagamentos a efectuar pelo substituto tributário, não há qualquer disposição legal que lhe assegure a possibilidade de reaver a quantia que tiver de pagar, mesmo que não tenha efectuado a retenção, pois a responsabilidade do substituído é meramente subsidiária, por força do disposto no n.º 3 do artigo 103.º do CIRS, e não existe qualquer disposição legal que assegure direito de regresso do responsável originário em relação ao subsidiário. Nestas situações enquadráveis no n.º 3 do artigo 103.º do CIRS, vale plenamente a regra do artigo 21.º do mesmo Código, em que se estabelece que «quando, através de substituição tributária, este Código exigir o pagamento total ou parcial do IRS a pessoa diversa daquela em relação à qual se verificam os respectivos pressupostos, considera-se a substituta, para todos os efeitos legais, como devedor principal do imposto, ressalvado o disposto no artigo 103.º». (…)

Por outro lado, nem mesmo é de aventar a possibilidade de, com fundamento na lei civil, a Requerente reaver o que pagou na medida do enriquecimento dos accionistas, com fundamento em enriquecimento sem causa, pois a aplicação da cláusula geral antiabuso apenas permite considerar ineficazes os negócios ou actos «no âmbito do direito tributário», como resulta do texto do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, pelo que os negócios celebrados mantêm a sua plena eficácia para efeitos cíveis e, em termos do direito civil, a recepção integral das quantias recebidas pelos accionistas tem causa jurídica, pois é a contrapartida da transmissão das acções destes para a Requerente, no âmbito da compra e venda.

Sendo assim, é seguro que a redacção do n.º 2 do artigo 38.º da LGT introduzida pela Lei n.º 30-G/2000, ao determinar como efeito da aplicação da cláusula geral antiabuso a não produção das vantagens fiscais indevidas, pressupõe que o destinatário da aplicação seja quem delas usufrui, pois os efeitos da aplicação não são transmissíveis do substituto para o substituído. (…)

            Por isso, no caso em apreço, não tendo a Requerente usufruído qualquer vantagem fiscal, está afastada a possibilidade de ser responsabilizada pelo pagamento das quantias correspondentes às vantagens fiscais indevidas que a Autoridade Tributária e Aduaneira invoca.

Refira-se ainda no âmbito desta questão da aplicação da cláusula geral antiabuso ao substituto tributário, que a Requerente também tem razão ao defender que «estando ínsita no momento em que tem lugar a obrigação de retenção na fonte a natureza da obrigação pecuniária que se está a cumprir, é evidente que o devedor dos rendimentos não pode desvincular-se da mesma, independentemente dos efeitos fiscais que venham a ser desconsiderados a posteriori mediante juízo decisório e procedimento específicos».

Na verdade, o tratamento como se fossem dividendos das quantias pagas pela Requerente a título de reembolsos de prestações suplementares ou suprimentos não podia ser decidido pela própria Requerente nos momentos em que fez os pagamentos, pois, independentemente do que a Requerente pudesse entender sobre a verificação dos requisitos da aplicação da cláusula geral antiabuso, esta aplicação e a consequente ineficácia fiscal dos negócios efectivamente praticados tinha, de ser precedidas obrigatoriamente de autorização do dirigente máximo do serviço (artigo 63.º, n.º 7, do CPPT) que, obviamente, não podia existir no momento em que a Requerente fez os pagamentos.

Isso significa que, mesmo que entendesse que se verificavam os requisitos da aplicação da cláusula geral antiabuso, nos momentos em que a Requerente fez os pagamentos não tinha qualquer fundamento legal para efectuar a retenção na fonte sobre pagamentos que eram e são reembolsos em termos de direito civil, o que conduz necessariamente à conclusão de que não existia dever legal de retenção na fonte.

  Isto é, o próprio regime legal da aplicação da cláusula geral antiabuso, que depende de uma autorização prévia obrigatória do dirigente máximo do serviço, é incompatível com a sua aplicação retroactiva a normas de conduta («regula agendi») impostas aos sujeitos passivos dos tributos, como é o caso das normas que impõem a retenção na fonte, pois a própria natureza destas normas impõe que a sua aplicação só se faça depois de estarem reunidos os requisitos legais da sua aplicação.

As normas de direito fiscal que vão dirigidas à vontade dos sujeitos das relações jurídicas tributária, visando determinar os seus comportamentos, não podem ter a pretensão inviável de influenciar condutas que são anteriores à verificação dos pressupostos da sua aplicação.

Por isso, tendo o cumprimento de deveres de retenção na fonte de tributos de ser contemporâneo dos actos de pagamento previstos na lei, esses deveres só podem ser impostos por regulae agendi, normas eficazes no momento em que se devem materializar esses deveres, nunca podendo ser determinados a posteriori, depois de ultrapassado o momento em que os actos de pagamento se concretizaram, por efeito de uma decisão casuística do dirigente máximo do serviço, proferida ao abrigo de uma regula decidendi, dirigida ao aplicador do direito, como é a do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, que, pela sua natureza, não pode influenciar condutas ocorridas anteriormente. ( [1] )

O que se reconduz a que, pela própria natureza do dever de retenção na fonte, a aplicação da cláusula geral antiabuso, dependente de uma verificação a posteriori dos requisitos da sua aplicação, não pode originar deveres de retenção na fonte que não existiam no momento em que foram praticados os actos ou negócios considerados abusivos de que emergiu uma vantagem fiscal indevida, à face circunstancialismo factual e jurídico existente nesse momento.

De qualquer modo, é esta a única interpretação constitucionalmente admissível pois, se a norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT fosse interpretada como admitindo a oponibilidade dos efeitos da aplicação da cláusula geral antiabuso ao substituto tributário, designadamente a imposição dos efeitos do incumprimento de um dever de retenção na fonte que não existia à face do negócio efectivamente celebrado, num contexto em que não está legalmente assegurada a viabilidade de reaver as quantias não retidas cujo dever de retenção é determinado a posteriori, seria materialmente inconstitucional, à face dos princípios da proporcionalidade e do direito a propriedade (artigos 18.º, n.º 2, e 62.º, n.º 1, da CRP).

Com efeito, estando a existência de um dever de retenção na fonte dependente da natureza jurídica dos pagamentos efectuados e só sendo possível considerar ineficaz para efeitos fiscais o negócio celebrado depois de uma autorização casuística do dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência, o potencial substituto tributário ficaria juridicamente impossibilitado de impedir uma diminuição patrimonial provocada por dívidas fiscais de outrem, pois, no momento em que efectuou os pagamentos, não tinha fundamento legal para efectuar retenção na fonte e esse dever só surgiria, com efeito retroactivo, na sequência da aplicação da cláusula geral antiabuso que permitisse considerar fiscalmente ineficaz o negócio celebrado, sem possibilidade de reaver o que teria de pagar, nos casos de retenção a título definitivo em que o substituo é o devedor originário.

            Nestes termos, tem de se concluir pela ilegalidade dos actos impugnados por violação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

 

3.3.4. Vícios de conhecimento prejudicado

 

Pelo que se disse, o acto impugnado enferma de vício de erro sobre os pressupostos de direito, que justifica a sua anulação (artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo), pelo que o pedido principal deve ser julgado procedente.

Trata-se de anulação com fundamento num vício que atribui à Requerente estável e eficaz tutela dos seus interesses, já que dela decorre, em relação à Requerente, inviabilidade da renovação dos actos cuja declaração de ilegalidade pediu.

Sendo assim, em conformidade com o preceituado no artigo 124.º, n.º 2, do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, fica prejudicado o conhecimento dos outros vícios imputados aos actos que são objecto do presente processo, pois o estabelecimento de uma ordem de conhecimento de vícios só se justifica pelo entendimento legislativo de que, procedendo a impugnação com fundamento num vício que proporcione eficaz e estável tutela dos interesses do impugnante, deixa de se conhecer dos restantes. Na verdade, se fosse sempre necessário conhecer de todos os vícios imputados ao acto impugnado, seria indiferente a ordem do seu conhecimento.

 

 

4. Decisão

 

 

            De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)         Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral por não se verificar em relação à Requerente um dos pressupostos legais de aplicação da cláusula geral antiabuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT;

b)         Declarar a ilegalidade dos seguintes actos:

– demonstração de liquidação de retenções na fonte de Imposto sobre o Rendimento (IR) em que se incluem a liquidação de IRS n.º 2013 ...02, de 30-01-2013, no montante de € 1.309.875,80, e correspondente demonstração de liquidação de juros compensatórios em que se inclui a liquidação n.º 2013 ...34, no montante de € 174.267,31, referentes ao ano 2009;

– demonstração de liquidação de retenções na fonte de IR em que se incluem a liquidação de IRS n.º 2013 ...03, de 30-01-2013, no montante de € 1.287.420,00, e correspondentes liquidações de juros compensatórios em que incluem as liquidações n.ºs 2013 ...35 e 2013 ...36, nos montantes de € 51.686,94 e € 67.583,27, respectivamente, referentes ao ano 2010, e

– demonstração de liquidação de retenções na fonte de IR em que se incluem a liquidação de IRS n.º 2013 ...04, de 30-01-2013, no montante de € 1.397.500,00, e correspondente liquidação de juros compensatórios em que se inclui a liquidação n.º 2013 ...37, no montante de € 78.719,45, referentes ao ano 2011.

c)         Anular as liquidações referidas;

d)        Considerar prejudicado e não tomar conhecimento dos restantes vícios imputados aos actos cuja declaração de ilegalidade foi pedida.

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC de 2013, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 4.367.052,77.

 

Lisboa, 19-12-2014

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

(Ricardo da Palma Borges) com declaração de voto

 

(Manuel Pires)

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

Votei favoravelmente o Acórdão, acompanhando a posição que logrou vencimento, que subscrevo integralmente, com uma única ressalva quanto a um dos seus fundamentos. Assinalo três aspectos que me parecem relevantes e merecedores de declaração.

1.         Há no texto do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, duas previsões: i) “São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico”; ii) “[São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas] à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”.

A este respeito subscrevo o Acórdão quando afirma: “A esta luz, a referência feita na parte final do artigo 38.º, n.º 2, à não produção das «vantagens fiscais referidas» reporta-se a todas as referidas, quer as mais comuns que são especificamente referidas (redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos) quer as genericamente referidas, através da alusão às «vantagens fiscais que não seriam alcançadas»”.

Para começar, a ter de fazer escolhas – que de todo não me parecem necessárias - diria que as vantagens fiscais “referidas”, a serem apenas umas, seriam até as expressamente mencionadas: precisamente a “redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos”. A norma fala da “obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente”, primeiro, e das “vantagens fiscais referidas” depois. Verdadeiramente referidas, strictu sensu, são apenas a “redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos”; meramente aludidas, lato sensu, são as “vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente”.

Por outro lado, não se pode colocar em causa que a “redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos” são verdadeiras vantagens fiscais, porventura as mais prototípicas – ainda que possa haver outras, por exemplo as advenientes de uma absorção artificiosamente acelerada de prejuízos fiscais reportáveis que se encontrassem prestes a expirar, que se situariam precisamente no âmbito da previsão ii).

Se me parece aceitável distinguir, no âmbito da norma, a existência de duas previsões [a i) e a ii) elencadas supra] entendo que há apenas uma estatuição, desde logo por força da copulativa “e” em “efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”.

Seria um raciocínio assaz formal entender que quando i) “São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico” apenas se efectuaria “a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência”. Ora, essa tributação substitutiva não teria como efeito óbvio e concomitante a não produção das vantagens fiscais referidas [mais precisamente a não produção da redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos]?

Tal como formal seria supor que quando ii) “São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios” apenas não se produziriam as vantagens fiscais referidas. Não se produziriam estas, é certo, mas o que se produziria então? Certamente que o preenchimento da previsão normativa do facto tributário tentado contornar, constante das normas aplicáveis na ausência da utilização dos meios artificiosos ou fraudulentos…

Penso, deste modo, que a leitura que o Acórdão efectuou do texto do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, e em particular do conceito de “vantagens fiscais”, tem não só apoio literal como é a que teleologicamente melhor salvaguarda a sua materialidade subjacente, na sua consequência de exigir que a Autoridade Tributária e Aduaneira persiga as vantagens fiscais alegadamente abusivas junto daqueles que verdadeiramente as possam ter auferido.

2.         A cláusula geral antiabuso, ao menos no ordenamento jurídico português, supõe um procedimento de aplicação próprio, constante do artigo 63.º do CPPT, o qual apenas está na disponibilidade do dirigente máximo do serviço da Autoridade Tributária ou Aduaneira ou do funcionário em quem ele tiver delegado essa competência.

            O artigo 38.º, n.º 2, da LGT não é uma norma exequível por si mesma, à margem do procedimento do artigo 63.º do CPPT, que os particulares possam aplicar entre si (rectius uns contra os outros). Não vejo como possam estar cometidos aos contribuintes juízos como os de saber, num caso como o dos autos, se accionistas e sociedade seriam partes num abuso, ou se a sociedade seria antes um instrumento do abuso dos accionistas. Verificam-se aliás já, a respeito do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, decisões contraditórias relativamente a factualidades idênticas, nomeadamente quanto ao carácter abusivo ou não de transformações de sociedades por quotas em anónimas. Se tal é assim no âmbito de qualificados Tribunais imagine-se o caos que seria se os contribuintes tivessem livre-trânsito para aplicar o artigo 38.º, n.º 2, da LGT entre si. Avisadamente, o legislador não aceitou que os particulares, sob a invocação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, pudessem esgrimir uns contra os outros as suas visões sobre a tributação verdadeiramente devida sobre os respectivos actos ou negócios.

            Em tese, e salvo melhor ponderação, aceitaria a ideia de que o substituto teria o dever de retenção na fonte face ao substituído, mas apenas “Em caso de simulação de negócio jurídico, [porquanto nesta] a tributação recai sobre o negócio jurídico real e não sobre o negócio jurídico simulado”, segundo o comando directo do artigo 39.º, n.º 1, da LGT   e somente nos casos que o substituto é parte na simulação ou dela tem conhecimento. Mas não posso aceitar tal ideia em casos de hipotética aplicabilidade da cláusula geral antiabuso: aplicador desta não é o particular, mas sim, em primeira linha, o dirigente máximo do serviço da Autoridade Tributária ou Aduaneira ou o funcionário em quem ele tiver delegado essa competência e, em ultima ratio, um Tribunal, judicial ou arbitral.

3.         Na minha opinião, não se pode presumir um substituto tributário, por força do artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

Assim, voto favoravelmente o acórdão quanto ao ponto 3.3.3. com fundamento na total eficácia civil e mera ineficácia fiscal dos actos ou negócios jurídicos fiscalmente abusivos, e também porque, no dizer do Acórdão, “o próprio regime legal da aplicação da cláusula geral antiabuso, que depende de uma autorização prévia obrigatória do dirigente máximo do serviço, é incompatível com a sua aplicação retroactiva a normas de conduta («regula agendi») impostas aos sujeitos passivos dos tributos, como é o caso das normas que impõem a retenção na fonte, pois a própria natureza destas normas impõe que a sua aplicação só se faça depois de estarem reunidos os requisitos legais da sua aplicação”. 

Ou seja, in casu, a sociedade só seria verdadeira parte se fosse substituto tributário, mas para ser substituto tributário teria que se demonstrar o abuso fiscal (dos accionistas) e aceitar a requalificação proposta (de reembolso de suprimentos e prestações em dividendos) podendo imaginar-se que, mesmo que existisse abuso, a solução para o desconsiderar fosse outra (ficcionar-se, por exemplo, que os accionistas eram ainda os “titulares fiscais” das acções alienadas à sociedade, as quais, quando vendidas por esta, seriam tributáveis não em IRC mas em IRS, na esfera daqueles; neste caso ainda que houvesse abuso nunca poderia existir substituto tributário).  Se não houvesse tal abuso a sociedade não assumiria sequer a qualidade de substituta tributária em que foi demandada. Esta construção da Autoridade Tributária e Aduaneira, ínvia, de ir à volta em direcção à sociedade em vez de tomar o caminho curto de directamente perseguir os seus accionistas, tem o seu quê de circulus in demonstrando, e fere o sistema que para a cláusula geral antiabuso resulta do artigo 38.º, n.º 2, e do artigo 63.º do CPPT.

            Mesmo que fosse lícito presumir um substituto tributário (e não o é), como poderia a sociedade ter direito de regresso sobre os accionistas substituídos quanto a impostos que lhe fossem liquidados a ela substituto por actos ou negócios jurídicos fiscalmente abusivos, dada a total eficácia civil e mera ineficácia fiscal dos mesmos? Mas mesmo admitindo, por mera hipótese de raciocínio, que o tivesse, como se operaria tal direito de regresso?

(i)        a sociedade demandaria civilmente os accionistas, ao que estes invocariam que não foram parte no processo fiscal cuja sentença estabeleceu o suposto “crédito com origem fiscal” da sociedade sobre eles;

 

(ii)       não creio que pudesse ser objecto da acção civil o bem ou mal fundado desse “crédito com origem fiscal”. O Tribunal Judicial não poderia escrutinar se o Tribunal Tributário decidiu mal ou bem a questão tributária. Nesse sentido, a respeito da substituição tributária, afirma Manuel Faustino, in “Substituição Tributária – Alguns Aspectos” in IRS de Reforma em Reforma, Áreas Editora, Lisboa, 2003, pp. 538-539 “Poderá argumentar-se que às entidades substituídas, no que diz respeito ao imposto, sempre assiste o direito de invocar a sua discordância quanto à sua exigibilidade e ao seu montante e, até, que já efectuaram o seu pagamento. Não me parece que, num processo cível como aquele em que o direito à restituição tem de ser exercido, tais argumentos possam ter qualquer relevância. Desde logo, por uma questão de competência em razão da matéria. As questões fiscais, maxime as questões de qualificação ou de exigibilidade de impostos estão afastadas, pela sua natureza, do conhecimento dos tribunais comuns. E nem sequer me parece que pudessem constituir uma questão prejudicial, de tal modo que o processo cível de restituição ficasse suspenso até que o tribunal tributário competente se pronunciasse sobre aquelas matérias";

 

(iii)      não seria pois admissível, à luz dos mais elementares princípios jurídico-constitucionais relativos à defesa dos réus e às garantias dos contribuintes (cfr., na Constituição da República Portuguesa, o artigo 20.º, n.º 4, a respeito do processo equitativo, o artigo 103.º, n.º 2, a respeito das garantias dos contribuintes, e o artigo 268.º, n.º 4, em sede de tutela jurisdicional efectiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos administrados; cfr. ainda os respectivos artigos 17.º e 18.º) que esse “crédito com origem fiscal” pudesse ser assumido como um caso julgado relativamente ao qual apenas restaria efectuar uma espécie de reversão da sociedade contra os accionistas, executando-os, sem que estes tivessem alguma vez intervindo no próprio processo fiscal. A menos que nascessem depois na esfera destes accionistas “revertidos civis”, executado o direito de regresso, direitos procedimentais e processuais de agir, em sede tributária, contra o Estado, reabrindo a discussão do próprio abuso (mas como se já haveria caso julgado no processo que tinha oposto o Estado à sociedade?).

Esta digressão demonstra como o caminho trilhado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, para além de atentar contra o sistema que para a cláusula geral antiabuso resulta do artigo 38.º, n.º 2, e do artigo 63.º do CPPT, geraria questões de uma extrema complexidade, para não dizer insolubilidade.

Todavia, entendo que - fora do caso do artigo 38.º, n.º 2, da LGT (em que não me parece lícito “presumir substitutos”) -, o substituto tributário que é adicionalmente liquidado pela Autoridade Tributária e Aduaneira por retenções de imposto que eram devidas a título definitivo e liberatório e que não foram efectuadas, pode, pelo menos num contexto civil (e no limite com fundamento no empobrecimento sem causa de ter pago impostos de outrem, vero titular da capacidade contributiva), tentar exercer um direito de regresso sendo que se o substituto for diligente, no âmbito do procedimento e processo tributário, deverá explorar todas as formas admissíveis de fazer intervir no mesmo o substituído, para posteriormente lhe poder legitimamente opor as consequências finais que daqueles venham a resultar. Nesse sentido, Manuel Faustino, cit., p. 539: “Mas os pressupostos de facto da tributação verificam-se, como vimos, no substituído. Só este, portanto, pode, com legitimidade e conhecimento de causa, contestá-los. E terá de fazê-lo em sede própria, isto é, no tribunal tributário, seja de modo autónomo, seja constituindo-se como assistente se o … [substituto] entender dever impugnar ele próprio as liquidações”. 

No limite, se o substituto não desse conhecimento ao substituído do procedimento e processo tributário de liquidação adicional que corresse apenas contra si substituído, e aquele viesse a ser surpreendido pela questão apenas em sede de acção cível, das duas uma: (i) ou o Tribunal determinava que a circunstância de o substituto tributário não ter feito intervir o substituído no procedimento e processo tributário o impossibilitava de exercer o direito de regresso, por assim estarem negadas as garantias de defesa fiscal do substituído; (ii) ou o Tribunal determinava ainda assim o pagamento pelo substituído do montante da dívida tributária ao substituto, caso em que na esfera do primeiro deveriam (re)nascer então direitos procedimentais e processuais de agir, em sede tributária, perante o Estado.

Não me parece, portanto, que o sistema dos artigos 21.º e 103.º do Código do IRS, ou dos artigos 20.º e 28.º da LGT, possa obstar, em geral, a um direito de regresso do substituto sobre o substituído, pois entendo que tais normas apenas regulam as posições daqueles face ao sujeito activo da relação jurídico-tributária, mas não as relações daqueles entre si. Pelo que não acompanho o fundamento de que o sistema geral de retenção na fonte (mesmo que definitiva e liberatória) vigente em Portugal nega ao substituto um direito de regresso sobre o substituído. Tal conclusão sacrificaria totalmente princípios constitucionais: os da capacidade contributiva do substituto, que seria onerado, e do substituído, que seria desonerado, ambos em definitivo. Julga-se que existe no sistema jurídico uma solução que compatibiliza tais princípios com os relativos às garantias de defesa dos contribuintes, em obediência aos comandos do artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, na linha do que sugerem as transcrições supra de Manuel Faustino.

 

 

(Ricardo da Palma Borges)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

 

 

Votei vencido, considerando no voto e por ser o que ora interessa, apenas o constante do 3.3.3. do acórdão, isto é, a fundamentação para se «Julgar procedente o pedido de pronuncia arbitral por não se verificar em relação à Requerente um dos pressupostos legais de aplicação da cláusula geral antiabuso prevista no artº 38º, nº 2 da LGT».

 

O argumento das "vantagens fiscais" constante do acórdão é improcedente, visto não só não ter  atendido, na sua inteireza, à evolução do citado artigo 38º nº 2 – a parte final invocada surge concomitantemente com o estabelecimento do segundo objectivo do negócio abusivo, não aqui aplicável,  aditado pela modificação do preceito, o que, aliás, é reforçado com o qualificativo "referidas" relativo às" vantagens" aditadas, conforme resulta da redacção, e não a algo não mencionado – como não considerou  a natureza disjuntiva e não copulativa da conjunção na primeira inclusão das "vantagens" (a segunda inclusão antecedida por "e" tem de ser interpretada com subordinação à disjuntiva principal e ainda mais, repete-se, pela inclusão do vocábulo "referidas", isto é, conexionado com o segundo objectivo incluído na modificação).  E, aliás, antes da enunciação do segundo objectivo do abuso, não se utiliza, como teria sido no caso de se ter querido consagrar, como se escreveu no acórdão, a generalização das vantagens, o determinativo "outras" vantagens ou ainda " quaisquer outras" vantagens. Portanto, a distinção entre os objectivos incluídos na disposição sob exame não é aparente, mas efectiva, reportando-se as «referidas vantagens» ao segundo objectivo enunciado.

 

Aliás, ao contrário da decisão, a diminuição patrimonial, resultante da retenção, não fica, em qualquer dos casos visando os objectivos mencionados, limitada ao substituto (caso de retenção definitiva, referido no acórdão), atento o substituto ter direito de regresso disponibilizado pelos princípios do nosso ordenamento jurídico aplicáveis conforme as circunstâncias concretas, sendo esse direito integrante do regime da substituição e  a   final  quem  sofre  a  diminuição  patrimonial  é  quem  auferiu  o rendimento. Entender que tal pode não suceder – em virtude de se poder deixar de ter a qualidade  de  sócio  por  parte  do  substituído  –  é  por  em causa  todo  o  instituto  da substituição não só para o caso da aplicação do artigo 38º nº 2 LGT – argumento ad consequentiam ou ad terrorem que só por si não convence – como para qualquer outro, importando  sublinhar  que,  se  o  substituto  não  recuperar  o  que  pagou,  a  situação resultará  de  uma  omissão  a  ele  imputável,  porque  se  a  retenção  tivesse  sido feita  conforme a lei, tal não aconteceria, não existindo sequer a necessidade do direito de regresso. Aliás, o instituto da substituição pode implicar legalmente, no caso de impossibilidade de exercício do direito de regresso, a não existência de capacidade contributiva por parte de quem vem a suportar definitivamente a tributação. Daí que a invocação dos artigos 104º nº 2 CRP(?) e 5º nº 2 LGT não seja procedente, dado a situação, sendo patológica, ter sido criada por quem sofre as consequências do seu procedimento.  Também   o  disposto  no  artigo  21º  do  CIRS,   conjugado  com  a remissão  para o artigo 103º do mesmo Código, não prejudica o que tem vindo a ser referido-eles regulam unicamente as posições face ao sujeito activo e não as relações do substituto perante o substituído. Entender-se de outro modo e considerando todo o escrito, repete-se, tornaria inaplicável o instituto da substituição não só aos casos de aplicação do artigo 38º nº 2 mas também em geral.

 

Por último, a invocada impossibilidade da retenção, antes de ser declarada a  aplicação da cláusula geral antiabuso. Também aqui a decisão não merece concordância porque trata a situação como se fosse insusceptível de lhe ser aplicável o regime da cláusula antiabuso.  Ao  invés,  se  a  situação  for  a  ela  subsumida,  a  conclusão  terá  de  ser contrária.  O regime legal do artigo 38º nº 2 é claro: a tributação efectua-se "de acordo com as normas aplicáveis na sua [dos meios artificiosos ou fraudulentos] ausência" e isto significa que, nesse caso, deveria existir retenção aquando da colocação do rendimento  á  disposição  e  se  é  só  possível  em  momento  posterior  ao  disposto legalmente, tal resulta de facto imputável ao substituto, aplicando-se o regime da falta ou atraso no cumprimento Dizer-se que a retenção  seria impossível antes de saber que a cláusula em causa seria aplicável é esquecer  o que deveria ter ocorrido  se não tivesse sido praticado  o abuso. Não se trata de uma actuação conforme a lei, trata-se de algo que não deveria ter sido praticado, de um abuso. E o raciocínio e o tratamento não podem ser idênticos para casos de abuso e não abuso. Não há, pois, retroactividade, é como se a situação não tivesse ocorrido e ab initio tudo tivesse sido conforme com o que a lei dispõe. Aspecto fundamental neste tipo de casos é as pessoas envolvidas terem desde o início conhecimento pleno – não sendo apenas razoavelmente conhecedoras – do carácter oculto da distribuição de rendimentos, da verdadeira natureza dos rendimentos que foram disponibilizados, não sendo, a fortiori, invocável a ignorância. É

claro – repete-se – que o escrito aplica-se se à actuação tiver sido aplicada a disposição antiabuso.

 

Deste modo, com a posição sustentada no acórdão, não se atende nem ao disposto no citado artigo 38º nº 2 nem ao instituto da substituição, aos seus fundamentos e regime, impossibilitando-se a aplicação da cláusula geral antiabuso a um caso em que, segundo a minha opinião, atenta designadamente a visão holística da actuação verificada, e na terminologia legal, houve utilização, pelo menos, de meios artificiosos "e com abuso das formas jurídicas" na prática "de actos e negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos (...) à eliminação (...) de  imposto(s) que seria(m) devido(s) em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico".

 

Face ao que se escreveu, o pedido de pronúncia arbitral não deveria ter sido julgado procedente, com as consequências daí resultantes.

 

 

(Manuel Pires)