Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 529/2022-T
Data da decisão: 2023-04-19  IVA  
Valor do pedido: € 162.858,97
Tema: IVA - Direito à dedução – Imposto indevidamente liquidado.
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SUMÁRIO:

  1. Num contexto em que se dão por verificados todos os requisitos do direito à dedução do IVA,  as operações são reais, não fraudulentas, e o imposto foi indevidamente liquidado por interpretação errónea da AT da norma relativa às taxas, e não existindo dúvida sobre os procedimentos adoptados, além de se concluir que a recusa do direito à dedução é violadora do princípio da proporcionalidade, afigura-se até abusivo que o Estado, estando admitido que o IVA cobrado a mais deu entrada nos cofres do Estado, recuse o exercício daquele direito.
  2. Tendo em conta o enquadramento factual e jurídico da situação considera-se que, apesar de o imposto não ter sido devidamente liquidado, o direito à dedução constitui a interpretação mais adequada dos normativos aplicáveis nacionais face ao direito da União e a Jurisprudência do TJUE.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Fernanda Maçãs (presidente), Sérgio Vasques e Paulo Ferreira Alves, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 15 de Novembro de 2022, acordam no seguinte:

 

            I.         Relatório

A..., LDA, doravante designado por Requerente, com o número de identificação fiscal português..., com sede social na Rua ... n.º..., ... ...-... Prior Velho, requereu ao CAAD a constituição de Tribunal Arbitral e deduziu pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e artigo 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”, com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários de IVA, com os n.os 2021..., 2021..., 2021..., 2021..., 2021..., 2021..., 2021..., e Juros compensatórios com o n.º 2021..., relativo aos exercícios de 2018, 2019 e 2020, na importância total de € 162 858,97.

Em 5 de Setembro de 2022, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD, e automaticamente notificado à Autoridade Tributaria.

De acordo com o preceituado nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, as quais nada disseram, foram designados árbitros os signatários que comunicaram ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 15 de Novembro de 2022.

Em 21 de Dezembro de 2022, a Requerida apresentou a sua Resposta, e juntou o processo administrativo (“PA”).

Por despacho de 6 de Janeiro de 2023, foram as partes notificadas de que ficou dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, atento o facto de não terem arrolado testemunhas nem requererem produção de prova adicional. Mais foram notificadas para, querendo, apresentarem alegações finais escritas no prazo (sucessivo) de 15 dias, e notificada o Requerente para proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente no prazo para alegações.

Em 24.01.2023, a Requerente apresentou as suas alegações, e a Requerida em 27.01.2023.

 

Síntese da Posição do Requerente

Os fundamentos apresentados pelo Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, em síntese, os seguintes:

  1.  A Requerente dedica-se a “Exploração florestal, Extração de cortiça, resina e apanha de outros produtos florestais, plantação, podas, colheitas e vindimas e prestação de serviços de máquinas agrícolas”.
  2. Encontra-se enquadrada no regime geral de tributação IRC e no regime normal de IVA com periodicidade trimestral com direito à dedução.
  3. No decorrer da sua atividade normal, a Requerente na declaração periódica de IVA de 2020/03T, calculou um crédito de imposto a seu favor no montante de 160.765,74€ e formulou um pedido de reembolso de 140.000,00€,
  4. Por via desse pedido de reembolso de IVA de 140.000,00€, foi a Requerente sujeita a uma ação inspetiva interna parcial nos anos de 2018, 2019 e 2020 a coberto das OI 012020..., OI 012020... e OI 012020....
  5. Sustenta a Requerente que veio a AT a concluir pela sua oportunidade e pelo cumprimento de todas as formalidades sem que tenha constatado qualquer irregularidade.
  6. Porém, apesar do pedido de reembolso ter sido oportuno e estarem reunidos todos os requisitos e pressupostos para ser concedido, veio o mesmo a ser indeferido parcialmente por força das liquidações adicionais da AT que vieram retificar nos termos do art.º 87 do CIVA as declarações de IVA apresentadas pela Requerente.
  7. A AT retificou as declarações de IVA do SP de 2018/03T a 2020/03T por considerar que as deduções efetuadas nesse período na conta corrente eram superiores as devidas.
  8. A AT considerou que estas prestações de serviços se encontram elencadas nas verbas 4.1 e 4.2 previstas na aliena a) do n.º 1 do art. 18° do CIVA e que estão sujeitas à taxa reduzida de 6% e não à taxa normal de 23%, e, por conseguinte, os fornecedores B..., Lda., C... e D..., liquidaram IVA em excesso, uma vez que as prestações de serviços em causa deveriam ter sido tributados à taxa reduzida.
  9. Sustenta a Requerente, que não é controvertida questão da errónea aplicabilidade da taxa normal de 23% de IVA por parte dos fornecedores da requerente, tendo a sua aplicabilidade ficado demonstrada por documentos e por depoimentos testemunhais que tal se deveu ao entendimento que vinha sendo seguido pela AT ao longo demais de 12 anos de que os intermediários como era o caso destes 3 fornecedores não beneficiarem da taxa reduzida de 6%.
  10. E também não é controvertido que a Requerente liquidou corretamente o imposto incidente de IVA à taxa reduzida de 6%, sobre as operações tributáveis que efetuou nesse período, ou seja, o IVA sobre o qual vai ser deduzido o IVA devido ou pago.
  11. Não o sendo ainda controvertido que a Requerente deduziu e exerceu o direito ao reembolso do IVA que incidiu sobre os serviços que adquiriu aos sujeitos passivos B..., Lda., C... e D..., para a realização das suas operações tributadas e sujeitas ao imposto.
  12. Tao pouco é posto em causa que a Requerente não o pagou o IVA constante dessas faturas emitidas por esses fornecedores, e que estes o entregaram nos cofres do Estado.
  13. Mais defende a Requerente que a questão controvertida e que a Requerente já manifestou discordância nas Audições escritas, é a de o direito à dedução do IVA pago não lhe poder ser negado pelo facto dos seus fornecedores terem liquidado os serviços efetivamente prestados por uma taxa superior a devida, na medida em que essa negação viola claramente o princípio da neutralidade do imposto uma vez que obriga a Requerente a suportar 17% do IVA pago.
  14. Defende que a questão principal a conhecer é se o imposto liquidado a mais em 17%, que o devido, pelos fornecedores e pago pelo SP, deve ser considerado imposto pago indevidamente e não dedutível pela requerente por não subsumível ao conceito de imposto devido previsto na alínea a)do n.º1 do art. 19º do CIVA.
  15. Conclui Requerente sustentando as retificações que a AT fez às declarações da, ao abrigo do disposto no art.87.° do CIVA, no montante de 161.841,12€ são ilegais, por violarem o princípio da neutralidade do imposto, obrigado a Requerente a suportar 17% de IVA pago.
  16. E que essa decisão resultou de uma incorreta interpretação da alínea a) do n.º1 do art.19.° do CIVA, que corresponde à transposição da alínea a) do art.17 da sexta diretiva para o ordenamento nacional, na parte em que se refere que o Requerente tem direito a deduzir o IVA devido ou pago, correspondente ao atual art.168° do CIVA. Essa interpretação incorreta viola os princípios gerais de interpretação vertidos no art.11° da LGT e no art.º 9 do Código Civil.
  17. Termina a Requerente sustentando que são as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios ilegais, e indevidas as correções efetuadas às declarações de IVA, sendo o indeferimento da reclamação graciosa e o indeferimento parcial do reembolso injustificados.

 

Síntese da Posição da Requerida

Na perspetiva da Requerida, chamada a pronunciar-se defendeu-se alegando, em síntese o seguinte:

  1. Conforme Jurisprudência pacífica, entre outros, do Supremo Tribunal Administrativo, o IVA indevidamente liquidado, não confere o direito à dedução.
  2. Nestas situações (de IVA indevidamente liquidado), devem ser corrigidas as facturas, feita a regularização a seu favor do imposto indevidamente liquidado, pelo emitente das facturas e, devolver este ao destinatário das facturas o IVA cobrado a mais.
  3. Isto porque, o IVA indevidamente liquidado não é “devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos”, mas antes devido e pago por erradamente ter sido mencionado em factura (artigo 2.º n.º 1 al. c) do CIVA).
  4. Entende a Requerida que, salvo melhor opinião, dúvidas não devem restar de que o IVA indevidamente liquidado não confere o direito á dedução, mas antes e apenas, cumpridos os requisitos para tal, o direito à correcção das facturas e, à regularização do imposto.
  5. Termina a Requerida, peticionado ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos com as legais consequências.
  6. Embora, seja certo que, à data dos factos, já a Requerida tivesse emanado instruções nas quais assumiu que a taxa deveria ser de 6% e, tendo tornado públicas tais instruções, sempre estas poderiam ter servido de orientação aos sujeitos passivos aquando da emissão das facturas.
  7. Conclui a Requerida, sustentando, que deve o presente PPA ser julgado improcedente por não provado e a Requerida absolvida do pedido, com todas as consequências legais.

 

  1. Saneamento

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo dirigido à anulação de atos de IVA (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea e) do CPPT, a contar da data do indeferimento tácito da reclamação graciosa deduzida contra os atos tributários impugnados.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

É admissível a cumulação de pedidos relativos a diferentes atos e anos tendo em conta que estão em discussão as mesmas circunstâncias de facto (distribuição de dividendos de fonte portuguesa a OIC não residente) e a interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, conforme previsto no artigo 3.º, n.º 1 do RJAT.

Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

  1. Fundamentação de Facto
  1. Factos Provados

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

  1. A Requerente dedica-se a “Exploração florestal, Extração de cortiça, resina e apanha de outros produtos florestais, plantação, podas, colheitas e vindimas e prestação de serviços de máquinas agrícolas”, e encontra-se enquadrada no regime geral de tributação IRC e no regime normal de IVA com periodicidade trimestral com direito à dedução. Cf. RIT
  2. No decorrer da sua atividade normal, a Requerente na declaração periódica de IVA de 2020/03T, calculou um crédito de imposto a seu favor no montante de 160.765,74€ e formulou um pedido de reembolso de 140.000,00€. Cf. RIT;
  3. Os Serviços de Inspecção (adiante SIT9, não puseram em questão que os serviços em apreço tenham sido efectivamente prestados (ponto 2 da Resposta) (ponto 2 da Resposta);
  4. De igual forma, não puseram em questão os SIT que o imposto liquidado nas facturas em apreço tenha sido entregue nos cofres do Estado (ponto 2 da Resposta);
  5. Os Serviços da Requerida mantiveram ao longo de anos, o entendimento que se veio a verificar errado, de que os serviços em questão, facturados a um intermediário, não beneficiavam da taxa reduzida de imposto, estando assim sujeitos à taxa normal de 23% (ponto2 da Resposta);
  6. A Requerente, foi destinatária dos serviços em questão, cujo imposto deduziu e, foi simultaneamente prestadora desses serviços a outras pessoas, às quais os facturou (acertadamente) à taxa reduzida de imposto, de 6% (ponto 2 da Resposta);
  7. Nesta sequência, acumulou a Requerente crédito de imposto, porquanto facturava os serviços com 6% e, lhe facturavam os serviços com 23%, de IVA (ponto 2 da Resposta);
  8. A AT deu início a uma ação inspetiva interna parcial nos anos de 2018, 2019 e 2020, respetivamente no âmbito das Ordens de Serviço n.º OI 012020..., OI 012020... e OI 012020..., que derem início em 2020/05/22. Cf. RIT;
  9. As ordens de serviço foram motivas pelo pedido de reembolso de IVA n.º .../..., na declaração de IVA 2020/03T, no montante de 140.000,00€ feito pela Requerente, e motivado pelo facto de o direito ao reembolso de IVA foi exercido na declaração periódica relativa ao período de 2020/03T, tendo a AT verificado que o crédito de imposto foi incrementado a partir do período de 2018/09T, razão pela qual a AT decidiu proceder a validação alargada ao período de 2018 a 2020. Cf. RIT;
  10. A Requerente procedeu à entrega das declarações periódicas do IVA com normalidade, não se verificando quaisquer diferenças entre o valor do reembolso pedido na declaração periódica e o considerado no processamento automático, nem tão-pouco entre o valor declarado do crédito acumulado no fim do período de Imposto e o considerado no processamento automático. Cf. RIT;
  11. Foram emitidas à Requerente faturas pelos seus fornecedores, B... LDA. (com o NIF:...), C... (com o NIF:...) e D... (com o NIF: ...), todas emitidas com IVA a taxa normal de 23%;
  12. Resulta que das faturas emitidas, dizem respeito, respetivamente quanto a sociedade, B... LDA. - Prestação de serviços de apanha de azeitona, pimentos e uvas; aplicação de protetores em árvores; corte de madeira; corte, extração e rechega de madeira e cortiça; limpeza de pinheiras mansas; plantação de curgetes e pimentos; serviços com trator agrícola e corta mato; serviços com moto manuais; etc.. A C...- Prestação de serviços de apanha de azeitona; corte de madeira; extração e rechega de cortiça; serviços de plantação, serviços de vindima; desmatação com trator; serviços com trator agrícola e corta mato; serviços com moto manuais: gradagem para asseiros; gradagem; etc.. E D...- Prestação de serviços de limpeza de árvores. Cf. RIT;
  13. Foi emitida pela sociedade B... LDA as seguintes faturas:
  14.  
  15.  
  16. Foram emitidas pela sociedade C... as seguintes faturas:

 

  1.  
  2. Foi emitido por D... o recibo verde n.º 1000001 de 27/12/2018 no valor de 4.920,00€;
  3. No decurso da inspeção a AT notificou o Requerente para o envio de elementos que permitissem aferir a legitimidade do crédito através do n/ Ofício n.° ..., de 2020/05/22, na qual solicitou:

 

 

 

  1. A AT no âmbito do Processo inspetivo, identificou como fundamentação as correções, o seguinte:

 

 

 

 

  1. A Requerente foi notificada das liquidações adicionais de IVA com o n.º 2021 ... no valor de 14.245,78€, correspondente ao período 2018/09T, 2021... no valor de 28.441,42€, correspondente ao período 20\8/12T, 2021... no valor de 2.393,78€, correspondente ao período 2019/03T, 2021... no valor de 32.080,70€, correspondente ao período 2019/06T, 2021... no valor de 7.211,19, correspondente ao período 2019/09T, 2021... no valor de 34.522,75€, correspondente ao período 2019/12T, 2021 ... no valor de 2522,75€, correspondente ao período 2020/03T, e foi notificada da liquidação de juros n.º 2021... no valor de 101 7 ,85. Cf. RIT;
  2. A Requerente apresentou em reclamação graciosa com o n.º ...2021..., tendo sido indeferido em 05.05.2022. cf. RIT;
  3. A Requerente apresentou o seu pedido de constituição do Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral tendo em vista a anulação parcial das referidas liquidações de IVA e juros compensatórios inerentes – cf. registo de entrada no SGP do CAAD.

 

            2.         Factos não Provados

Não se consideram não provados quaisquer factos relevantes para o conhecimento da causa.

 

            3.         Motivação da Decisão da Matéria de Facto

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do Código de Processo e Procedimento Tributário (“CPPT”), 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos pelas Partes e nas posições por estas assumidas em relação aos factos, que é consensual.

 

V.Do Mérito

 

V.1. Da ilegalidAde das liquidações adicionais de IVA

 

Como vimos, a Requerente pede a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e as correções efectuadas às declarações de IVA de 2018/03 a 2020/03, com a consequente anulação das consequentes liquidações adicionais impugnadas.

A Requerente alega, em síntese, que o direito à dedução do IVA pago não lhe poder ser negado pelo facto dos seus fornecedores terem liquidado os serviços efetivamente prestados por uma taxa superior à devida, na medida em que essa negação viola claramente o princípio da neutralidade do imposto uma vez que obriga a Requerente a suportar 17% do IVA pago.

Por sua vez, segundo a Requerida, o IVA indevidamente liquidado não confere o direito à dedução.

A questão essencial a decidir gira em torno de saber se o imposto liquidado a mais em 17%, que o devido, pelos fornecedores e pago pela Requerente, deve ser considerado imposto pago indevidamente e não dedutível por não subsumível ao conceito de imposto devido ou pago previsto na alínea a) do n.º1 do artigo 19.º do CIVA.

 

Vejamos.

 

§1.º Dos preceitos aplicáveis

 

Art.17º do CIVA

Origem e âmbito do direito à dedução

1 . O direito à dedução surge no momento em que o imposto dedutível se torna exigível.

2. Desde que os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das próprias operações tributáveis, o sujeito passivo está autorizado a deduzir do imposto de que é devedor :

a) O imposto sobre o valor acrescentado devido ou pago em relação a bens que lhe tenham sido fornecidos ou que lhe devam ser fornecidos e a serviços que lhe tenham sido prestados ou que lhe devam ser prestados por outro sujeito passivo ;

 

Art.18º do CIVA

Disposições relativas ao exercício do direito a dedução

1 . Para poder exercer o direito à dedução, o sujeito passivo deve :

a) Relativamente à dedução prevista no nº 2, alínea a), do artigo 17º, possuir uma factura emitida nos termos do nº 3 do artigo 22º;

 

Mais concretamente quanto ao direito à dedução temos:

 

O Artigo 167.º DIRECTIVA 2006/112/CE DO CONSELHO de 28 de Novembro de 2006, dispõe que “ O direito à dedução surge no momento em que o imposto dedutível se torna exigível.”

Por sua vez, o Artigo 168.º tem o seguinte conteúdo:

Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado-Membro em que efectua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor os montantes seguintes:

a) O IVA devido ou pago nesse Estado-Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo;

 

Ao nível do direito nacional importa atentar nos preceitos constantes dos artigos 19.º, 20.º e 22.º

Artigo 19.º
Direito à dedução

1 - Para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem, nos termos dos artigos seguintes, ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efectuaram:

a) O imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos;

(…)

2 - Só confere direito a dedução o imposto mencionado nos seguintes documentos, em nome e na posse do sujeito passivo:

a) Em faturas passadas na forma legal;

 

 

Artigo 20.º
Operações que conferem o direito à dedução

1 - Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes:

  1. Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas

(…)”

 

Artigo 22.º
Momento e modalidades do exercício do direito à dedução


1 - O direito à dedução nasce no momento em que o imposto dedutível se torna exigível, de acordo com o estabelecido pelos artigos 7.º e 8.º, efectuando-se mediante subtracção ao montante global do imposto devido pelas operações tributáveis do sujeito passivo, durante um período de declaração, do montante do imposto dedutível, exigível durante o mesmo período.

 

Por sua vez, o artigo 21.º do CIVA enumera as situações em que se encontra excluído o direito à dedução .

 

§2.º Sentido e alcance dos preceitos mencionados

 

Recorrendo à decisão arbitral do CAAD, processo n.º 767/2016-T, e seguida na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 334/2022-T, podemos ler, no que se refere ao direito à dedução, tendo em conta a interpretação do disposto nos artigos 168.º da Diretiva IVA (DIVA):

Neste âmbito o “[…] direito à dedução faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado, exercendo-se imediatamente em relação à totalidade do IVA que incidiu sobre as operações a montante.

“Nesta aceção do princípio da neutralidade, o regime instituído pela DIVA permite aos sujeitos passivos deduzir o IVA que tenha onerado as aquisições de bens e serviços destinados à atividade tributada. Note-se, que o TJUE refere-se ao princípio da neutralidade do IVA ainda numa outra acepção, de acordo com a qual o sistema do IVA não deve interferir com as decisões económicas nem com a formação dos preços ao longo do circuito económico.

“Por conseguinte, o mecanismo do direito à dedução permite ao sujeito passivo expurgar do seu encargo o IVA suportado a montante retirando o efeito cumulativo e a tributação em cascata que caracterizavam sistemas anteriores de tributação do consumo. Assim, o direito à dedução assenta no designado método da dedução do imposto, método do crédito de imposto, método subtrativo indireto ou ainda método das faturas.

“De acordo com este método, e em conformidade com o disposto no artigo 19.º do Código do IVA, através de uma operação aritmética de subtração, ao imposto apurado nas vendas e prestações de serviços (outputs) e identificável nas respetivas faturas, deduz-se o imposto suportado nas compras e outros gastos (inputs). Como determina o 2.º parágrafo, do n.º 2 do artigo 1.º da DIVA “Em cada operação, o IVA, calculado sobre o preço do bem ou serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido diretamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço”.

“Tal como previsto na DIVA, o Código do IVA determina, como regra geral, a dedutibilidade do imposto devido ou pago pelo sujeito passivo nas aquisições de bens e serviços feitas a outros sujeitos passivos.

“As situações expressas de exclusão do direito à dedução são excecionais e reportam-se a casos específicos enunciados pelo legislador nacional em termos taxativos, de acordo com o estatuído na DIVA, em função do tipo de despesas em causa.

“As regras do exercício do direito à dedução do imposto contemplam requisitos objetivos, mais ligados ao tipo de despesas, subjetivos, relativos ao sujeito passivo, e temporais, atinentes ao período em que é possível exercer o direito à dedução do IVA, os quais se devem verificar em simultâneo para se exercer o direito à dedução.

“(…)

“No que diz respeito aos regimes de dedução de IVA, o TJUE tem vindo a considerar que o direito à dedução faz parte integrante do mecanismo do próprio imposto, que não pode em princípio ser limitado, e que se exerce em relação à totalidade dos impostos que incidiram sobre as operações efetuadas a montante, sublinhando ainda que “toda e qualquer limitação do direito à dedução tem incidência ao nível da carga fiscal e deve aplicar-se de modo semelhante em todos os Estados-Membros. Em consequência, só são permitidas derrogações nos casos expressamente previstos pela Directiva”.

“Acresce referir que qualquer limitação do direito à dedução deve observar os princípios da proporcionalidade e da igualdade o que pressupõe uma ponderação equilibrada dos benefícios derivados da medida e do sacrifício que esta implica. 

“Na senda da decisão arbitral 201/2018-T e conforme suscitado pelo STA, no seu Acórdão proferido no processo n.º 01455/12, de 07/10/2015 “[…]o princípio da dedução do IVA, enquanto meio de concretizar a neutralidade do imposto, impõe que todas as restrições ao direito de dedução sejam interpretadas de forma restritiva e reduzidas ao mínimo”.

“ Resulta da aludida decisão do STA que:

“[D]a aplicação conjugada de todas as normas invocadas, resulta demonstrado que o direito à dedução do IVA incorrido não está dependente de tal imposto ter sido devidamente liquidado pelo sujeito passivo, contrariamente ao que refere a Requerida. Vem sendo jurisprudência unânime dos tribunais superiores que o IVA indevidamente liquidado em factura ou documento equivalente é, não obstante, devido ao Estado, competindo à entidade emitente do documento em causa a sua entrega ao Estado. Só desta forma é que se pode assegurar o princípio da neutralidade do imposto, quer para os intervenientes, quer para o próprio Estado. A título de exemplo, veja-se o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 04-06-2015, proferido no proc. n.º 07111/13 (disponível em www. dgsi.pt) em que se conclui que “(...) cada factura com menção de imposto, constitui um verdadeiro "cheque sobre o tesouro", pois atribui ao destinatário que seja sujeito passivo o direito de deduzir o I.V.A. nela contido. Por isso, a simples menção do I.V.A. em factura (mesmo que porventura descabida, por não haver lugar a imposto naquele caso, por qualquer razão) origine sempre a obrigação de pagar, independentemente da qualidade do emissor, isto é, seja ele ou não um sujeito passivo. Tornar-se-á, pelo simples facto da menção, um "devedor de imposto". Só assim se consegue que ao direito à dedução, que a factura atribui ao destinatário sujeito passivo, corresponda sempre uma obrigação de pagar e se assegure o funcionamento regular do sistema de pagamentos fraccionados em sede de I.V.A. (cfr.ac.S.T.A.-2a.Secção, 24/4/2002, rec.26636; ac.S.T.A.-2a.Secção, 26/9/2012, rec. 555/12; ac.T.C.A.Sul2a.Secção, 17/1/2012, proc.4711/11; José Guilherme Xavier de Basto, A tributação do consumo e a sua coordenação internacional, Lições sobre harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia, C.T.F. 362, Abr./Jun. 1991, pág.42 e seg.; F. Pinto Fernandes e N. Pinto Fernandes, Código do I.V.A. Anotado e Comentado, Editora Rei dos Livros, 4a. edição, Janeiro de 1997, pág.51; Clotilde Celorico Palma e Outros, Código do IVA e RITI, Notas e Comentários, Almedina, 2014, pág.47).”(…)”.No mesmo sentido, cfr. XAVIER DE BASTO (cfr. “A harmonização Fiscal na CEE”, Ciência e Técnica Fiscal, no 362, p. 44. ).

 

Aplicando o exposto ao caso em apreço, verifica-se, em primeiro lugar, que, na situação dos autos, se dão por verificados todos os requisitos do direito à dedução do IVA, uma vez que tais requisitos não constituem matéria controvertida. Com efeito, como se pode ler na Resposta da Requerida, os Serviços de Inspeção não puseram em questão que os serviços em apreço tenham sido efectivamente prestados, bem como não puseram em questão que o imposto liquidado nas facturas em apreço tenha sido entregue nos cofres do Estado (ver probatório e ponto 2 da Resposta ).

O único argumento invocado pela Requerida para fundamentar as correções reside no facto de o IVA ter sido indevidamente liquidado porque o imposto facturado pelos fornecedores da Requerente foi tributado à taxa de 23% quando a aplicável era de 6%, pelo que tendo o imposto sido indevidamente liquidado cortaram o direito à dedução dessa parte do imposto suportado pela Requerente nos seus “inputs”.

A apreciação da legalidade das correções não pode deixar de ter em conta, desde logo, o contexto em que o IVA foi facturado não a 6% , mas a 23%. Constitui facto dado como provado que “Os serviços da Requerida mantiveram ao longo de anos, o entendimento que se veio a verificar errado, de que os serviços em questão, facturados a um intermediário, não beneficiavam da taxa reduzida de imposto, estando assim sujeitos à taxa normal de 23% ( ver probatório e ponto 2 da resposta).

Importa assim sublinhar que, na base do imposto considerado pela Requerida como indevidamente liquidado esteve um entendimento por si emitido.

Por outro lado, não vem invocado nos autos que tenha havido qualquer indício ou suspeita de fraude, nem tão pouco que o imposto não tenha sido entregue nos cofres do Estado. Pelo contrário, o imposto foi entregue e a Requerente actuou de boa-fé, tendo por base orientação seguida pela Requerida.

Alega a Requerente que nas situações “(de IVA indevidamente liquidado), devem ser corrigidas as facturas, feita a regularização a seu favor do imposto indevidamente liquidado, pelo emitente das facturas e, devolver este ao destinatário das facturas o IVA cobrado a mais”.

Ora, algumas operações ocorreram já em 2018 e a iniciativa dos procedimentos de regularização recaem sobre o emitente das facturas e não sobre a Requerente.

Por outro lado, se é verdade que o direito à dedução não é um direito absoluto, o caso é que apenas são admissíveis as derrogações expressamente previstas nos artigos 176.º, 177.º e 365.º da DIVA, no caso português consagradas no artigo 21.º do CIVA. Ora, como vimos, nos autos, não vem invocada qualquer daquelas derrogações.

Assim sendo, no contexto dos autos, afigura-se desproporcionado que se venha exigir que o sujeito passivo adquirente (Requerente no processo) faça prova da impossibilidade/dificuldade de obtenção de reembolso por intermédio dos fornecedores, quando a iniciativa da regularização é deles e não tem meios para os obrigar.

Reitera-se que estamos ante uma situação em que as operações são reais, não fraudulentas, e que o comportamento da Requerente foi induzido por interpretação errónea da AT da norma relativa às taxas. Neste contexto, não existindo dúvida sobre os procedimentos adoptados, além de se concluir que a recusa do direito à dedução é violadora do princípio da proporcionalidade, afigura-se até abusivo que o Estado, estando admitido que o IVA cobrado a mais deu entrada nos cofres do Estado, recuse o exercício daquele direito.

Tendo em conta o enquadramento factual e jurídico da situação considera-se que, apesar de o imposto não ter sido devidamente liquidado, o direito à dedução constitui a interpretação mais adequada dos normativos aplicáveis nacionais face ao direito da União e a Jurisprudência do TJUE.

Por tudo o quanto vai exposto, conclui-se pela procedência do pedido, com as legais consequências.

 

V.2. Questões de conhecimento prejudicado

O Tribunal tem o dever de se pronunciar sobre todas as questões, abstendo-se de se pronunciar sobre as que não deva conhecer (segmento final do n.º 1 do artigo 125.º, do CPPT). Contudo as questões sobre que recaem os poderes de cognição do tribunal, são, de acordo com o n.º 2 do artigo 608.º, do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, “as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.

Em face da solução dada, fica prejudicado o conhecimento de qualquer outra questão incluída no pedido de pronúncia arbitral, incluindo o pedido de reenvio prejudicial.

 

V.3. Direito a juros indemnizatórios

 

Como ficou dito, a Requerente solicita a restituição do imposto de IVA em falta acrescido de juros indemnizatórios.

São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, ter havido erro imputável aos serviços do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (vd. art. 43.º, n.º 1, da LGT). Como ficou dito na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º296/2019-T, “É, por isso, condição necessária para a atribuição dos referidos juros a demonstração da existência de erro imputável aos serviços. Nesse sentido, vejam-se, por ex., os seguintes arestos: “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do art. 43.º da LGT [...] depende de ter ficado demonstrado no processo que esse ato está afetado por erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à AT.” (Acórdão do STA de 30 de maio de 2012, proc. 410/12); “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária pressupõe que no processo se determine que na liquidação «houve erro imputável aos serviços», entendido este como o «erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Fiscal»” (Acórdão do STA de 10 de abril de 2013, proc. 1215/12).”

No caso dos autos, tendo-se concluído, como decorre do que foi atrás dito, que houve erro imputável aos serviços, o qual conduz à anulação dos atos tributários em causa conclui-se, sem necessidade de mais considerações, pela procedência do pedido de pagamento de juros indemnizatórios, no termos legais.

 

VI.Decisão

De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal:

  1. Julgar procedente o pedido, com a consequente anulação dos actos tributários de IVA impugnados,
  2. Condenar a Requerida na restituição do IVA em falta e o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos legais.

 

VII.     Valor do Processo

Fixa-se ao processo o valor € 162.858,97, indicado pelo Requerente, respeitante ao montante das liquidações de IVA e juros compensatórios cuja anulação pretende (valor da utilidade económica do pedido), e não impugnado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

VIII.   Custas

Custas no montante de € 3.672,00 (três mil seiscentos e setenta e dois euros), a suportar integralmente pela Requerida, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 19 de Abril de 2023

Os árbitros,

 

Fernanda Maçãs (presidente),

 

 

Prof. Doutor Sérgio Vasques (vogal)

 

 

Paulo Ferreira Alves (vogal)