Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 684/2020-T
Data da decisão: 2022-03-28  IRS  
Valor do pedido: € 118.195,66
Tema: IRS - Residente não habitual. Mais-valias mobiliárias. Convenção para evitar a Dupla Tributação. Art. 81.º, n.º 5 CIRS.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 3 de maio de 2021, Alexandra Coelho Martins (presidente), Marcolino Pisão Pedreiro e Eva Dias Costa (árbitros vogais), acordam no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

A..., doravante “Requerente”, de nacionalidade americana, contribuinte fiscal português número ..., residente na Avenida  ..., n.º..., ..., ...-... Cascais, apresentou, em 27 de novembro de 2020, pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante “RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente. 

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante também identificada por “AT”.

 

O Requerente peticiona a anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), referente ao ano 2019, no valor de € 118.195,66 e a condenação da Requerida na restituição deste valor, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos previstos nos artigos 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) e 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).

 

Em 30 de novembro de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, com a notificação da AT.

 

Nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As Partes, notificadas dessa designação em 18 de janeiro de 2021, não manifestaram vontade de a recusar, atento o preceituado nos artigos 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT, 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Com a aprovação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, foram suspensos os prazos procedimentais e processuais, no âmbito das medidas da pandemia Covid 19. Esta suspensão cessou com a entrada em vigor da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, prosseguindo a tramitação processual a partir de 6 de abril de 2021.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 3 de maio de 2021.

 

                Em 7 de junho de 2021, a Requerida apresentou a sua Resposta, com defesa por impugnação, e juntou o processo administrativo (“PA”).

 

Por despacho de 14 de junho de 2021, o Tribunal Arbitral dispensou a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessidade, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2 do RJAT), notificando-se as Partes para se pronunciarem, querendo, não se tendo estas manifestado.

 

Por despachos de 25 de outubro de 2021, de 28 de dezembro de 2021 e de 28 de fevereiro de 2022, foi prorrogado o prazo para prolação da decisão, ao abrigo do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, derivado da tramitação processual, da interposição de períodos de férias judiciais e da situação pandémica.

 

POSIÇÃO DO REQUERENTE

 

Como fundamento do seu pedido, o Requerente alega a violação do disposto no artigo 81.º, n.º 5, alínea a) do Código do IRS, por considerar que os rendimentos auferidos em 2019 qualificáveis como mais-valias mobiliárias, de fonte francesa e norte-americana, beneficiam de isenção de IRS prevista naquela norma, cumprindo o respetivo pressuposto de aplicação [do método de isenção] que é o de o rendimento poder ser tributado no estrangeiro.

 

Sublinha que os rendimentos em causa não só são suscetíveis de tributação nos Estados Unidos da América, país de que o Requerente é nacional, nos termos do artigo 1.º, n.º 1, alínea b) do Protocolo anexo à Convenção para Evitar a Dupla Tributação (de ora em diante “Convenção PT/EUA”) celebrada entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América, como foram aí efetivamente tributados ao abrigo dessa “saving clause”. 

 

A título subsidiário invoca ainda a violação do princípio do inquisitório, por não terem sido realizadas diligências adicionais em prol da descoberta da verdade material, e a falta de fundamentação do ato tributário.

 

POSIÇÃO DA REQUERIDA

 

                A Requerida considera que a reserva formulada pelos Estados Unidos da América à Convenção PT/EUA deve ser interpretada em conjunto com o artigo 25.º, n.º 2 da mesma, e não conflitua com a atribuição ao Estado da residência (Portugal) da competência para tributar, nos termos do artigo 14.º, n.º 2 desta Convenção, nem com a pretensão de tributação ilimitada reservada aos Estados Unidos da América. Considera, desta forma, prejudicada a aplicação do artigo 81.º, n.º 5, alínea a) do Código do IRS.

                Por outro lado, segundo a Requerida, a Convenção celebrada com os Estados Unidos da América não é sequer aplicável aos ganhos provenientes de França, Estado da fonte de uma parte dos rendimentos, que devem ser regidos pela Convenção celebrada com França (“Convenção PT/FR”). De acordo com o artigo 14.º, n.º 3 da Convenção em referência, as mais-valias mobiliárias só podem ser tributadas no Estado da residência, ou seja, em Portugal, pelo que, em relação às mais-valias de fonte francesa, não estão reunidos os pressupostos da isenção de IRS constantes do artigo 81.º, n.º 5, alínea a) do Código deste imposto.

 

                Por fim, a Requerida pugna pela improcedência do pedido arbitral e considera não existir motivo justificativo para o pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

                II.            SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer dos atos de liquidação de IRS controvertidos, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado da data limite de pagamento, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do CPPT (no caso, releva a alínea a)).

 

Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

                III.          FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

1.            MATÉRIA DE FACTO PROVADA

 

                Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:

 

A.           A..., aqui Requerente, possui nacionalidade norte-americana e encontra-se inscrito como Residente não Habitual (“RNH”) em Portugal desde 2015 – cf. Documentos 4 e 6 juntos pelo Requerente.

B.            No período de tributação de 2019, o Requerente obteve rendimentos qualificados como mais-valias mobiliárias de fonte brasileira, de fonte francesa e de fonte norte-americana, em concreto derivados do resgate ou alienação de unidades de participação ou liquidação de fundos de investimento e da alienação onerosa de participações sociais (v. artigos 9.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código do IRS) – cf. Documento 3 junto pelo Requerente.

C.            Em 25 de junho de 2020, o Requerente procedeu à entrega da Declaração Anual de Rendimentos Modelo 3 de IRS, referente ao ano 2019, apresentando os seguintes Anexos – cf. Documento 3 junto pelo Requerente:

a)            Anexo L – relativo ao estatuto de RNH, no qual optou pelo método da isenção no que respeita à eliminação da dupla tributação internacional – quadro 6B deste anexo;

b)           Anexo J – referente a rendimentos obtidos no estrangeiro, reportando aí, no quadro 9.2 A, as mais-valias derivadas das operações com fundos de investimento (resgate, alienação das unidades ou liquidação dos fundos) e de venda de ações ou outras partes de capital) com os códigos G20 e G01, respetivamente.

D.           Em julho de 2020, o Requerente foi notificado da Liquidação de IRS n.º 2020..., referente ao ano 2019, a seguir referida por “liquidação original”, no valor a pagar de € 115.937,33, cujo prazo para pagamento terminou em 31 de agosto de 2020 – cf. Documento 1 junto pelo Requerente.

E.            O Requerente optou por proceder ao pagamento do imposto em 27 e 28 de agosto de 2020, apesar de não se conformar com as referidas liquidações de IRS – cf. Documento 5 junto pelo Requerente.

F.            Esta liquidação foi substituída por outra, também referente ao ano 2019, emitida com data de 17 de julho de 2020, sob o n.º 2020 ..., adiante referida por “liquidação corretiva”, no valor a pagar de € 118.195,66, cujo prazo para pagamento terminou em 2 de setembro de 2020 – cf. Documento 2 junto pelo Requerente.

G.           Ambas as liquidações, original e corretiva, aplicam a taxa especial de 28%, prevista no artigo 72.º, n.º 1, alínea c) do Código do IRS às mais-valias mobiliárias de fonte francesa e norte-americana auferidas pelo Requerente, isentando as mais-valias mobiliárias obtidas no Brasil e, bem assim, os outros rendimentos de fonte estrangeira. A única diferença entre os dois atos tributários – original e corretivo – reside no facto de o segundo ter expurgado a dedução indevida (considerada na liquidação inicial) do imposto pago no Brasil, no valor de € 2.258,33, como crédito por dupla tributação internacional por conta das mais-valias brasileiras (que foram isentas em Portugal) – cf. Documentos 1 e 2 juntos pelo Requerente.

H.           O Requerente apresentou também uma declaração de rendimentos no país da sua nacionalidade, os Estados Unidos da América, relativamente ao ano 2019, na qual reportou as mais-valias mobiliárias declaradas na Modelo 3 de IRS em Portugal, tendo aí sido tributado – cf. Documentos 7 e 8 juntos pelo Requerente.

I.             Por entender que as liquidações de IRS acima identificadas estavam erradas, em 6 de agosto de 2020, o Requerente apresentou um requerimento de correção de erro manifesto junto da Requerida, pugnando deverem isentar-se todos os rendimentos obtidos no estrangeiro, a título de mais-valias mobiliárias, entendendo tal não ter acontecido por lapso informativo – cf. Documento 9 junto pelo Requerente.

J.             Em 21 de outubro de 2020, após insistência do Requerente, este foi notificado da rejeição do seu requerimento, com a seguinte justificação – cf. Documentos 10 e 11 juntos pelo Requerente:

“[…]

3. O procedimento de correção de erros, regulado nos artigos 95.º-A e seguintes do CPPT, visa a reparação por meios simplificados de erros materiais ou manifestos da administração tributária ocorridos na concretização do procedimento tributário ou na tramitação do processo de execução fiscal, determinando o n.º 2 do artigo 95.º-B que o pedido seja deduzido no prazo de 10 dias posteriores ao conhecimento efetivo pelo sujeito passivo do ato lesivo em causa.

Conforme decorre do n.º 4 do referido artigo 95.º-A, a instauração do procedimento não prejudica a utilização no prazo legal de qualquer meio procedimental ou processual que tenha por objeto a ilegalidade da liquidação ou a exigibilidade da dívida, determinando o n.º 5 do artigo 95.º-C que, caso o fundamento do pedido seja a ilegalidade da liquidação, a inexigibilidade da dívida ou outro fundamento para o qual a lei preveja meio processual próprio, deve o contribuinte ser convidado a substituir o procedimento pelo meio adequado. Daqui conclui-se que o universo dos erros que podem ser objeto do referido procedimento é delimitado pela existência, ou não, de meios próprios de reação, pelo que o procedimento de correção de erros é configurado como residual face aos outros meios, apenas sendo legítima a sua utilização na falta de meios próprios.

No caso em apreço, em que o Contribuinte vem reagir contra uma liquidação de IRS, os meios próprios de reação são a reclamação graciosa ou a impugnação, nos termos dos artigos 70º e 102º do CPPT, conforme consta da notificação efetuada.

Daí que, em nossa opinião, não preenchendo o pedido os requisitos para ser tramitado com fundamento no citado procedimento de correção de erros, se proponha a rejeição liminar do mesmo, observando-se o previsto no já citado n.º 5 do artigo 95.º-C.”

K.            Em 27 de novembro de 2020, por não se conformar com as referidas liquidações de IRS referentes ao ano 2019, o Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo – conforme registo no sistema de gestão processual do CAAD.

 

                2.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

Com relevo para a decisão, não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.

3.            MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos e nas posições assumidas pelas Partes em relação aos mesmos.

 

                IV.          DO DIREITO

 

                1.            QUESTÃO DECIDENDA – VIOLAÇÃO DO ARTIGO 81.º, N.º 5, AL. A) DO CÓDIGO DO IRS

 

                De acordo o preceituado no artigo 124.º, n.º 2, alínea b) do CPPT, em caso de pluralidade de ilegalidades conducentes à anulação do ato tributário, o Tribunal deve conhecê-las pela ordem indicada pelo Requerente, quando se estabeleça entre as mesmas uma relação de subsidiariedade, como sucede na situação vertente, em que se suscita o erro de direito na desaplicação do regime do artigo 85.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS e, a título subsidiário, a violação do princípio do inquisitório e o vício de falta de fundamentação.

 

                Deste modo, a principal questão em discussão nos presentes autos respeita à aplicação do regime de eliminação da dupla tributação jurídica internacional às mais-valias de fonte estrangeira – norte-americana e francesa – auferidas por um “residente não habitual” de nacionalidade norte-americana.

 

                O regime fiscal de residente não habitual foi introduzido na ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, em conjunto com diversas outras medidas de natureza fiscal, tendo por objetivo genérico tornar o regime fiscal português mais competitivo no âmbito das relações económicas internacionais, funcionando como “factor de atracção da localização dos factores de produção, da iniciativa empresarial e da capacidade produtiva no espaço português.”

               

                Neste âmbito, o artigo 81.º, n.º 5 do Código do IRS passou a prever a possibilidade de aplicação do método da isenção em relação a determinados rendimentos de fonte estrangeira nos quais se incluem os rendimentos da categoria G – incrementos patrimoniais/mais-valias. Interessa, por isso, começar por compulsar o n.º 5 do artigo 81.º do Código do IRS que dispõe nos seguintes termos:

“5 - Aos residentes não habituais em território português que obtenham, no estrangeiro, rendimentos da categoria B, auferidos em atividades de prestação de serviços de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, ou provenientes da propriedade intelectual ou industrial, ou ainda da prestação de informações respeitantes a uma experiência adquirida no setor industrial, comercial ou científico, bem como das categorias E, F e G, aplica-se o método da isenção, bastando que se verifique qualquer uma das condições previstas nas alíneas seguintes:

a)            Possam ser tributados no outro Estado contratante, em conformidade com convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal com esse Estado; ou

b)           Possam ser tributados no outro país, território ou região, em conformidade com o modelo de convenção fiscal sobre o rendimento e o património da OCDE, interpretado de acordo com as observações e reservas formuladas por Portugal, nos casos em que não exista convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, desde que aqueles não constem de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, relativa a regimes de tributação privilegiada, claramente mais favoráveis e, bem assim, desde que os rendimentos, pelos critérios previstos no artigo 18.º, não sejam de considerar obtidos em território português.”

               

                Perceciona-se a finalidade subjacente a esta solução que é a de, através de uma disposição unilateral de direito interno, eliminar a dupla tributação jurídica pelo método mais favorável da isenção, exista (alínea a)) ou não (alínea b)) Convenção para Evitar a Dupla Tributação. O que encerra implicitamente o pressuposto da suscetibilidade de tributação – efetiva ou meramente potencial  – dos rendimentos em causa no Estado da fonte.

 

                Porém, se os rendimentos não puderem ser tributados “no outro Estado Contratante” (com Convenção) ou “no outro país, território ou região” não será aplicável o método da isenção. Esta opção é compreensível atendendo a que o regime de residente não habitual, apesar de modelado como um regime fiscal mais benéfico e desagravado por comparação ao regime geral de tributação dos residentes, não constitui um regime de desoneração total para este tipo de rendimentos , sendo a condição estabelecida – de os rendimentos poderem ser tributados no outro país – eloquente, cremos nós, na expressão de que a abstenção de tributar por parte do Estado português apenas ocorre (e se justifica) quando os rendimentos tenham sido tributados ou possam tê-lo sido no outro Estado. 

 

                Em relação às mais-valias mobiliárias o regime adotado pela maioria das Convenções para Eliminar a Dupla Tributação celebradas por Portugal é o de estas só poderem ser tributadas no Estado da residência , em linha com o preceituado no artigo 13.º da Convenção Modelo OCDE. É o que dispõe o artigo 14.º, n.º 6 da Convenção com os Estados Unidos da América e o artigo 14.º, n.º 3 da Convenção com França que têm idêntica redação:

                “Os ganhos provenientes da alienação de quaisquer outros bens diferentes dos mencionados nos n.ºs 1 a 5  só podem ser tributados no Estado Contratante de que o alienante é residente.”

 

                A ser assim, não está satisfeita a condição para a aplicação do método da isenção constante do artigo 81.º, n.º 5 do Código do IRS, pois estes rendimentos só são passíveis de tributação no Estado da residência e não no Estado da fonte, desaparecendo a possibilidade de ocorrência de dupla tributação jurídica que a norma visa acautelar. Um rendimento que só pode ser tributado num Estado, o da residência, não origina qualquer situação de tributação concorrente e cumulativa de diversas jurisdições que apele a um mecanismo da sua eliminação, o qual postula direitos de tributar cumulativos de dois ou mais Estados.

 

                Contudo, o Protocolo que faz parte da Convenção dos Estados Unidos da América ressalva a faculdade de este Estado tributar os seus nacionais (cidadãos) “como se a Convenção não tivesse entrado em vigor”, i.e., de tributar os seus rendimentos numa base mundial de acordo com o seu direito interno, usualmente designada de “saving clause” – v. artigo 1.º, alínea b) do mencionado Protocolo.

 

                Atento o exposto, em relação aos rendimentos da categoria G (mais-valias mobiliárias) de fonte norte-americana afigura-se linear a subsunção à alínea a) do n.º 5 do artigo 81.º do Código do IRS, pois tais rendimentos são, de acordo com a Convenção, da qual o citado Protocolo faz parte integrante, tributáveis no Estado da residência (Portugal) e, em simultâneo, no Estado da nacionalidade (Estados Unidos da América).

 

                A interpretação que a Requerida faz de que a atribuição a Portugal – como Estado de residência – da competência para tributar as mais-valias mobiliárias do Requerente, nos termos do artigo 14.º, n.º 6 da Convenção celebrada com os Estados Unidos da América, prejudica a aplicação do artigo 81.º, n.º 5, alínea a) do Código do IRS não tem razão de ser. Esta conceção não é compatível com a função (somente) negativa das Convenções para Eliminar a Dupla Tributação, corolário do princípio da legalidade e tipicidade dos impostos.

 

                Com efeito, a delimitação dos poderes de tributar dos Estados e a atribuição de “competência”  ao Estado da residência (Portugal), não impõe que este exerça o seu poder tributário. O Estado competente para tributar pode optar por não o fazer, pelo que a tributação não se satisfaz com a existência de uma norma convencional atributiva de poderes tributários, exigindo uma norma de direito interno que a imponha. Assim, ao contrário do que afirma a Requerida, a atribuição a Portugal, pelo artigo 14.º, n.º 6 da Convenção, de competências tributárias em matéria de mais-valias mobiliárias (na qualidade de Estado de residência) não implica que estas sejam necessariamente tributadas em Portugal, podendo o legislador nacional optar pela não tributação, como veio a fazer com o artigo 81.º, n.º 5, alínea a) do Código do IRS, desde que verificados os requisitos aí consagrados. Não sendo os poderes para tributar esses rendimentos exclusivos de Portugal, como se extrai do cotejo do artigo 14.º, n.º 6 da Convenção com o artigo 1.º, alínea b) do seu Protocolo, mas concorrentes com os poderes de tributar do outro Estado Contratante, os Estados Unidos da América, resulta preenchida a condição da norma que consagra o método da isenção, pelo que se conclui com a Requerente pela ilegalidade da não aplicação deste método da isenção às mais-valias de fonte norte-americana.

 

                Acresce referir que no caso concreto esse poder de tributar não foi hipotético e teve expressão real, pois o Requerente demonstrou ter declarado os rendimentos do ano 2019 aqui em causa – as mais-valias – às autoridades norte-americanas, preenchendo os formulários aplicáveis que se traduziram em pagamento efetivo de imposto sobre o rendimento naquela jurisdição. 

 

                Menos direta é a solução aplicável no caso de mais-valias de fonte francesa, pois, aí, os dois critérios de conexão tradicionais – residência e fonte dos rendimentos – não convocam a Convenção celebrada com os Estados Unidos da América, uma vez que nem um nem outro se verificam neste último Estado, cuja conexão exclusiva é, nestas circunstâncias, a da nacionalidade do Requerente.

 

                A Convenção celebrada com França segue a regra geral do Modelo de Convenção da OCDE e só atribui competência para a tributação das mais-valias mobiliárias ao Estado da residência, pelo que, por esta via, estes rendimentos não são tributados no “outro Estado contratante” (França) e não se cumpre a condição de aplicação do método da isenção.

 

                Afigura-se, porém, não poder ser ignorada a aplicação ao caso concreto de uma outra (segunda) Convenção, também celebrada com Portugal, ao abrigo do critério da nacionalidade do Requerente. Os rendimentos do Requerente, residente (não habitual), estão desta forma, submetidos a uma dupla regulação por via convencional que, em ambos os casos, vincula o Estado Português que ocupa aqui a posição de Estado de residência.

 

                Esse fenómeno de concorrência normativa atraído pela simultânea relevância de três critérios de conexão distintos na determinação das competências tributárias dos Estados, o da residência (Portugal), o da fonte (França) e o da nacionalidade (Estados Unidos da América), conduziu à tributação efetiva dos rendimentos do Requerente (as mais-valias mobiliárias) nos Estados Unidos da América.

 

                Numa situação “tripartida”, como a que está sob análise, sem prejuízo de se reconhecer que não é a mais típica , tanto é Estado contratante a França (pelo critério da fonte) como o são os Estados Unidos da América (pelo critério da nacionalidade) atenta a especificidade da Convenção celebrada com este último país. 

 

                Nestes termos, quando a alínea a) do n.º 5 do artigo 81.º do Código do IRS consagra o pressuposto de que os rendimentos “possam ser tributados no outro Estado contratante”, não pode deixar de considerar-se também como Estado contratante o Estado da nacionalidade do Requerente, nas circunstâncias em que vigora uma Convenção com o Estado da residência que elege como critério de conexão de igual modo relevante a nacionalidade.

 

                Não sendo esta a única interpretação possível é aquela que, tendo suporte na letra da lei, melhor se coaduna com, e conforma, ao espírito e finalidade do regime do RNH. Convém recordar este regime foi instituído com a finalidade de melhorar a competitividade do sistema fiscal português no quadro das relações internacionais, e atrair, desta forma, investidores e capitais estrangeiros para Portugal.

 

                Neste enquadramento, uma das soluções adotadas pelo legislador nacional foi a de aplicar o método da isenção relativamente a determinados rendimentos de fonte estrangeira, simplificando a eliminação da dupla tributação jurídica internacional que, em regra, no sistema português, segue o método de crédito de imposto. Para o efeito, exige-se apenas que os rendimentos sejam suscetíveis de tributação no “outro Estado”, tenham ou não a cobertura de uma Convenção para eliminar a dupla tributação (v. alíneas a) e b) do n.º 5 do artigo 81.º do Código do IRS).  Nem sequer se reclama que os rendimentos sejam realmente tributados no outro Estado, bastando-se a previsão da norma com a suscetibilidade de o serem.

 

                In casu, além de a competência para tributação dos rendimentos estar regulada por Convenção (aliás, por duas Convenções), esta tributação foi efetiva, pelo que não se alcança justificação para aplicar o método da isenção de imposto a situações apenas suscetíveis de tributação no estrangeiro, e não o aplicar no caso do Requerente em que essa tributação foi, como comprovado, efetiva e realizada nos moldes acordados pelo Estado português com o Estado norte-americano. A não ser assim, verificar-se-ia um tratamento diferenciado e desfavorável dos cidadãos norte-americanos, sem que para o efeito se identifique motivo atendível.

 

                Atento o supra exposto, considera-se procedente o vício de erro de direito invocado pelo Requerente. 

 

                2.            JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

O Requerente, peticiona, como decorrência da invocada anulabilidade das liquidações de IRS acima identificadas, a restituição da importância indevidamente paga, acrescida de juros indemnizatórios, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT, uma vez que procedeu ao pagamento da quantia liquidada, o que se comprovou.

 

Esta disciplina deriva do dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da LGT, fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios, compreendido nesse efeito repristinatório do statu quo ante.

 

O que significa que na execução do julgado anulatório a AT deve reintegrar totalmente a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que “existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado”.

 

Uma vez anuladas as liquidações impugnadas, cabe à Requerida, em observância do disposto no artigo 24.º, n.º 1 do RJAT, restituir as importâncias de imposto necessárias ao restabelecimento da situação que existiria se os atos tributários não tivessem sido praticados com ilegalidades.

 

Sobre os juros indemnizatórios rege o disposto no artigo 43.º da LGT que, no seu n.º 1, o faz depender da ocorrência de erro imputável aos serviços do qual tenha resultado o pagamento de prestação tributária superior à legalmente devida.

 

Na situação vertente, está em causa a errada interpretação e aplicação pela Requerida da alínea a) do n.º 5 do artigo 81.º do Código do IRS, erro de direito que é imputável à AT, para o qual o Requerente não contribuiu, verificando-se o pressuposto de erro imputável aos serviços.

A jurisprudência arbitral tem reiteradamente afirmado a competência destes Tribunais para proferir pronúncias condenatórias derivadas do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios originados em atos tributários ilegais que aí sejam impugnados, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e 43.º e 100.º da LGT.

 

Deste modo, a anulação das liquidações de IRS é passível de constituir na esfera do Requerente o direito ao recebimento de juros indemnizatórios que a visam ressarcir da ilegal privação da quantia indevidamente paga pelo período de tempo que perdurar.

 

Procede, assim, o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

 

EM SÍNTESE,

 

À face do exposto as liquidações de IRS impugnadas na presente ação arbitral enfermam de ilegalidade substantiva, por erro nos pressupostos de direito, e são anuladas, em conformidade com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), subsidiariamente aplicável.

 

* * *

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil (artigo 608.º do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT), nomeadamente no que se refere à alegada violação do princípio do inquisitório e ao vício de falta de fundamentação.

 

V.           DECISÃO

 

De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a anulação dos atos de liquidação de IRS impugnados, referentes ao período de tributação de 2019, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios, nos termos legais.

 

 VI.         VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 118.195,66, correspondente ao valor da liquidação de IRS cuja anulação é peticionada, conforme indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

VII.         CUSTAS

               

                Custas no montante de € 3.060,00, a suportar pela Requerida, em razão da sucumbência, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 28 de março de 2022

 

Os Árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins

Marcolino Pisão Pedreiro

Eva Dias Costa