Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 269/2022-T
Data da decisão: 2022-12-29  IRS  
Valor do pedido: € 234.676,60
Tema: IRS – Mais-Valias Mobiliárias.
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Sumário:

 

I – Segundo o artigo 43.º, n.º 5 do código do IRS “Para apuramento do saldo positivo ou negativo referido no n.º 1, respeitante às operações efectuadas por residentes previstas nas alíneas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º, não relevam as perdas apuradas quando a contraparte da operação estiver sujeita a um regime fiscal a que se referem o n.º 1 ou 5 do artigo 63.º-D da Lei Geral Tributária;

 

II – Resulta do disposto na Lei que as menos-valias fiscais associadas às operações, como as que estão em causa nos presentes autos, não são relevantes quando a contraparte da operação estiver sujeita a um regime fiscal privilegiado;

 

III – Considerando princípios gerais e especiais aplicáveis, o conceito de “contraparte” de uma operação de alienação de acções só por interpretação extensiva ou correctiva poderia abranger para além das entidades adquirentes, as entidades emitentes das acções.

 

IV – A interpretação declarativa do n.º 5 do artigo 43.º do Código do IRS, de acordo com a natureza das normas interpretadas e as regras especiais de interpretação aplicáveis, conduz à conclusão de que o n.º 5 do artigo 43.º do Código não constitui base legal válida à eliminação das menos-valias obtidas pela Requerente, relativas às transmissões de acções, cujas entidades emitentes se situem em regimes de tributação privilegiada, por tais entidades não constituírem a “contraparte” nas operações em causa, nem ter o legislador previsto a sua inclusão como entidades emitentes, na situação específica em análise, como incluiu noutras situações, para efeitos de aplicação da Lei fiscal.

 

 

Decisão Arbitral

 

I. Relatório

 

A..., residente na Rua ..., n.º ... –..., ...-... Lisboa, contribuinte fiscal n.º..., adiante abreviadamente designada por “Requerente”, veio, ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“RJAT”), apresentar pedido de pronúncia arbitral sobre a decisão de indeferimento da reclamação graciosa proferida no processo n.º ...2021..., de 12.01.2020, que incidiu sobre o acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2021..., de 05.07.2021, referente ao ano de 2020,  no valor total de € 234.676,60 (duzentos e trinta e quatro euros, seiscentos e setenta e seis euros e sessenta cêntimos).

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT”).

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 18.4.2022.

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi constituído em 29.06.2022.

 

A AT apresentou resposta, a 31.07.2022, defendendo a improcedência da totalidade do pedido.

 

Por despacho de 20.09.2022, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, sendo fixado prazo para alegações.

 

As partes apresentaram alegações finais, por escrito, em 10.10.2022.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.

 

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

Não ocorrem quaisquer nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento imediato do mérito da causa

 

II. Matéria de Facto

 

Com base nos elementos que constam do processo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)    Em 30 de Junho de 2021, a Requerente apresentou a declaração de rendimentos Modelo 3 do IRS relativa ao exercício fiscal de 2020;

b)    No âmbito dos rendimentos da categoria G incluiu na declaração os Anexos G e J, tendo neles declarado, para além de outras operações, a alienação onerosa de partes sociais;

c)     No quadro 9.2 A do Anexo J da declaração do IRS foram reportadas as seguintes operações: 

d)    Estas operações foram realizadas através do B…; 

e)     A Requerente contratou um serviço de gestão discricionária de carteira;

f)     As transacções foram executadas pelo intermediário financeiro em bolsa, no estrito cumprimento da regulamentação emitida pela autoridade de supervisão dos mercados financeiros FINMA;

g)    A 5 de Julho de 2021 foi emitido o acto de liquidação de IRS n.º 2021 ..., de 05.07.2021 que eliminou as menos-valias de títulos declarados pela Requerente em que o emitente está em país com regime de tributação privilegiada, cujo prazo de pagamento terminou no dia 31 de Agosto de 2021;

h)    Em 3 de Novembro de 2021, por considerar tratar-se de um erro do sistema de liquidação do IRS, a Requerente apresentou reclamação graciosa;

i)      A 13 de Janeiro de 2022, a AT indeferiu a reclamação graciosa apresentada sustentando que a expressão “contraparte da operação” se reporta à entidade emitente dos valores mobiliários, sendo aplicável o disposto no artigo 43.º, n.º 5, do Código do IRS;

j)     Os países das bolsas das transacções dos títulos em causa foram os seguintes: 

·        Alibaba (emitente residente em Caimão): bolsa Nasdaq, sedeada nos Estados Unidos da América; 

·       Leonteq (emitente residente em Guernsey): bolsa SIX Swiss Exchange, sedeada em Zurique, na Suíça; 

·        Glencore (emitente residente em Jersey): bolsa LSE London Stock Exchange, sedeada no Reino Unido;

·        WisdomTree (emitente residente em Jersey): bolsa Borsa Italiana, sedeada em Milão, na Itália 

k)    A Requerente procedeu ao pagamento do imposto em 26 de Agosto de 2021;

 

Com base nos elementos que constam do processo junto aos autos, não se considera provado que os adquirentes das acções transaccionadas, em bolsa, estavam sedeados em regime fiscal privilegiado.

 

Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT e a prova documental junta aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

III. Matéria de Direito

 

A principal questão que se coloca nos presentes autos reconduz-se a saber se as menos‑valias declaradas pela Requerente respeitantes à alienação de acções devidamente identificadas nos autos, transaccionadas em mercado aberto, no ano 2020, cujos emitentes se localizam em países, territórios ou regiões qualificados como “paraísos fiscais” ou sujeitos a regimes de tributação privilegiada estão abrangidos pelo disposto no n.º 5 do artigo 43.º do Código do IRS.

 

A este propósito, a Requerente alega no seu pedido de pronúncia arbitral o seguinte:

 

a)     Decorre da factualidade supra exposta que o fundamento da AT para expurgar as menos-valias declaradas nas linhas 962, 964 e 966 – transmissões de acções cujo ISIN respeitava a entidades residentes em Guernsey, Jersey e Caimão – foi a aplicação da norma anti-abuso prevista no artigo 43.º, n.º 5, do Código do IRS;

b)    Dispõe o artigo 43.º, n.º 5, do Código do IRS o seguinte: “Para apuramento do saldo positivo ou negativo referido no n.º 1, respeitante às operações efectuadas por residentes previstas nas alíneas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º, não relevam as perdas apuradas quando a contraparte da operação estiver sujeita a um regime fiscal a que se referem o n.º 1 ou 5 do artigo 63.º-D da Lei Geral Tributária”;

c)     A norma anti-abuso simplesmente não se aplica aos factos sub judice, pois, a contraparte da operação é o adquirente das acções alienadas, entrando “o bem ou direito” na sua esfera patrimonial;

d)    Nos mercados de bolsa, a contraparte do ordenante é a própria sociedade gestora do sistema de negociação ou entidade com funções de contraparte central (“CCP”);

e)     No caso, as acções foram alienadas nas bolsas Nasdaq, Six Swiss Exchange, London Stock Exchange e Borsa Italiana, pelo que é de concluir que as contrapartes estão localizadas nos países correspondentes, nenhum deles território de regime privilegiado;

f)     O país da contraparte, nestas transacções, é o país da entidade com funções de CCP, que actua como contraparte exclusiva relativamente às ordens de transferência dadas e pode cumular funções de liquidação das transacções realizadas ou registadas nos mercados regulamentados que lhe estão conectados;

g)    Há coincidência entre o país da bolsa e da contraparte porque as funções de contraparte central e de compensação são desempenhadas por entidades pertencentes ao mesmo grupo ou autorizadas no mesmo país (assim, para a Nasdaq será a ICE Clear, para a London Stock Exchange será a LCH, para a SIX Swiss Exchange será a SIX x-clear, para a Borsa Italiana será a Euronext Clearing);

h)    A liquidação de IRS impugnada é destituída de fundamentação substancial, no sentido da real verificação dos pressupostos de facto invocados e correcta interpretação e aplicação das normas indicadas como fundamento jurídico;

i)      Note-se que, neste caso, a “ficção” [assimilar como residente em paraíso fiscal a contraparte de uma operação quando o emitente dos títulos tem residência em país da lista] é uma ficção exclusivamente imputável ao sistema informático, nem sequer é uma ficção jurídica, no sentido de “assimilação fictícia de realidades factuais diferentes, para efeito de as sujeitar ao mesmo regime jurídico” (cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, p. 108);

j)      A lei – o artigo 43.º, n.º 5, do Código do IRS – não desconsidera as perdas relacionadas com emitentes em paraísos fiscais!

k)    Como é sabido, é proibida a analogia na interpretação das normas de incidência fiscal, conforme preceitua o artigo 11.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária (“LGT”) (ver, por todos, SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pp. 309 e ss.) e na presente situação nunca haveria qualquer lacuna a justificar analogia;

l)      No procedimento e processo tributário, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos recai sobre quem os invoque (cf. artigo 74.º, n.º 1 da LGT), ou seja, sobre a administração tributária neste caso, uma vez que corrige o rendimento declarado pelo contribuinte fazendo apelo à aplicação de uma norma anti-abuso;

m)   Mesmo que a AT viesse alegar que a contraparte estava em país da lista, não o prova (nem conseguiria fazê-lo por não corresponder à realidade);

n)    Ainda que o acima exposto não procedesse, o que apenas se concebe por elevada cautela de patrocínio, sem conceder, sempre a situação dos autos se situa fora do âmbito de aplicação do preceito – artigo 43.º, n.º 5, do Código do IRS –, tendo em conta uma correcta interpretação da disposição, face à sua ratio legis;

o)    Assim, ainda que a norma fosse susceptível de aplicação ao caso dos autos, que não é (as contrapartes das alienações de acções em bolsa não estavam em paraísos fiscais ou territórios da lista de jurisdições com regimes fiscais claramente mais favoráveis), sempre se constata que o fim visado pelo legislador não se verifica, o que igualmente levaria a afastar a sua aplicação;

p)    É também descabido qualquer juízo que relacione a circunstância de a sociedade emitente ser residente num território listado como regime fiscal privilegiado com uma motivação de evasão fiscal das transacções das respectivas acções;

q)    Por natureza, tais sociedades cotadas não são passíveis de serem usadas enquanto expedientes artificiais dos investidores que nelas investem, o que decorre da exigência de dispersão do capital pelo público, como requisito de admissão à negociação;

r)     Ora, se a operação geradora de menos-valia é genuína e insusceptível de manipulação por parte do sujeito passivo, estando arredado, quanto aos intervenientes na operação parte e contraparte, um qualquer benefício de regime fiscal privilegiado, então não se aplica o disposto no artigo 43.º, n.º 5, do Código do IRS;

s)     Em todo o caso, apesar de o elemento teleológico não estar preenchido e o preceito em questão estar a ser erroneamente aplicado no caso particular, a verdade é que a norma do artigo 43.º, n.º 5, do Código do IRS é violadora da liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), também aplicável fora da União, em relação a países terceiros;

t)      As medidas proibidas pelo artigo 63.º, n.º 1, do TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são susceptíveis de dissuadir os residentes de um Estado-Membro de investir noutros Estados, sendo que a medida em causa é claramente susceptível de dissuadir os investidores residentes em Portugal de fazer investimentos em sociedades não residentes e de realizar operações com não residentes;

u)    Segundo jurisprudência constante do TJUE, uma restrição à liberdade dos movimentos de capitais “só pode ser admitida se se justificar por uma razão imperiosa de interesse geral. Mas é ainda necessário, nesse caso, que seja adequada para garantir a realização do objetivo em causa e que não ultrapasse o necessário para atingir esse objetivo”;

v)    A prevenção e combate da fraude, evasão e elisão fiscal e a necessidade de garantir a eficácia do controlo fiscal não são justificações aptas a sanar a incompatibilidade da presente norma com o artigo 63.º do TFUE;

w)   A norma do artigo 43.º, n.º 5, do Código do IRS não respeita o Direito Europeu por três razões essenciais: (i) não se direcciona exclusivamente a situações abusivas e artificiais (note-se que não se prevê sequer a existência de relações especiais entre as partes intervenientes ou o desfasamento dos preços praticados em relação a valores normais de mercado), ii) não permite contraprova de que a transacção é genuína, e (iii) não está condicionada a aplicabilidade do regime gravoso e restritivo à impossibilidade de controlo através dos instrumentos internacionais de cooperação;

x)    Em suma, também pela razão da incompatibilidade com o Direito da União, deve a liquidação de IRS sub judice, na parte contestada, ser anulada, nos termos do artigo 163.º, do Código de Procedimento Administrativo (“CPA”), aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT, anulação que desde já se requer, com as demais consequências legais.

 

Por sua vez, a AT defende, sinteticamente, o seguinte:

                                                                                                                         

a)     O n.º 5 do artigo 43.º do Código do IRS constitui uma das medidas destinadas a evitar a evasão e elisão fiscal, procurando-se, por esta via, demover os investidores financeiros de realizar os seus investimentos em países com um regime fiscal claramente mais favorável e obter, por este modo, uma tributação mais reduzida;

b)    No que respeita à tributação das mais-valias, o n.º 5 do artigo 43.º do Código do IRS, que desconsidera as menos-valias resultantes de operações realizadas com contraparte sujeita a um regime fiscal claramente mais favorável, é acompanhado do n.º 17 do artigo 72.º que, na sua alínea b), sujeita a uma taxa de 35%, (na redacção em vigor à data dos factos) o “saldo positivo entre as mais-valias e menos‑valias, resultante das operações previstas nos n.ºs 4) e 5) da alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, quando respeitem a valores mobiliários cujo emitente seja entidade não residente sem estabelecimento estável em território português, que seja domiciliada em país, território ou região sujeitos a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças”;

c)     Aceitar o entendimento da requerente, segundo o qual a contraparte corresponde à entidade gestora da plataforma de investimento colectivo seria desvirtuar a finalidade prosseguida, pela norma acima identificada e por todo o conjunto de medidas que prossigam aquele fim;

d)    A expressão “contraparte da operação” reporta-se à entidade emitente dos valores mobiliários, “país da fonte” ou domicílio da entidade emitente;

e)     Contudo, mantêm a posição de que devem ser expurgadas do cômputo do saldo de mais e menos valias as linhas 962, 964 e 966 declaradas na Modelo 3, referentes às transmissões de acções cujo ISIN (Número Internacional de Identificação de 7 Valores Mobiliários) pertencia a entidades residentes em Guernsey, Jersey e Caimão;

f)     Na tese da Requerente, e dada a opacidade das operações em causa, a norma ficaria completamente esvaziada de aplicação, pois que, os adquirentes das acções transaccionadas em bolsa, dadas as características da operação, não são conhecidos dos alienantes, pelo que, o sentido da norma, quanto à expressão “contraparte”, só pode ter-se por “entidade emitente”, precisamente aquela que é conhecida;

g)    É a própria Requerente que confessa que as entidades emitentes em causa fazem parte da lista a que alude a norma;

h)     A AT limitou-se a cumprir com o princípio da legalidade a que se mostra vinculada, na prossecução dos seus fins de arrecadação de receita e combate à fraude e evasão fiscal;

i)      Quanto à alegada incompatibilidade do regime previsto na norma em apreço – o artigo 43.º, n.º 5, do Código do IRS – com a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, sem conceder, porquanto entendemos se mostrar respeitada a regra da norma comunitária;

j)      A Requerente ignora que apenas se mostram vedadas as restrições na medida em que as mesmas constituam “discriminação arbitrária” ou “uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais” – como decorre do nº 3 do art. 65º do Tratado, o que não é manifestamente o caso, porquanto a norma do CIRS cinge-se apenas aos países, territórios e regiões com regimes de tributação privilegiada;

k)    A Requerente insiste na ideia de que a AT deveria aplicar a norma jurídica do artigo 63.º do TFUE em conformidade com as interpretações do TJUE proferidas até à presente data, todavia, isso equivale a remeter para a doutrina dos acórdãos que só pode ser entendida atendendo às circunstâncias dos casos concretos submetidos àquele Tribunal;

l)      Verifica-se, pois, no caso em apreço, que a Autoridade Tributária se limitou a cumprir, de acordo com o princípio da legalidade previsto no artigo 266º da Constituição e concretizado nos artigos 55.º LGT e no artigo 3.º do CPA o determinado em sede tributação do rendimento das pessoas singulares;

m)   À data dos factos, a Administração tributária fez a aplicação da lei nos termos em que como órgão executivo está adstrita constitucionalmente, não se pode falar em erro dos serviços nos termos do disposto no artigo 43º da LGT, pelo que improcederão também os peticionados juros indemnizatórios.

 

Em face dos argumentos aduzidos pelas partes, cabe a este Tribunal determinar se o acto tributário impugnado é ilegal, considerando a inaplicabilidade do artigo 43.º, n.º 5 do Código do IRS às transmissões de acções geradoras de mais e menos valias declaradas pela Requerente no Anexo J, quadro 9.2. e expurgadas pela AT do cômputo do saldo de mais e menos valias as linhas 962, 964 e 966 declaradas na Modelo 3, referentes às transmissões de acções cujo ISIN (Número Internacional de Identificação de 7 Valores Mobiliários) pertencia a entidades residentes em Guernsey, Jersey e Caimão.

 

Argumenta, também, a Requerente que o acto tributário é ilegal, por falta de fundamentação, por violação do artigo 63.º do Tratado sobre Funcionamento da União Europeia (TFUE) e pela proibição de presunções inilidíveis.

 

Vejamos.

 

 

A – Da Tributação das Mais-Valias Mobiliárias

 

Nos termos do artigo 43.º, n. º 1 do Código do IRS “1 - O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos‑valias realizadas no mesmo ano, determinadas nos termos dos artigos seguintes.” 

 

Em face da referida norma, o rendimento colectável é o resultado de todas as mais valias e menos valias do ano, não sendo relevante a origem ou fonte das mais ou menos valias, em conformidade com o princípio da realização.

 

Não obstante, dispõe-se no n.º 5 do artigo 43.º do Código do IRS, o seguinte:

 

“5 - Para apuramento do saldo positivo ou negativo referido no n.º 1, respeitante às operações efectuadas por residentes previstas nas alíneas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º, não relevam as perdas apuradas quando a contraparte da operação estiver sujeita a um regime fiscal a que se referem o n.º 1 ou 5 do artigo 63.º-D da Lei Geral Tributária. (Redação da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro)

 

Assim, resulta do disposto na Lei que as menos-valias fiscais associadas às operações, como as que estão em causa nos presentes autos, não são relevantes quando a contraparte da operação estiver sujeita a um regime fiscal privilegiado.

 

Tendo em conta que a correcção efectuada pela AT à declaração de IRS apresentada pela Requerente assenta no expurgo do cômputo do cálculo do saldo das mais e menos-valias declaradas, as menos-valias, deduz-se que foi entendido pela AT que a “contraparte” das operações subjacentes às menos-valias declaradas estavam sujeitas a um regime fiscal privilegiado, constante da lista de jurisdições com regimes fiscais claramente mais favoráveis.

 

Deste modo, importa antes de mais determinar, à luz das regras de interpretação, quem é “a contraparte” das operações de alienação de valores mobiliários, no caso em análise.

 

Ressalta da factualidade evidenciada nos autos que as mais e menos-valias declaradas resultam de transacções mobiliárias realizadas em mercado aberto, em bolsas de mercados que não se situavam em regimes de tributação privilegiada, sendo certo que algumas das entidades emitentes das acções transaccionadas se situavam em regimes de tributação privilegiada.

 

Aplicando os princípios gerais de interpretação à base legal da correcção realizada pela AT – artigo 43.º, n.º 5 do Código do IRS – importa assim determinar se a contraparte nas operações de transmissão de valores mobiliários deve ser entendida como o adquirente dos valores mobiliários ou como o emitente dos valores mobiliários ou como ambos.

 

De acordo com o disposto no artigo 11.º da LGT, a interpretação da lei fiscal deve ser efectuada atendendo aos princípios gerais de interpretação.

 

Os princípios gerais de interpretação estão estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil (“CC”), nos seguintes termos:

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

 

Assim, prescreve o n.º 1, do artigo 9.º do CC que à actividade interpretativa não basta o elemento literal das normas e que é essencial a vontade do legislador, captável no quadro do sistema jurídico, das condições históricas da sua formulação e, numa perspectiva actualista, na especificidade do tempo em que são aplicadas.


No n.º 2 estabelece-se, por seu turno, que a determinação da vontade legislativa não pode abstrair da letra da lei, isto é, do significado da sua expressão verbal.


Por fim no nº 3, dispõe-se, por apelo a critérios de objectividade, que o intérprete, na determinação do sentido prevalente da lei, deve presumir o acerto das soluções consagradas e a expressão verbal adequada (Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. I, 3ª ed., págs. 58 e 59).


No fundo, o referido normativo expressa os princípios doutrinários consagrados ao longo do tempo sobre a interpretação das leis, designadamente o apelo ao elemento literal, por um lado, e aos de origem lógica – mens legis ou fim da lei, histórico ou sistemático – por outro.


Interpretar uma lei não é mais do que fixar o sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei.[1]


Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva.[2]


Daí que, perante as regras de interpretação da lei que resultam do artigo 9.º do CC, a regra é a de que onde a lei não distingue não pode o intérprete distinguir; mesmo que se possa entender que onde a lei não distingue deve o intérprete distinguir sempre que dela resultem ponderosas razões que o imponham.

 

Afasta-se assim o exagero de um subjectivismo extremo que propende a abstrair por completo do texto legal quando, através de quaisquer elementos exteriores ao texto, descobre ou julga descobrir a vontade do legislador.”[3]

 

 

Aplicando os referidos princípios à análise do artigo 43.º do Código do IRS constata-se que o conceito de contraparte não está definido, para os termos e efeitos do disposto na norma anti-abuso prevista no n.º 5, não obstante o n.º 6 do mesmo artigo contemplar várias definições de conceitos relevantes para os propósitos da subsunção dos factos à norma em análise.

 

Em termos literais, contraparte, segundo o dicionário Porto Editora, corresponde à outra parte ou, em matéria de Direito, à Parte contrária numa relação jurídica.

 

No caso concreto em análise, do ponto de vista literal, estando em causa operações de transmissão de acções, com intermediários e em mercado aberto, a parte contrária de quem transmite é quem adquire, isto é, a parte contrária na relação jurídica subjacente.

 

Com o objectivo de uniformizar a aplicação do Direito pela AT, concretizou a AT administrativamente o conceito de "contraparte" para efeitos de preenchimento do anexo J da declaração modelo 3 como correspondendo ao "adquirente", reforçando-se assim a ideia junto dos contribuintes de que apenas nos casos em que os ganhos de mais-valias resultam da transmissão de acções a entidades sedeadas em regimes de tributação privilegiada serão desconsideradas as menos-valias associadas aos ganhos.

 

Na fixação da taxa agravada prevista no artigo 72.º, n.º 17, alínea b), do Código do IRS, o legislador previu e identificou expressamente o "emitente" enquanto entidade objecto da norma, não o tendo, no entanto, feito no artigo 43.º, n.º 5, do Código do IRS, que limita a entidade objecto da norma à “contraparte”.

 

Assim sendo, a interpretação literal da norma apoiada na concretização normativa feita pela AT suporta – embora não permita excluir entendimento contrário nos termos do artigo 9.º, n.º 2 do CC – o entendimento de "contraparte" como sendo o "adquirente" das acções.

 

Não obstante não se possa excluir entendimento diferente do conceito de “contraparte” considerando os objectivos de combate à evasão fiscal subjacentes à norma, no direito fiscal prevêem-se regras específicas de interpretação, que proíbem a interpretação extensiva relativamente a normas de incidência tributária e a integração analógica.

 

Tal como esclarece José Casalta Nabais, “a incidência entendida em sentido amplo abarca todos os pressupostos de cuja conjugação resulta o nascimento da obrigação de imposto e, bem assim, os elementos da mesma obrigação, o que a reconduz à definição normativa: 1) do facto ou situação que dá origem ao imposto (pressuposto de facto, facto gerador ou facto tributário);

2) dos sujeitos ativo e passivos (contribuinte, responsáveis, substitutos) da obrigação de imposto;

3) o montante do imposto, em regra (sempre que se não trate de impostos de quota fixa) definido através do valor ou da quantidade sobre que recai o imposto (definição ou determinação em abstrato da matéria coletável), da percentagem desse valor ou do montante pecuniário por unidade da matéria coletável a exigir do contribuinte (definição da taxa ou das taxas ad valorem ou específicas) e das deduções à coleta (caso as haja);

4) dos benefícios fiscais.”[4]

 

São, assim, normas de incidência tributária aquelas em que estejam em causa regras de quantificação do imposto, regras que contribuam para a determinação do an e do quantum e disposições que interferem com o montante de imposto a pagar.

 

As normas previstas no n.º 1 e 5 do artigo 43.º do Código do IRS, sob a epígrafe “Mais‑Valias” definem como se determinam as mais-valias mobiliárias sujeitas a imposto, constituindo, assim, normas de incidência tributária.

 

Na medida em que a norma interpretada – artigo 43.º, n.º 5 do Código do IRS – no caso dos autos é relevante para a determinação do quantum do imposto a pagar, considerando o direito à dedução das perdas – menos-valias, não se vê como deixar de reconhecer que possa ser qualificada como uma norma de incidência (em sentido amplo), abrangida pelo n.º 2 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

 

Considerando princípios gerais e especiais aplicáveis o conceito de “contraparte” de uma operação de alienação de acções só por interpretação extensiva ou correctiva poderia abranger para além das entidades adquirentes, as entidades emitentes das acções.

 

A interpretação declarativa da norma em discussão, de acordo com a natureza das normas interpretadas e as regras especiais de interpretação aplicáveis, conduz à conclusão de que o n.º 5 do artigo 43.º do Código não constitui base legal válida à eliminação das menos‑valias obtidas pela Requerente, relativas às transmissões de acções, cujas entidades emitentes se situem em regimes de tributação privilegiada, por tais entidades não constituírem a “contraparte” nas operações em causa, nem ter o legislador previsto a sua inclusão como entidades emitentes, na situação específica em análise, como incluiu noutras circunstâncias, para efeitos de aplicação da Lei fiscal.

 

Sem prejuízo do exposto, e admitindo a tese da AT que a norma do n.º 5 do artigo 43.º do Código do IRS poderia ser interpretada teológica ou extensivamente, considerando os objectivos de combate à evasão fiscal inerentes à norma, importa ponderar se o conceito de “contraparte” poderá ser interpretado no sentido de incluir as entidades emitentes dos títulos transaccionados, por serem desconhecidos, no contexto da venda em mercado aberto, os adquirentes das acções.

 

O artigo 43.º, n.º 5, do Código do IRS consiste numa efectiva disposição anti-abuso que visa evitar a venda de acções (e outros valores mobiliários) em moldes anormais ou artificiais, designadamente por preços anormalmente reduzidos, como forma de gerar menos-valias e reduzir o quantum de tributação.

 

Ficou provado nos autos que as acções foram todas transaccionadas em mercado aberto (bolsa de valores), que é objecto de regulamentação e supervisão, sendo o valor da cotação das acções formado pelo próprio funcionamento do mercado, sem intervenção da própria Requerente ou de outro interveniente interposto entre o emitente e o adquirente para o efeito, sendo as sociedades cujas acções são transaccionadas sujeitas a um conjunto de imposições de forma a assegurar o regular funcionamento da bolsa de valores.

 

Parece, por isso, que também do ponto de vista teológico não existe abuso que cumpra combater por via da aplicação da norma.

 

Conclui-se, assim, que tanto a interpretação declarativa do n.º 5 do artigo 43.º do Código do IRS, como a sua interpretação teológica tem como limite a função negativa da letra da Lei[5], que não comporta entre as entidades abrangidas as entidades emitentes de acções.

 

 

Em face do exposto, considera-se a petição arbitral totalmente procedente, nos termos e com os fundamentos expostos, ficando, em consequência, prejudicada a apreciação dos outros fundamentos apresentados pela Requerente, por consistir na prática de um acto inútil no processo, proibida nos termos conjugados dos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

B – Juros Indemnizatórios

 

Nos termos do artigo 100.º da LGT, em virtude da procedência total ou parcial de impugnação a favor do sujeito passivo, a AT está obrigada à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto objecto do litígio, tal dever compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, computados a partir do termo do prazo da execução da decisão. Em face de tal postulado, a anulação judicial do acto tributário implica o desaparecimento de todos os seus efeitos “ex tunc”, tudo se passando como se o acto anulado não tivesse sido praticado, mais devendo a reintegração completa da ordem jurídica violada ser efectuada de acordo com a teoria da reconstituição da situação actual hipotética.

 
 

A reconstituição da situação hipotética actual justifica a obrigação de restituição do imposto que houver sido pago, tal como do pagamento de juros indemnizatórios, cuja atribuição ao sujeito passivo, nos termos da lei, não está dependente da formulação de pedido nesse sentido, posição esta que está de acordo com os efeitos consequentes que decorrem da anulação do acto tributário, tal como do facto do pagamento de juros não estar dependente de pedido (cfr. artigo 100, da LGT; artigo 61.º, n.º.3, do C.P.P.T).

 

Em consequência da procedência do pedido arbitral, impõe-se a anulação do acto de liquidação de IRS sub judice, e o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios da Requerente, uma vez que a ilegalidade do acto de liquidação é imputável a erro da Requerida, nos termos previstos no artigo 43.º da LGT.

 

 

IV. DECISÃO

 

Termos em que este Tribunal Arbitral decide:

 

A)   Julgar totalmente procedente o pedido de anulação do indeferimento da reclamação graciosa subjacente ao acto liquidação de IRS identificado;

B)   Julgar totalmente procedente o pedido de anulação parcial do acto de liquidação de IRS n.º 2021..., de 05.07.2021, referente ao ano de 2020, nos termos acima evidenciados;

C)   Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios;

D)   Condenar a Requerida nas custas do presente processo, por ser a parte vencida.

 

V. VALOR DO PROCESSO

 

Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, 97.º‑A, n.º 1 a) do CPPT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor do pedido é € 234.676,60 (Duzentos e trinta e quatro, seiscentos e setenta e seis Euros e sessenta cêntimos).

 

VI. CUSTAS

 

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 4.284, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 29 de Dezembro de 2022

 

 

Os Árbitros,

 

 

Carla Castelo Trindade

(Presidente)

 

 

Magda Feliciano

(Relatora)

 

Jorge Carita

(Adjunto)

 

 

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)

 

 

 



[1] Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, págs. 21 a 26

[2] Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais do Direito Civil, vol. 1º, 6ª ed., pág. 145

[3] Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pp. Pag. 189, in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1993

 

[4] O Dever Fundamental de Pagar Impostos, 3.ª Reimpr., Almedina, Coimbra, 2012, p. 362.

[5] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 182/2020, Proc. 868/2018, de 11.03.2020.