Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 638/2021-T
Data da decisão: 2022-07-30  IRS  
Valor do pedido: € 33.914,87
Tema: Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) – Retenção na fonte – substituto tributário - responsabilidade solidária.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I.         Relatório

 

A... Unipessoal, Lda., doravante “Requerente”, contribuinte fiscal número ..., com sede na Rua ..., veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do artigo 10.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com as alterações subsequentes, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, com vista à declaração de ilegalidade e anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), no valor de € 29.597,32, referente a retenções na fonte do ano de 2017, identificada com o n.º 2021 ... bem como dos atos de liquidação de juros compensatórios, respeitantes também ao ano de 2017, no montante total de € 4.317,55, identificados com os n.º 2021 ..., 2021 ..., 2021 ..., 2021 ..., 2021 ... e 2021 ..., compilados no ato de liquidação referente a demonstração de liquidação de retenções na fonte de IRS com o n.º 2021 ... com o montante total de € 33.914,87.

 

1.      É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”. 

 

2.      Em 11 de outubro de 2021, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação da AT no dia 14 de outubro de 2021.

 

3.      Em conformidade com os artigos 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro do Tribunal Arbitral Singular a Exma. Sra. Dra. Susana Constantino, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação em 30 de novembro de 2021, não manifestaram vontade de a recusar, nos termos dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

4.      O Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 21 de dezembro de 2021.

 

5.      A Requerida foi notificada através de despacho arbitral, de 23 de dezembro de 2021, para os efeitos previstos no artigo 17.º do RJAT.

 

6.      A Requerida apresentou resposta no dia 2 de fevereiro de 2022 juntando cópia do Processo Administrativo no dia 8 de fevereiro de 2022.

 

7.      O Tribunal Arbitral, por despacho datado de 25 de fevereiro de 2021, tendo em consideração que não foram arroladas testemunhas nem requeridas diligências probatórias adicionais, questionou ambas as Partes sobre a necessidade de realizar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e forma de alegações. 

 

8.      Tendo a Requerente apresentado alegações escritas no dia 10 de março de 2021 e a Requerida no dia 22 do mesmo mês e ano.

 

9.      Por despacho de 28 de março de 2022, o Tribunal Arbitral advertiu a Requerente de que até à data da prolação da decisão arbitral deveria proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”) e comunicar o pagamento ao CAADTribunal Arbitral.

 

10.   De acordo com as alegações apresentadas, a posição da Requerente é, em resumo, a seguinte:

10.1. A Requerente invoca que o pedido de pronúncia incide sobre i) o ato de liquidação de Retenções na Fonte de IRS nº 2021..., relativo ao ano de 2017, no montante de € 29.597,32, e ii) os atos de liquidação de Juros Compensatórios nº 2021..., nº 2021..., nº 2021 ..., nº 2021 ..., nº 2021... e nº 2021 ..., relativos ao ano de 2017, no montante global de € 4.317,55.

10.2. Os quais foram notificados por via eletrónica.

10.3. Indica a Requerente que foi constituída em 2015-10-19, sob a forma de sociedade por quotas e com o objeto social de «Construção de Edifícios» e «Obras Publicas», sendo que a atividade em causa era essencialmente desenvolvida na qualidade de subempreiteiro e fora do País (na Bélgica).

10.4. Dada a necessidade de deslocação dos seus trabalhadores para as obras localizadas na Bélgica, a Requerente procedeu ao pagamento de valores a título de ajudas de custo.

10.5. Relativamente ao exercício de 2017 os Serviços de Inspeção Tributária (SIT) da Direção de Finanças do ... levaram a cabo uma ação inspetiva de âmbito geral para cumprimento da Ordem de Serviço nº OI2020... . Esta credencial foi iniciada em 2020-11-18, tendo o Relatório de Inspeção Tributária (RIT) sido elaborado em 2021-05-20.

10.6. Nesta medida, refere a Requerente que do capítulo 3.1.4 - Correções em sede de IRS do RIT consta que: “resulta do anteriormente exposto, que a partir de 12 de Julho, os empregados continuaram a auferir aos mesmos valores diários, a título de ajudas de custo, que auferiam anteriormente”. Mais ainda, do mesmo relatório consta que, “no entanto, a partir dessa data e nos termos do contrato assinado entre o sujeito passivo e o seu cliente, o alojamento dos trabalhadores do sujeito passivo passou a ser a cargo do cliente B...”, pelo que

10.7. “(…) o correspondente a 50% do valor diário da ajuda de custo (que conforme já se referiu, corresponde à compensação da dormida) e que os trabalhadores continuaram a receber, não se destinou a compensar os trabalhadores pelas despesas suportadas com alojamento, ou seja, não se destinou a compensar o trabalhador pelas despesas que este foi obrigado a suportar do seu bolso, na sequência de deslocações ao serviço da entidade patronal, uma vez que o trabalhador nada suportou, porquanto o alojamento ficou a cargo do cliente B...», concluindo os Serviços da AT que “assim, não tendo os montantes recebidos pelos trabalhadores o carácter compensatório, não se enquadram no conceito de ajudas de custo, isentas de IRS e como tal constituem rendimentos da categoria A, sujeitas a IRS, por efeito de substituição tributária, através do mecanismo de retenção na fonte”.

10.8.Concluindo, pois o Relatório de Inspeção que “as verbas apostas nos recibos como ajudas de custo, apenas podem ser consideradas em 50%, sendo o restante, componente de retribuição e, como tal, deveria ter sido sujeita a tributação como rendimento da categoria A do IRS (artigo 2º do CIRS), relativamente às quais, o sujeito passivo deveria ter procedido à retenção devida e entregue até ao dia 20 do mês seguinte o IRS retido, de acordo com o disposto nos nºs 1 a 3 do artigo 98º do CIRS, o que não fez”.

10.9.Sendo que, decorrente desta conclusão, a AT procedeu à emissão da nota de liquidação de retenções na fonte com o valor de imposto de € 29.597,32, e a liquidação de Juros Compensatórios, com o valor de € 4.317,55. Ora, 

10.10.            A Requerente não coloca em causa a tributação das referidas ajudas de custo, mas sim a responsabilidade solidária (e em primeira linha) do IRS em falta (em parte via retenção na fonte) invocada pela AT. 

10.11.            Efetivamente, alega a Requerente que, ao sustentar que o substituído (colaboradores da Requerente), enquanto único titular e beneficiário do rendimento em causa, não deverá ser tributado na sua esfera tributária pessoal, através de liquidação nesse sentido, decidindo a AT, ao invés, por dirigir a liquidação do imposto em falta ao substituto, responsável, unicamente, pela retenção desse mesmo imposto e pela respetiva entrega nos Cofres do Estado, estão a ser desrespeitados os princípios fundamentais do ordenamento tributário.

10.12.            No mesmo sentido, entende a Requerente que a norma do artigo 103º, n.º 2 do Código do IRS postula precisamente neste sentido uma vez que prevê que “quando a retenção for efectuada meramente a título de pagamento por conta de imposto devido a final, cabe ao substituído a responsabilidade originária pelo imposto não retido e ao substituto a responsabilidade subsidiária”.

10.13.            O que significa que nos casos em que a entidade pagadora do rendimento, ou que o coloca à disposição, não realiza a retenção na fonte, o imposto deverá ser pago, em primeira linha, pelo substituído, enquanto sujeito passivo e titular do rendimento em causa.

10.14.            Apenas na eventualidade de o substituído não ter meios para cumprir com essa obrigação de pagamento perante o Estado, será, então, responsabilizado o substituto por essa falta, em sede de reversão no processo de execução fiscal instaurado contra o responsável originário (o substituído) pelo não pagamento voluntário do montante do imposto devido.

10.15.            Assim, deverá necessariamente concluir-se que as liquidações de imposto alegadamente devido e de juros compensatórios devem ser processadas e notificadas aos trabalhadores, como sujeitos passivos e responsáveis originários do imposto, e não, como o foram, à Requerente (responsável subsidiário).

10.16.            Entende a Requerente que o substituto e responsável subsidiário (Requerente) apenas poderá ser responsabilizado diretamente pelo retardamento da entrega das retenções na fonte (através da aplicação de juros compensatórios) que deveriam ter sido efetuadas no âmbito da substituição tributária que se impunha (cfr. parte final do artigo 28º, nº 2 da LGT e parte final do artigo 103º, nº 2 do CIRS) e de eventuais sanções pelo alegado incumprimento desse dever acessório.

10.17.            Sem prejuízo, de poder vir a ser responsabilizada subsidiariamente, em sede de processo de execução instaurado contra o substituído, no caso de este não dispor de meios e não cumprir com a obrigação de pagamento do tributo perante o Estado.

10.18.            Alega, ainda, a Requerente que o artigo 103º, nº 4 do Código do IRS, que a AT invoca como justificação para a correção efetuada, foi aditado pela alteração legislativa introduzida pelo artigo 46º da Lei nº 53-A/2006, de 29 de dezembro (Orçamento do Estado para 2007).

10.19.            Ora, a AT mostra entender que esta alteração legislativa pretendeu viabilizar a exigência de imposto não retido, por via da responsabilidade subsidiária, diretamente - e unicamente - ao substituto e na fase de pagamento voluntário.

10.20.            Pelo que entende, salvo melhor opinião, estarmos perante uma violação da legislação fiscal vigente e princípios fundamentais do ordenamento tributário.

10.21.            Em sede de substituição tributária, o substituído - neste caso, os trabalhadores - não poderá, porque assim está legislado, deixar de ocupar a posição de sujeito passivo.

10.22.            Porquanto, como se estabelece no artigo 18º, nº 3 da LGT, “o sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária”.

10.23.            Os trabalhadores são os titulares dos rendimentos em causa (artigos 2º e 3º do Código do IRS) e, por isso, são as pessoas em relação às quais se verifica o facto tributário e os sujeitos passivos sobre os quais incide o imposto (cfr. artigo 13º do Código do IRS).

10.24.            A entidade pagadora dos rendimentos - neste caso, a Requerente - apenas está atribuída a função acessória de retenção na fonte de imposto, meramente a título de pagamento por conta de imposto devido a final pelos trabalhadores.

10.25.            Dessa forma, não poderá deixar de se onerar quem pratica o facto tributário e é titular da capacidade económica que se visa tributar, tanto mais que, na realidade, a Requerente entregou, aos trabalhadores, na totalidade e sem dedução de imposto, as verbas que, agora, a AT entende qualificar como rendimentos da Categoria A sujeitos a IRS.

10.26.            É consensual que os substituídos - trabalhadores - são os efetivos titulares dos rendimentos sujeitos a tributação, nomeadamente das verbas agora qualificadas pela AT como rendimentos do trabalho dependente pelo que, assim sendo, é a sua situação tributária que se encontra irregular e carece de correção.

10.27.            Devendo, por isso, com esse propósito, as liquidações de IRS serem dirigidas e o imposto eventualmente em falta ser exigido àqueles titulares dos rendimentos.

10.28.            E não, como fez a AT, emitir e notificar a liquidação de Retenções na Fonte à Requerente, num procedimento que converte o substituto em substituído, como se fosse ele o titular ou beneficiário do rendimento que se pretende tributar.

10.29.            Entende a Requerente que a AT desvaloriza a existência de dois tipos de responsabilidade tributária, com especificidades próprias e que justificam tratamentos distintos entre elas: i) uma, originária, “quando os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa” (cfr. artigo 21º da LGT) e em que existe uma ligação direta dos obrigados solidários ao facto gerado da obrigação de imposto; ii) outra, a que se refere o artigo 22º, nº 2 da LGT, no sentido de que “para além dos sujeitos passivos originários, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas” e em que os pressupostos em que assentam o facto tributário que dá origem à liquidação do imposto não se verificam em relação ao responsável solidário, uma vez que este não é o sujeito passivo originário.

10.30.            Desprezando que a obrigação principal cabe aos trabalhadores e que é sobre eles, enquanto sujeitos passivos, que incide, pessoalmente, a tributação e o imposto efetivamente em dívida (cfr. Artigo 31º da LGT e artigos 2º, 13º e 15º do Código do IRS).

10.31.            E inviabilizando o exercício dos direitos de defesa que àqueles aproveitam (porque, legitimamente, é a eles que, no âmbito de procedimento adequado, lhes seja conferida a possibilidade de avaliar os argumentos da AT e, sendo esse o caso, manifestar a discordância com os mesmos ou, concordando, decidir ou não pela regularização declarativa e de pagamento dos tributos em falta).

10.32.            Já no que se refere à nota de liquidação de juros compensatórios entende a Requerente que as liquidações de juros compensatórios (seis) foram emitidas em 2021-07-05 e que tais atos de liquidação em causa não explicitam os fundamentos que determinaram a sua emissão.

10.33.            Na verdade, defende a Requerente que as liquidações de juros compensatórios limitam-se à indicação de um conjunto de elementos (valor base, duração, taxa aplicada e valor por período) sem qualquer identificação quanto à sua natureza e origem, o que os torna completamente impercetíveis.

10.34.            Sendo apenas mencionado que tais liquidações poderão ser objeto de reclamação graciosa ou de impugnação judicial, sem serem identificadas as disposições legais em que as mesmas assentam. 

10.35.            Refere a Requerente que, de acordo com o artigo 77º, nº 2 da LGT “a fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo”, o que significa que a AT tem o dever legal de fazer referência expressa às disposições legais caso contrário a fundamentação será insuficiente e, consequentemente, acarretará a anulabilidade dos atos praticados.

10.36.            Mais ainda, entende a Requerente que o dever de fundamentação dos atos administrativos ou tributários tem associados os propósitos de: i) informar e elucidar o respetivo destinatário das razões ou dos motivos que levaram à tomada de decisão em determinado sentido, e ii) permitir o controlo sobre a legalidade da decisão e sobre a validade dos motivos que subjazem a determinada decisão.

10.37.            Ora, as liquidações de juros compensatórios, que foram notificadas à Requerente, são omissas quanto à necessária fundamentação, de facto e de direito, pelo que enfermam de vício de forma, por falta de fundamentação, e, nessa conformidade, devem ser anuladas (cfr. Artigo 163º do Código de Procedimento Administrativo (CPA)).

10.38.            Também, não se vislumbra nem existe, tão pouco, remissão explícita para qualquer documento que contenha essa mesma fundamentação. Não obstante, mesmo admitindo-se que os atos de liquidação se podem fundamentar nalgum outro documento externo, sem ser necessário cumprir com os requisitos mínimos de fundamentação estabelecidos no artigo 77º, nº 2 da LGT, sempre seria exigível e necessária a expressa remissão, no próprio ato de liquidação, para tal documento.

10.39.            Na verdade, impõe-se que a fundamentação seja atual, esteja contextualizada e não se presuma, devendo, nesse sentido, advir de forma transparente, expressa e inequívoca do próprio ato, o que não se verificou no caso em apreço.

10.40.            Ou seja, ainda que, quando os atos tributários resultem de relatório, se admita a fundamentação por adesão ou concordância, é exigido e necessário que o seu autor, de forma expressa, se refira e seja identificado o relatório, parecer, informação ou proposta com o(a) qual se exprime essa concordância (cfr. Artigo 77º, nº 1 da LGT, artigo 63º do RCPIT e artigo 153º, nº 1 do CPA).

10.41.            Ora, no entendimento da Requerente, nos atos tributários em apreciação, não consta, nem os mesmos comportam, qualquer referência ou remissão, expressa ou implícita, ao RIT ou a outro documento que possa ser considerado fundamentação do ato de liquidação.

10.42.            Na verdade, relativamente aos juros compensatórios, o RIT é completamente omisso quanto às razões de facto e de direito porque a AT entendeu serem devidos.

10.43.            Acresce que, de acordo com o artigo 35º, nº 1 da LGT “são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”, isto é, só serão de liquidar juros compensatórios no caso de haver prejuízo para a Fazenda Publica por facto imputável - logo, a título de culpa - ao sujeito passivo.

10.44.            É, pois, exigida uma ação voluntária direcionada a um aproveitamento indevido e conhecido, por parte do sujeito passivo, relativamente às legitimas receitas do Estado.

10.45.            Nesse sentido, sustenta a Requerente que aquela culpa tem de ser apreciada ou, pelo menos, ser objeto de ponderação por parte da AT e, em consequência, ser exteriorizada na fundamentação dos atos tributários.

10.46.            O que significa que a liquidação de juros compensatórios não é nem pode ser uma consequência imediata e automática de qualquer liquidação adicional de imposto, devendo, ao invés, traduzir o resultado final de todo o processo cognitivo e valorativo onde esteja estabelecido nexo de causalidade e esteja formulado um juízo de censura à atuação do contribuinte.

10.47.            Ora, no entendimento da Requerente, isso não foi feito pela AT.

10.48.            Efetivamente, daqueles atos não se retira qualquer referência à responsabilidade da Requerente no suposto retardamento da liquidação do imposto nem que o mesmo resultou de facto que lhe possa ser imputável.

10.49.            Nesse sentido, não são devidos os juros compensatórios liquidados.

10.50.            Nesta medida, as liquidações de juros compensatórios em causa foram realizadas em desrespeito pelas formalidades legais que sobre elas recaem e, nesse sentido, as mesmas enfermam de vicio de forma, por falta de fundamentação e por violação ao disposto no artigo 35, nº 1 da LGT e no artigo 91º do CIRS, devendo, por isso, ser anuladas.

 

11.   Por seu turno, a posição da Requerida é, em síntese, a seguinte:

11.1.Por Ofício nº ..., de 09/11/2020, registo RF...PT, os serviços de inspeção tributária da AT iniciaram uma ação de inspeção, na ordem de serviço OI2020..., que teve origem numa informação espontânea, remetida pelos serviços fiscais da Bélgica.

11.2.A Requerente foi constituída em 19-10-2015, tendo declarado como CAE 41200 “construção de edifícios (residenciais e não residenciais) e encontra-se no regime geral de tributação de IR.

11.3.Através da sua contabilidade e documentos de apoio, a AT verificou que a Requerente efetuou diversas obras, no âmbito do CAE em que se encontra registado, em Portugal e na Bélgica, aqui na qualidade de subempreiteiro.

11.4.Na Bélgica prestou serviços ao cliente B..., SPRL, NIF BE..., que se encontra cadastrada no sistema VIES, desde 06/10/2015.

11.5.Quanto às ajudas de custo, os Serviços de Inspeção Tributária (SIT) propuseram correções ao IRS não retido na fonte e consequentemente não entregue no montante total de € 29.597,31.

11.6.A Requerente foi notificada do projeto de Relatório de Inspeção Tributária pelo ofício nº..., entregue em mão, ao seu representante, mediante certidão de notificação, para exercer o direito de audição a que se referem os artigos 60º, da LGT e 60º, do RCPITA, tendo-lhe sido concedido um prazo de 15 dias para exercer este direito.

11.7.Dentro do prazo concedido (máximo legal), a Requerente não exerceu o exercício do direito de audição, pelo que não tendo chegado ao conhecimento da AT, quaisquer factos novos, após a elaboração do Projeto de Relatório, os SIT mantiveram integralmente as correções aí propostas.

11.8.Refere a Requerida que, na petição inicial da presente ação, verifica-se que a Requerente não contesta os fundamentos das correções promovidas pelos SIT, mas tão-só a sua exigência a si exclusivamente e não aos sujeitos passivos alvos das respetivas retenções, bem como a suposta insuficiência da fundamentação da liquidação dos juros compensatórios.

11.9.No que se refere à suposta falta de fundamentação da liquidação de retenção na fonte e juros compensatórios, defende a Requerida (com base em jurisprudência proferida pelo STA do Norte) que “estando o conteúdo do ato tributário em sintonia com o resultado do procedimento administrativo de que aos contribuintes foi sendo dado conhecimento pela via adequada e tendo estes reagido contra o ato de indeferimento de reclamação que está na origem do resultado espelhado na liquidação, não se verifica motivo determinante da anulação do ato tributário por falta de fundamentação.”

11.10.            Considerando, por conseguinte, improcedente o argumento apresentado pela Requerida no que se refere a este ponto.

11.11.            No que se refere à suposta ilegalidade da liquidação por inexistência de facto tributário, refere a Requerida que a Requerente não discute se a AT cumpriu ou não o percurso probatório que lhe compete no afastamento da exclusão da tributação por não recolher indícios seguros de que as ajudas de custo não se destinaram a compensar o trabalhador pelas despesas de alojamento incorridas com a deslocação ao serviço da entidade patronal.

11.12.            Logo, no entendimento da Requerida, a Requerente aceita a existência dum facto tributário, a bondade do entendimento da AT quanto à existência de retenções na fonte que ficaram por liquidar, ou dito de outra forma, por entregar nos cofres do Estado.

11.13.            Do que a Requerente discorda é que lhe seja imputada tal infração, ao abrigo do disposto no artigo 99º, nº 1 do Código de IRS.

11.14.            Ora, salvo o devido respeito, a Requerente funda o seu iter cognoscitivo no artigo 103.º, n.º 2 do Código do IRS, o qual foi revogado pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro. (cf. ponto 27 do PPA).

11.15.            Não se aplicando a suprarreferida norma, por revogação, aplica-se o n.º 4 do artigo 103.º do Código do IRS que prevê que: “Tratando-se de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido”.

11.16.            Uma vez que a Requerente não põe em causa qualquer dos factos estabelecidos no RIT, entende a Requerida que fica assente, que aquela não contabilizou nem comunicou a sujeição a retenção na fonte aos respetivos beneficiários.

11.17.            Pelo que, conforme previsto na norma, o substituto (a Requerente) “assume a responsabilidade solidária pelo imposto não retido”.

11.18.            Sustenta a Requerida que tal assunção legal, é especial em relação à previsão geral do n.º 1 do artigo 103.º do Código do IRS, que prevê a aplicação subsidiária do artigo 28.º da LGT, pelo que se aplica o princípio de que a lei especial derroga a lei geral.

11.19.            Portanto, toda a argumentação expendida nos pontos 27 e ss. do PPA cai por terra, uma vez que a Requerente fundamenta todo o seu pedido na responsabilidade subsidiária do substituto, quando na realidade o que está em causa é uma situação de responsabilidade solidária.

11.20.            Assim, o iter cognoscitivo seguido pelos SIT estão corretos, isto é: i) no ponto 3.1.1 do RIT identificou a legislação aplicável às ajudas de custo, ii) no ponto 3.1.2 descreveram a situação de facto, e iii) no ponto 3.1.4 fizeram o enquadramento jurídico invocando as normas do Código do IRS aplicáveis ao caso concreto: alínea d) do n.º 11 do artigo 2.º, n.ºs 1 a 3 do artigo 98.º, artigo 99.º n.º 1 e n.º 2. Mais ainda, 

11.21.            No âmbito do RIT, sustenta a Requerida que, de acordo com o artigo 103º nº 1 do Código do IRS, “Em caso de substituição tributária,é aplicável o artigo 28º da lei geral tributária, sem prejuízo do disposto nos números seguintes” e nº 4 “Tratando-se de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido“, e ainda artigo 28º nº 3 da LGT “… o substituído é apenas subsidiariamente responsável pelo pagamento da diferença entre as importâncias que deveriam ter sido deduzidas e as que efetivamente o foram”.

11.22.            Concluindo assim que a lei determina que o sujeito passivo, no caso concreto, tem a responsabilidade solidária pelo imposto não retido e consequentemente não entregue.

11.23.            Atento o exposto, o artigo 20.º, n.º 2 da LGT prevê que “a substituição tributária é efetivada, designadamente, através do mecanismo de retenção na fonte do imposto devido”.

11.24.            Mais ainda, sustenta a Requerida que o artigo 28.º, n.º 1 da LGT prevê que “Em caso de substituição tributária, a entidade obrigada à retenção é responsável pelas importâncias retidas e não entregues nos cofres do Estado, ficando o substituído desonerado de qualquer responsabilidade no seu pagamento, sem prejuízo do disposto nos números seguintes”, não se aplicando o n.º 2 do artigo 28.º da LGT uma vez que o n.º 4 do artigo 103 do Código do IRS contém uma previsão específica para o caso em apreço.

11.25.            Concluindo, pois, pela improcedência da presente ação.

 

II.        Saneamento

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer do ato de liquidação de IRS, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT. 

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). 

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo legalmente previsto.

 

Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito. 

 

III.      Fundamentação de Facto

 

1.         Matéria de Facto Provada

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

A)  Por Ofício nº ..., de 09/11/2020, registo RF...PT, os serviços de inspeção tributária (SIT) da AT iniciaram uma ação de inspeção com a ordem de serviço OI2020... de 04/11/2020;

B)   Tendo a referida ação de inspeção tido início em 18/11/2020 com objeto no exercício de 2017;

C)   No âmbito da referida ação de inspeção foram inspecionadas, entre outros, as ajudas de custo pagas aos colaboradores (aqui se incluindo a gerência);

D)   Em virtude da deslocação de colaboradores da Requerentes para a Bélgica;

E)   Tendo sido concluído pelos SIT que parte das ajudas de custo auferidas constituem rendimento tributável em sede de Categoria A de IRS devendo, por conseguinte, ter sido objeto de retenção na fonte;

F)   Tendo os SIT apurado imposto não retido (não entregue) - tendo em consideração a composição do agregado familiar para efeitos de apuramento da taxa de retenção na fonte a aplicar mensalmente ao valor bruto do rendimento do trabalho auferido- no montante total de € 29.597,32;

G)  Acrescidos de juros compensatórios no valor de € 4.317,55;

H)  Por Ofício com o n.º ... de 20/05/2021 foi a Requerente notificada, por carta registada com aviso de receção, do relatório final de inspeção tributária do qual constava que os serviços da AT iriam proceder à notificação dos atos de liquidação;

I)     Tendo a AT procedido à emissão da nota de liquidação n.º 2021 ... com o montante total de € 33.914,87 do qual € 29.597,32 respeitam a retenções na fonte e € 4.317,55 a juros compensatórios;

J)    Tendo a Requerente como data limite para pagamento destes montantes 31 de agosto de 2021.

 

2.         Factos não Provados

 

Com relevo para a decisão da causa consideram-se como não provados os seguintes factos: 

 

A)   Do processo de inspeção tributária não consta evidência da não contabilização, por parte da Requerente, das ajudas de custo fazendo-se apenas menção que “o sujeito passivo reconheceu nas subcontas 63223 – Remunerações do pessoal – ajudas de custo de empregados e 6313 (remunerações dos órgãos sociais – ajudas de custo) gastos relativos a ajudas de custo (…)”.

B)   Mais ainda, no RIT é referido que as ajudas de custo foram contabilizadas como tal não se verificando, todavia, através de documentos solicitados à Requerente ou mediante junção ao referido RIT de documentos onde seria possível comprovar (ou não) tal premissa, ou seja, que não se verificou, efetivamente, tal contabilização;

C)   Verificando-se apenas uma afirmação dos Serviços da AT nesta matéria não se demonstrado por provado, se efetivamente, houve (ou não) algum tipo de contabilização das ajudas de custo;

D)   Por outro lado, não consta do referido RIT evidência que as ajudas de custo (por constituírem rendimentos sujeitos a retenção na fonte) não foram comunicadas como tal aos respetivos beneficiários fazendo o referido relatório apenas alusão e prova no que se refere aos mapas de pessoal (assinados pelos colaboradores); 

E)        Todavia, a comunicação dos rendimentos sujeitos a retenção na fonte não se opera mediante os mapas de pessoal pelo que não se considera provado se houve, ou não, a comunicação, por parte da Requerente, aos beneficiários das ajudas de custo, que tais importâncias estariam sujeitas a retenção na fonte.

 

3.         Motivação da Decisão da Matéria de Facto

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes. 

 

IV.      Fundamentação Jurídica 

 

1.         Questões Decidendas

 

A principal questão que importa apreciar e decidir respeita em averiguar se o IRS, alegadamente indevidamente não retido, no caso dos autos, sobre os montantes pagos a título de ajudas de custo, poderá́ ser liquidado e o seu pagamento exigido diretamente à Requerente, nos termos do artigo 103.º, n.º 4, do Código do IRS.

 

Segundo a Requerente, a AT deveria ter, em relação a cada trabalhador, liquidado adicional e diretamente o IRS que este deveria pagar uma vez que, nos casos em que a entidade devedora do rendimento não realiza a retenção na fonte, o imposto deverá ser pago, numa primeira linha, pelo substituído tributário, enquanto sujeito passivo e titular do rendimento em causa.

Em sentido contrário, argumenta a Requerida que o artigo 103.º, n.º 4, do Código do IRS, na versão introduzida no ordenamento jurídico pela Lei do OE de 2007, determina que, no caso de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, deve o substituto assumir, em primeira linha, a responsabilidade solidária pelo imposto não retido.

 

2.         Análise

 

O processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este último, um meio processual de mera legalidade, que visa a declaração de ilegalidade de atos dos tipos indicados no artigo 2.º do RJAT e a eliminação dos efeitos jurídicos por eles produzidos, anulando-os, através de uma pronúncia constitutiva e cassatória, ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º daquele diploma].

 

Por isso, sendo o objeto de apreciação do Tribunal Arbitral o ato praticado, a sua legalidade tem de ser apreciada à face do seu teor, tal como foi praticado, não podendo o Tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua atuação poderia basear-se noutros fundamentos[1]

 

Por outro lado, e em essência, sendo o ato impugnado o objeto do processo, não está em causa apreciar se os argumentos invocados pelo Requerente representam a correta aplicação da Lei aos factos, mas apurar se a correção efetuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira tem suporte legal. Assim, e enquadrado pelos argumentos invocados pelo Requerente, importa analisar o ato de liquidação que constitui o objeto dos presentes autos de forma a determinar se o mesmo respeita os princípios e normas jurídicas aplicáveis.

 

Ora, de acordo com o preceituado no artigo 21.º do Código do IRS, “quando, através de substituição tributária, este Código exigir o pagamento total ou parcial do IRS a pessoa diversa daquela em relação à qual se verificam os respetivos pressupostos, considera-se a substituta, para todos os efeitos legais, como devedor principal do imposto, ressalvado o disposto no artigo 103.º”.

 

Nesta medida, o artigo 103.º, em vigor à data dos factos em análise, determina a responsabilidade do substituído e do substituto em caso de anomalia no mecanismo de substituição tributária, em termos similares às regras gerais previstas no artigo 28.º da Lei Geral Tributária.

 

Assim sendo, o n.º 1 deste último mencionado preceito legal prevê que quando houver a retenção na fonte sem entrega pelo substituto das quantias retidas, o substituto é exclusivamente responsável pelas quantias retidas e não entregas (ficando o substituído desonerado de qualquer responsabilidade no seu pagamento).

 

Já o n.º 2 da antedita norma estipula que, quando a retenção for efetuada a título de pagamento por conta do imposto devido a final, cabe ao substituído a responsabilidade originária pelo imposto não retido e ao substituto a responsabilidade subsidiária.

 

Nos restantes casos, determina o n.º 3 que o substituído é apenas subsidiariamente responsável pelo pagamento da diferença entre as importâncias que deveriam ter sido deduzidas e as que efetivamente foram.

 

Com a Lei que aprovou o Orçamento de Estado para 2017, o artigo 103.º do Código do IRS foi introduzido o n.º 4 que refere que “Tratando-se de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido.” (o sublinhado é nosso), visando o legislador, com a introdução desta norma, consagrar especificamente um regime de responsabilidade solidária relativamente aos pagamentos de rendimentos que constituam “remunerações” não contabilizados nem comunicados.

 

Nesta medida, perante uma prática de não contabilização nem comunicação aos beneficiários das “remunerações”, o n.º 4 do artigo 103.º do Código do IRS estabelece como regra a responsabilidade solidária do substituto tributário e não a responsabilidade subsidiária como prevê para as situações de retenção na fonte de rendimentos efetuada meramente a título de pagamento por conta de imposto devido a final. Agrava-se, intencionalmente, a responsabilidade do substituto como forma de combater comportamentos lesivos da receita tributária.

 

Esta exceção não retira ao substituído a responsabilidade do devedor originário, mas agrava-se a responsabilidade do substituto a quem cabia contabilizar aquelas remunerações e comunicá-las ao substituído que fica, nestes termos, solidariamente responsável até ao limite da retenção na fonte a que estava obrigado.

 

Ora, no caso em concreto, a principal divergência de entendimento das partes resulta de a Requerente considera que para que a responsabilidade solidária opere, o imposto tem de ser liquidado ao responsável originário (no caso, os trabalhadores) entendendo a Requerida que, ao abrigo do regime de solidariedade definido no n.º 4 do artigo 103.º do Código do IRS, o substituto torna-se autonomamente responsável pelo imposto não retido, dispensando-se a liquidação do imposto ao responsável principal.

 

Mas vejamos qual das posições merece melhor consideração especialmente porque não se pode confundir a posição de devedor originário com a de responsável solidário no que se refere a dívidas perante a AT.

 

Como se refere na Decisão Arbitral proferida no proc. n.º 120/2015-T, “A solidariedade entre devedores originários está prevista para as situações em que os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa, em que, em regra, todas são solidariamente responsáveis pelo cumprimento da dívida tributária (artigo 21.º, n.º 1, da LGT). Diferente desta é a situação do responsável solidário, que é uma pessoa alheia à constituição do vínculo tributário que, pelas suas particulares conexões com o originário devedor ou com o objeto do imposto, a lei considera garante do pagamento da dívida de imposto, numa posição de fiador legal”.

 

Ainda com base na referida Decisão Arbitral, “Esta distinção aparece clara no artigo 22.º da LGT, referente à «Responsabilidade tributária» em que se refere que «para além dos sujeitos passivos originários, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas», o que evidencia que o responsável solidário (como o responsável subsidiário) não passa a ser considerado sujeito passivo originário.”

 

Nesta medida, ter-se-á de concluir que o n.º 4 do artigo 103.ºdo Código do IRS contempla uma situação de responsabilidade solidária na esfera do substituto, pois os pressupostos do facto tributário verificam-se em relação aos sujeitos passivos de IRS, enquanto beneficiários efetivos do rendimento, que são os trabalhadores da Requerente.

 

Mais ainda, importa notar que, regra geral, as entidades devedoras de rendimentos de trabalho dependente são obrigadas a proceder à retenção na fonte no momento do pagamento daqueles rendimentos ou da sua colocação à disposição dos respetivos titulares, deduzindo-lhes as importâncias correspondentes à aplicação das taxas aplicáveis e entregando-as nos locais e prazos indicados na lei.

 

Tendo em conta, então, o funcionamento do sistema de retenção na fonte como substituição tributária no âmbito do IRS e em relação aos rendimentos provenientes de trabalho dependente, importa analisar a questão da responsabilidade fiscal e sua distribuição entre o substituído e o substituto.

 

Citando João Menezes Correia Leitão, “(…) Tratando-se de retenção a título de pagamento por conta (…) Se o imposto foi efectivamente retido, a responsabilidade pela sua entrega compete tão-só ao devedor de rendimentos e substituto. (…) Se o imposto não foi, total ou parcialmente, retido compete então ao substituído e titular dos rendimentos a responsabilidade, como devedor originário, portanto, a título principal do seu pagamento, passando então o devedor de rendimentos (substituto) a ter responsabilidade subsidiária pelo seu pagamento (…), ficando ainda sujeito aos Juros compensatórios.” Ob. cit, pág. 124.

 

Neste sentido, nos termos do processo 6685/02, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 26 de novembro de 2002, refere que “pelo imposto devido responde originariamente o substituído - que é o titular dos rendimentos e, por isso, o sujeito passivo da obrigação de imposto - enquanto em relação ao substituto se verifica a responsabilidade fiscal, pelo que este apenas responde subsidiariamente, na falta de bens do devedor originário, pelas retenções que deixou de efectuar, ou seja, a sua responsabilidade só opera, só se torna efectiva, mediante o chamamento à execução fiscal (reversão), após a prévia excussão do património do devedor originário (cfr. art. 245.° do CPT).”

 

Na senda deste entendimento, conforme Decisão Arbitral proferida no processo n. º119/2015-T “... na presente situação não restarão dúvidas que o substituto pode ser responsabilizado solidariamente pelo imposto, que é aquilo que a lei refere, e não já́ pelas importâncias não retidas. (…). Ora, o imposto, in casu, só é definido (só se torna líquido, certo e exigível) após a liquidação realizada, nos termos do CIRS, aos respetivos sujeitos passivos. Só aí é que vai ser determinado, nos termos legais, o quantum de imposto legitimamente exigível pelo credor tributário, e só aí, justamente, será́ determinável a extensão da responsabilidade solidária do substituto relapso, confrontando o valor dos montantes cuja retenção foi ilegalmente omitida, com o valor do imposto devido, havendo-o, restringindo-se a responsabilidade em questão, ao menor dos dois valores”.

 

Mais ainda, como proferido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 23-09-2015, no âmbito do processo 0997/15, “O imposto sobre o rendimento de pessoas singulares é um imposto que, como a sua denominação indica é devido por pessoas singulares, incidindo sobre o valor anual dos rendimentos por estas auferidos ao longo do ano, artº 1º do Código de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares. A retenção na fonte não é um imposto, mas um mecanismo de cobrança, instituído pelo sistema fiscal português com o objectivo de aumentar a eficácia na cobrança do imposto (IRS). Pela utilização de tal mecanismo, o Estado recebe, mensalmente, por conta do imposto que será devido no final de cada ano pelos trabalhadores por conta de outrem ou trabalhadores que prestem serviços e que não estejam abrangidos pelo regime de isenção uma parte do imposto sobre o rendimento de pessoas singulares que a estas compete pagar. Para o sujeito passivo de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares trata-se de um pagamento antecipado do imposto que é devido no final de cada ano. Para a entidade que procede à sua retenção trata-se de uma dívida tributária e não do pagamento de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares. Esta apenas procede ao desconto no vencimento do trabalhador da quantia que o estado tem a receber em sede de tributação de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares desse trabalhador, incumbindo-lhe a entrega desse valor ao estado. O mesmo ocorre quando a entidade a quem foi prestado um serviço retém do custo do serviço que deveria pagar ao prestador, e, para este seria rendimento tributável em sede de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares, o valor correspondente ao imposto sobre o rendimento de pessoas singulares. Mas a empresa que procede à retenção na fonte não passa, por isso a ser tributada em sede de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares. Arrecada os valores de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares que são devidos pelos trabalhadores/ prestadores de serviço que deve entregar nos cofres do estado.”

 

Com base no acima exposto, e em linha com o entendimento proferido na Decisão Arbitral no âmbito do Processo nº 24/2021-T, assiste razão à Requerente pois o facto tributário que gera a responsabilidade solidária é constituído pelo não pagamento voluntário por parte dos devedores principais (empregados da Requerente) dos montantes de IRS não retidos (e não pelo montante que devia ser retido, que é apenas o limite máximo da responsabilidade do responsável solidário, a nível do imposto, ora Requerente), situação essa que não se verificou.

 

Nesta medida, no caso em apreço, entende-se que, desde logo, o procedimento de liquidação e, sobretudo, o consequente ato de liquidação, deveriam ter sido dirigidos (pelo menos também) contra o responsável originário – os substituídos, titulares dos rendimentos sujeitos a imposto – e não unicamente contra o responsável solidário. 

 

Conforme Decisão Arbitral proferida no processo n.º 119/2015-T, “como resulta da leitura da norma do artigo 103.º, n.º 4 do Código do IRS, em causa, o substituto é responsabilizado solidariamente pelo imposto não retido e não pelas importâncias não retidas. Com efeito, não se poderá – e o legislador não o faz (…) – confundir imposto com importâncias retidas por conta daquele.”

 

Por isso, é de concluir que tem de ser proporcionada sempre ao devedor principal a possibilidade de pagar voluntariamente a dívida tributária, na sequência da notificação da liquidação. Assim, se é certo que o responsável solidário também pode ser notificado para pagamento voluntário da dívida, antes de ser instaurada execução fiscal, também será de entender que a sua notificação deverá ser posterior à do devedor originário, só tendo lugar no caso de o pagamento voluntário por este não ser efetuado.

Termos em que se justifica a anulação da liquidação de IRS, com fundamento em vício de violação de lei, por inexistência de facto tributário, procedendo o pedido de pronúncia quanto à liquidação de IRS. 

 

Já no que se refere aos atos de liquidação referentes a juros compensatórios (no montante total de € 4.317,55, importa averiguar a suposta falta de fundamentação dos mesmos invocada pela Requerente. 

 

O artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, da LGT, estabelece que “A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária. A fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.”

 

Efetivamente, o dever de fundamentação por parte da AT considera-se cumprido quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do ato para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do ato decidiu como decidiu e não de forma diferente, de forma a poder desencadear dos mecanismos administrativos ou contenciosos de impugnação/contestação.

 

No que se refere aos atos de liquidação dos juros compensatórios, indica-se, efetivamente, a forma como foram calculados, designadamente os valores base, os períodos a que respeitam, a taxa aplicada e o valor correspondente a cada período.

 

Todavia, não se faz qualquer referência a qualquer ato inspetivo anterior (nomeadamente ao RIT) ou a qualquer outro documento que possa ser considerado fundamentação do ato de liquidação. 

 

É, assim, manifesto que o ato de liquidação não está fundamentado nos termos exigidos pelo artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, da LGT, pois, para além de não conter exposição das razões de facto e de direito em que baseia, não contém sequer qualquer declaração de concordância com os fundamentos de qualquer outro ato, designadamente o RIT referido nos autos.

 

* * *

V.        Decisão

 

            De harmonia com o supra exposto, decide o árbitro deste Tribunal Arbitral em julgar totalmente procedente o pedido arbitral, conforme se refere e: 

a)    Anular o ato de liquidação de retenções na fonte de IRS 2021..., no montante de € 29.597,32;

b)    Anular os atos de liquidação de juros compensatórios, respeitantes também ao ano de 2017, no montante total de € 4.317,55, identificados com os n.º 2021..., 2021..., 2021..., 2021..., 2021... e 2021...;

c)    Anulação, por inerência, do ato de liquidação referente a demonstração de liquidação de retenções na fonte de IRS com o n.º 2021... com o montante total de € 33.914,87;

d)    Condenar a Requerida nas custas arbitrais.

 

VI.      Valor do Processo 

 

Fixa-se o valor do processo em € 33.914,87, por corresponder ao valor do ato de liquidação contestado, e cuja anulação se pretende – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”). 

 

 

VII.     Custas

 

          O montante das custas é fixado em €1.836,00 (mil oitocentos e trinta e seis novecentos e dezoito euros) a cargo da Requerida, nos termos da Tabela I do RCPAT, em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, bem como do disposto no artigo 4.º, n.º 4, do RCPAT.

Notifique-se.

 

Lisboa, 30 de julho de 2022

 

O Árbitro,

 

Susana Constantino de Carvalho Furtado

 



[1] Essencialmente neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, a propósito de situação paralela que se colocou nos processos de recurso contencioso: 

-    de 10/11/98, do Pleno, proferido no recurso n.º 032702, publicado em AP-DR de 12-4-2001, página 1207;

     -    de 19/06/2002, processo n.º 047787, publicado em AP-DR de 10-2-2004, página 4289;

     -    de 09/10/2002, processo n.º 0600/02.

     -    de 12/03/2003, processo n.º 01661/02.