Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 273/2022-T
Data da decisão: 2022-11-17  IRS  
Valor do pedido: € 12.042,82
Tema: IRS - art. 10.º, 1, CIRS - Tributação de mais valias - Expropriação por utilidade pública.
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Sumário:

I. Do artigo 10.º, 1, CIRS, resulta um enquadramento normativo de incidência seletiva e restritiva de mais-valias tributáveis em sede de IRS — categoria G.

II. A indemnização recebido por expropriação por utilidade pública de bem imóvel não é passível de tributação em sede IRS — mais-valias — categoria G, na medida em que os elementos constitutivos não são subsumíveis ao conceito de alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis conforme postula o artigo 10.º, 1, a), CIRS.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            O árbitro Ricardo Marques Candeias, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, decide nos termos que se seguem:

 

I – RELATÓRIO

 

A. Dinâmica processual

 

  1. A..., NIF..., Cartão do Cidadão ... ..., residente na..., ..., ...-... Évora (“Requerente”)  apresentou pedido de pronúncia arbitral ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), para que seja declarada a ilegalidade do ato de indeferimento do pedido de revisão do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2018 ... referente ao exercício de 2017, com o n.º ...2020..., e, consequentemente, anulado o ato tributário de liquidação de IRS no 2018..., e efetuado o reembolso correspondente, acrescido dos juros indemnizatórios à taxa legal em vigor.
  2. No dia 20 de abril de 2022 o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à Requerente e à AT.
  3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, 1, e artigo 11.º, 1, b), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável
  4. Em 9 de junho de 2022 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
  5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 29 de junho de 2022.
  6. No dia 9 de setembro de 2022, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
  7. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art. 16.º, e n.º 2 do art. 29.º, ambos do RJAT, a 24 de outubro de 2022 foi dispensada a realização da reunião a que alude o art. 18.º do RJAT, bem como a de apresentação de alegações escritas. Mais foi indicado que a decisão final seria notificada até ao dia 24 de novembro de 2022.

 

B. Posição das partes

 

            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que era titular de uma quota parte de 50% de um prédio rústico, tendo a Assembleia Municipal de Évora deliberado declarar a utilidade pública da expropriação do citado imóvel, necessária para a construção da Variante à EN... – Ramo Norte (troço). O processo de expropriação foi terminado em 2002, tendo a construção da referida via sido iniciada em 2003. A Câmara Municipal de Évora procedeu ao pagamento do valor da indemnização por expropriação nos anos de 2013 e 2014, cabendo à ora Requerente o valor de 73.362,65 €.  Induzida por um aviso no portal da AT, a Requerente declarou no M3 de IRS 2017 a alienação da sua quota parte de 50% do prédio pelo valor de realização de 73.362,65 €. A Requerente apresentou pedido de revisão do ato tributário de liquidação do IRS-2017, com fundamento em não ter efetuado, no ano de 2017, qualquer alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis ou afetação de bens imóveis do património pessoal ao património empresarial da mesma que espoletasse qualquer norma de incidência em sede de IRS. O pedido de revisão do ato tributário foi indeferido com fundamento em que a expropriação em causa se consumou no exercício de 2017 e que a extinção do direito de propriedade e a indemnização na sequência do procedimento de expropriação está sujeita a tributação em sede de IRS. Ora, a Requerente tem posição diferente: i) o IRS não incide objetivamente sobre as indemnizações decorrentes de procedimentos de expropriação; assim como ii) mesmo que assim não fosse, a tributação deveria ter ocorrido nos anos correspondentes aos exercícios de 2002, 2003, 2013 e/ou 2014 e não em 2017, daí ter caducado o direito à liquidação. Daí que, não se conformando, apresentou junto do CAAD o presente PPA que ora se aprecia.

            Por sua vez, a AT defende-se por impugnação, argumentando, por um lado, que a escritura pública de expropriação (juridicamente, é o ato de transmssão da propriedade) ocorreu em 1 de março de 2017, portanto, não se verifica qualquer caducidade do direito à liquidação; e, por outro lado, que a Requerente manifestou vontade na alienação, é porque o preço pago emerge de um acordo com o Município, assim como considera que a tributação de mais-valias decorrentes de expropriações de bens imóveis foi expressamente prevista pelo legislador, estando abrangida pelo art. 10.º, CIRS.

 

II. SANEAMENTO

            O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, 1, a), 5.º, 6.º, 1, e 10.º, 1, RJAT.

            Discute-se se o o direito à liquidação caducou ou não caducou, tema que apreciaremos no âmbito da matéria de direito, mas apenas após, sendo necessário, debatermos a temática central de saber se os valores realizados na sequência de expropriação são ou não são abrangidos pelo art. 10.º, CIRS.

            As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. arts. 4.º e 10.º, 2, RJAT, e art. 1.º, Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

            O processo não enferma de nulidades.

 

III FUNDAMENTAÇÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

A) A Requerente adquiriu, por via sucessória, uma quota parte de 50% de um prédio rústico de cultura arvense e horta com árvores de fruto com a área total de 2,5250 hectares, denominado “...”, localizado na freguesia da ... e ... (extinta freguesia da ...), Concelho de Évora, inscrito na matriz predial rústica daquela freguesia sob o número ..., da Secção E, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora sob o número .../....

B) A 11 de maio de 2001, a Assembleia Municipal de Évora, sob proposta da Câmara Municipal de Évora, deliberou, por maioria e em minuta, declarar a utilidade pública da expropriação dos terrenos necessários à construção da Variante à EN ... – Ramo Norte (troço) – Via de Cintura, Ramo Norte, Via de Cintura, Ramo Norte, ligação entre a Variante à EN ... (Ramo Norte) e as ..., bem como os terrenos circundantes destinados à execução de edificações, e ainda atribuir carácter de urgência, declaração de utilidade pública que foi publicada no Diário da República n.º 1158/2001, II série, Apêndice 84/2001, de 10 de julho de 2001.

C) De acordo com a avaliação conforme o Código das Expropriações, datada de 11 de novembro de 2000, o prédio identificado em A) tinha uma área total de 25.250 m2, sendo que a expropriação incidia sobre 18.869 m2, expropriação essa que correspondia a duas parcelas: a) uma parcela correspondente a 10.388 m2, destinada à execução de edificações (fração 1), expropriação sem carácter de urgência e; b) uma parcela correspondente a 8.481 m2, em forma geométrica trapezoidal, destinada à construção de via (fração 2), expropriação com carácter de urgência.

D) À parcela correspondente a 8.481 m2, em forma geométrica trapezoidal, foi atribuído o valor de indemnização de 29.415.785$00, correspondente a € 146.725,31.

E) Por comunicação datada de 2 de agosto de 2002, proveniente da Câmara Municipal de Évora, a expropriação apenas passou a abranger a parcela identificada no ponto anterior.

F) O valor de € 146.725,31 foi dividido em partes iguais, tendo a Requerente recebido o montante de € 73.362,65, a título de indemnização pela expropriação.

G) Por comunicação datada de 22 de março de 2012, o Município de Évora informou que pagaria a indemnização por expropriação por quatro prestações: em maio de 2012, em outubro de 2012, em dezembro de 2012 e em janeiro de 2013.

H) Com data de entrega de 30 de maio de 2018 a Requerente apresentou a declaração de IRS — 2017, anexo G, com o seguinte teor:

 

I) A AT liquidou IRS 2017, n.º 2018 ..., no valor de € 11.136,25, constando informação manuscrita que o pagamento foi efetuado a 17 de agosto de 2018.

J) Por carta registada datada de 11 de novembro de 2020, a ora Requerente remeteu à ATA — Chefe do Serviço de Finanças de Évora, pedido de revisão do ato tributário de liquidação de IRS n.º 2018 ..., referente ao exercício de 2017, que correu os seus termos com o número ...2020... .

K) Após lhe ter sido facultado o direito de audição prévia, que não exerceu, por ofício datado de 25 de janeiro de 2022 a Requerente foi notificada do indeferimento do citado pedido de revisão do ato tributário, com a seguinte fundamentação:

 

 

 

 

A.2. Factos dados como não provados

            O SP veio alegar que "aquando da preparação da sua declaração de IRS, referente ao exercício de 2017, a Requerente, através da sua contabilista, verificou um aviso no Portal das Finanças tendo vindo a ser informado que deveria declarar a transmissão onerosa da Fração 2, no valor de 73.362,65 €".

            Não foi efetuada qualquer prova nesse sentido.

            Além deste, e com relevo para a decisão, não foram identificados outros factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

            Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, 2, CPPT, e art. 607.º, 3, CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, 1, a) e e), RJAT).

            Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. anterior art. 511.º, 1, CPC, correspondente ao atual art. 596.º, aplicável ex vi art. 29.º, 1, e), RJAT).

            Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do art. 110.º, 7, CPPT, e a prova documental aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

            Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DE DIREITO

            B.1 - Enquadramento em sede de CIRS da indemnização proveniente de expropriação de imóvel por utilidade pública

            A questão que constitui o thema decidendum centra-se em saber se existe ou não existe no CIRS norma de incidência real que inclua, no âmbito da tributação das mais-valias, os ganhos resultantes de expropriação.

            As mais-valias constituem incrementos patrimoniais integrando os rendimentos da categoria G (art. 9.º, 1, a), CIRS), definidas conforme estabelecido no art. 10.º, idem.

            O citado art. 10.º, CIRS, tem o seguinte teor, para o que aqui interessa:

Artigo 10.º

Mais-valias

1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:

a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis e afetação de quaisquer bens do património particular a atividade empresarial e profissional exercida em nome individual pelo seu proprietário;

(...)

 3 - Os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos atos previstos no n.º 1, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes:

a) Nos casos de promessa de compra e venda ou de troca, presume-se que o ganho é obtido logo que verificada a tradição ou posse dos bens ou direitos objeto do contrato;

b) Nos casos de afetação de quaisquer bens do património particular a atividade empresarial e profissional exercida pelo seu proprietário, o ganho só se considera obtido no momento da ulterior alienação onerosa dos bens em causa ou da ocorrência de outro facto que determine o apuramento de resultados em condições análogas;

(...)

4 - O ganho sujeito a IRS é constituído:

a) Pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais, sendo caso disso, nos casos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1.

            Ora, sobre o tema em discussão (a indemnização gera um "incremento patrimonial" resultante de uma "alienação onerosa" para efeitos do citado art. 10.º, CIRS?), as partes têm posições diametralmente opostas.

            O SP considera que o IRS não incide objetivamente sobre as indemnizações decorrentes de procedimentos de expropriação.

            Para o efeito, pede que se considere o entendimento extraído dos processos 0813/16.1BEAVR, de 7 de abril de 2021, e 01260/11.7BEPRT, de 10 de novembro de 2021, dos quais resulta não ser “subsumível ao conceito de transmissão, relevante para efeitos do artigo 10.° do Código do IRS em virtude de a sua tipicidade evidenciar o carácter selectivo da tributação das mais-valias, dando o elenco exaustivo ou taxativo dos factos geradores de imposto, não sendo tributáveis outras mais-valias que não sejam as previstas no elenco deste normativo. Dessa norma de incidência real das mais-valias tributáveis na categoria G do IRS, não consta a indemnização por expropriação de utilidade pública, nem a expropriação pode ser reconduzida à alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, prevista na alínea a) do n.° 1, do artigo 10.° do Código do IRS.

             Além disso, continua a Requerente, conforme resulta do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Janeiro de 2012, processo 5253/04.2TBVNG.P1.S1, no seu entendimento, a indemnização não pode ser considerada como preço ou compensação que represente um acréscimo patrimonial, pois “A justa indemnização não se configura como uma verdadeira indemnização, pois não deriva do instituto da responsabilidade civil. Englobando a obrigação de indemnizar, por expropriação, apenas a compensação pela perda patrimonial suportada, tendo como finalidade a criação de uma nova situação patrimonial correspondente e de igual valor”.

(...)

A obrigação de indemnização por expropriação, segundo a actual Ciência do Direito, deriva do princípio da igualdade; sendo que “A indemnização, para ser justa, não deve criar a favor do expropriado uma situação mais vantajosa do que a dos proprietários não expropriados, em idênticas circunstâncias (...) a nossa lei acolhe” pois “a teoria da substituição no domínio da fixação da indemnização por expropriação, só sendo, assim, justa a indemnização que compense integralmente o dano suportado pelo expropriado”.

            Para a Requerente, apesar de o CIRS acolher um conceito de rendimento acréscimo, este conceito é limitado na medida em que não são, por motivos de escolha legislativa e praticabilidade, tributados todos os acréscimos patrimoniais ou todas as mais-valias realizadas pelos contribuintes. Desta forma, a norma dos artigos 9.º e 10.º, ambos do CIRS, é uma norma de incidência fechada, isto é, apenas são tributáveis os ganhos referentes aos bens e negócios ali mencionados.

            Concatenando os artigos 9.º e 10.º, CIRS, as mais-valias decorrem de ganhos obtidos com a alienação ou a transmissão onerosa. Acontece que a expropriação não pode ser considerada uma forma de alienação. Expropriação por utilidade pública é uma forma de extinção do direito de propriedade seguida da aquisição originária do bem a favor da entidade pública. A expropriação por utilidade pública importa a extinção de todos os direitos (de natureza real, obrigacional ou pessoal) que existam sobre o bem objecto da expropriação e a constituição, simultânea ou concomitantemente, e por via de aquisição originária, de um novo direito real na esfera jurídica da entidade beneficiária dessa expropriação — cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (“TRC”) de 30 de Junho de 2009, processo 574/08.8TBCVL.C1.

            Conclui que, assim sendo, não ocorrendo qualquer ato de transmissão ou qualquer incremento patrimonial na esfera do sujeito passivo, não deve ocorrer qualquer tributação em sede de IRS.

            Por sua vez, a AT entende que a expropriação encontra-se abrangida pela norma de incidência do art. 10.º, 1, a), CIRS.

            Chama à colação do disposto no art. 44.º, 1, b), CIRS, que, sob a epígrafe “Valor de realização”, estipula: “1 – Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, considera-se valor de realização: (...) b) No caso de expropriação, o valor de realização”, para defender que se o valor de realização constitui uma das variáveis que concorrem no cálculo da mais-valia, então a respetiva previsão só faz sentido perante uma base de incidência que enquadre a expropriação dentro do âmbito de incidência das mais-valias.

            Depois sustenta-se no preâmbulo do CIRS, ao esclarecer a inclusão da transmissão onerosa da propriedade de um imóvel, no domínio de incidência do IRS: "Alarga-se a tributação a ganhos não sujeitos ao actual imposto de mais-valias, tais como os gerados pela transmissão onerosa de qualquer forma de propriedade imóvel".

            De acordo com a AT, e para reforçar a sua argumentação, a regra 17.ª do art. 12.º, 4, CIMT, estatui que, para efeitos de IMT, o valor tributável dos bens expropriados por utilidade pública é o montante da indemnização ou, caso esta seja estabelecida por acordo, será o correspondente ao valor da indemnização ou o correspondente ao VPT do bem, consoante o que for maior. E a parte final do parágrafo 1 do art. 19.º do CIMSISSD, vigente à data da entrada em vigor do CIRS, cominava que o valor dos bens expropriados por utilidade pública para efeitos de sisa seria o montante da indemnização, salvo se esta tivesse sido estabelecida por acordo ou transação.

            Ciente das diferentes fontes normativas para a qual apela, a AT questiona, pois, que se a expropriação é considerada como transmissão onerosa, para efeitos de IMT, qual a razão para, no mesmo ordenamento jurídico-tributário e no mesmo hiato temporal, não ter essa mesma natureza, para efeitos de IRS?

            Daí que a AT conclui que a tributação de mais-valias decorrentes de expropriações de bens imóveis foi expressamente prevista pelo legislador e está abrangida pela norma de incidência do art. 10.º, CIRS.

            Posto isto, efetivamente, a questão central que se coloca é a de saber que incremento patrimonial assim como que alienação onerosa pressupõe e consagra o art. 10.º, CIRS.

            Vejamos.

            Tradicionalmente, uma mais valia corresponde a uma valorização ocorrida em bens ou direitos, um ganho de carácter ocasional ou fortuito que se gera na esfera do proprietário alienante, sem que tal se verifique no contexto do desenvolvimento de uma atividade empresarial. Revela uma capacidade contributiva, o que justifica a respetiva sujeição a imposto — cf. Paula Rosado Pereira, Manual de IRS, II edição, Almedina, 2019, p. 204.

            A mais-valia corresponde a um ganho, ou seja, é uma diferença positiva entre o valor de realização e o valor de aquisição de um mesmo bem ou direito.

            O CIRS não nos faculta uma definição de mais-valias. Assim, na ausência de uma definição, o CIRS procede a uma enumeração casuística dos ganhos sujeitos a tributação como mais-valias.

            A tributação das mais-valias no contexto do IRS revela a adoção, por este imposto, da conceção do "rendimento-acréscimo", embora atenuada pelo princípio da realização.

            As mais-valias integram a categoria G — incrementos patrimoniais —, prevista no artigo 9.º, CIRS.

            No entanto, é o artigo 10.º, 1, CIRS, que prevê um elenco taxativo de ganhos que constituem mais-valias para efeitos de tributação, desde que não sejam considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais. Este normativo constrói uma incidência seletiva, bastante restritiva, do qual resulta a tributação de uma mais-valia.

            Incidência seletiva significa, desde logo, que resulta de uma opção legislativa pela consagração de um elenco restritivo de ganhos tributáveis como mais-valias na categoria G face a um universo bastante mais amplo de ganhos potencialmente relevantes.

            Com efeito, o conjunto de bens ou direitos cujo transmissão nervosa gera mais-valias tributáveis, enquadráveis na categoria G de rendimentos, é bastante limitada. Este poderia, em termos abstratos, ser definido de forma bastante mais ampla do que aquela que se encontra previsto no artigo 10.º, 1, CIRS. Contudo, razões de funcionamento e fiscalização do imposto tornam desadequada a atribuição de relevância fiscal a um conjunto muito alargado de situações suscetíveis de gerarem mais valias tributadas — cf. Paula Rosado Pereira, idem, p. 207-208.

            Devido a isto, houve a preocupação de delinear a norma de incidência das mais-valias de forma a incluir apenas determinadas situações — vg., as que geram ganhos mais frequentes, em que os valores económicos envolvidos sejam relevantes.

            Isto é, nem todo o ganho pode ser tributado como uma mais-valia, para efeitos da categoria G. Ou, dito de outra forma, ocorrem ganhos que não são tributáveis para efeitos da categoria G.

            Perante este cenário, importa agora perceber melhor que alienação onerosa e que incremento patrimonial está o artigo 10.º, 1, a), CIRS, a pressupor.

            Tenhamos em conta a decisão arbitral proferida no âmbito do processo 291/2019-T, que seguimos de perto.

            O primeiro facto gerador de mais-valias imobiliárias é a alienação (a transmissão)  onerosa de direitos reais sobre bens imóveis (artigo 10.º, 1, a), CIRS).

            No Código do IRS não surge um conceito próprio de transmissão. Portanto, importa considerar o direito civil.

            Transmissão consiste na alienação como a transmissão do direito de propriedade sobre um bem ou a constituição de um direito real que o onere — Ana Prata, Dicionário Jurídico, Morais Editores, 1978, pp. 38. Interessa, pois, agora verificar se a expropriação pode ser reconduzida à alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis.

            O direito de propriedade está consagrado no artigo 62.º, 1, CRP.

            Nos termos do artigo 1305.º, CCiv., o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas. Porém, o direito de propriedade não é absoluto. O n.º 2 do referido preceito constitucional admite a sua limitação através da requisição e da expropriação por utilidade pública.

            O Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de setembro, na versão atualmente em vigor, prevê no artigo 1.º queOs bens imóveis e os direitos a eles inerentes podem ser expropriados por causa de utilidade pública compreendida nas atribuições, fins ou objeto da entidade expropriante, mediante o pagamento contemporâneo de uma justa indemnização (...)”.

            A justa indemnização, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 23.º do referido Código,(...) não visa compensar o benefício alcançado pela entidade expropriante, mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal, à data da publicação da declaração de utilidade pública, tendo em consideração as circunstâncias e condições de facto existentes naquela data.” (o negrito é nosso).

            O recurso à expropriação só se justifica depois de esgotados os meios de aquisição pelo direito privado, salvo em casos de urgência ou outras situações particulares, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 11.º do Código das Expropriações.

            A expropriação é considerada como uma restrição ou limitação de direito público ao direito de propriedade. De acordo com Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Tomo II, 9.ª ed., Coimbra Editora, 1972, p. 996, devido à conveniência do Estado de utilizar determinados imóveis para prosseguir um fim específico de utilidade pública a expropriação extingue os direitos subjetivos constituídos sobre eles. No mesmo sentido ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, (reimp), Manuais da Faculdade de Direito de Lisboa, 1981, p. 88, salienta que a expropriação representa a extinção imediata de um direito na esfera do expropriado.  

            Relativamente ao expropriado, a expropriação acarreta a extinção do seu direito de propriedade plena. Concomitantemente são constituídos novos direitos reais na esfera jurídica do beneficiário da expropriação. Assim, a expropriação não implica a transferência de direitos reais sobre imóveis, pois ela é a causa extintiva desses direitos — José Osvaldo Gomes. Expropriações por Utilidade Pública, Lisboa, Texto Editora, 1997, pp. 11.

            Neste sentido, o Supremo Tribunal Administrativo teve ocasião de se pronunciar, por diversas vezes, na vigência do Código de Imposto de Mais-Valias, no sentido de que a relação jurídica da expropriação não é subsumível no conceito de transmissão onerosa — acórdão do STA, de 19-06-1996, proc.o n.o 015056, relator Juiz Conselheiro Rodrigues Pardal; Acórdão do STA, de 17-01-1996, proc.o n.o 019846, relator Juiz Conselheiro Rodrigues Pardal; Acórdão do STA, de 15- 11-1990, proc.o n.o 005769, relator Juiz Conselheiro Girão Cardoso, acórdão do TRC, de 30 de Junho de 2009, processo 574/08.8TBCVL.C1.

            Em face ao exposto, resulta que a expropriação não equivale a uma alienação onerosa do direito de propriedade, resultante do normal exercício do direito de o proprietário alienar o bem, mas antes numa privação forçada do direito de propriedade com a inerente extinção dos direitos reais sobre os imóveis. Nesse contexto o pagamento de uma indemnização ao expropriado não configura um preço de aquisição pelo bem, mas o ressarcimento do prejuízo criado pela expropriação.

            Concluindo como a douta decisão que seguimos, o valor da indemnização por expropriação de utilidade pública não é passível de enquadramento no art. 10.º, 1, a), CIRS, como ganho proveniente de uma alienação onerosa de direitos reais.

            Além disso, a expropriação também não se integra nas situações previstas nas restantes alíneas do artigo 10.º, CIRS.

            Acresce ainda que o enquadramento que fizemos de considerar as mais-valias no âmbito de uma incidência seletiva e restritiva, tributáveis na categoria G, restringe a tributação aos factos elencados no artigo 10.º, 1, CIRS. Este normativo não contempla expressamente a expropriação.

            Considerando que, face ao disposto no artigo 11.º, 1, LGT, e artigo 9.º, 2, CCiv, a interpretação tem de ter o mínimo de correspondência com a letra da lei, e considerando ainda que a incidência dos tributos não pode recorrer a analogia, mais reforçada resulta a conclusão de que o artigo 10.º, 1, a), CIRS, não abrange o valor da indemnização por expropriação de utilidade pública.

            Na mesma linha, cf. a decisão arbitral 803/2019-T.

            Ainda um último ponto.

            Conforme verificamos, a AT considera, em defesa da sua posição interpretativa, o art. 44.º, 1, b), CIRS, sob a epígrafe “Valor de realização”, que reza: “1 – Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, considera-se valor de realização: (...) b) No caso de expropriação, o valor de realização”, para defender que o valor de realização constitui uma das variáveis que concorrem no cálculo da mais-valia. Correto.

            Com efeito, a expropriação vem expressamente mencionado no CIRS a propósito do "valor de realização".

            No entanto, como é manifestamente visível, da leitura do artigo 44.º, 1, b), CIRS, o que dele resulta é que o preceito não é uma norma de incidência tributária, antes visa apenas determinar a matéria tributável. Isto é, a norma citada postula uma das variáveis que se tem de considerar para efeito de cálculo das mais-valias. Mas falta o resto, isto é, falta uma norma que enquadre a expropriação dentro do âmbito de incidência das mais-valias, uma norma expressa que a prescreva.

            Amarrado que está o intérprete à normatividade vigente, não pode este consagrar putativas linhas legislativa-tributárias arredadas da positividade. Portanto, manifesto é que tem de se dar razão à Recorrente quanto ao que peticiona, nesta parte, e declarar ilegal o indeferimento do pedido de revisão oficiosa e, consequentemente, o ato de liquidação em apreciação.

 

            B.2 - Da alegada caducidade do direito à liquidação

            Uma vez que o ato de liquidação ora contestado já foi declarado ilegal, considera-se prejudicado o conhecimento do alegado vício de caducidade do direito à liquidação invocado pela Requerente, na medida em que esta já obteve a satisfação das suas pretensões, revelando-se a apreciação de tal vício a prática de um ato inútil no processo, proibida nos termos conjugados dos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

            B.3. O pedido de reembolso de quantia indevidamente paga e juros indemnizatórios

       A Requerente formula um pedido de reembolso do IRS indevidamente pago bem como o pagamento dos juros indemnizatórios.

       É jurisprudência uniforme — maxime, cf. Ac. 630/2014-T, CAAD — que de acordo com disposto no art. 24.º, 1, b), RJAT "a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito».

       E continua o citado Ac.: "Com efeito, apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação (arts. 99.º e 124.º do CPPT), pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida.

       Sendo processualmente viável apreciar o pedido de juros indemnizatórios será necessariamente também possível apreciar o pedido de reembolso da quantia indevidamente paga, cujo montante é factor de determinação do montante dos juros indemnizatórios.

       Assim, à semelhança do que sucede com os tribunais tributários em processo de impugnação judicial, este Tribunal Arbitral é competente para apreciar os pedidos de reembolso da quantia paga e de pagamento de juros indemnizatórios.

       Ficou dado como provado (art. 110.º, 7, CPPT, ex vi, art. 29.º, RJAT, e art 16.º, e), RJAT) que a Requerente pagou a quantia liquidada acima identificada.

       Consequentemente, determino que a AT reembolse a Requerente do valor de liquidação de IRS indevidamente pago, porque não devido, conforme fundamentação já expedida supra.

 

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       Quanto aos juros indemnizatórios.

Determina o art. 24.º, 5, RJAT que "“é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

 

Nos processos arbitrais tributários pode haver lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, e 100.º, LGT, quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

O pedido de revisão do ato tributário é equiparável a reclamação graciosa quando é apresentado dentro do prazo da reclamação administrativa, a que se refere o art. 78.º, 1, LGT — cf. Ac. STA, de 12-7-2006, processo n.º 402/06  («nos casos de revisão oficiosa da liquidação (quando não é feita a pedido do contribuinte, no prazo da reclamação administrativa, situação que é equiparável à de reclamação graciosa) (...) apenas há direito a juros indemnizatórios nos termos do art. 43.º, n.º 3, da LGT»).

Este regime justifica-se pela falta de diligência do contribuinte em apresentar reclamação graciosa no prazo previsto.

In casu, não ficou demonstrado que tivesse ocorrido erro imputável aos serviços.

Assim sendo, o contribuinte não tem direito a juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido, mas apenas a partir da data em que se completou um ano depois de ter apresentado o pedido de revisão do ato tributário — cf. art. 43.º, 3, c), LGT.

Quanto aos juros de mora, só serão devidos se for excedido o prazo de execução espontânea que recai sobre a AT ­— cf. art. 175.º, 1, 3, CPTA —, sem prejuízo do disposto no art. 100.º, LGT, e 61, 5, CPPT, no sentido que não se admite a cumulação de juros relativamente ao mesmo período (cf. Jorge Lopes de Sousa, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, inı Guia da Arbitragem Tributária, 3.ª edição Almedina 2017, p. 235).

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

  1. Julgar procedente o pedido de anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão do ato tributário de liquidação de IRS n.º 2018 ... referente ao exercício de 2017, e, consequentemente, determino a anulação da nota de liquidação de IRS, 2018 ...;
  2. Julgar procedente o pedido de reembolso de quantia a apurar, bem como os respetivos juros indemnizatórios, calculados à taxa legal, nos termos do art. 61.º, CPPT, condenando a Autoridade Tributária a efetuar o respetivo pagamento à Requerente;
  3. Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.

 

D. Valor do processo

       Fixa-se o valor do processo em 12.042,82 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

       Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 918,00 € nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, conforme o disposto no artigo 22.º, n.º 4, RJAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 17 de novembro de 2022

 

O Árbitro Singular

 

(Ricardo Marques Candeias)