Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 512/2020-T
Data da decisão: 2022-03-07  IRC  
Valor do pedido: € 401.088,13
Tema: IRC – Tributações Autónomas; Motociclos; Viaturas ligeiras de passageiros; Despesas de representação; Presunção; Constitucionalidade.
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SUMÁRIO:

As disposições legais que estabelecem a tributação autónoma objeto dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC aplicável, ao constituírem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário, incidindo indiscriminadamente sobre gastos, ainda que demonstrado, para lá de qualquer dúvida razoável, como integralmente suportados para gerar rendimentos sujeitos a imposto, como é o caso, enferma de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 2.º, 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 04 de Outubro de 2020, A..., S.A., NIPC..., com sede na ..., n.º ..., ...-... Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto tributário de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) n.º 2018..., referente ao exercício de 2017, na parte atinente a tributações autónomas, no valor de €  401.088,13, assim como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que teve o referido acto tributário como objecto.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que não se encontram sujeitos a tributação autónoma os encargos relacionados com:

i.             despesas e encargos com veículos exclusivamente afectos à actividade de empresas do Grupo Fiscal B...; e

ii.            compensação pela deslocação em viaturas (motociclos) próprias do trabalhador (carteiro).

 

3.            No dia 06-10-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 23-11-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 24-12-2020.

 

7.            No dia 05-04-2021, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            No dia 29-09-2020, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram inquiridas as testemunhas, no acto, apresentadas pela Requerente.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            Os A... são a concessionária do serviço postal universal em Portugal, o qual visa garantir um serviço postal mínimo de envios de correspondência, de catálogos, livros, jornais e outras publicações periódicas até 2 kg de peso, e de encomendas postais até 10 kg de peso, bem como um serviço de envios registados e envios com valor declarado.

2-            Para além dos serviços concessionados pelo Estado Português, o Grupo Fiscal B... desenvolve outras áreas de negócio, tais como o correio publicitário, o correio expresso e de encomendas, soluções de correio empresarial, bem como alguns tipos de serviços financeiros como a comercialização de produtos de poupança e de seguros.

3-            O Grupo B... é encabeçado pelo requerente, dele fazendo parte um conjunto de sociedades, das quais integravam o Grupo sujeito ao RETGS (Grupo Fiscal) dominado pelo requerente, no período de tributação de 2017, as seguintes:

 

4-            É inerente à actividade postal do Grupo Fiscal B... o recurso a uma frota de veículos diversificada, sendo de assinalar que o transporte de objectos postais com recurso a veículos motorizados é uma das componentes fulcrais da actividade normal do Grupo Fiscal B... .

5-            Os A... operam em todo o território nacional, representando o segmento do correio (incluindo o serviço postal universal) a maior percentagem do volume de negócios do requerente: em 2017, o rédito associado a esta área de negócio, no Grupo B..., ascendeu a cerca de € 527 milhões de um montante total de cerca de € 714 milhões de volume de negócios.

6-            Aquela actividade consiste na recolha e entrega de correspondência entre múltiplas localizações (em Portugal, através de rede própria, ou mesmo no estrangeiro, com recurso a outros operadores de correio).

7-            Do ponto de vista operacional o processo de recolha e distribuição inclui movimentos de concentração (processo de recolha do correio) e movimentos de dispersão (processo de distribuição).

8-            Aquela recolha ocorre de várias formas – inclusive, em alguns casos, directamente na localização do cliente – passando, posteriormente, aos Centros de Produção e Logística (“CPL”) para dar início ao processo de dispersão.

9-            Este processo de dispersão, por sua vez, inicia-se nos CPL – centros de tratamento e distribuição do correio – que, após tratamento inicial do correio, o encaminham para os Centros de Distribuição Postal (“CDP”), a partir de onde se inicia, na maioria dos casos, a entrega directamente no destino pelos carteiros – em percursos pré-definidos, designados por “giros”.

10-         Actualmente existem três CPL em Portugal, localizados no Norte, Centro e Região de Lisboa (…), bem como um centro de tratamento de correio na região do Algarve, com funções equivalentes mas de menor dimensão.

11-         Os A... possuem, actualmente, cerca de 320 CDP.

12-         Os destinos da correspondência são elevados e dispersos pela totalidade do território nacional, independentemente de quão remotos possam ser.

13-         Para assegurar a eficácia e eficiência na entrega de correspondência, é necessário um adequado planeamento dos giros, uma adequada alocação de meios humanos (carteiros) e meios físicos, incluindo os diferentes meios de locomoção utilizados.

14-         A definição dos diferentes giros, dada a sua relevância na organização das operações dos A..., bem como a sua complexidade, é precedida de uma fase de estudo e planeamento, que exige a ponderação de múltiplos factores, nomeadamente o tipo de correio a ser transportado (incluindo a sua volumetria e peso), o número e frequência de paragens, o tipo de zona geográfica (urbana ou rural), o tipo de construção predominante (prédios ou moradias), entre outros.

15-         A cada giro corresponde uma certa distância a ser percorrida pelo carteiro, a qual implica a opção por um meio de locomoção adequado.

16-         Esta opção, por regra, é realizada em função, de factores relevantes como o volume de carga ou o tipo de piso, mas sobretudo da distância a percorrer, sendo que para giros até 10 km os carteiros deslocam-se a pé ou de bicicleta, para giros entre 10km e 40km utilizam motociclos de baixa cilindrada (até 50cc - motociclos) e para giros a partir de 40km utilizam motociclos de cilindrada superior (até 125cc) ou viaturas automóveis.

17-         Existem CDPs ou estações de correio que, em razão da extensão da área que servem, têm associados giros com toda esta variedade de meios de locomoção.

18-         Em 2017 os A... referenciaram um total de 4.702 giros, aos quais foram alocados diferentes meios de locomoção, conforme quadro infra:

 

19-         Os motociclos, em 2017, serviram 2.017 giros num total de 4.702, sendo a tipologia de viatura que, pelas suas características, mais frequentemente se adaptam aos giros.

20-         Quando o volume de correio o permita, os motociclos não só são capazes de cumprir as funções necessárias no âmbito da entrega de correio, como:

a.            São ágeis no trânsito, evitando a perda de tempo em situações de trânsito intenso, que pode comprometer o cumprimento dos mesmos;

b.            São fáceis de estacionar e parquear, característica relevante no contexto de giros que exijam múltiplas paragens;

c.            Possuem um custo de aquisição reduzido, quando comparado com viaturas automóveis;

d.            Possuem consumos mais reduzidos, em média, do que as viaturas automóveis;

e.            A manutenção é mais simples e menos dispendiosa, quando comparada com viaturas automóveis.

21-         O valor médio de aquisição dos motociclos (aproximadamente € 2.174) é substancialmente inferior ao das viaturas ligeiras de mercadorias afectas à distribuição de correio.

22-         Ao nível dos consumos de combustível os motociclos são mais eficientes do que os veículos automóveis, apresentando um consumo médio de aproximadamente metade do valor.

23-         A opção pela utilização de viaturas automóveis, designadamente de transporte de mercadorias, é subsidiária: são utilizadas quando o perfil de determinados percursos (ou “giros”) não é propenso à utilização de motociclos, nomeadamente em função da distância, das condições do piso e do volume de correio a distribuir.

24-         Os motociclos utilizados nos giros dos A... encontram-se devidamente adaptados e equipados para a distribuição de correio, nomeadamente com o reforço da sua estrutura e adaptação para transporte de correio, pintura na cor dos A..., e bagageira A... (caixa de carga, inamovível, em alguns casos desenhada exclusivamente para os A...).

25-         A colocação daquela caixa de carga implica a perda do “lugar do pendura” do motociclo, inviabilizando assim a possibilidade de transporte de dois passageiros.

26-         Os motociclos que integram a frota própria dos A... apresentam sinais identitários dos A...: a sua cor vermelha (de acordo com o código de cores A...) e o seu logotipo nas respectivas caixas de carga.

27-         As viaturas dos A..., incluindo motociclos, encontram-se devidamente catalogadas/numeradas.

28-         No caso dos motociclos, os mesmos encontram-se numerados, sendo alocados a determinado CDP e subsequentemente, na generalidade dos casos, a um giro em particular.

29-         Por regra, nenhum carteiro tem a si alocado, em exclusivo, um motociclo: a alocação de motociclos é feita em função dos CDP (e não dos carteiros).

30-         Nestes CDP o motociclo é afecto em regra a um giro em particular, enquanto que os carteiros, em média de 15 em 15 dias, trocam de giro.

31-         O facto de estar o motociclo afecto ao mesmo giro, permite gerar prolongadamente informação sobre quilómetros e consumos associados àquele giro (fiabilidade da informação, que não é esporádica, mas antes permanente); e a rotação (diversidade) de carteiros nos giros torna mais fiáveis estes números – nenhum em particular controla a execução do giro, e gera informação adicional resultante da comparação entre colegas dentro de um mesmo giro.

32-         A utilização daqueles motociclos está sujeita a regras internas de utilização restrita,  existindo um Manual de procedimentos para veículos de produção com regras especificamente direccionado para as Viaturas de Produção, nas quais se incluem os motociclos.

33-         Do Manual de procedimentos para veículos de produção consta, para além do mais, o seguinte:

a.            “Estão autorizados a conduzir ou ser transportados em veículos A..., todos os colaboradores, devidamente autorizados pela hierarquia, sempre que tal se verifique como necessário para a empresa”;

b.            “É expressamente proibido o transporte de colaboradores em deslocações de sua conveniência, fora de serviço, em veículos da empresa”;

34-         A utilização dos motociclos está limitada ao horário de funcionamento do Requerente.

35-         Para controlo do cumprimento das regras, há obrigatoriedade de preenchimento diário de documento de controlo de utilização dos motociclos (ou “Boletim da Viatura”), no qual são identificados os utilizadores, o giro percorrido (na coluna “motivo da deslocação”) e respectivos quilómetros, e que tem de ser ainda visado por um superior hierárquico (um Director de primeira linha), ficando posteriormente arquivado.

36-         O abastecimento deve ser realizado em exclusivo com recurso ao programa de combustível de frota, o qual identifica expressamente a viatura que lhe está associada, existindo para cada motociclo um cartão do programa de frota, devidamente identificado e controlado pela Direcção de Operações.

37-         É obrigatório o parqueamento dos motociclos nas instalações do requerente (usualmente nos CDP).

38-         Entre o final de cada dia de trabalho e o início do dia seguinte os motociclos ficam imobilizados, cabendo a cada utilizador (o carteiro alocado ao giro) a responsabilidade pela recolha e estacionamento, sendo a documentação legal do motociclo e a chave entregues no final de cada dia de trabalho à chefia do CDP.

39-         A utilização indevida dos motociclos, em desacordo com a política e regras anteriormente mencionadas, implica a instauração de processos internos de inquérito, os quais podem culminar em processos disciplinares.

40-         No que respeita aos giros identificados como adequados à utilização de motociclo, é dada a possibilidade ao carteiro de utilizar motociclo próprio em contrapartida de um “abono quilométrico”, determinado com base nos quilómetros previstos para os giros alocados a tal carteiro.

41-         Esta opção não abrange todas as situações, sendo sempre sujeita a avaliação prévia, em função das necessidades dos giros a percorrer e outros factores.

42-         Quando é dada a possibilidade ao carteiro de utilizar motociclo próprio ao serviço dos A..., há requisitos em termos de características do veículo que devem ser atendidos (ex. necessidade de suportar caixa de carga, proibição de elevadas cilindradas ou de modelos desportivos).

43-         A existência desta opção, concedida aos carteiros sempre que possível, resulta do facto de os A... a considerarem mais eficiente, de uma perspectiva financeira, podendo resultar num custo inferior quando comparado com o cenário de aquisição (e custos de manutenção e operação) do motociclo pelos A... .

44-         Aquela eficiência resulta, da constatação de que os carteiros, enquanto utilizadores dos motociclos, têm maior cuidado com os motociclos próprios do que com os dos A...– traduzindo-se numa redução de custos de manutenção (suportados pelos carteiros no caso dos motociclos próprios) e aumento da vida útil do equipamento.

45-         A utilização dos motociclos propriedade dos A... exige uma estrutura de apoio à gestão e logística adicional, que garanta todos os procedimentos e regras de utilização das viaturas (descritos supra), nos quais se incluem, por exemplo, a disponibilização de espaços necessários para que as viaturas sejam devidamente parqueadas nas instalações dos A... em condições adequadas (nomeadamente, em condições de segurança), o que se traduz em custos relevantes.

46-         Eventuais renovações da frota de motociclos, deparam-se com condições pouco vantajosas na alienação dos motociclos antigos, que decorrem da existência de sinais identitários dos A... nos motociclos que são sua propriedade e que implicam custos de reconversão que se traduzem potencialmente num menor preço de venda, ou redução da margem de venda.

47-         No caso de utilização de motociclo próprio do carteiro, os A... não suportam os referidos custos e encargos.

48-         No caso dos “giros” em que existe a opção do carteiro utilizar o seu próprio motociclo na distribuição postal, este é ressarcido dos encargos incorridos através de uma compensação com base nos quilómetros correspondentes aos giros percorridos.

49-         O abono quilométrico é calculado tomando como pressuposto uma utilização eficiente das viaturas pelos carteiros.

50-         Os A... fixaram o abono quilométrico, no caso de motociclos, por quilómetro, em 12% do preço médio do litro de gasolina (a valores de 2017, cerca de € 0,17 por quilómetro).

51-         O consumo de gasolina representa uma das principais parcelas do custo de utilização do motociclo próprio, tem uma ligação forte com a intensidade do uso/quilometragem percorrida, e é de aplicação razoavelmente uniforme no território nacional.

52-         Os referidos abonos quilométricos foram, (i) na parte correspondente aos limites previstos na Portaria n.º 1553-D/2008, de 31 de Dezembro, com as adaptações decorrentes do Decreto-Lei n.º 137/2010, de 28 de Dezembro e com as adaptações ainda, para motociclos, previstos na Circular n.º 19/93 (emitida pela Direção de Serviços do IRS), sujeitos a tributação autónoma nos termos do n.º 9 do artigo 88.º do Código do IRC e, no remanescente, sujeitos a tributação em sede de IRS na esfera dos colaboradores.

53-         Os referidos abonos quilométricos foram considerados rendimentos do trabalho dependente (tributados em IRS) na parte excedente a 40% de 0,36€/km, e no que respeita aos 40% de 0,36€/km foram sujeitos a tributação autónoma.

54-         O consumo médio de combustível de um motociclo é de cerca de 3,0l/100km.

55-         O custo médio de combustível em 2017, era de 1,461€/l (Gasolina sem chumbo Simples I.O.95).

56-         O valor médio de gasto anual com manutenção, IUC, seguros e depreciação do veículo ascendia em 2017 a € 1.434.

57-         Um motociclo utilizado em dispersão de correio percorre, em média, 11.500 quilómetros por ano.

58-         No caso de opção utilização de motociclos próprios pelos carteiros, o carteiro interessado deve sinalizar, junto dos responsáveis pela gestão local (i.e. do respetivo CDP), o seu interesse em utilizar o seu motociclo pessoal no âmbito do seu serviço diário ou adquirir um motociclo para o efeito.

59-         Seguidamente, o CDP em causa notifica a Direção de Operações e Distribuição daquele interesse, dando início a um processo de avaliação daquela possibilidade.

60-         Este processo tem como objectivo principal assegurar o interesse dos A..., as necessidades do serviço e garantir que as condições exigidas para entrega de correio se verificam, nomeadamente no que respeita às características do veículo.

61-         Assim, aquela Direção avalia o parque de viaturas disponíveis no CDP, as necessidades de viaturas em função dos giros percorridos, em particular motociclos, bem como as variáveis financeiras relevantes, determinando se é do interesse dos A... autorizar a utilização, pelo carteiro, de motociclo próprio na dispersão do correio, ou se tal é oportuno.

62-         Ultrapassada esta fase, aquela Direção avalia se o motociclo que o carteiro pretende utilizar no processo de dispersão de correio (ou adquirir para o efeito) cumpre com os requisitos estabelecidos.

63-         No caso de o resultado dessa ponderação ser favorável, o motociclo do carteiro será tido em consideração para efeitos do planeamento do processo de dispersão de correio ao nível dos CDP (naturalmente, para ser utilizado exclusivamente pelo carteiro proprietário).

64-         Aos carteiros são alocados a determinados giros, os quais possuem um percurso, com um número de quilómetros pré-definido e pré-conhecido, que origina abonos quilométricos previstos para os mesmos, e que se encontra parametrizado numa aplicação de gestão dos A... – a Distribuição On-line (“DOL”) –, sendo o cálculo e processamento do abono automático e não dependente de qualquer intervenção do carteiro.

65-         Os A... têm necessidade de uma organização logística que permita manter permanentemente o contacto entre os vários pontos da organização, dispondo, para o efeito, de uma frota de VSG (viaturas de serviço geral).

66-         Existe um conjunto de responsabilidades das, e funções exercidas e prosseguidas pelas, várias Direcções que integram a estrutura funcional dos A... – directamente ligadas às áreas de negócio, ou ligadas a backoffice –, que exigem a deslocação frequente dos colaboradores que lhe estão afectos.

67-         A dispersão geográfica da actividade do requerente impõe a necessidade de deslocação dos respectivos colaboradores em contexto profissional, deslocação essa realizada com recurso às VSG.

68-         A alocação do número de viaturas por Direcção, em 2017, era a seguinte:

 

69-         As VSG visam dar resposta às seguintes necessidades da actividade do Requerente:

a.            Capacidade de transportar várias pessoas (pelo menos 4), por forma a permitir a deslocação de equipas em conjunto;

b.            Capacidade de deslocação em grandes distâncias e em todas as condições atmosféricas;

c.            Capacidade de transportar algum equipamento (por exemplo, no caso das equipas de tecnologias de informação).

70-         Por regra, o Requerente não adquire VLP, optando antes pela modalidade de aluguer operacional, já que a renda mensal que corresponde às VSG é, de acordo com análises de mercado realizadas, inferior à que corresponderia ao mesmo modelo mas em versão de viatura comercial derivada de turismo, em razão de as viaturas comerciais derivadas de turismo desvalorizarem substancialmente mais do que o mesmo modelo em versão VLP.

71-         As VSG são caracterizadas, possuindo as cores dos A... (vermelhas e/ou brancas) e/ou estão identificadas com logotipo dos A..., com excepção de casos pontuais em que, em resultado das características de um dos tipos de função servida pelas VSG, é recomendável que não exista aquela caracterização, como sucede com as funções de auditoria e inspecção.

72-         Os modelos escolhidos para as VSG resultam da consulta ao mercado realizada pelo departamento de compras.

73-         As viaturas escolhidas são da gama “compacto”, consideradas suficientes para os identificados fins de transporte requerido para o exercício de funções ao serviço da actividade empresarial dos A..., mas o mais pequenas/reduzidas possível.

74-         Em 2017, 85% das VSG do Requerente eram do mesmo modelo.

75-         Os A... mantêm um conjunto de regras e de procedimentos implantados que visam assegurar o objectivo da efectiva disponibilidade contínua deste sub-grupo de viaturas (VSG) para utilização exclusiva no desenvolvimento da actividade empresarial dos A..., e que este sub-grupo de VLP (as VSG) não são desviadas para uso particular de qualquer colaborador dos A... ou do seu grupo fiscal.

76-         A gestão logística das VSG é da exclusiva responsabilidade da área de Recursos Físicos e Segurança, a qual gere os planos de conservação e reparação das mesmas.

77-         Para cada uma das Direcções é atribuída uma dotação de VSG, de acordo com uma organização em pool, ou seja, as viaturas não estao com ninguém em particular, e não estão afectas ao uso por nenhum funcionário.

78-         A cada Direcção cabe a gestão diária da respectiva frota de VSG que lhe está associada, devendo indicar um colaborador que seja o elo de ligação com a área de Recursos Físicos e Segurança.

79-         A utilização das VSG por parte dos colaboradores do Grupo Fiscal B... obedecia, em 2017, a regras constantes da Ordem de Serviço n.º.../2013, da qual resulta, para além do mais, que:

a.            Cada concreta utilização requer o preenchimento de Boletim de Viatura, com entrega da viatura, após a sua utilização, nas instalações dos A... ou locais por este designados;

b.            As VSG são exclusivamente utilizadas ao serviço dos A... em deslocações de serviço, só podendo ser utilizadas de Segunda a Sexta-feira, e devem ser preferencialmente utilizadas em distâncias mais longas, devendo, para pequenas distâncias ou sempre que se demonstre mais económico para os A..., ser privilegiado o uso de transportes;

c.            Em regra uma dada viatura só pode ser utilizada no máximo 5 dias consecutivos pelo mesmo colaborador, e não é permitido o seu parqueamento fora das instalações dos A... ou nas cercanias dos Serviços a que estão afectas;

d.            Qualquer excepção pontual a esta regra carece de autorização prévia de um Director de 1.ª linha e de comunicação à Direcção de Recursos Físicos e Segurança/Gestão de Frota (RS/GEF);

e.            O preenchimento do Boletim da Viatura (actividade e consumos), compreende a confirmação dos quilómetros à partida, validado mensalmente pelo Director de 1.ª Linha, que o envia para a RS/GEF até ao dia 15 do mês seguinte a que respeita;

f.             O utilizador da VSG tem o dever de verificar o estado da viatura antes de iniciar a marcha, sendo que no caso de detectar alguma anomalia na viatura, deve assinalá-la no campo disponível no Boletim da Viatura, bem como avisar de imediato o elemento responsável pela gestão da frota de VSG da respectiva Direção;

g.            Mensalmente, a RS/GEF dará informação às Direcções de todas as despesas resultantes da utilização das VSG, incluindo consumo de combustível e portagens, devendo cada Direcção proceder à análise e justificação dos desvios verificados;

h.            Anualmente, a RS/GEF efectua uma análise da taxa de utilização das viaturas atribuídas a cada Direção para efeitos de correcção das dotações atribuídas, propondo a respectiva racionalização do número de viaturas afectas a cada Direcção.

80-         As VSG são por princípio (excepções ocasionais carecem de autorização prévia de Director de 1.ª linha) parqueados nos parques das direcções a que estão afectas, sendo que os parques mais importantes estão em Lisboa, Porto, Coimbra e Faro, sendo as chaves controladas por cada direcção, e existindo em cada direcção um interlocutor designado para controlo das VSG.

81-         O Boletim da Viatura é preenchido diariamente pelos utilizadores das VSG e recolhe informação quanto aos quilómetros percorridos, hora de partida e de chegada, condutor e respectivo número de funcionário.

82-         No caso de detectar alguma avaria ou anomalia, os utilizadores das VSG deverão assinalá-la no referido boletim, bem como avisar de imediato o elemento responsável pela gestão da frota de VSG da respectiva direcção.

83-         Com periodicidade mensal, cada Direcção (e não nenhum utilizador em particular) verifica os níveis de óleo, água e pressão dos pneus da VSG, anotando a mesma no referido Boletim da Viatura.

84-         Os dados diários do Boletim da Viatura são, posteriormente e com periodicidade mensal, validados pelo responsável da direcção, a quem caberá depois reencaminhar o respectivo boletim para a área de Recursos Físicos e Segurança até ao dia 15 do mês seguinte a que respeita a utilização.

85-         Também com periodicidade mensal, a área de Recursos Físicos e Segurança analisa a informação recolhida, bem como outra informação pertinente (como extractos de “via verde”), por forma a efectuar controlo, agora a posteriori, com vista a identificar eventuais desvios, tais como:

a.            Utilização das viaturas fora do horário normal de trabalho (identificado, por exemplo, com base no detalhe da via verde);

b.            Consumos médios de combustíveis superiores aos expectáveis em face dos destinos das deslocações;

c.            Distâncias percorridas não justificadas face aos destinos das deslocações.

86-         Caso algum desvio não seja devidamente justificado e fique indiciado um uso indevido da VSG, é instaurado processo interno de inquérito, o qual pode culminar em processos disciplinares.

87-         Os A..., quando pretendem conferir aos seus colaboradores a possibilidade de utilização pessoal das viaturas, fazem constar tal utilização em acordo escrito.

88-         Em 31 de Dezembro de 2017 havia 345 VUP, em que os veículos foram entregues aos utilizadores mediante celebração de acordo de utilização que expressava o valor patrimonial do veículo para efeitos de tributação em sede de IRS.

89-         A totalidade das despesas e encargos com veículos do Grupo Fiscal B... (ou cuja utilização foi contratualmente assegurada pelo Grupo Fiscal B...) e com abonos quilométricos pelo uso de viatura própria do trabalhador, sujeitas a tributação autónoma em 2017, ascendeu a um total de € 6.939.635,67.

90-         A tributação autónoma liquidada com respeito a estas despesas e encargos foi de € 520.271,03, conforme o seguinte quadro:

 

91-         Os A... foram, até 2013, uma empresa que integrava o sector empresarial do Estado.

92-         Em 18 de Junho de 2018 o ora Requerente procedeu à apresentação da declaração de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) Modelo 22 do seu Grupo Fiscal referente ao exercício de 2017, sendo que apresentou ainda declarações de substituição.

93-         O Requerente apurou um montante de tributação autónoma em IRC na declaração entregue em 18 de Junho de 2018, de € 746.129,35 (setecentos e quarenta e seis mil cento e vinte e nove euros e trinta e cinco cêntimos), montante este que se manteve nas declarações de substituição subsequentemente entregues.

94-         O Requerente apresentou reclamação graciosa contra a referida autoliquidação respeitante ao exercício de 2017, no que concerne à parte do referido acto de autoliquidação que reflecte a liquidação indevida de tributação autónoma sobre despesas e encargos com veículos exclusivamente afectos à actividade de empresas do Grupo Fiscal B..., e sobre compensação pela deslocação em viaturas (motociclos) próprias do trabalhador (carteiro).

95-         As tributações autónomas objecto da reclamação graciosa incidiram sobre despesas e encargos no montante, em 2017, de € 5.042.482,40, tributação autónoma esta que ascendeu ao montante de € 401.088,13, conforme quadro infra, dos quais € 150.946,89 referentes a encargos com motociclos para distribuição postal, € 132.269,13 referentes a encargos com VSG, e € 117.872,11 referentes a abonos quilométricos a carteiros pela utilização dos seus motociclos ao serviço da distribuição postal dos B...:

 

96-         Em 22 de Julho de 2020 foi o Requerente legalmente notificado do indeferimento da supra referida reclamação graciosa.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, bem como a prova testemunhal produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

B. DO DIREITO

 

Na presente acção arbitral, a Requerente põe em causa a tributação autónoma a que se reporta o ponto 95 dos factos dados como provados, alegando, em suma, a violação das normas constantes do art.º 88.º, n.ºs 3, 5 e 8, do CIRC aplicável (redacção 2017), porquanto, em suma, alega que os gastos sujeitos a tributação autónoma foram, no exercício em questão, integralmente suportados no âmbito sua actividade empresarial, não existindo margem, dentro do sistema de utilização e controlo implementado, e que vincula os seus colaboradores, para utilização ou benefício particular do produto de tais gastos.

As questões que se colocam nos presentes autos são, assim, as de saber, em primeiro lugar, se a norma em que assenta a tributação autónoma que a Requerente contesta tem subjacente uma presunção, se, em caso negativo, se verifica alguma inconstitucionalidade, ou, em caso afirmativo, se será legalmente possível ilidir tal presunção, e, por fim, se, no caso concreto, a Requerente logrou fazê-lo.

                Vejamos então.

 

*

                A tributação autónoma em questão nos presentes autos, incidiu sobre gastos da Requerente, com viaturas e compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador.

                A este respeito, dispunha o artigo 88.º do CIRC vigente à data do facto tributário em questão nos autos, no que para aqui interessa, que:

“3- São tributados autonomamente os encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos que não beneficiem de isenções subjetivas e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias referidas na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, às seguintes taxas:

a) 10 % no caso de viaturas com um custo de aquisição inferior a (euro) 25 000;

b) 27,5 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a (euro) 25 000, e inferior a (euro) 35 000;

c) 35 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a (euro) 35 000. (...)

5 - Consideram-se encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, nomeadamente, as reintegrações, rendas ou alugueres, seguros, despesas com manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização. (...)

9 - São ainda tributados autonomamente, à taxa de 5 %, os encargos dedutíveis relativos a ajudas de custo e à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não faturados a clientes, escriturados a qualquer título, exceto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respetivo beneficiário, bem como os encargos não dedutíveis nos termos da alínea h) do n.º 1 do artigo 23.º-A suportados pelos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período de tributação a que os mesmos respeitam.”.

Assim, o que cumpre apurar em primeiro lugar é a ratio legis das previsões normativas transcritas, verificar se a mesma assenta numa presunção e, em caso de resposta afirmativa, se a mesma foi, ou não, in casu, ilidida.

 

*

Quando se fala em tributações autónomas, como é o caso, é conveniente desde logo ter presente que está em causa um conjunto de situações díspares, que abrangerão, pelo menos, três tipos distintos, a saber:

o             Tributação autónoma de determinados rendimentos (ex.: artigo 72.º do actual CIRS, e, crê-se, a prevista no actual n.º 11 do artigo 88.º do CIRC);

o             Tributação autónoma de determinados encargos dedutíveis (ex.: n.ºs 7 e 9 do artigo 88.º do actual CIRC);

o             Tributação autónoma de outros encargos independentemente da respectiva dedutibilidade (ex.: números 1 e 2 do artigo 88.º do actual CIRC).

Sob um ponto de vista da funcionalidade/finalidade/fundamento das tributações autónomas sobre gastos (excluindo, portanto a tributação autónoma de rendimentos), têm, também sido surpreendidos vários tipos, como sejam:

o             o desincentivar de determinados comportamentos do contribuinte tendentes a estar associados a situações de fraude ou evasão fiscal, como acontece, por exemplo, com as tributações autónomas incidentes sobre despesas não documentadas, ou pagamentos a entidades sujeitas a regimes fiscais privilegiados;

o             o combate à erosão da base tributável, como acontece, em geral, com as tributações autónomas incidentes sobre despesas dedutíveis;

o             o desincentivar de determinados gastos de causação presumidamente não empresarial, como acontece com as tributações autónomas incidentes sobre gastos com viaturas, ajudas de custo, ou despesas de representação;

o             a tributação de distribuição encapotada de rendimentos a terceiros, não tributados na esfera destes (fringe benefits), como acontece com as tributações autónomas incidentes sobre gastos com viaturas, ajudas de custo, ou despesas de representação;

o             a penalização pela realização de determinadas despesas, que não afectam a base tributável, nem têm subjacente qualquer distribuição não tributada de rendimentos a terceiros, ou potencial fraudulento ou evasivo, mas que o legislador, porventura, terá considerado luxuosas ou sumptuárias, como acontece com as tributações autónomas sobre determinados pagamentos a gestores, administradores ou gerentes (actual artigo 88.º/13 do CIRC), bem como a tributação autónoma sobre encargos com viaturas na medida em que exceda a taxa normal IRC.

Estes dados tornam-se importantes porque por si mesmos evidenciam a disparidade e heterogeneidade das situações sujeitas a tributações autónomas, e a inutilidade de, em sede jurisprudencial, sintetizar e procurar uma natureza jurídica própria e unitária, comum a todas as situações.

 

*

Uma corrente doutrinal e jurisprudencial tem olhado para as tributações autónomas de uma forma genérica, ou seja, sem procurar evidenciar e relevar os distintos tipos daquelas, qualificando-as como um imposto sobre a despesa, que tributaria determinados tipos de gastos, de uma forma totalmente desligada do rendimento, em termos de haver mesmo quem sustente que as mesmas constituem um tributo próprio, que apenas casualmente estaria integrado nos códigos do IRS e IRC.

                Não obstante, tem obtido acolhimento recorrente na jurisprudência do CAAD , e mesmo dos tribunais tributários superiores , o entendimento de que as tributações autónomas sobre encargos dedutíveis, integram, ainda, o regime dos impostos regulados pelos códigos onde se integram, visando, ainda que de uma forma mediata, o rendimento tributado por aqueles.

                Com efeito, e como se teve oportunidade de escrever noutra sede , “a complexidade gerada pelas sucessivas alterações na arquitetura do CIRC conduziram (...) a um edifício normativo atípico, no qual se poderá discernir um core correspondente ao que se poderá chamar IRC tout court (ou em sentido estrito), que a Requerente pretende que esgote tudo o que seja designado por IRC, e uma periferia que integra regulamentações “marginais”, subtraídas, em grande parte, à lógica, natureza e princípios do IRC tout court, mas que, não obstante, ainda se situam no “campo gravitacional” daquele.

                E é no processo de concretização desta zona de difícil definição que todas as decisões analisadas (...) operam, não podendo as mesmas ser devidamente compreendidas sem que se compreenda também que, de facto, o que todas as decisões em questão estão a fazer é apurar quais as consequências que a “gravitação” em torno do core do IRC aportam para as matérias em cada uma delas abordadas.”.

Nesse sentido, “dentro do quadro hermenêutico acima desenhado, (...) por força da evolução histórica do respetivo regime legal, se constituiu um tipo de IRC que integra um núcleo duro (...) e um grupo de normações adjacente, que comunga de parte da lógica e do regime daquele, mas que em muitos aspectos diverge dos mesmos.”. E, mais adiante, “da consideração do texto legislativo, estaticamente e na sua evolução histórica, resulta que o legislador entendia, e continua a entender, que as tributações autónomas integram o IRC, senão enquanto imposto stricto sensu, pelo menos em termos de fazerem parte do mesmo regime fiscal unitário”.

Isto porque “o regime legal das tributações autónomas em questão nos autos apenas faz sentido no contexto da tributação em sede de IRC. Ou seja, desligado do regime legal deste imposto, carecerão aquelas do seu principal referente de sentido. A sua existência, o seu propósito, a sua explicação, no fundo, a sua juridicidade, apenas é devidamente compreensível e aceitável no quadro do regime legal do IRC.”.

Daí que não “se entenda que “a definição de IRC constante dos artigos 1.º e 3.º do CIRC” esteja “realmente ultrapassada por uma nova definição de aplicação transversal/geral”, sendo essa uma postura epistemológica própria de um conceptualismo que, liminarmente, se repudiou.

Pelo contrário: trata-se do reconhecimento daquilo que, face ao quadro legal vigente, se impõe como o mais razoável: o abandono definitivo de qualquer definição de aplicação transversal/geral de IRC, e o reconhecimento do regime deste como uma realidade complexa e multifacetada, irredutível a uma definição daquela índole, que apenas um conceptualismo fundamentalisticamente abstracionista poderá pressupor.”.

                Por isso, “Tudo aquilo que se tem vindo a dizer evidencia que a evolução do regime legal do IRC transmutou-o numa realidade complexa e multifacetada, aos mais diversos níveis, que se reflete, na matéria que nos ocupa nestes autos, na tal “natureza dual” de que falava o Prof. Saldanha Sanches na passagem citada no Acórdão 617/2012 do TC.

O reconhecimento desta dualidade de natureza não prejudica, contudo, como se entende estar subjacente quer à citação em causa quer à jurisprudência que a cita, que se considere que o sistema, apesar de dual, seja o mesmo . Dito de outro modo, apenas faz sentido falar-se de um sistema dual, se o sistema em questão, globalmente considerado, for, ainda, o mesmo. Caso contrário falar-se-ia não de um sistema de natureza dual, mas de dois sistemas distintos, o que, por tudo o que se vem dizendo, não será o que ocorre. E, in casu, o sistema será o regime do IRC, que operando ora pelo lucro, ora pelos gastos, visa e prossegue as finalidades próprias daquele imposto, incluindo, evidentemente, a arrecadação de receita para o Estado.”.

                Por fim, “Em jeito de conclusão, face a tudo o que se vem de expor, e em favor de um rigor conceptual, dir-se-á ainda que se pende para o entendimento de que as tributações autónomas, tal como existem actualmente, se poderão configurar como um imposto “híbrido” , incidindo sobre o rendimento das pessoas singulares e das pessoas colectivas, e não sobre o consumo ou a despesa, pois não apresentarão as principais características desta forma de tributação”.

                O quanto vem de se dizer, ecoa, de alguma forma, na jurisprudência que vem sendo produzida pelo Tribunal Constitucional (TC), como acontece com o Acórdão 197/2016, de 13-04-2016 .

                Com efeito, reconhecendo o TC que a matéria das tributações autónomas é “regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento”, confirma o mesmo Tribunal que a mesma “é materialmente distinta da tributação em IRC”, e que “estamos (...) perante factos tributários distintos e que são objeto de um tratamento fiscal diferenciado”, indo mesmo ao ponto de afirmar que “o IRC e a tributação autónoma são impostos distintos” e que aquela tributação “nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros”, afirmações que terão de ser lidas, julga-se, cum grano salis, enquadrando-as nas limitações que as contextualizam, reportando-as à existência de uma “base de incidência” consistente em “certas despesas que constituem factos tributários autónomos”, e na “sujeição a taxas específicas”, compreendendo-se assim que a tributação autónoma “nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa” (o que não quer dizer que seja alheia ao rendimento e lucros em geral), e que a distinção entre a tributação autónoma e o IRC, sendo profunda e vincada, se deve cingir ao necessário para salvaguardar a especificidade daquela ao nível da respectiva teleologia, base de incidência e taxas específicas, sem prejudicar a integração no mesmo edifício normativo.

                Efectivamente, crê-se, não estará o TC a defender que a tributação autónoma constitui um imposto sobre a despesa stricto sensu, completamente alheio e distinto do IRC, sob pena de ser desmentido pela sistemática da lei fiscal  e, expressamente, pelo próprio legislador.

                Terá então o TC tido presente que a tributação autónoma será, pelo menos, uma tributação compensatória de IRC que, por o ser, é IRC (sem sentido amplo) também.

                O próprio STA, discordando, de um ponto de vista de princípio, com a qualificação, reconheceu já também que “o legislador (bem ou mal e, a nosso ver, mal) sempre as considerou como IRC, incluindo o seu regime legal no âmbito do respectivo código (pelo menos desde a referida Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro)” .

 

*

                Naturalmente que quem considere as tributações autónomas que ora nos ocupam um tributo directamente incidente sobre a despesa, concluirá que as normas sob interpretação, do artigo 88.º, números 3 e 5 do CIRC vigente à data do facto tributário, não integrarão qualquer presunção, formulando, directamente, o real objecto da sua incidência – a despesa.

Não se considera, todavia, que seja esse o entendimento mais correcto, entendendo-se, antes, como se expôs, que as tributações autónomas em causa se poderão configurar como um imposto “híbrido” , incidindo sobre o rendimento das pessoas singulares e das pessoas colectivas, e não sobre o consumo ou a despesa, pois não apresentarão as principais características desta forma de tributação, não incidindo, igualmente, sobre o património, e enquadrando-se numa problemática da tributação dos rendimentos relativamente à qual o legislador entendeu actuar a dois níveis (separada ou simultaneamente): não aceitar a dedutibilidade de alguns gastos, na totalidade ou parcialmente, e/ou tributá-los autonomamente.

Neste quadro, as tributações autónomas ora em questão nos autos, tal como inicialmente configuradas nos Códigos do IRS e IRC, integrariam, em sentido amplo, o elenco de normas anti-abuso específicas, detectando-se alguma similitude no respectivo fundamento material, por exemplo, com a norma do artigo 23.º-A/1/r) do CIRC aplicável, que dispõe que:

“1 - Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação: (...)

r) As importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português, e aí submetidas a um regime fiscal identificado por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças como um regime de tributação claramente mais favorável, salvo se o sujeito passivo provar que tais encargos correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um caráter anormal ou um montante exagerado.”.

Ou seja, e por exemplo, nos casos relativos as tributações autónomas sobre encargos com viaturas ligeiras de passageiros, o legislador podia ter optado por um regime semelhante ao estatuído na norma transcrita, vedando pura e simplesmente a respectiva dedutibilidade, ou condicionando-a nos mesmos termos dessa norma, ou noutros que entendesse adequados.

Em vez disso, inicialmente, optou o legislador por não ir tão longe, quedando-se o regime legal de IRC (e de IRS) sobre os gastos em causa num patamar aquém daquele, ao permitir-se a dedutibilidade dos encargos em causa, contra o pagamento imediato de uma parte do lucro tributável que, presente ou futuramente, irá ser afectado por tal dedução, bem como do imposto sobre rendimentos presumivelmente distribuídos de forma encapotada (fringe benefits).

Não obstante, será ainda assim patente, crê-se, a similitude dos regimes, bem como das preocupações e finalidades que lhes estão subjacentes.

O que vem de se dizer tem, deste modo, subjacente a constatação de que as tributações autónomas sobre encargos com viaturas ligeiras de passageiros, devem grande parte da sua razão de ser à circunstância de que será, objectivamente, inviável a tributação integral numa base rigorosa, em sede de IRS, nos potenciais beneficiários dos gastos sujeitos àquelas (o que equivaleria a uma tributação dos fringe benefits como foi concebida e aplicada na Austrália e na Nova Zelândia).

Não se ignora assim que as tributações autónomas do tipo que aqui nos ocupa têm uma vertente dirigida directamente para o rendimento de pessoas singulares. Tal como têm, de resto, uma vertente penalizadora – no sentido de impositiva de um tratamento desfavorável – relativamente ao tipo de despesas que as desencadeiam. Contudo, estas vertentes não esvaziam, nem, muito menos, impossibilitam, uma outra vertente, igualmente relevante, indissociavelmente interligada com o rendimento, no caso, das pessoas colectivas.

Entende-se, então, que, por via das imposições em causa, também se visa, pelo menos na mesma medida, disciplinar a utilização pelas empresas de gastos que podem ser necessários, numa parte, à prossecução da actividade comercial, mas que – tendo por base um juízo de normalidade – também ocorrerão em benefício de pessoas singulares que acabam por deles fruir a título particular e não profissional. Só que, não dispondo a Administração Tributária de nenhuma “fita métrica” para fazer tal separação, vem o legislador optando, já há bastante tempo, pela introdução no Código do IRC desta parcela que já considerava objectivamente, à data dos autos, uma imposição, no mínimo, semelhante, ao IRC, mesmo que se considere questionável tal disposição (bem como a actual redacção, a respeito da inclusão no IRC, das tributações autónomas no artigo 23º-A do Código do IRC).

Isto mesmo refere o STA, no já citado Acórdão de 27-09-2017, proferido no processo 0146/16, onde se pode ler que:

“I - As tributações autónomas, inicialmente previstas como meio de combater a evasão e fraude fiscais, designadamente as despesas confidenciais e não documentadas, reportavam-se a encargos fiscalmente não dedutíveis; ulteriormente, na prossecução da obtenção de receita fiscal, o seu âmbito foi progressivamente alargado a despesas cuja justificação do ponto de vista empresarial se revela duvidosa e a despesas que podem configurar uma atribuição de rendimentos não tributados a terceiros, relativamente às quais a dedutibilidade só era admitida se acompanhada pela tributação autónoma.

II - Estando em causa tributações autónomas respeitantes a “encargos com viaturas”, “despesas de representação” e “encargos com ajudas de custo e de compensação pela deslocação em viatura própria do trabalho”, i.e., respeitantes a despesas dedutíveis, a ratio legis parece ser, não só a de obviar à erosão da base tributável e consequente redução da receita fiscal, mas também a de tributar (na esfera de quem os distribui) rendimentos que de outro modo não conseguiriam ser tributados na esfera jurídica dos seus beneficiários.” .

Reconhecem-se aqui, assim, aquelas características que há já alguns anos a doutrina vem apontando às tributações autónomas em causa, como sejam:

a)            a tributação autónoma começa por fazer sentido porque os custos/gastos relevam como componentes negativas do lucro tributável do IRC. É isso que motiva os sujeitos passivos do IRC a relevar um valor tão elevado quanto possível desses gastos para diminuir a matéria tributável do IRC, a colecta e, consequentemente, o imposto a pagar;

b)           pretende-se desincentivar esse tipo de gastos em sujeitos passivos que apresentam resultados negativos mas que, independentemente disso, continuam a evidenciar estruturas de consumo pouco ou nada compagináveis com a saúde financeira das suas empresas;

c)            trata-se, em tese mais geral, de modelar o sistema fiscal de modo que este revele um certo equilíbrio tendo em vista uma melhor repartição da carga tributária efectiva entre contribuintes e tipos de rendimento;

d)           considera-se desfavoravelmente determinados gastos em que, reconhecidamente, não é fácil determinar a medida exacta da componente que corresponde a consumo privado, e relativamente aos quais é conhecida a prática geral de abuso na sua relevação.

Melhor ou pior, as tributações autónomas ora em causa deverão ser assim entendidas como uma forma de obstar a determinadas actuações abusivas, que o “normal” funcionamento do sistema de tributação se demonstrou incapaz de impedir, sendo que outras formas de combater tais actuações, incluindo, nalguns casos, formas mais gravosas para o contribuinte, eram possíveis.

Este carácter antiabuso das tributações autónomas ora em causa será não só coerente com a sua natureza “anti-sistémica” (como acontece com todas as normas do género), como com uma natureza presuntiva, apontada quer pelo Prof. Saldanha Sanches quer pela jurisprudência que, amiúde, o cita.

 

*

Sob o prisma que vem de se expor, as tributações autónomas em análise deverão ser entendidas, conforme se verá de seguida, como contendo, formal e materialmente, uma presunção de empresarialidade “parcial” das despesas sobre que incidem.

Efectivamente, por definição, conforme resulta do art.º 349.º do Código Civil, as presunções “são ilações que a lei ou julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.

No caso, reconhecendo-se, como parecer ser maioritariamente o caso, que as tributações autónomas são IRC, e não um imposto sobre a despesa, não será possível, crê-se, senão concluir que a tributação autónoma que nos ocupa terá natureza presuntiva.

Com efeito, e como também se pode ter por pacífico actualmente, considera-se que o facto tributário que desencadeia a incidência da tributação em causa é o gasto.

Não obstante, o que é tributado – se, como se entende, não estamos perante um imposto sobre a despesa – é o rendimento das pessoas singulares ou colectivas, então só se pode concluir que de um facto conhecido – o gasto – a lei firma um facto desconhecido, o rendimento das pessoas singulares ou colectivas que presume, e que, por via da tributação autónoma em causa visa, em última linha, sujeitar a tributação.

E tal presunção fundar-se-á, julga-se, na já supra-apontada constatação da “empresarialidade parcial” normalmente inerente ao tipo de gastos sujeitos à tributação autónoma que nos ocupa.

É por, sob um ponto de vista da normalidade das coisas, as viaturas ligeiras de passageiros serem necessárias à actividade normal das empresas, mas, concomitantemente, serem, sob o ponto de vista da mesma normalidade, utilizadas em benefício pessoal de indivíduos com aquelas relacionados (sócios, membros de órgãos sociais, colaboradores), que, por um lado se presume, a atribuição encapotada de rendimentos em espécie a terceiros, e, por outro e por isso mesmo, se tem como duvidosa (para utilizar a expressão do STA no aresto atrás citado) a empresarialidade (integral) dos gastos com aquelas.

A supra-apontada circunstância de tais gastos se situarem numa linha cinzenta que separa aquilo que é despesa empresarial, produtiva, daquilo que é despesa privada, de consumo, sendo que, notoriamente, em muitos casos, a despesa terá efectivamente na realidade uma dupla natureza (parte empresarial, parte particular), torna extremamente difícil, de um ponto de vista geral e abstracto, determinar em termos funcionais qual a parte que é empresarial e qual a parte que é particular do gasto.

Confrontado com tal dificuldade , o legislador, em lugar de simplesmente afastar a dedutibilidade de gastos que, sob um ponto de vista da normalidade, satisfazem, pelo menos em parte, necessidades empresariais, ou inverter o ónus da prova da empresarialidade das despesas em questão (impondo, por exemplo, a demonstração de que “não têm um carácter anormal ou um montante exagerado”, como faz nos artigos 23-A.º/1/r) e 88.º/8 do CIRC aplicável ), optou por consagrar o regime actualmente vigente, que, não obstante, tem precisamente o mesmo fundamento, a mesma finalidade, e o mesmo tipo de resultado, que outras formas utilizadas noutras situações típicas do regime (no caso) do IRC.

Assim, no fundo, do facto conhecido que é a realização de determinado tipo de gastos, o legislador tira o facto desconhecido, que é a aferição da contribuição dos mesmos para a formação do lucro tributável do sujeito passivo e da distribuição de rendimentos em espécie a terceiros.

E será este facto desconhecido, presumido pelo legislador, que justifica e legitima a tributação autónoma em questão no presente processo. Com efeito, foi por presumir que as despesas sobre que incide aquela tributação autónoma têm, por norma, uma afectação mista (não ocorrendo em benefício exclusivo da empresa, mas também de tercerios), havendo, por isso, um benefício injustificado na sua dedução integral, que o legislador começou, numa primeira fase, por limitar a percentagem daquelas que admitia como dedutível.

 

*

O regime das tributações autónomas que ora nos ocupam, foi objecto de alterações ao longo dos tempos, com especiais desenvolvimentos na última década.

Entre estas, e sob o ponto de vista do que ora releva, será de apontar a operada pela Lei 55-A/2010 de 31/12 (Lei do Orçamento para 2011) , por meio da qual se veio a cindir, em sede de IRC, a tributação autónoma das despesas de representação da tributação autónoma sobre encargos com veículos, passando aquelas para uma norma à parte, o n.º 7, que até aí se limitava a definir o conceito de despesas de representação e a eliminar dos n.ºs 3 e 4 a referência à dedutibilidade dos encargos aí tributados autonomamente, ao mesmo tempo que deixava tal referência na norma análoga do artigo 73.º/2 do CIRS, e que a introduzia na nova redacção que então dava ao n.º 7 do artigo 88.º do CIRC.

Ou seja, o legislador retirou a menção ao caracter dedutível das despesas com viaturas sujeitas a tributação autónoma em IRC, mantendo-o em IRS, e mantendo-o também no que às despesas de representação dizia respeito, e que até aí sempre tinham tido o mesmo tratamento que aquelas, situação ainda mais incompreensível quando, com a Lei n.º 2/2014, de 16-01, o legislador manteve a omissão da referência expressa à dedutibilidade dos encargos a sujeitar a tributação autónoma nos termos do n.º 3 do artigo 88.º do CIRC, não obstante na intervenção operada 15 dias antes em IRS, aquando da Lei n.º 83-C/2013, de 31-12, ter mantido tal referência, na regulação das tributações autónomas correspondentes.

                Evidentemente que, neste quadro errático nenhuma conclusão definitiva se pode tirar quanto ao propósito da intervenção legislativa em causa, se é que algum houve, sendo, ainda, de notar, que quando efectivamente pretendeu, noutros casos, que os encargos dedutíveis e não dedutíveis fossem sujeitos a tributação autónoma, o legislador disse-o expressamente, como se verificava, então, nos n.ºs 1 e 7 do artigo 88.º do CIRC, o que não ocorreu no caso dos novos n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo.

                Não obstante, por não ser matéria em discussão no caso sub iudice, não cumprirá aqui retirar conclusões sobre se, à data dos factos tributário ora em causa, a tributação autónoma em questão se restringia ainda, ou não, a encargos dedutíveis, questão que não interferirá, crê-se, com as conclusões a tirar na matéria que nos ocupa, conforme infra se verá.

                Relevante, antes, será a exposição de motivos constante do relatório à proposta de Orçamento de Estado 2011, onde se pode ler que:

“O Programa de Estabilidade e Crescimento anunciou a intenção de o Governo proceder a um reforço da tributação dos fringe benefits, um propósito justificado seja por razões de transparência nas práticas remuneratórias das empresas, seja por razões de evasão fiscal.

Em consequência, a Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2011 procede a uma revisão das taxas de tributação autónoma de IRC aplicáveis a estes benefícios acessórios, introduzindo duas regras essenciais de moralização do sistema. Em primeiro lugar, os encargos suportados com os automóveis da empresa, continuando a estar genericamente sujeitos a uma taxa autónoma de 10% como sucedia até agora na maior parte dos casos, passam a ficar sujeitos a taxa agravada de 20% sempre que apresentem valor mais elevado, determinado por referência aos limites estabelecidos no Código do IRC para efeitos da depreciação de viaturas. Desta maneira, pretende-se que a lei fiscal incentive a racionalização da política remuneratória das empresas, desmotivando a atribuição de viaturas como mero benefício acessório, sem prejudicar a aquisição de viaturas utilitárias para o uso corrente da sua actividade.”.

No contexto do valor relativo dos motivos externalizados numa matéria intervencionada de forma reiterada sem qualquer critério ou visão sistemática, como é a das tributações autónomas, não poderá de se deixar de considerar relevante a assunção pelo legislador de que o propósito da intervenção operada, visou especificamente a tributação de fringe nenefits, associando expressamente os encargos com viaturas ligeiras à política remuneratória das empresas, pela concessão a terceiros de benefícios acessórios.

Ou seja, à motivação de mitigação do benefício fiscal decorrente da realização de despesas não totalmente coincidentes com o interesse empresarial (notando-se que na exposição de motivos transcrita, é reconhecida expressamente a necessidade das viaturas ligeiras de passageiros para o uso corrente da actividade empresarial), veio adicionar-se de forma mais vincada a pretensão de tributação de benefícios acessórios, como motivação/causa da imposição da tributação autónoma em causa.

Mas tal, não excluiu, antes complementou, aquela primitiva motivação de tributar, adequadamente, o rendimento das pessoas colectivas, distorcido pela dedução de despesas, que o legislador presume de afectação não totalmente empresarial. Ou seja: as finalidades orçamentais e de tributação de fringe benefits, que possam assistir ao regime alterado da tributação autónoma que nos ocupa, não excluem, antes assentam, na referida presunção de “empresarialidade parcial” das despesas sobre que recaem (e, complementarmente, na distorção da tributação do rendimento das pessoas colectivas daí decorrente).

Efectivamente, só se verificarão fringe benefits no caso de a afectação empresarial não ser integral, e no caso de a afectação empresarial ser integral, não ocorrerão aqueles.

E se – o que, repete-se, aqui não se discute nem se aprecia – da alteração legislativa em apreço resultou a sujeição a tributação autónoma das despesas com viaturas ligeiras de passageiros dedutíveis ou não dedutíveis, daí não decorrerá qualquer alteração, pelo contrário, crê-se, na natureza presuntiva diagnosticada àquele tipo de tributação.

É que o que foi afirmado e realizado foi que a tributação autónoma em questão assume (presume) finalidades remuneratórias associadas às despesas a ela sujeitas, para além de concomitante e necessariamente, assumir (presumir) que aquelas não têm uma afectação exclusivamente empresarial, o que, como se viu, está estreitamente relacionado, e é pressuposto, daquela primeira circunstância.

Daí que a questão que persiste em emergir, independentemente de a tributação autónoma em causa abranger apenas encargos dedutíveis ou, também, encargos não dedutíveis, é a saber qual a legitimação e o fundamento para a imposição de tributação autónoma, quando o contribuinte demonstrar, para lá de qualquer dúvida razoável, que os gastos em que incorreu têm uma afectação estritamente empresarial, não decorrendo das mesmas, consequentemente, quaisquer benefícios acessórios para terceiros.

Será legítimo operar a norma de incidência em questão (e não se tem conhecimento que seja contestado que se trata efectivamente de uma norma de incidência) perante a demonstração, para lá da dúvida razoável, de que os seus fundamentos materiais (a não empresarialidade integral e vertente remuneratória distributiva de benefícios acessórios) não ocorrem?

No pressuposto de que se está perante tributação de IRC (no caso), e não perante um imposto autónomo sobre a despesa em si, não se vislumbra outra resposta que não no sentido negativo.

E tal conclusão será reforçada, por outra alteração introduzida pela Lei 55-A/2010, e desenvolvida em posteriores intervenções legislativas, da qual resultou a imposição de tributação autónoma aos encargos com viaturas ligeiras de passageiros, com taxas superiores à taxa normal de IRC, daí resultando, na prática, a indedutibilidade de tais despesas, agravada com a tributação autónoma na parte excedente àquela taxa normal.

Assim, ao aditar o n.º 14 ao artigo 88.º do CIRC, que veio consagrar que as taxas de tributação autónoma previstas no artigo em causa seriam elevadas em 10% quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período de tributação a que respeitem os respectivos factos tributários, a referida Lei 55-A/2010 veio impor àqueles sujeitos passivos, que incorressem nas despesas a partir daí abrangidas pelo n.º 4 do art.º 88.º do CIRC, uma taxa de tributação autónoma de 30%, quando a taxa de IRC então vigente era de 25%.

Esta tendência veio a agravar-se com a Lei n.º 2/2014, de 16-01, que, na redacção então introduzida para o n.º 3 do art.º 88.º do CIRC, consagrou novos escalões de taxas de tributação autónoma de 10%, 27,5% e 35%, para uma taxa normal de IRC, à data, de 23%.

Ora, verificando-se que:

                - as tributações autónomas em causa integram o sistema de IRC, que é um imposto sobre o rendimento;

                - que as mesmas se legitimam, assumida e consensualmente, perante uma presumida empresarialidade parcial dos gastos, associada e derivada da distribuição de benefícios acessórios a terceiros;

                - que, com base em tais fundamentos, meramente em função do valor de aquisição das viaturas a que se reportam os encargos sujeitos a tributação autónoma (valores esses não especialmente elevados), e/ou da ocorrência ou não de prejuízos fiscais,  afastam in totum a dedutibilidade de tais encargos, e ainda oneram o sujeito passivo com um pagamento que pode exceder, actualmente, em mais do dobro a taxa normal de IRC (45% para a tributação autónoma conjugada da al. c) do n.º 3 do art.º 88, com o n.º 14 do mesmo artigo, para uma taxa normal de IRC de 21%);

não se poderá deixar de concluir, julga-se, que tais normas de incidência não poderão operar, demonstrado que seja que os encargos em questão tiveram uma afectação integralmente empresarial, inexistindo, consequentemente, qualquer distribuição de benefícios acessórios a terceiros.

                Com efeito, não passará, como adiante se verá, qualquer teste de constitucionalidade, a norma que não só afastasse in totum a dedutibilidade de determinados gastos, como ainda impusesse ao sujeito passivo a obrigação de pagamento de imposto por ter incorrido naqueles, mesmo estando provado que os mesmos foram necessários e integralmente afectos à actividade empresarial daquele.

 

*

                Não obstará à conclusão retirada, crê-se a letra das normas dos números 3 e 5 do art.º 88.º do CIRC aplicável.

                Efectivamente, a circunstância de o texto legal não empregar a expressão “presume-se”, ou equivalente, e de não prever expressamente um meio de ilisão da presunção, ao contrário do que acontece, por exemplo, no n.º 8 do art.º 88.º em causa, não invalida que a norma de incidência que nos ocupa integre, nos termos previamente demonstrados, uma presunção, sendo, de resto, comum que tal aconteça.

                Assim, por exemplo, o art.º 6.º do Código do IUC, relativo à definição do facto gerador da obrigação de imposto, refere que este “(…) é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional”, o que não invalida que se venha entendendo que a matrícula ou registo em território nacional constituam meras presunções da propriedade do veículo, susceptíveis de ilisão .

                De resto, analisando questão análoga, noutro contexto, é certo, o STA explicou já que:

“De todo o modo, para os efeitos previstos nesse art. 73º e no art. 64º do CPPT, deve entender-se igualmente, (Neste sentido se concluiu no ac. do STA, de 29/2/2012, no proc. nº 0441/11, com apoio na doutrina: cfr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, I Vol., 6ª ed., 2011, anotações 2 e 3 ao art. 64º, pp. 585 a 588, que cita Soares Martinez, Direito Fiscal, 7ª ed., p. 126 e Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, volume II, p. 56.) que a referência a normas de incidência é utilizada na acepção lata (as que «definem o plano de incidência, ou seja, o complexo de pressupostos de cuja conjugação resulta o nascimento da obrigação de imposto, assim como os elementos da mesma obrigação») e não apenas na acepção mais restrita (normas que indicam o sujeito passivo e a definição da matéria colectável, sem abranger a sua determinação).

E dado que as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão «presume-se» ou semelhante, mas «também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva», quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores, afigura-se-nos que, no caso, sendo o rendimento colectável de IRS «o que resulta do englobamento das várias categorias auferidos em cada ano» (art. 22º do CIRS), também aqui é de concluir que «… as normas que ficcionam valores para efeitos de determinar a medida dos rendimentos contêm presunções implícitas, já que não se pode aceitar, à face do princípio constitucional da igualdade, que se queiram tributar rendimentos inexistentes; por isso, as ficções de valores de matéria tributável foram introduzidas na lei no pressuposto de que correspondem à realidade os valores determinados por via de presunção.

Em situações deste tipo, está-se perante a aplicação de presunções contidas em normas de incidência objectiva (conceito em que se englobam as normas sobre determinação da matéria tributável de natureza substantiva, como é jurisprudência assente do TC), pelo que os interessados podem ilidi-las, ao abrigo do disposto no art. 73° da LGT, e fazer uso do procedimento de ilisão de presunções previsto neste art. 64° do CPPT; é admissível ilidir as presunções implícitas porque o que se pretende «sempre» é tributar rendimentos reais e não inexistentes e é por esta razão, de se querer «sempre» tributar valores reais, que o art. 73° da LGT permite «sempre» ilidir presunções.

É esta a interpretação que está em sintonia, por um lado, com o princípio enunciado no art. 11°, n° 3, da LGT de que, nos casos de dúvida sobre a interpretação das normas tributárias «deve atender-se à substância económica dos factos tributários» e, por outro lado, com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, que impõe que a tributação da generalidade dos contribuintes, sempre que possível, assente na realidade económica subjacente aos factos tributários e não se compagina com a existência de casos especiais de tributação com base em valores fictícios em situações em que é conhecido ou é apurável o valor real dos factos tributários: como a tributação de rendimentos inexistentes conduziria a que quem os não teve fosse tributado como quem os teve e tal ofende o princípio da igualdade, é «sempre» possível demonstrar a realidade dos rendimentos, ilidindo o que se presume nas normas relevantes para a fixação de valores para o seu cálculo.

Pode tributar-se com base em ficções de rendimentos, quando a lei os presume, mas só se pode fazê-lo porque se presume que os valores dos rendimentos ficcionados são os que correspondem à realidade, admitindo-se «sempre» a prova de que há dissonância entre os rendimentos ficcionados e a realidade.» (Jorge de Sousa, loc. cit. anotação 5, pp. 589-591, concluindo que também no nº 2 do art. 44º do CIRS se estabelece uma presunção implícita de rendimento. )

Aliás, referindo-se à previsão constante deste nº 2 do art. 44º do CIRS (e bem antes do aditamento dos respectivos nºs. 5 a 7, que veio a ser operado pela Lei nº 82-E/2014, de 31/12, aditamento este que, nas palavras do supra citado acórdão nº 211/2017, do Tribunal Constitucional, terá sido determinado com vista à concretização dos valores jurídico-constitucionais relevantes em matéria fiscal, especificamente quanto à incidência do imposto), também Xavier de Basto (IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, pp. 445-448.) já ponderava que esta disposição «... tem de ser interpretada no sentido de que se limita a estabelecer uma presunção sobre o valor de realização, que cede perante prova em contrário, ou seja, prova de que o valor de realização foi efectivamente inferior ao valor tomado como base para a liquidação do IMT», sendo que, se assim não for, poderemos estar a tributar um rendimento normal, em vez do rendimento real operado com a transmissão e sendo certo que, de todo o modo, a Fazenda Nacional sempre continuará defendida de manobras evasivas sobre o valor de realização.” .

 

*

                Em suma, condensando o quanto se expôs anteriormente, considera-se, na esteira do que vêm sido os desenvolvimentos jurisprudenciais na matéria, que a tributação autónoma que nos ocupa, tendo como facto tributário imediato a realização de uma despesa, não se constitui como um verdadeiro imposto sobre aquela, mas, antes, integra o sistema de tributação (no caso) do IRC, legitimando-se e justificando-se à luz da teleologia própria daquele.

                Neste quadro, e especificamente, a tributação autónoma sobre encargos com viaturas ligeiras de passageiros funda-se materialmente no pressuposto, baseado na normalidade das coisas, de que as viaturas ligeiras de passageiros adquiridas pela generalidade das empresas tem uma afectação mista (simultaneamente empresarial e particular), da qual decorre a atribuição a terceiros de benefícios acessórios, não tributados em sede do respectivo imposto sobre o rendimento.

                Assim, sendo, como se julga que é, a despesa que desencadeia a incidência da tributação autónoma em questão, constituir-se-á como um facto conhecido, do qual o legislador retira os factos desconhecidos que são a diminuição ilegítima do rendimento do sujeito passivo por meio de uma despesa não integralmente justificável à luz de critérios empresariais, e a distribuição de rendimentos (benefícios acessórios) não tributados a terceiros.

                Presume, em suma, o legislador que as despesas com viaturas ligeiras de passageiros implicam, por regra (o que se poderá ter por verdade), a diminuição parcialmente artificial ou ilegítima do rendimento do sujeito passivo que nelas incorre, por um lado, e a atribuição a terceiros de rendimentos (benefícios acessórios) não tributados.

 

*

                Não obstante tudo o quanto se expões, o certo é que o STA entendeu recentemente fixar jurisprudência no sentido de que:

“as disposições legais que estabelecem a tributação autónoma objeto dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário.” .

                Sem polemizar o ali julgado, sempre se notará que não se pronuncia, cabalmente, sobre a maior parte dos argumentos previamente expostos.

                Não obstante, e em obediência ao dever de aplicação uniforme do direito, imposto pelo art.º 8.º, n.º 3, do Código Civil, e atendendo a que, qualquer decisão divergente, seria passível de recurso para aquele Alto Tribunal, acatar-se-á aqui o entendimento por aquele fixado.

                Tomando tal entendimento por bom – e não só por dever de ofício, como por o Requerente o ter suscitado – cumprirá aferir da constitucionalidade, das normas dos números 3 e 9 do CIRC aplicável, na medida em que “não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário”.

                Tal interpretação, aqui, como se expôs, acolhida, enfermará de inconstitucionalidade a vários níveis.

                Assim e desde logo, o entendimento uniformizado pelo STA, no aresto atrás citado, assenta no juízo de que “No caso vertente, o mecanismo da tributação autónoma resulta da associação do sujeito passivo à realização de certas despesas”, ou seja, configura as tributações autónomas ora em causa, como um verdadeiro tributo incidente sobre a despesa, o que, será, por qualquer forma concebível, incompatível com o seu enquadramento como imposto sobre o rendimento.

A negação da natureza presuntiva das tributações autónomas em causa nos autos, e a sua configuração como um imposto sobre a despesa, nos termos acima expostos, contenderá com os princípios da igualdade tributária, da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real, que serão desnecessária e, no caso, desproporcionalmente, truncados, pela estatuição de uma presunção inilidível da parcialidade da afectação empresarial das despesas em questão, conforme reconhecido no Acórdão do TCA-Sul de 08-03-2018, proferido no processo 1294/14.0BELRS .

Efectivamente, provando-se, como é o caso, que as viaturas e despesas a que se reportam os gastos sujeitos a tributação autónoma correspondem e foram realizados, integralmente, no interesse empresarial do contribuinte, contribuindo, na sua totalidade, para a formação dos rendimentos sujeitos a imposto, e correspondendo, até, a opções mais eficazes e eficientes em ordem à formação de tais rendimentos, a sujeição daqueles gastos a tributação autónoma, reduzindo, ou, eventualmente, eliminando, por essa via, a sua dedutibilidade, sem nenhum fundamento material, redundará numa restrição injustificada dos princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real, tal como têm sido entendidos pelo Tribunal Constitucional.

Com efeito, este Tribunal entendeu já que “o princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária”. Isto porque se o princípio da igualdade tributária pressupõe o tratamento igual de situações iguais e o tratamento desigual de situações desiguais, a capacidade contributiva é o tertium comparationis – leia-se, o critério – que há de servir de base à comparação. Neste sentido, o princípio da capacidade contributiva opera tanto como condição ou pressuposto quanto como critério ou parâmetro da tributação (cfr. o Acórdão n.º 601/04, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Opera como pressuposto ou condição visto que impede que a tributação atinja uma riqueza ou um rendimento que não existe; vale como critério ou parâmetro porque determina que a exação do património dos contribuintes se faça de acordo com a sua “capacidade de gastar” (ability to pay). Ou seja, contribuintes com a mesma capacidade de gastar devem pagar os mesmos impostos (igualdade horizontal), e contribuintes com diferente capacidade de gastar devem pagar impostos diferentes (igualdade vertical).” .

                A tributação autónoma, num caso como o dos autos, atingirá uma riqueza que não existe, já que a despesa, entendida como objecto da incidência, no caso, não constitui qualquer manifestação de riqueza, já que foi incorrida, exclusiva e integralmente, pela necessidade de geral rendimento sujeito a imposto, sendo, até, a maneira empresarialmente mais adequada à maximização deste, pelo que a sua penalização por via da tributação autónoma, com a consequente redução ou eliminação da sua dedutibilidade ao lucro tributável, é totalmente arbitrária e contraditória com o próprio fundamento material da tributação autónoma em causa.

                Por outro lado, a incidência de tributação autónoma como a que está em questão nos autos, sem que seja possível infirmar o respectivo fundamento material, traduz-se também numa discriminação arbitrária e infundada das actividades em que os objectos dos gastos sujeitos àquela sejam essenciais e os economicamente e mais eficientemente aptos à produção de rendimentos sujeitos a imposto, dado que, não só reduzirão ou eliminarão a dedutibilidade de tais gastos, como, eventualmente, poderão taxa-las adicionalmente, desse modo desfavorecendo a iniciativa empresarial no âmbito dessas mesmas actividades e privilegiando, consequentemente, tal iniciativa no âmbito de outras.

                Dito de outro modo, se um operador económico tiver interesse em exercer uma actividade, como aquela a que se dedica o Requerente nos autos, em que a utilização de motociclos ou viaturas ligeiras de passageiros, próprias ou dos seus colaboradores, seja essencial, e o modo economicamente mais eficiente de exercício da sua actividade, não deixará de ponderar que, acolhido o entendimento firmado pelo STA relativamente às tributações autónomas ora em questão, se verá sujeito a encargos fiscais adicionais, desligados da riqueza que manifeste, incidentes sobre gastos essenciais à produção do rendimento sujeito a imposto, ou, alternativamente, terá de erigir uma organização empresarial menos eficiente, assim gerando menos rendimentos, o que não acontecerá se optar por uma outra actividade em que a utilização daquele tipo de viaturas no processo produtivo seja dispensável.

                Vistas, ainda, as coisas por outro prisma, a incidência da tributação autónoma nos termos firmados pelo STA, leva a que os operadores económicos de uma actividade, como aquela a que se dedica o Requerente nos autos, em que a utilização de motociclos ou viaturas ligeiras de passageiros, próprias ou dos seus colaboradores, seja essencial, e o modo economicamente mais eficiente de exercício da sua actividade, vêm-se, de forma arbitrária e materialmente infundada (i.e. de forma desligada de qualquer forma de manifestação de capacidade contributiva) inescapavelmente forçados a contribuir mais para a satisfação das necessidades colectivas, do que outros operadores que se dediquem a outro tipo de actividades.

                Pelo exposto, julga-se que as disposições legais que estabelecem a tributação autónoma objeto dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC aplicável, ao constituírem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário, incidindo indiscriminadamente sobre gastos, ainda que demonstrado, para lá de qualquer dúvida razoável, como integralmente suportados para gerar rendimentos sujeitos a imposto, como é o caso, enferma de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 2.º, 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

                Deste modo, deverão, in casu, aquelas normas dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC aplicável ser desaplicadas, e, consequentemente anulada, na parte correspondente, a liquidação objecto da presente acção arbitral, bem como a decisão da reclamação graciosa que a teve por objecto, procedendo, assim, o pedido arbitral.

 

*

                O Requerente cumula, com o pedido anulatório principal, o pedido acessório de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

                Todavia, tem sido entendimento do STA que:

“I - Estando a Administração Tributária sujeita ao princípio da legalidade - arts. 266º, nº 2 da CRP e 55º da LGT – não pode deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o Tribunal Constitucional já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (artº 281º da CRP) ou se esteja perante a violação de normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos liberdades e garantias (artº 18º, nº 1 da CRP).

II - Não podendo a errada consideração (no apuramento do imposto a pagar) de uma norma posteriormente julgada inconstitucional, ser atribuída a ilegal conduta da Administração Tributária, também não pode legitimar a condenação nos juros indemnizatórios pedidos ao abrigo do artº. 43 da LGT por se não verificar um pressuposto de facto constitutivo de tal direito – o erro imputável aos serviços.” .

                No entender daquele Alto Tribunal:

“I – Os juros indemnizatórios são devidos nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária quando se demonstre que houve erro imputável aos serviços;

II - Não é imputável aos serviços o erro na aplicação de uma norma julgada inconstitucional, se não está em causa o desrespeito de normas constitucionais diretamente aplicáveis ou a aplicação de uma norma que já tenha sido declarada inconstitucional com força obrigatória geral.” .

                Deste modo, e acolhendo-se aqui tal impedimento, deverá improceder o pedido acessório de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

               

***

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)            acto tributário de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) n.º 2018..., referente ao exercício de 2017, na parte atinente a tributações autónomas, no valor de € 401.088,13, assim como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que teve o referido acto tributário como objecto;

b)           Julgar improcedente o pedido arbitral acessório de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios;

c)            Condenar a Requerida nas custas do processo, abaixo fixadas, uma vez que o pedido foi integralmente procedente.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 401.088,13, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 6.732,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se, incluindo o Ministério Público, dada a desaplicação, por inconstitucionalidade, dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC aplicável.

 

Lisboa, 7 de Março de 2020

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(António Pragal Colaço – vencido, nos termos da declaração de voto anexa)

 

O Árbitro Vogal

(Nina Aguiar)

Declaração de voto

 

A questão em análise reporta-se à sujeição a taxas de tributação autónoma, nos termos do artigo 88.º do Código de IRC, dos encargos suportados pela Requerente e seu Grupo Fiscal com distribuição das suas entregas por giros, sendo que, para giros até 10 km os carteiros deslocam-se a pé ou de bicicleta, para giros entre 10km e 40km utilizam motociclos de baixa cilindrada (até 50cc - motociclos) e para giros a partir de 40km utilizam motociclos de cilindrada superior (até 125cc).

Estão em causa ainda, os encargos de viaturas automóveis com os gastos pelos mesmo meios suportados, ou ainda com compensações pelas deslocações em motociclos próprios (abonos quilométricos) aos carteiros pela distribuição de correio.

Sustenta a Requerente, em primeira linha, que todos esses encargos são integralmente imputáveis à exploração do serviço da distribuição postal no território nacional e se encontram justificados pelo seu carácter empresarial, havendo de entender-se que se encontra ilidida a presunção implícita de tributação autónoma que decorre do disposto nos n.ºs 3, 6 e 9 do artigo 88.º do Código relativamente a encargos com motociclos e viaturas ligeiras e despesas de compensação pela deslocação do trabalhador em viatura própria.

Conforme factos 52 e 53 da matéria dada como provada,

52-         Os referidos abonos quilométricos foram, (i) na parte correspondente aos limites previstos na Portaria n.º 1553-D/2008, de 31 de Dezembro, com as adaptações decorrentes do Decreto-Lei n.º 137/2010, de 28 de Dezembro e com as adaptações ainda, para motociclos, previstos na Circular n.º 19/93 (emitida pela Direção de Serviços do IRS), sujeitos a tributação autónoma nos termos do n.º 9 do artigo 88.º do Código do IRC e, no remanescente, sujeitos a tributação em sede de IRS na esfera dos colaboradores.

53-         Os referidos abonos quilométricos foram considerados rendimentos do trabalho dependente (tributados em IRS) na parte excedente a 0,36€/km, e no que respeita aos 40% de 0,36€/km foram sujeitos a tributação autónoma.

A redacção em vigor do art.º 88.º do CIRC à altura dos factos era a seguinte:

Artigo 88.º

Taxas de tributação autónoma

1 — As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.  (Redação da Lei  2/2014, de 16 de janeiro)

2 — A taxa referida no número anterior é elevada para 70 % nos casos em que tais despesas sejam efectuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, actividades de natureza comercial, industrial ou agrícola e ainda por sujeitos passivos que aufiram rendimentos enquadráveis no artigo 7.º 

3 — São tributados autonomamente os encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos que não beneficiem de isenções subjetivas e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias referidas na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, às seguintes taxas: (Redação da Lei n.º 82-C/2014, de 31 de dezembro, aplicável aos períodos de tributação que se iniciem em ou após 1 de janeiro de 2015)

a) 10 % no caso de viaturas com um custo de aquisição inferior a (euro) 25 000; (Redação da Lei 2/2014, de 16 de janeiro)

b) 27,5 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a (euro) 25 000 e inferior a (euro) 35 000; (Redação da Lei 2/2014, de 16 de janeiro)

c) 35 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a (euro) 35 000. (Redação da Lei 2/2014, de 16 de janeiro)

4 — (Revogado) (Redação da Lei 2/2014, de 16 de janeiro)

5 — Consideram-se encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, nomeadamente, depreciações, rendas ou alugueres, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização.

6 — Excluem-se do disposto no n.º 3 os encargos relacionados com: (Redação da Lei 2/2014, de 16 de janeiro)

a) Viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afetos à exploração de serviço público de transportes, destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo; e (Redação da Lei 2/2014, de 16 de janeiro)

b) Viaturas automóveis relativamente às quais tenha sido celebrado o acordo previsto no n.º 9) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS.  (Redação da Lei 2/2014, de 16 de janeiro).

7 - São tributados autonomamente à taxa de 10 % os encargos efetuados ou suportados relativos a despesas de representação, considerando-se como tal, nomeadamente, as despesas suportadas com receções, refeições, viagens, passeios e espetáculos oferecidos no País ou no estrangeiro a clientes ou fornecedores ou ainda a quaisquer outras pessoas ou entidades. (Redação da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro).

8 — São sujeitas ao regime dos n.os 1 ou 2, consoante os casos, sendo as taxas aplicáveis, respetivamente, 35 % ou 55 %, as despesas correspondentes a importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável a que se refere o n.º 1 do artigo 63.º-D da Lei Geral Tributária, ou cujo pagamento seja efetuado em contas abertas em instituições financeiras aí residentes ou domiciliadas, salvo se o sujeito passivo puder provar que correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um caráter anormal ou um montante exagerado. (Redação da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro).

9 — São ainda tributados autonomamente, à taxa de 5 %, os encargos efetuados ou suportados relativos a ajudas de custo e à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não faturados a clientes, escriturados a qualquer título, exceto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respetivo beneficiário. (Redação da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro)

10 — (Revogado).

11 — São tributados autonomamente, à taxa de 23 %, os lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção total ou parcial, abrangendo, neste caso, os rendimentos de capitais, quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. (Redação da Lei 2/2014, de 16 de janeiro).

12 — Ao montante do imposto determinado, de acordo com o disposto no número anterior, é deduzido o imposto que eventualmente tenha sido retido na fonte, não podendo nesse caso o imposto retido ser deduzido ao abrigo do n.º 2 do artigo 90.º.

13 — São tributados autonomamente, à taxa de 35 %:

a) Os gastos ou encargos relativos a indemnizações ou quaisquer compensações devidas não relacionadas com a concretização de objectivos de produtividade previamente definidos na relação contratual, quando se verifique a cessação de funções de gestor, administrador ou gerente, bem como os gastos relativos à parte que exceda o valor das remunerações que seriam auferidas pelo exercício daqueles cargos até ao final do contrato, quando se trate de rescisão de um contrato antes do termo, qualquer que seja a modalidade de pagamento, quer este seja efectuado directamente pelo sujeito passivo quer haja transferência das responsabilidades inerentes para uma outra entidade;

b) Os gastos ou encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estas representem uma parcela superior a 25 % da remuneração anual e possuam valor superior a (euro) 27 500, salvo se o seu pagamento estiver subordinado ao diferimento de uma parte não inferior a 50 % por um período mínimo de três anos e condicionado ao desempenho positivo da sociedade ao longo desse período;

14 — As taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC. (Redação da Lei 2/2014, de 16 de janeiro).

15 — As taxas de tributação autónoma previstas nos n.os 7, 9, 11 e 13, bem como o disposto no número anterior, não são aplicáveis aos sujeitos passivos a que se aplique o regime simplificado de determinação da matéria coletável. (Redação da Lei 2/2014, de 16 de janeiro).

16 — O disposto no presente artigo não é aplicável relativamente às despesas ou encargos de estabelecimento estável situado fora do território português e relativos à atividade exercida por seu intermédio. (Redação da Lei 2/2014, de 16 de janeiro).

17 - No caso de viaturas ligeiras de passageiros híbridas plug-in, as taxas referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 são, respetivamente, de 5 %, 10 % e 17,5 %. (Aditado pela Lei n.º 82-D/2014, de 31/12).

18 - No caso de viaturas ligeiras de passageiros movidas a GPL ou GNV, as taxas referidas nas alíneas ), b) e c) do n.º 3 são, respetivamente, de 7,5 %, 15 % e 27,5 %. (Aditado pela Lei n.º 82-D/2014, de 31/12).

19 - No caso de se verificar o incumprimento de qualquer das condições previstas na parte final da alínea b) do n.º 13, o montante correspondente à tributação autónoma que deveria ter sido liquidada é adicionado ao valor do IRC liquidado relativo ao período de tributação em que se verifique aquele incumprimento. (Aditado pela Lei n.º 7-A/2016 de 30 de março).

20 - Para efeitos do disposto no n.º 14, quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades estabelecido no artigo 69.º, é considerado o prejuízo fiscal apurado nos termos do artigo 70.º (Aditado pela Lei n.º 7-A/2016 de 30 de março; esta redação tem natureza interpretativa).

21 - A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado, ainda que essas deduções resultem de legislação especial. (Redação da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro; esta redação tem natureza interpretativa).

De todos estes podem interessar-nos os números 3,5,7,9,14,17,18, 20 e 21.

Podemos dividir o presente caso em dois grupos de despesas:

a)            As que são inerentes a veículos detidos por alguma forma pela Requerente, veículos sob a sua titularidade ou gestão, as previstas no número 5, nomeadamente, depreciações, rendas ou alugueres, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos;

b)           Compensações pela utilização de veículo próprio:

Cremos que a análise deverá ser efectuada através da exegese do princípio da tributação real das empresas, tipificado no art.º 104, n. 2, da Constituição da República Portuguesa, que dispõe:

- A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real.

Deixando de parte uma análise sobre o conceito de empresas, a verdade é que o princípio da igualdade tributária ou impositiva comporta duas vertentes: a da «generalidade» (todos estão obrigados ao pagamento de impostos) e a da «uniformidade» (a repartição dos impostos obedece ao mesmo critério para todos).

O princípio da capacidade contributiva que possui indelével ligação à capacidade de gastar, não é mais do que a repartição dos impostos segundo a capacidade de cada um.

Neste sentido, o princípio da capacidade contributiva opera tanto como condição ou pressuposto quanto como critério ou parâmetro da tributação.  Opera como pressuposto ou condição visto que impede que a tributação atinja uma riqueza ou um rendimento que não existe; vale como critério ou parâmetro porque determina que a exação do património dos contribuintes se faça de acordo com a sua "capacidade de gastar" (ability to pay). Ou seja, contribuintes com a mesma capacidade de gastar devem pagar os mesmos impostos (igualdade horizontal), e contribuintes com diferente capacidade de gastar devem pagar impostos diferentes (igualdade vertical). Outro dos corolários deste princípio é precisamente a tributação do rendimento líquido do contribuinte, de onde deflui uma exigência de dedução das despesas necessárias à angariação do próprio rendimento.

Traduz a ideia ou a concepção segundo a qual a incidência dos impostos deve ter como critério o património ou o rendimento dos contribuintes, segundo o grau de intensidade dela em função desses factores. Em contraponto a esta ideia ou concepção, perfila-se uma outra, a do princípio do benefício, segundo a qual, o critério daquela incidência deverá ser antes o da utilidade que os contribuintes auferem das despesas que o Estado realiza com a receita dos impostos que as financiam.

Podemos então enquadrar o princípio da tributação sobre o rendimento real, como incidir fundamentalmente sobre o rendimento real, como uma espécie do princípio da capacidade contributiva.    Com tratamento diferente, ou não, a verdade é que o legislador da Assembleia Constituinte sentiu necessidade de o consagrar expressamente.

No entanto, não podemos deixar de entender que o princípio não é de natureza absoluta, desde logo pela utilização do advérbio de modo, “fundamentalmente”.

Trata-se, no entanto, de um princípio cuja principal concretização é afastar a tributação das empresas pelo seu lucro normal, isto é, tributar o rendimento que estas poderiam ter obtido em condições normais de exploração, independentemente, pois, das condições concretas em que desenvolveram a sua atividade.

A consagração deste princípio nasceu por necessidade de contrariar a normatividade e a aplicação prática do Imposto sobre a Contribuição Industrial.

Na verdade, a tributação de empresas, nelas se abrangendo as empresas em nome individual, estava consagrada em três grupos: A, B e C.

Apenas as empresas sujeitas ao Grupo A, estavam obrigadas a possuir contabilidade regularmente organizada, a qual se identificava muito no seu resultado tributável contabilístico com o rendimento real da empresa, corrigido pelos gastos não aceites fiscalmente e pelos réditos também não relevados fiscalmente, que originavam, que o resultado fiscal fosse o efectivamente tributado.

As empresas que estavam sujeitas ao Grupo B da Contribuição Industrial, pagavam imposto sobre o lucro presumido.  Este lucro não era sequer passível de sindicância judicial, pois o cálculo da matéria colectável inseria-se dentro da discricionariedade técnica da Administração Fiscal. No caso das empresas sujeitas ao Grupo C, o lucro era calculado ainda de uma forma mais subjectiva, em função da actividade normal da empresa, não sendo também sindicáveis judicialmente.

A tributação do rendimento normal é em grande medida arbitrária, na medida em que os impostos a pagar estão previamente definidos, tendo em conta padrões médios de produção, sem consideração pelas características concretas de cada empresa, as oscilações conjunturais e os resultados da atividade produtiva.

A doutrina defende em muitos casos que, apesar de estar em causa um rendimento determinado com recurso a presunções, e o mesmo se poder situar já num plano entre rendimento real e rendimento normal, o mesmo é ainda um rendimento real. O pilar em que se funda tal posição reside no facto de o mesmo não assentar num rendimento pré-determinado, na medida em que não deixará de integrar elementos posteriormente apresentados pelo contribuinte, fazendo apelo à sua concreta situação, ao contrário do que se verifica no campo de tributação do rendimento normal.  

A evolução prática do princípio da tributação real não foi automática com a sua consagração constitucional, nem sequer passados quase 50 anos da mesma Lei fundamental o princípio é um princípio absoluto, bem pelo contrário.

Se entendermos por rendimento real apenas o rendimento verdadeiramente obtido pelos contribuintes, por rendimento apurado com base na contabilidade dos contribuintes o “rendimento real efetivo” ou o “rendimento apurado com base na contabilidade ou com base em elementos de teor contabilístico”, e por “rendimento real presumido”, como sendo a “avaliação indireta”, interessar-nos-ão as duas primeiras concepções.

Utilizando esta concepção jurídica, as despesas que estão em causa nos autos, e que se encontram elencadas no número 6, do art.º 88.º do CIRC, depreciações, rendas ou alugueres, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a posse ou utilização, dos veículos, motos e motociclos, são aceites como gastos, obviamente com os condicionalismos do art.º 23.º do CIRC, pelo que são relevantes para o apuramento do resultado real nas duas modalidades referidas.

Na verdade, o resultado contabilístico sem as correcções do quadro fiscal para apuramento da matéria colectável/lucro tributável, pode nem corresponder ao rendimento real de um determinado sujeito passivo. Basta atentar que existe um rigidez de aplicação das amortizações contabilísticas aos bens de investimento, mesmo que desenquadradas da real utilização e deperecimento do bem Activo.

Na nossa óptica, do que se trata é da aplicação de uma taxa, razão pela qual o art.º 88.º se insere sistematicamente  no Capítulo IV denominado Taxas. É uma taxa especial que incide sobre esse tipo de despesas, as quais concorrem para a determinação do lucro tributável, sendo aceites como gasto.

Independentemente da elevada fundamentação do Acórdão que se dá voto de vencido, quando se menciona, “o legislador que as despesas com viaturas ligeiras de passageiros implicam, por regra (o que se poderá ter por verdade), a diminuição parcialmente artificial ou ilegítima do rendimento do sujeito passivo que nelas incorre, por um lado, e a atribuição a terceiros de rendimentos (benefícios acessórios) não tributados.”, consideramos de forma inversa, com o devido respeito, que a aplicação de uma taxa autónoma sobre este tipo de despesas não constitua qualquer violação do princípio da capacidade contributiva e em especial da tributação pelo lucro real das empresas.

São prolíferas, se bem que utilizando técnicas legislativas criadas mais em função da necessidade de receitas do que da boa hermenêutica jurídica, em muitos casos já ultrapassada pela “direita”, as figuras jurídicas que vão mesmo além da permissão da dedutibilidade de certas despesas, as quais acrescem ao resultado contabilístico para se calcular a matéria colectável/lucro tributável. 

Como é sabido vigora no nosso regime jurídico-fiscal o modelo de dependência parcial, no qual o ponto de partida é o resultado contabilístico, sendo a ele aplicadas certas correções extra contabilísticas de modo a apurar o resultado fiscal.

Limitando a análise ao IRC, são desde logo o caso do conjunto de gastos que nos termos do art.º 23.º A, não são aceites como tal e por conseguinte devem ser acrescidos para efeitos de cálculo do lucro tributável no quadro 07 da Modelo 22 de IRC, as limitações à dedutibilidade fiscal de imparidades previstas nos artigos 28.º e segs, a impossibilidade de dedução como gasto das depreciações e amortizações previstas no art.º 34.º, as limitações da dedutibilidade de provisões previstas no art.º 39.º, os elementos de cálculo para efeitos da determinação da mais e menos valia previstos no art.º 46.º apesar do mecanismo previsto no art.º 64.º, os preços de transferência previstos no art.º 62.º, a limitação à dedutibilidade de gastos de financiamento prevista no art.º 67.º e muitos outros, todos mecanismos que se afastam da determinação do lucro real da actividade de qualquer sujeito passivo.

Excepções, que quase confirmam a regra da “abrogação por desuso” do princípio da tributação das empresas sobre o lucro real e que conforme conclui o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.° 84/2003, «a tributação das empresas pelo seu rendimento real constitui um principio ou uma regra que permite, excepcionalmente, desvios ou excepções.» Se o regime na sua globalidade analisado já ultrapassou a excepcionalidade é matéria que para o presente caso não releva no nosso magro entendimento.

Podíamos ainda ser levados a pensar que na esteira do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2016, de 13/4/2016, exarado no processo 465/2015, onde se lê:

3 - Como resulta do já anteriormente exposto, torna-se claro que a tributação autónoma não põe em causa o princípio da tributação das empresas segundo o rendimento real e o princípio da capacidade contributiva. Com efeito, como se fez notar, o IRC e a tributação autónoma são impostos distintos, com diferente base de incidência e sujeição a taxas específicas. O IRC incide sobre os rendimentos obtidos e os lucros diretamente imputáveis ao exercício de uma certa atividade económica, por referência ao período anual, e tributa, por conseguinte, o englobamento de todos os rendimentos obtidos no período tributação. Pelo contrário, na tributação autónoma em IRC - segundo a própria jurisprudência constitucional-, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, caracterizando-se como um facto tributário instantâneo que surge isolado no tempo e gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Por isso se entende que estamos perante um imposto de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos, cujo facto gerador se produz de modo sucessivo ao longo do tempo, gerando a obrigação de pagamento de imposto com caráter regular (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/2012).”, sendo a aplicação de uma taxa de tributação autónoma um facto tributário distinto, seria a caracterização como presunção inilidível em si mesmo a violação do princípio da tributação tendencialmente sobre o rendimento real. Mas ficaríamos então num raciocínio redondo – o facto tributário taxa autónoma*gasto, não viola o princípio porque está fora dele, mas já violaria o princípio porque está sujeito a ele.

A despesa, sendo um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação, facto único, não é mais do que em si mesmo o facto revelador da capacidade contributiva, a própria realização da despesa.

Mesmo que não seja um rendimento com recurso a presunções, a verdade é que a sua taxação não deixa de integrar elementos apresentados pelo contribuinte, fazendo apelo à sua concreta situação, pois deduz esse gasto.

Por estas razões não acompanhamos a decisão.

 

O Árbitro

(António Pragal Colaço)