Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 259/2014-T
Data da decisão: 2014-11-17  Selo  
Valor do pedido: € 4.455,42
Tema: Verba 28.1 da TGIS - Compropriedade
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Decisão Arbitral

 

Relatório

 

A..., NIF …, melhor identificada nos autos, formulou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) e da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, para declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação adicional de Imposto do Selo (relativa à verba 28.1 da correspondente Tabela Geral), respeitante ao ano de 2012, no montante de € 4.455,42 (quatro mil, quatrocentos e cinquenta e cinco euros e quarenta e dois cêntimos).

 

É Requerida a Administração Tributária e Aduaneira (AT).

 

A Requerente não procedeu à designação de Árbitro. Para o efeito, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa designou, então, o signatário, que expressamente aceitou essa nomeação. As partes foram devidamente notificadas desta, não tendo manifestado vontade de a recusar.

 

O tribunal arbitral foi assim constituído em 20 de Maio deste ano.

 

A AT apresentou tempestivamente a sua resposta, pugnando pela total improcedência do pedido, com consequente absolvição da Requerida.

 

As partes dispensaram a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT.

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é materialmente competente.

 

As partes têm personalidade jurídica e capacidade judiciária e são legítimas.

 

O processo não enferma de nulidades, nem foram suscitadas questões que possam obstar à apreciação do mérito da causa.

 

 

Objecto do litígio e matéria de facto

 

Em 2012, a Requerente era comproprietária, com uma quota-parte de 28/81, do prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia da … sob o art. U-..., ao qual correspondia um valor patrimonial tributário (VPT) total de € 1.288.890. Atenta a referida quota-parte de 28/81, a correspondente proporção do VPT ascendia, assim, ao valor de € 334.156,66.

 

O dito prédio corresponde a um edifício habitacional, em propriedade total, sem partes susceptíveis de utilização independente. 

 

A liquidação em causa decorre da aplicação da citada verba de Imposto de Selo (IS) ao dito prédio, ascendendo ao já referido montante de € 4.455,42, é datada de 21de Março de 2013 e foi devidamente notificada à Requerente.

 

A Requerente procedeu, em sucessivas prestações e nos termos da lei, ao tempestivo pagamento do correspondente IS, no aludido montante de € 4.455,42, peticionando agora o seu integral reembolso, acrescido ainda de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados sobre aquele montante, desde a data de pagamento até à data do efectivo reembolso.

 

Não há factos com relevo para a apreciação do mérito da causa que não se encontrem provados.

 

Os factos provados baseiam-se nos documentos fornecidos pelas partes, cuja correspondência à realidade não é controvertida.

 

 

Matéria de direito

 

Posição das partes

 

A questão dos autos corresponde à aplicação, nas situações de compropriedade, da nova tributação em IS incidente sobre prédios urbanos com afectação habitacional e VPT igual ou superior a um milhão de euros, introduzida em 2012 para reforço das medidas de controlo orçamental pelo lado da receita, num quadro de estado de necessidade financeira (ou económico-financeira, cfr. Sustentabilidade e Solidariedade em Tempos de Crise, Suzana Tavares da Silva, in Sustentabilidade Fiscal em Tempos de Crise, Coord. José Casalta Nabais e Suzana Tavares da Silva, pág.s 61 e ss).

 

Como é bem sabido, aquela nova tributação em IS tem suscitado fortes dúvidas e elevada contestação. Isto não apenas para casos pontuais da sua aplicação (e.g., propriedade vertical, terrenos para construção ou sua aplicação ao ano de 2012), como também em termos gerais, pela sua eventual inconstitucionalidade (ver Luís Menezes Leitão, Sobre a Tributação em Imposto de Selo dos Imóveis de Luxo (verba 28.1 TGIS), in Arbitragem Tributária nº1, pág.s 44 e ss).

 

Ora, a Requerente vem, precisamente, contestar a aplicação da dita tributação decorrente da aplicação a nova verba 28.1 da TGIS aos prédios urbanos em regime de compropriedade, sempre que a quota-parte do VPT correspondente ao comproprietário seja inferior ao citado valor de um milhão de euros. Caso assim não se entenda, a Requerente pugna ainda pela inconstitucionalidade da norma, em geral e, em particular, na sua aplicação ao ano de 2012.

 

Com efeito, sustenta a Requerente não ser proprietária de um prédio com VPT igual ou superior ao referido montante, mas meramente comproprietária de um prédio com VPT superior a esse valor, mas no qual detém apenas uma quota-parte (28/81) a que corresponde um VPT de € 334.156,66, inferior portanto àquele limite mínimo, razão pela qual a liquidação em crise padece de vício de violação de lei, o que a torna anulável.

 

Ainda que assim não fosse, a Requerente entende que a norma em causa é inconstitucional por violação do princípio da igualdade (art. 13º da Constituição da República Portuguesa – CRP).

 

E entende ainda que, mesmo que se aceite a constitucionalidade da nova tributação, sempre o seu regime transitório para o ano de 2012 padeceria de inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade (que a Requerente entende ter consagração constitucional e encontrar-se positivado em vários preceitos da CRP, dando como exemplos os seus art.s 18º, 19º e 266º).

 

A Requerida contesta aquele entendimento, sustentando a manutenção da liquidação. Em abono da sua tese salienta, em síntese, que a compropriedade corresponde a uma contitularidade em direitos reais, nos termos da qual os comproprietários exercem, no seu conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular (art. 1405º nº 1 do Código Civil). Este exercício em conjunto de direitos, para a Requerida, é incompatível com a pretensão da Requerente, pois que o VPT a considerar para efeitos da aplicação da referida verba 28.1 da TGIS é o VPT do prédio e não a quota-parte do seu VPT que corresponda ao concreto direito do comproprietário. Por outras palavras, a AT entende que a verificação do limite (mínimo) de um milhão de euros deve ser aferido em função do VPT total do prédio objecto do direito de compropriedade e não em função do valor da quota-parte de cada comproprietário.

 

Em defesa deste entendimento, a Requerida refere ainda que as quotas do comproprietário não podem ser equiparadas a partes de prédios susceptíveis de utilização independente, que cada comproprietário pode exercer, em conjunto com os demais, o direito de propriedade sobre a totalidade do prédio e que o colectivo de comproprietários é responsável pelo pagamento do imposto nos termos do art. 21º, nº1, da Lei Geral Tributária (LGT).

 

            Síntese das questões controvertidas

 

Em síntese, no caso vertente, são assim três as questões de direito controvertidas:

 

1) saber se a sujeição a IS, nos termos da verba n.º 28.1 da TGIS, é determinada pela quota parte do VPT do prédio que proporcionalmente corresponda a cada uma das quotas partes do prédio em compropriedade, ou se, pelo contrário e sem mais, é determinada pelo VPT total desse mesmo prédio;

 

2) saber se, caso assim disponha, aquela verba da TGIS é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade;

 

3) saber, por fim, superados que sejam os dois testes precedentes, se o regime transitório é inconstitucional, agora por violação do princípio da proporcionalidade.

 

            Resenha legislativa

 

Para maior facilidade expositiva, entende-se ser útil proceder agora à transcrição das disposições legais essenciais da Lei nº 55-A/2012, de 29 de Outubro, a qual de entre outros, alterou o Código do Imposto do Selo, fazendo-o nos seguintes termos:

 

Artigo 3.º

Alteração ao Código do Imposto do Selo

Os artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º, 22.º, 23.º, 44.º, 46.º, 49.º e 67.º do Código do Imposto do Selo, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro, passam a ter a seguinte redacção:

(…)

Artigo 2.º

[...]

1 - ...

2 - ...

3 - ...

4 - Nas situações previstas na verba n.º 28 da Tabela Geral, são sujeitos passivos do imposto os referidos no artigo 8.º do CIMI.

Artigo 23.º

[...]

1 - ...

2 - ...

3 - ...

4 - ...

5 - ...

6 - ...

7 - Tratando-se do imposto devido pelas situações previstas na verba n.º 28 da Tabela Geral, o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada prédio urbano, pelos serviços centrais da Autoridade Tributária e Aduaneira, aplicando-se, com as necessárias adaptações, as regras contidas no CIMI.

Artigo 67.º

[...]

1 - (Anterior corpo do artigo.)

2 - Às matérias não reguladas no presente Código respeitantes à verba n.º 28 da Tabela Geral aplica-se, subsidiariamente, o disposto no CIMI.»

Artigo 4.º

Aditamento à Tabela Geral do Imposto do Selo

É aditada à Tabela Geral do Imposto do Selo, anexa ao Código do Imposto do Selo, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro, a verba n.º 28, com a seguinte redacção:

 «28 - Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a (euro) 1 000 000 - sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

28.1 - Por prédio com afectação habitacional - 1 %;

28.2 - Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável.

Artigo 6.º

Disposições transitórias

1 - Em 2012, devem ser observadas as seguintes regras por referência à liquidação do imposto do selo previsto na verba n.º 28 da respectiva Tabela Geral:

a) O facto tributário verifica-se no dia 31 de Outubro de 2012;

b) O sujeito passivo do imposto é o mencionado no n.º 4 do artigo 2.º do Código do Imposto do Selo na data referida na alínea anterior;

c) O valor patrimonial tributário a utilizar na liquidação do imposto corresponde ao que resulta das regras previstas no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis por referência ao ano de 2011;

d) A liquidação do imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira deve ser efectuada até ao final do mês de Novembro de 2012;

e) O imposto deverá ser pago, numa única prestação, pelos sujeitos passivos até ao dia 20 de Dezembro de 2012;

f) As taxas aplicáveis são as seguintes:

i) Prédios com afectação habitacional avaliados nos termos do Código do IMI: 0,5 %;

ii) Prédios com afectação habitacional ainda não avaliados nos termos do Código do IMI: 0,8 %;

iii) Prédios urbanos quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças: 7,5 %.

2 - Em 2013, a liquidação do imposto do selo previsto na verba n.º 28 da respectiva Tabela Geral deve incidir sobre o mesmo valor patrimonial tributário utilizado para efeitos de liquidação de imposto municipal sobre imóveis a efectuar nesse ano.

3 - A não entrega, total ou parcial, no prazo indicado, das quantias liquidadas a título de imposto do selo constitui infracção tributária, punida nos termos da lei.

Artigo 7.º

Entrada em vigor e produção de efeitos

1 - A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

2 - As alterações ao artigo 72.º do Código do IRS e ao artigo 89.º-A da Lei Geral Tributária produzem efeitos desde 1 de Janeiro de 2012.

 

Compropriedade – interpretação literal

 

A simples leitura da verba aditada à TGIS permite concluir que o sujeito passivo da nova tributação tanto poderá consistir no proprietário, como no comproprietário de um prédio urbano com determinadas características (respectivamente, pressupostos subjectivo e material, no sentido explicitado por Manuel Pires e Rita Calçada Pires, a propósito do IMI, in Direito Fiscal, págs. 735 e ss, 5º ed., 2012, Almedina), consistindo o valor do VPT do prédio objecto do direito de propriedade uma dessas características relevantes, erigido precisamente a um dos pressupostos da tributação. A questão central reside, assim, em determinar qual o valor do VPT mínimo exigido para despoletar a incidência do IS sobre prédios em compropriedade.

Nos termos do CIMI, o VPT do imóvel não é afectado pelas situações de compropriedade. Nestes casos, o VPT do prédio mantém-se um único, correspondente ao valor total do prédio, sendo posteriormente repartido entre os comproprietários, na proporção dos respectivos direitos (ou quotas-partes do direito de propriedade).

Ora, este facto parece apontar no sentido pugnado pela Requerida, inequivocamente mais consentâneo com a redacção da norma em causa (“… prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a (euro) 1 000 000 …”).

Com efeito, uma interpretação exclusivamente baseada no elemento literal da norma, levaria a concluir ser o VPT do prédio o valor de referência para aplicação da nova verba do IS, pelo que a respectiva taxa seria aplicada sobre a quota-parte do VPT do prédio decorrente do direito de cada comproprietário, à semelhança do que ocorre no âmbito do CIMI. Por outras palavras, o critério legalmente fixado para sujeição a IS corresponderia ao VPT do prédio e não à quota-parte deste, correspondente ao direito de cada comproprietário.

Nestes termos, a verba 28.1 da TGIS incidiria sobre os prédios urbanos com VPT igual ou superior a €1.000.000,00, o que se mostraria verificado no caso em apreço, independentemente de, em casos de compropriedade, a quota-parte correspondente ao concreto comproprietário poder ser inferior ao referido limite mínimo (como igualmente sucede no presente caso), pois que o pressuposto previsto na lei (VPT do prédio) mostrar-se-ia já verificado. A quota-parte correspondente ao direito do comproprietário seria assim relevante, apenas, para apurar o montante concreto da tributação devida pelo sujeito passivo, porquanto a aplicação ou não da verba 28.1 estaria já determinada, ou excluída, pelo VPT total do prédio.

Aliás, a esta conclusão se chegou no processo 4/2014 do CAAD, na qual se concluiu que “A lei estabelece expressamente, na parte final da verba 28 da TGIS, que o Imposto de Selo incide  “sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI.” (sublinhado nosso). Para efeitos de IMI o VPT a ter em conta é o VPT global do imóvel, e não a parte do VPT que corresponde a cada um dos comproprietários. Idêntica conclusão haverá que extrair-se para efeitos da verba 28.1 da TGIS. Assim conclui-se se que a matéria colectável que serve de base à norma de incidência da verba 28.1 da TGIS é o valor patrimonial tributário determinado nos termos do CIMI para cada prédio, sendo que cada comproprietário é responsável pelo pagamento na proporção da quota-parte que detém sobre o imóvel. Por outro lado, não havendo utilização independente de parte ou fracções, é irrelevante que o prédio seja detido em compropriedade para efeitos do preenchimento da norma de incidência da tabela 28 da TGIS. O que determina a sujeição ao imposto é a existência de um prédio que caiba na definição do CIMI, avaliado nos termos deste Código com VPT superior a um milhão de euros. Um diferente entendimento faria com que prédios que manifestamente pudessem ser considerados luxuosos e evidenciadores de uma capacidade contributiva excepcional detidos em compropriedade ficassem fora da tributação em imposto de selo, em manifesta desigualdade com idênticos prédios detidos apenas por um proprietário.”

Aprofundando um pouco mais, não se pode dizer que o elemento literal seja dissonante da intenção do legislador. Na verdade, da intervenção do Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais na Assembleia da República, por ocasião da apresentação e discussão da proposta relativa à lei orçamental, decorre a vontade de fazer incidir a nova tributação sobre (todos) os prédios com afectação habitacional e com VPT superior a determinado valor. Aí se afirmou que num quadro de “medidas que reforçam efectivamente uma justa e equitativa distribuição do esforço de ajustamento por um conjunto alargado e abrangente de sectores da sociedade portuguesa”, é criada “uma taxa especial sobre os prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor”, salientando-se ser “a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação”, a qual “será de 0,5% a 0,8% em 2012, e de 1%, em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros”, pelo que ”o esforço fiscal exigido a estes proprietários será significativamente aumentado em 2012 e 2013.

Ora, desta declaração decorre precisamente a intenção de discriminar negativamente os proprietários de prédios destinados a habitação com VPT superior a determinado montante, por esse direito de propriedade traduzir uma acrescida capacidade contributiva, justificadora de um contributo adicional para o esforço de equilíbrio orçamental. E como se lê no Acórdão proferido no processo n.º 50/2013-T do CAAD, “O legislador ao introduzir esta inovação legislativa considerou como elemento determinante da capacidade contributiva os prédios urbanos, com afectação habitacional,  de elevado valor (de luxo), mais rigorosamente, de valor igual ou superior a €1.000.000,00, sobre os quais passou a incidir uma taxa especial de imposto de selo, pretendendo introduzir um princípio de tributação sobre a riqueza exteriorizada na propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos de luxo com afectação habitacional. Por isso, o critério foi de aplicação da nova taxa aos prédios urbanos com afectação habitacional, cujo VPT seja igual ou superior a €1.000.000,00”, invocando para o efeito “os princípios da equidade social e da justiça fiscal, chamando a contribuir de uma forma mais intensa os titulares de propriedades de elevado valor destinadas a habitação, fazendo incidir a nova taxa especial sobre as “casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros””. Ou, como se refere na decisão tomada no processo 4/2014-T igualmente do CAAD, “o legislador entendeu que o valor de um milhão de euros, quando imputado a uma habitação, traduz uma capacidade contributiva acima da média e, enquanto tal, susceptível de determinar um contributo especial para garantir a justa repartição do esforço fiscal.”

Mas é precisamente esta intenção de, num momento de especial emergência financeira, identificar exteriorizações de capacidades contributivas particularmente acrescidas, conduzindo pois a forte discriminação negativa, que nos deve fazer duvidar da bondade de uma interpretação meramente literal da norma e dos riscos constitucionais que a mesma inelutavelmente comportaria.

 

            Interpretação conforme à Constituição – o princípio da igualdade

A incidência da nova taxa especial sobre as “casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros”, como forma de concretização dos “princípios da equidade social e da justiça fiscal, chamando a contribuir de uma forma mais intensa os titulares de propriedades de elevado valor destinadas a habitação”, conduz efectivamente à necessidade de testar a interpretação precedente à luz da real intenção do legislador e dos princípios constitucionais. É que, manifestamente, é muito diverso ser proprietário de um prédio luxuoso ou de uma quota-parte do mesmo. As capacidades contributivas exteriorizadas nas duas situações são necessariamente diversas, em prejuízo da segunda hipótese, como é óbvio. Ainda que a diversidade que se pretende referir seja manifesta, importa recorrer a um exemplo para bem ilustrar tal diversidade: o proprietário de um prédio com determinado valor de mercado (entendendo-se, pois, o VPT como aproximação ao valor de mercado – cfr. José Maria Fernandes Pires, Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, pág. 15, 2º ed. 2012, Almedina), exterioriza uma capacidade contributiva dez vezes superior ao de um comproprietário de um prédio equivalente, com o mesmo valor de mercado e no qual detenha uma quota ideal de dez por cento. E este comproprietário, por sua vez, possui uma capacidade contributiva idêntica, se não menor, à do proprietário de um prédio com um valor de mercado de dez por cento do prédio inicialmente referido. Isto porque prédios luxuosos não evidenciam, necessariamente, uma capacidade contributiva excepcional, caso sejam apenas detidos em compropriedade. Como é evidente, essa exteriorização de acrescida capacidade contributiva ficará dependente do efeito combinado do valor do imóvel e da concreta proporção do direito do seu comproprietário. De outro modo, teríamos uma manifesta desigualdade dos comproprietários face a proprietários de prédios com valor equivalente ao valor da quota-parte daqueles comproprietários, caso este valor seja inferior a um milhão de euros.

Ficam assim patentes as dúvidas e limitações que uma leitura literal coloca sobre a compatibilização da norma, se lida naquele sentido, com o princípio da igualdade, ou equidade na terminologia de Glória Teixeira, quer no sentido de equidade horizontal, quer no sentido de equidade vertical (Glória Teixeira, Manual de Direito Fiscal, pág. 56, 2º ed., Almedina). E conforme bem se refere no Acórdão 117/2013 T do CAAD, "a interpretação exclusivamente baseada no teor literal .... não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada». Sendo que para se verificar uma correspondência entre a interpretação e a letra da lei bastará «um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil) o que só impedirá que se adoptem interpretações que não possam em absoluto compaginar-se com a letra da lei, mesmo reconhecendo nela imperfeição na expressão da intenção legislativa. Por isso, a letra da lei não é obstáculo a que se faça interpretação declarativa, que explicite o alcance do teor literal, nem mesmo interpretação extensiva, quando se possa concluir que o legislador disse menos do que o que, em coerência, pretenderia dizer, isto é, quando disse imperfeitamente o que pretendia dizer.”

 

Ora, no caso vertente, impõe-se pois uma interpretação declarativa, ou eventualmente restritiva, que a compagine com o princípio da igualdade, pois a norma visa chamar a contribuir apenas aqueles que tenham maior capacidade para o fazer, exteriorizada de determinado modo. Uma tal discriminação negativa precisa, portanto, de ancorar-se em sólida exteriorização de uma excepcional capacidade contributiva, não podendo admitir-se uma pretensão tributária sobre quem não a exteriorize, sobretudo se é possível inexistir tributação em casos de equivalente capacidade contributiva.

 

Ora, o sentido útil da norma, para situações como as do caso concreto, terá de ser procurado tendo esta dificuldade bem presente e ainda o facto do imposto no qual a nova tributação se insere não poder ajudar à interpretação, pois o IS corresponde a um imposto que “incide sobre uma multiplicidade heterogénea de factos ou atos … sem um traço comum que lhes confira identidade”, facto agravado pela Reforma da Tributação do Património de 2003/20014, tornando ainda mais complexa a sua classificação (cfr. José Maria Fernandes Pires, Op. Cit., pág. 422).

 

Essa ajuda interpretativa deverá ser encontrada, precisamente, no princípio da igualdade tributária, implicitamente integrado no princípio constitucional da igualdade (art. 13º da CRP) o qual, como bem refere Sérgio Vasques, é mais do que um mero limite negativo e impõe algo mais do que a mera proibição do arbítrio, postulando antes uma repartição dos impostos de acordo com o critério da capacidade contributiva (cfr. art. 4º da LGT) – “o critério material de igualdade adequado aos impostos” – postulando que os impostos incidam “sobre a riqueza … de um modo que reflicta a força económica real do contribuinte”, razão pela qual “o imposto só deve começar onde comece esta força económica”, devendo “terminar aí onde essa força económica termine também, operando a capacidade contributiva como seu limite” (cfr. Manual de Direito Fiscal, págs. 249 e ss, 2011, Almedina).

 

Considerando esse limite à tributação (onde não se verifique “força económica”), a conclusão de que não poderá existir tributação sempre que o património imobiliário, visto unitariamente, seja inferior ao referido limite de um milhão de euros, impõe-se inelutavelmente ao intérprete. Mais, fica claro que não poderia o legislador ter pretendido outra opção, ainda que tenha expresso o seu pensamento de modo inapropriado, que uma qualquer outra hipótese interpretativa não seria compaginável com o sistema no seu todo e que esta leitura é fundamental para manter, pelo menos por este motivo, a conformidade da norma com princípios constitucionais fundamentais à sua validade na ordem jurídica, como o são os princípios da igualdade e da capacidade contributiva.

 

E se dúvidas persistissem, sempre se deveria fazer uso da interpretação económica do conceito, postulada pelo questionado nº 3 do art. 11º da LGT, o qual se entende apontar no sentido aqui sustentado (a este propósito cfr. Impostos, Teoria Geral, Américo Fernando Brás Carlos, pág. 196, 2014, 4º ed. Almedina), pois que o sentido da norma é o de exigir um contributo adicional para o esforço de controlo do défice orçamental, pelo lado da receita, aos titulares de prédios destinados a habitação com valor igual ou superior a um milhão de euros, requisito que, economicamente, tendo presente o princípio da substância sobre a forma, a Requerida não preenche.

 

Do exposto resulta claro que uma interpretação meramente literal da norma não seria constitucionalmente aceitável, reclamando portanto uma interpretação conforme à Constituição, de modo a acomodar na concretização da nova verba 28.1 da TGIS o pleno cumprimento dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, aos quais o legislador fiscal está subordinado.

Ora, a “interpretação constitucionalmente conforme”, corresponde a um “método que, entre os vários resultados possíveis da interpretação de um texto legislativo, escolhe aquele que pode considerar-se compatível com os princípios constitucionalmente consagrados”, sendo isso precisamente o que “acontecerá sempre que de uma ou outra interpretação possa resultar uma lesão do princípio da igualdade, potencialmente violado por uma determinada aplicação do texto legal” (cf. J. L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3º Edição, Coimbra Editora, págs. 147 e ss), tal como inelutavelmente ocorreria no caso vertente, caso fosse seguida a interpretação sustentada pela Requerida.

E porque o legislador fiscal está subordinado aos princípios da igualdade (art. 13º da CRP) e da capacidade contributiva (CRP e art. 5º, nº 2 da LGT), os quais postulam que o legislador terá de ancorar a tributação em elementos económicos razoáveis e não arbitrários, susceptíveis de justificar a pretensão tributária numa capacidade contributiva concretamente exteriorizada pelo sujeito passivo, há que procurar no texto da norma uma leitura que dê cumprimento àqueles princípios.

 

Neste caso a capacidade contributiva acrescida vislumbrada pelo legislador corresponde à detenção de património imobiliário, destinado a habitação, de valor particularmente elevado. Ora, o comproprietário não detém, ou não detém necessariamente, um património imobiliário destinado à habitação de valor particularmente elevado, sempre que seja comproprietário de um imóvel destinado a habitação com VPT igual ou superior a um milhão de euros. Basta, como se viu, que a sua quota parte nesse direito seja tal que o valor patrimonial tributário que proporcionalmente corresponda ao seu direito não atinja esse limiar mínimo de relevância tributária, de exteriorização mínima de uma acrescida capacidade contributiva, tal como previsto pelo legislador.

Não pode pois proceder a tese sustentada pela Requerida, devendo antes aderir-se à interpretação pugnada pela Requerente, impondo-se a conclusão que o acto tributário enferma de erro de direito nos seus pressupostos, padecendo pois de vício de violação de lei, no caso a nova verba 28.1 da TGIS.

 

Inconstitucionalidade da norma

 

Fica assim prejudicada a análise da eventual inconstitucionalidade da norma com os demais fundamentos invocados.

 

          

Juros indemnizatórios

 

A Requerente peticiona ainda juros indemnizatórios, os quais são devidos sempre que exista erro imputável aos serviços.

Como se refere no Acórdão proferido no Processo 30/2014-T, “Na autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo artigo 124º da Lei nº 3-B/2010, refere-se que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”. Embora as alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 2º do RJAT utilizem a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD e não façam referência a decisões constitutivas (anulatórias) e condenatórias, deverá entender-se, em sintonia com a referida autorização legislativa, que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação são atribuídos aos tribunais tributários em relação aos actos cuja apreciação de legalidade se insere nas suas competências.” Pelo que se conclui que em processo arbitral pode ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios, acrescentando que o artigo 43º da LGT “não faz senão estabelecer um meio expedito e, por assim dizer, automático, de indemnizar o lesado. Independentemente de qualquer alegação e prova dos danos sofridos, ele tem direito à indemnização ali estabelecida, traduzida em juros indemnizatórios nos casos incluídos na previsão (…)” - Acórdão do STA de 2-11-2006, processo 604/06, disponível in www.dgsi.pt.

Por outro lado, a Jurisprudência tem defendido uma posição muito abrangente a respeito do erro imputável aos serviços, ao entender que “em geral, pode afirmar-se que o erro imputável aos serviços, que operaram a liquidação, entendidos estes num sentido global, fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou impugnação dessa mesma liquidação (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 31 de Outubro de 2001, Processo n.º 26167), pelo que “a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (artigos 266.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 55.º da Lei Geral Tributária), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12 de Dezembro de 2001, Processo n.º 26233), como bem se refere no Acórdão218/2103 -T do CAAD, pelo que se verificará erro imputável aos serviços sempre que a liquidação não subsista.

Acresce ainda, no caso concreto, que sempre a AT deveria ter procedido a uma interpretação conforme à Constituição, tal como sustentado por André Salgado de Matos, citado por J. L. Saldanha Sanches, in Op. Cit., pág. 150.

Apreciando, pois, o pedido de juros indemnizatórios, é manifesto que a ilegalidade do acto de liquidação é imputável à AT, pelo que tem a Requerente direito aos peticionados juros indemnizatórios, nos termos do art. 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, desde a data do indevido pagamento, até ao integral reembolso do montante pago, à taxa legal.

 

Dispositivo

De harmonia com o exposto, este Tribunal Singular decide:

a)      Julgar procedente o pedido e, em consequência, anular o acto de liquidação com fundamento em violação de lei;

b)      Julgar procedente o pedido de indemnização formulado, condenando a Autoridade Tributária e Aduaneira ao reembolso do imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios calculados à taxa e nos demais termos previstos nos artigos 43º, da LGT e 61º, do CPPT.

 

Valor do processo

De harmonia com o disposto no art. 306.º, nºs 1 e 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 4.455,42.

 

Custas

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

 

Lisboa, 17-11-2014

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, regendo-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, com versos em branco e revisto pelo árbitro signatário.

 

 

 

O árbitro

 

(Jaime Carvalho Esteves)