Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 164/2023-T
Data da decisão: 2023-10-02  IVA  
Valor do pedido: € 33.384,16
Tema: IVA – Liquidações adicionais- Falta de fundamentação
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SUMÁRIO

 

De acordo com o disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT[1], o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da AT[2] ou dos contribuintes, recai sobre quem os invoque. Na situação de apreciação da legalidade de um ato de liquidação oficiosa praticado pela AT, corrigindo anterior liquidação efetuada com base na declaração do sujeito passivo, incumbe a esta o ónus da prova dos pressupostos legais da correção que operou.

Quando não há suporte factual para contrariar os valores declarados e contabilizados pelo sujeito passivo, permanece a presunção legal de que gozam nos termos do nº 1 do artigo 75º da LGT, as liquidações praticadas pelo sujeito passivo e consequentemente, no caso concreto, as liquidações adicionais de IVA[3] praticadas pela AT são insubsistentes por falta de apoio legal.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I - RELATÓRIO

 

A..., LDA., contribuinte fiscal n.º ..., com domicílio fiscal na Rua ..., n.º ..., ...-... ..., veio, nos termos do artigo 10.º e seguintes do RJAT[4] e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a AT, com vista à apreciação da legalidade da decisão de indeferimento de reclamação graciosa dirigida contra as liquidações de IVA 2017.06T – 2020 ... no montante de € 3.522,48, 2017.06T – 2021 ... no montante de € 10.143,24, 2017.09T – 2020 ... no montante de € 77,44, 2017.09T – 2021 ... no montante de € 529,19, 2017.12T – 2020 ... no montante de € 18.293,35 e 2018.12T – 2021..., no montante de € 818,46, tudo no valor global de € 33.384,16.

O pedido de constituição do Tribunal foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD[5] em 16/03/2023 e automaticamente notificado à AT na mesma data não tendo a Requerente nomeado árbitro.

Em 08-05-2023, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro do Tribunal Arbitral singular o signatário, Dr. Arlindo José Francisco que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes, devidamente notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do disposto no artigo 11.º, nº 1, alíneas a) e b) do RJAT, conjugado com os artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico, pelo que em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 26/05/2023, tendo na mesma data dado cumprimento ao disposto no artigo 17º do RJAT.

Para suportar o seu pedido, a Requerente alega, em síntese, que as liquidações quer de IVA quer de juros não se encontram suficientemente fundamentadas, sendo tal fundamentação obscura, impercetível e feita por remissão sem o conhecimento exigível ao sujeito passivo, procurando apresentar uma justificação para as faturas que não foram aceites pelos serviços da AT, quanto ao ano de 2017 e relativamente à liquidação referente ao 4.º trimestre de 2018 a Requerente diz desconhecer o seu fundamento, dado que nunca foi inspecionada relativamente a esse período, nem lhe foi transmitido qualquer procedimento referente a tal período, tudo como melhor consta na petição que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais, terminando a solicitar a procedência na totalidade do pedido de pronúncia arbitral e a consequente anulação dos atos de liquidação de imposto de IVA dos anos de 2017 e 2018 e respetivos juros, aqui colocados em crise, com as necessárias consequências legais.

Em 28 de junho de 2023, a Requerida AT apresentou a sua Resposta, na qual, em síntese, refere que os factos são os constantes no Processo Administrativo para o qual remete, impugnando todos os restantes alegados pela Requerente que estejam em contradição com aqueles, uma vez que não apresenta qualquer prova que os imputs, cujo direito à dedução se arroga, estejam relacionados com qualquer output da atividade desenvolvida, pelo que, não deve ser dado como provado que, as despesas em apreço mostrem qualquer relação com a atividade da Requerente.

 

Refere ainda que na petição não se aponta qualquer ilegalidade à decisão de indeferimento da reclamação graciosa, nem tão pouco requer a sua anulação ou vem reiterar os fundamentos aduzidos nesse âmbito, vindo somente questionar as correções com fundamento em dedução indevida de imposto, não apontando qualquer vício de falta de fundamentação relativamente aos períodos em questão, não alega qualquer causa de pedir, conducente à anulação da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, porquanto a falta de fundamentação foi a única alegação da Requerente ali apreciada pela Requerida e, o seu indeferimento só se prendeu com a análise de tal questão.

Defende-se ainda por exceção, invocando a caducidade de ação, impropriedade do meio usado e da incompetência do Tribunal, da falta da causa de pedir e da falta de objeto do pedido de anulação da liquidação referente ao 4.º período de 2018, tudo como melhor consta na Resposta que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais terminando pedindo a procedência das exceções e ser proferida uma decisão que determine a improcedência do pedido de pronuncia arbitral, por não provado, absolvendo a Requerida do pedido com as necessárias consequências legais.

 

II- SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

 As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.

Após a junção da resposta da AT, o Tribunal proferiu o seguinte Despacho” 1 - Apresentada a resposta da Requerida AT, na qual se refere que os factos são os constantes no Processo Administrativo e no Relatório da Inspeção para os quais remete, sem que Tribunal os consiga visualizar no SGP, devendo ser notificada a Requerida para, no prazo de 10 dias, os juntar aos autos.

2 – Apesar de estar requerida prova testemunhal, tendo em conta que todo o mecanismo do IVA tem como suporte a emissão de documentos que sustentam as diferentes operações no seu apuramento, não se vê necessidade de proceder à requerida inquirição, ficando, deste modo, dispensada a reunião a que alude o artigo 18º do RJAT.

3 - Faculta-se às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem, alegações escritas em simultâneo até 15 de setembro de 2023.

4 - A decisão final será proferida até ao termo do prazo fixado no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT.

5 - A Requerente deverá cumprir até 15 de setembro de 2023, com o disposto no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (pagamento antes da decisão e pela forma regulamentar, do remanescente da taxa de justiça).

Notifique.”

Em 12/09/2023 veio a Requerente solicitar a prorrogação do prazo para a produção das alegações, dado a Requerida ainda não ter junto os documentos solicitados no Despacho anterior, pedido que foi indeferido nos termos seguintes: “Veio a Requerente pedir a prorrogação do prazo para a produção das alegações, tendo em conta que as mesmas são facultativas e simultâneas  não se vê necessidade de alargar o prazo para a sua produção, pelo que o pedido vai indeferido.

Notifique”.

O Processo Administrativo foi junto aos autos pela Requerida em 13/09/2023, as alegações da Requerente foram apresentadas em 14/09/2023 e as da Requerida em 18/09/2023 que no essencial mantiveram as posições já assumidas na petição e na resposta.

O Tribunal é competente o processo não padece de nulidades cumpre decidir.

 

 

 

III- FUNDAMENTAÇÃO

 

 

  1. Questões a Dirimir

 

 

  1. Se o pedido de pronuncia arbitral deverá ser declarado procedente, revogando-se o ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa com a consequente anulação das liquidações de IVA 2017.06T – 2020 ... no montante de € 3.522,48, 2017.06T – 2021  ... no montante de € 10.143,24, 2017.09T – 2020 ... no montante de € 77,44, 2017.09T – 2021 ... no montante de € 529,19, 2017.12T – 2020 ... no montante de € 18.293,35 e 2018.12T – 2021 ..., no montante de € 818,46, tudo no valor global de € 33.384,16, por violarem a Lei, concretamente, por falta de fundamentação legal a suportá-las; ou
  2.  Se pelo contrário o indeferimento expresso da reclamação graciosa deverá ser mantido e consequentemente as referidas liquidações deverão permanecer na ordem jurídica por estarem em conformidade com a Lei e o pedido de pronúncia ser declarado improcedente.

 

 

  1. Matéria de facto

       

        2.1. Factos provados

 

         Consideram-se provados os seguintes factos: 

 

 

  1. A Requerente é uma sociedade comercial cuja atividade principal consistia, nos anos de 2017 e de 2018, em “Atividades de Contabilidade e Auditoria, Consultoria Fiscal” e diversas atividades secundárias;
  2. As liquidações aqui em causa tiveram origem numa ação externa da Inspeção Tributária, conforme Ordem de Serviço OI.., que visava confirmar o integral cumprimento das obrigações contabilísticas e tributárias referentes aos anos de 2016 e 2017 e se os resultados fiscais apurados correspondiam à situação tributária da empresa;
  3. A Requerente cumpriu as suas obrigações declarativas relativamente aos referidos anos e não tinha dívidas fiscais;
  4. A Requerente foi notificada em 28/09/2020 para remeter aos serviços inspetivos vários documentos contabilísticos, tendo remetidos alguns ao mesmo tempo que esclarecia que experimentava dificuldades informáticas relativamente a alguns documentos, alegadamente por erros de backup nas cópias de transição, resultantes da transferência, em 2019, da base de dados do servidor antigo para um servidor novo;
  5. A Requerente foi notificada em 10/11/2020, por via postal sob registo, do projeto de Relatório da Inspeção Tributária e apesar de ter recebido a aludida notificação, optou por não exercer o direito de audição prévia, pelo que foi elaborado o Relatório definitivo;
  6. As liquidações de IVA, aqui em crise, 2017.06T – 2020 ... – € 3.522,48, 2017.06T – 2021...– € 10.143,24, 2017.09T – 2020 ... – € 77,44, 2017.09T – 2021...– € 529,19, 2017.12T – 2020 ... – € 18.293,35, 2018.12T – 2021 ...– € 818,46, resultam das correções às declarações emitidas oportunamente pelo SP[6] e são consequência do respetivo relatório, com os fundamentos nele constante, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais;
  7. As liquidações 2017.06T – 2020 ... 2017.09T – 2020 ... tinham como data limite para pagamento voluntário 2021/02/04 e as restantes tinham o limite para pagamento voluntário 2021/03/02;
  8. Contra as referidas liquidações foi apresentada em 30 de Junho de 2021 reclamação graciosa, que veio a ser indeferida, tendo sido considerada intempestiva quanto às liquidações 2017.06T – 2020 ... 2017.09T – 2020 ... e quanto às restantes o indeferimento está suportado no relatório da inspeção, não conseguindo a reclamante colher provimento com a sua argumentação;
  9. A Requerente na sua petição procura demonstrar a falta de fundamentação das liquidações praticadas pela AT e justificar documentalmente o IVA não aceite fiscalmente pelo referido relatório, conforme artigos da petição nº 16 a 56 que a Requerida impugna todos os que estejam em contradição com o processo administrativo.

 

Estes são os factos que o Tribunal considerou provados com base no declarado e nos documentos juntos aos autos pelas partes, cuja realidade não foi por elas posta em causa e, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre tudo o que por elas foi alegado, selecionou os factos que entendeu relevantes para a decisão e discrimina a matéria provada da não provada, conforme artigo 123º nº 2 do CPPT[7] e artigo 607º, nº3 do CPC[8], aplicável ex vi artigo 29º nº 1 alíneas a) e e) do RJAT.

 

 

2.2 – Factos não provados

 

 

Não se consideraram provados outros factos com relevância para a decisão da causa

 

 

  1. Matéria de Direito

 

A Requerente alegou a violação do princípio do juiz natural, suportando-se na justificação do voto de vencido do Senhor Árbitro Presidente no Pº 233/2022 do CAAD, questão que produziu efeitos e ficou circunscrita ao respetivo processo.

O princípio do Juiz natural está plasmado no nº9 do artigo 32º da CRP[9]Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”.

Como já se viu este pedido de constituição do Tribunal foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 16/03/2023, e a designação do árbitro foi comunicado às partes sem que estas manifestassem vontade de a recusar, ficando o Tribunal constituído em 26 de Maio de 2023.

Face esta factualidade consideramos que nos presentes autos não há violação do princípio do juiz natural, improcedendo esta alegação.

Alega ainda a Requerente a falta de fundamentação, a sua obscuridade, sendo impercetível e feita por remissão sem o conhecimento exigível ao sujeito passivo das liquidações em causa. Apresentou justificação para as faturas que não foram aceites pelos serviços da AT, quanto ao ano de 2017 e relativamente à liquidação referente ao 4.º trimestre de 2018 a Requerente diz desconhecer o seu fundamento, dado que nunca foi inspecionada relativamente a esse período, nem lhe foi transmitido qualquer procedimento nesse âmbito.

Terminando que face ao alegado, deverá o pedido de pronúncia arbitral ser considerado procedente, por provado, determinando-se, em consequência, a total anulação dos atos de liquidação de IVA e de juros dos anos de 2017 e 2018  aqui colocados em crise, tudo o mais com as necessárias consequências legais.

Por sua vez a Requerida defendeu-se por exceção e por impugnação. Por exceção, invoca a intempestividade da reclamação graciosa relativa às liquidações 2017.06T – 2020 ... no montante de € 3.522,48 e 2017.09T – 2020 ... no montante de € 77,44 

Da referida intempestividade decorre, segundo a Requerida, a falta de idoneidade do meio utilizado pela Requerente, porquanto a decisão proferida naquela reclamação não envolve a apreciação do ato de liquidação.

Apreciando as exceções:

 

  1. Intempestividade da reclamação graciosa quanto às aludidas liquidações

 

A Requerida invoca a caducidade do direito de ação, relativamente às liquidações 2017.06T – 2020 ... no montante de € 3.522,48 e 2017.09T – 2020 ... no montante de € 77,44 sustentando que o prazo para a interposição do presente PPA[10] é, ao abrigo do nº 1 do artigo 70º do CPPT, de 120 dias, a contar do indeferimento tácito da RG[11] ou, da data limite para pagamento das liquidações adicionais e o da reclamação graciosa o prazo para a sua apresentação é de 120 dias contados da data limite para o pagamento das liquidações remetendo para o decido no processo de reclamação, considera que esta, relativamente às liquidações referidas foi apresentada para além do aludido prazo, o que impediu a apreciação do pedido quanto a elas, por intempestividade, concluindo que sendo a reclamação intempestiva, segundo jurisprudência unânime, é também intempestivo o presente pedido, pugnando pela procedência da exceção, neste segmento, nos termos expostos.

A Requerente na sua petição não aflorou a questão da tempestividade.

Como se sabe o prazo de 120 dias para interposição de reclamação graciosa é um prazo de caducidade do direito de ação decorrendo a extinção do respetivo direito pelo decurso do tempo referido, que no caso concreto, as liquidações 2017.06T – 2020 ... 2017.09T – 2020 ... tinham como data limite para pagamento voluntário o dia 2021/02/04, pelo que o prazo para apresentação da reclamação expirava em 04 de junho de 2021.

Porém este prazo esteve suspenso, por força da Lei n.º 1 -A/2020, de 19 de março - suspensão de prazos processuais e de procedimento, adotado no âmbito da pandemia da doença COVID-19, que veio a ser alterado pela Lei 13-B/2021 de 05 de abril que no seu artigo 5º estabelece: “Prazos de prescrição e caducidade. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os prazos de prescrição e caducidade cuja suspensão cesse por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período correspondente à vigência da suspensão”.

No presente caso verifica-se que a suspensão vigorou desde 04 de fevereiro de 2021 até ao dia 05 de abril seguinte, tendo a duração de 60 dias, pelo que o prazo de caducidade do respetivo direito foi alargado por mais 60 dias, nos termos do citado artigo 5.º.

Assim, à data em que foi interposta – 30 de junho de 2021 – não havia ainda expirado o respetivo prazo, termos em que o Tribunal conclui pela improcedência da exceção de intempestividade da reclamação graciosa relativa às liquidações de IVA em questão.

 

  1. Da impropriedade do meio e, da incompetência do Tribunal

 

Na perspetiva da Requerida, uma vez que as liquidações adicionais n.ºs 2020 ... e 2020 ... não tiveram apreciação de mérito no âmbito da reclamação graciosa dado que esta foi considerada intempestiva quanto a elas, ao não concordar com esta visão deveria a Requerente intentar uma ação administrativa por forma a discutir se a Requerida deveria ou não ter apreciado pedido relativa a tais liquidações. Deste modo ao peticionar agora a anulação das mesmas, sem que a AT tenha apreciado o mérito das mesmas na reclamação graciosa, considera existir uma impropriedade do meio e uma incompetência do Tribunal, uma vez que este não é competente para apreciar ações administrativas por falta de previsão legal para o efeito, sustentando o seu ponto de vista em diversa jurisprudência que aqui damos como reproduzida para todos os efeitos legais, concluindo pela procedência das exceção.

A Requerente na sua petição não aflorou estas questões na sua petição.

Nos termos das alíneas d) e p) do nº 1 do artigo 97º do CPPT a regra de impugnação de atos administrativos em matéria tributária efetua-se por via de impugnação judicial ou ação administrativa, consoante aqueles atos comportem ou não a apreciação de atos de liquidação, o que é relevante em sede de arbitragem tributária, uma vez que nos termos do disposto nos artigos 2.º e 4.º do RJAT, complementados com a Portaria n.º112-A/2011, de 22/03, a competência material dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD circunscreve-se ao âmbito de aplicação do processo de impugnação judicial, compreendendo:

A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; e

- A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.

Delimitada a competência dos Tribunais Arbitrais e considerando que o meio usado pela Requerente foi a impugnação judicial com vista a anular o ato de indeferimento da reclamação graciosa, por intempestiva, e que a mesma se dirigia contra atos de liquidação e tendo o Tribunal considerado que a reclamação é tempestiva anulando o ato de indeferimento, neste segmento, fica este obrigado a conhecer do mérito das liquidações em causa.

Na verdade o artigo 99º do CPPT estabelece que o meio próprio para discutir os atos de liquidação é o processo de impugnação judicial, independentemente de ter ou não ocorrido anteriormente meio gracioso, sendo a ação administrativa usada nos casos em que não há lugar à apreciação de atos de liquidação. Neste sentido, é basta a jurisprudência do STA[12], citando-se a título de exemplo o Acórdão de 18/11/2020, proferido no processo 0608/13.4BEALM 0245/18, pelo que improcede também esta exceção.

 

  1. Da falta de causa de pedir

 

A Requerida considera que as liquidações adicionais de IVA resultaram de duas componentes falta de liquidação de imposto e, outra, a desconsideração por parte da Requerida do direito à dedução por parte da Requerente, do IVA suportado nas operações identificadas no PPA, porém relativamente ao IVA liquidado adicionalmente com fundamento na falta de liquidação de imposto, a Requerente, ao longo de todo o PPA, nem uma menção lhe faz, pelo que entende que a exceção de falta de causa de pedir, relativamente a parte do pedido, designadamente, na parte referente às correções levadas a cabo pelos SIT[13], por falta de liquidação de imposto, por parte da Requerente deverá proceder.

A Requerente na sua petição não aflorou estas questões.

Há falta de causa de pedir quando não são alegados os factos em que se funda a pretensão do autor, no entanto resulta da petição, ainda que de forma genérica, os motivos que conduzem à pretensão da Requerente, que vão desde a falta de fundamentação das liquidações, que considera obscura e impercetível, que é feita por remissão e sem dar a conhecer a que liquidação concreta se reporta, ao mesmo tempo que procura contrariar o respetivo relatório, pese embora a impugnação da Requerida, mas o que não há dúvida é que existe causa de pedir.

Assim sendo improcede também esta exceção.

 

  1. Da falta de objeto do pedido de anulação da liquidação referente ao 4.º período de 2018

 

Segundo a Requerida a liquidação do último período do ano de 2018, referida pela Requerente, não é uma liquidação “strictu senso”, na medida em que não alterou a situação do contribuinte, sendo antes uma decorrência, da alteração da conta corrente da Requerente, em virtude das liquidações adicionais levadas a cabo nos vários períodos dos anos de 2016 e 2017, considerando que a anulação das liquidações adicionais relativas aos anos em questão de 2016 e 2017 e, determinam por si só a alteração da conta corrente naquele período de 2018, para o montante em que se encontrava antes das liquidações adicionais e, esta liquidação, que mais não é do que o resultado de um acerto de contas, desapareceria, concluindo pela falta de objeto do pedido e a consequente absolvição da Requerida neste segmento.

A Requerente quanto a esta liquidação refere que desconhece o seu fundamento, dado nunca ter sido inspecionada relativamente ao ano de 2018, nem foi notificada para exercer o direito de audição, motivo que considera impeditivo ao exercício do seu direito de defesa,

Verifica-se que relativamente a 2018 a ordem de serviço que proporcionou a inspeção não o contemplava nem se faz qualquer referência a consequências da mesma resultante em relação ao aludido ano, dos documentos juntos pela Requerente o respeitante à liquidação em causa é designado por liquidação tal como os restantes e a fundamentação que nele consta não leva a concluir, pelo destinatário normal, o que agora é explicado na resposta da Requerida, nesta perspetiva o Tribunal considera que o objeto do pedido existe no facto jurídico exposto pela Requerente (não ter sido inspecionada quanto ao referido ano o que a impediu de exercer o seu direito de defesa nem lhe ser notificado o motivo da liquidação em causa).

 Termos em que o Tribunal considera improcedente também esta exceção.

 

Por impugnação

 

 

Quanto à alegada falta de fundamentação a Requerida impugnou todos os factos alegados pela Requerente que estejam em contradição com relatório da inspeção, considerando não haver falta de fundamentação e que a tese da Requerente não tem qualquer sustentação na medida em que os atos administrativos se consideram fundamentados quando, pela motivação aduzida, se mostram aptos a revelar a um destinatário normal as razões de facto e de direito que determinam a decisão, habilitando-o a reagir eficazmente pelas vias legais contra a respetiva lesão, invoca alguma doutrina e jurisprudência que vão no sentido por si preconizado e mesmo no caso da liquidação respeitante ao ano de 2018,ela comporta a seguinte fundamentação” Liquidação efetuada nos termos do artº 87º do Código do IVA, em resultado do processamento da declaração corretiva, enviada para um período de imposto para o qual já tinha sido enviada declaração periódica”, concluindo que a Requerente, não só reagiu aos aludidos atos de liquidação, ao mesmo tempo que não é um destinatário médio, mas antes uma pessoa coletiva que entre outras, exerce a atividade, de contabilidade e auditoria e consultoria fiscal.

Quanto ao alegado erro acerca dos pressupostos de facto e de direito relativamente à desconsideração do direito à dedução da Requerente, socorrendo-se do nº1 do artigo 19º, do nº 1 do artigo 20º, ambos do CIVA [14],dos artigos 168º e 169º da diretiva IVA 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006 e ainda de várias decisões do TJUE demonstrando que há uma exigência de nexo de causalidade entre os bens ou serviços adquiridos (inputs) e as operações realizadas a jusante que são tributadas ou que, sendo não sujeitas ou isentas, conferem o direito à dedução, fazendo uma análise caso a caso, conforme melhor consta da respetiva resposta que a qui se dá por integralmente reproduzida nessa parte, para todos os efeitos legais, conclui que, por só agora serem apresentados alguns dos elementos, ainda assim, parcos, de entre os necessários para averiguar do direito que a Requerente alega ter e dos elementos disponíveis não é possível, levar a efeito uma auditoria e exercer um controlo que permita concluir com alguma margem de certeza, pelo direito à dedução da Requerente, cabendo a esta, de acordo com artigo 74º da LGT, o ónus de fazer prova do direito de que alega ter, o que não conseguiu.

Refere ainda que, não é possível, no curto prazo que se impõe para a apresentação da Resposta, levar a efeito uma auditoria aos extratos contabilísticos só agora apresentados, dada a alegada impossibilidade de apresentação aos serviços inspetivos, quando por estes solicitados, pelo que não se podem dar como provados.

Concluindo que deve ser proferida decisão que determine a improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, por não provado, absolvendo-se a Requerida dos pedidos, com todas as consequências legais.

 

 

 

Quid júris

 

 

O Tribunal, tendo em conta a improcedência das exceções suscitadas pela Requerida, não pode deixar de apreciar o pedido formulado pela Requerente.

Assim, considerando toda a matéria de facto considerada provada, o ponto de vista das partes, já sucintamente deixado expresso, há que ter em conta que, a montante, está a causa originária de todo este procedimento, que se traduz na inspeção e o respetivo relatório dos SIT, que sustenta o processamento de liquidações adicionais praticado pela AT, conforme correções nele propostas, sendo preciso saber se elas estão devidamente fundamentadas e aqui o ónus da prova pertence inteiramente à AT, conforme nº 1 do artigo 74º da LGT.

Vejamos então o que nos diz o Relatório da Inspeção quanto ao IVA dedutível respeitante ao ano de 2017

Cita a legislação aplicável, artigos 19º a 26º do CIVA, designadamente o nº 2 do artigo 19ª, que estabelece que só confere direito a dedução o imposto mencionado em faturas, em nome e na posse do sujeito passivo, só se considerando passados em formato legal se obedecerem aos requisitos previstos no nº5 do artigo 36º, ou no caso de faturas simplificadas contenham os requisitos previstos no 2 do artigo 40º, ambos do CIVA e quanto ao imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações de transmissão de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas, conforme alínea a) do nº1 do artigo 20º do CIVA, concluindo que os documentos emitidos pelos fornecedores de bens e serviços/ bens à Requerente não preenchem os requisitos exigidos pelas normas legais enumeradas, havendo documentos que não especificam a denominação concreta dos bens / serviços, outros só contém “comissões” e outros sem designação.

No RIT não são especificados expressa ou de forma implícita quaisquer indícios de simulação relativamente às transações em causa e tal como foi observado e concluído no Pº 198/2022 do CAAD, que se acompanha e onde ficou provado o seu carater empresarial das aquisições do sujeito passivo, sendo, nos presentes autos, as correções às liquidações feitas pela AT, suportadas no mesmo relatório e tendo em conta o princípio da prevalência do direito à dedução com vista a atingir-se a neutralidade da tributação forçoso é concluir que as correções feitas pela AT ao IVA dedutível, não estão suficientemente fundamentadas e não podem subsistir.

 

Relativamente ao IVA não liquidado, o RIT[15] parte das correções feitas no âmbito do IRC[16] extrapolando-as em sede de IVA, considerando que a Requerente apresenta um volume de operações isentas de 71,89% do total da base tributável declarada, a quase totalidade das faturas emitidas com isenção de IVA foram a entidades que tem como contabilista o sócio gerente da Requerente, não apresentou a documentação solicitada quanto ao valor das avenças dos serviços de contabilidade, não apresentou os elementos de contabilidade necessários à comprovação da atividade de formação nem justifica a isenção, os contratos que remeteu são omissos quanto a valores de contra prestação da formação.

A justificação que o RIT apresenta, com vista a suportar as correções propostas é feita por remissão a normas legais, não especificando elementos objetivos, que concretizem sem margem para dúvidas que os apuramentos de IVA a que procedeu correspondem à realidade, nada dizendo quanto às dificuldades informáticas declaradas pela Requerente, que serve apenas para justificar que não apresentou os elementos solicitados, concluindo, sem mais, que não foi possível comprovar o exercício da atividade de formação profissional.

No entender da AT a documentação que a Requerente, veio posteriormente oferecer, explicativa e a pretender suportar as diferentes operações e o exercício da atividade de formação profissional, embora a Requerida os impugne, o faz remetendo para o relatório inspetivo e alega a impossibilidade de os auditar no prazo para a resposta.

Ora como já se viu o RIT, fica-se pela justificação da falta de documentos, indícios, suposições nada refere sobre a veracidade das dificuldades informáticas comunicadas pela Requerente que não lhe terão permitido apresentar toda a documentação solicitada, concluindo, sem qualquer outra diligência, que não ficou provado o exercício da atividade de formação. Também não ficou provado o contrário e esta argumentação o Tribunal considera insuficiente e sem fundamentação objetiva para porem em causa o declarado pelo sujeito passivo. Sucede ainda que as correções à matéria coletável de IRC foram anuladas conforme decisão proferida no Pº 198/2022 do CAAD, pelo que deixou de permanecer na ordem jurídica o valor que serviu de base ao apuramento do IVA corrigido pelo RIT. 

Quanto à liquidação do IVA de 2018, o relatório nada refere e apenas na resposta da AT, foi dada a explicação técnica sobre o processamento da mesma que na respetiva notificação não constava e a que lá foi aposta não foi percebida pelo SP, apesar da sua especialização na área.

  Verifica-se ainda que a RG foi indeferida uma parte por intempestividade da mesma, que já se viu não existe, e na parte apreciada, o indeferimento foi sustentado pelo RIT que já se concluiu não ter sustentação para proceder às correções nele propostas, termos em que se considera anulável o respetivo ato de indeferimento.

Assim, tendo em conta as disposições contidas no artigo 74º nº1 da LGT e estando em causa a apreciação da legalidade de atos de liquidações oficiosas praticados pela AT, corrigindo as anteriores liquidações efetuadas com base nas declarações do sujeito passivo, é a esta que incumbe o ónus da prova dos pressupostos legais das correções que operou, e que o Tribunal considera não ter conseguido fazer, concluindo-se pelo de erro acerca dos pressupostos de facto e de direito das liquidações oficiosas emitidas pela AT e da sua falta de fundamentação, prevalecendo a presunção de verdade das declarações do sujeito passivo nos termos das disposições contidas no artigo 75º nº 1 da LGT, ficando, desde logo, também prejudicada, por ser inútil, a apreciação de outras questões submetidas a este Tribunal.

 

IV - DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal decide:

a) Declarar improcedentes as exceções invocadas pela Requerida, bem como a alegação da Requerente, quanto à violação do princípio do Juiz natural;

b) Declarar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, revogar a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e determinar a anulação dos atos de liquidação de IVA e juros compensatórios impugnados, resultantes das correções levadas a efeito às declarações da Requerente;

c) Fixar o valor do processo em € 33.384,16, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo 3.º, n.º 2, do RCPAT[17].

d) Fixar as custas do processo, ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, no montante de € 1 836,00,00, a cargo da Requerida.

 

Lisboa, 02 de outubro de 2023

O Árbitro,

 

Arlindo Francisco



[1] Acrónimo de Lei Geral Tributária

[2] Acrónimo de Autoridade Tributária e Aduaneira

[3] Acrónimo de Imposto sobre o Valor Acrescentado

[4] Acrónimo de Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária

[5] Acrónimo de Centro de Arbitragem Administrativa

[6] Acrónimo de Sujeito Passivo

[7] Acrónimo de Código de Procedimento e de Processo tributário

[8] Acrónimo de Código de Processo Civil

[9] Acrónimo de Constituição da República Portuguesa

[10] Acrónimo de Pedido de Pronúncia Arbitral

[11] Acrónimo de Reclamação Graciosa

[12] Acrónimo de Supremo Tribunal Administrativo

[13] Acrónimo de Serviço de Inspeção Tributária

[14] Acrónimo de Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado

[15] Acrónimo de Relatório de Inspeção tributária

[16] Acrónimo de Imposto sobre o Rendimento das pessoas Coletivas

[17] Acrónimo de Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária