Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 441/2018-T
Data da decisão: 2019-05-15   Outros 
Valor do pedido: € 1.158.529,79
Tema: Cláusula Geral Anti- abuso – Reforma da decisão arbitral (anexa à decisão).
*Substitui a decisão arbitral de 19 de maio de 2019.
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DESPACHO ARBITRAL

 

Na sequência do douto Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul (“TCAS”), em 25 de Fevereiro de 2021, no âmbito do processo n.º 70/19.8BCLSB, já transitado em julgado, que declarou a nulidade da decisão proferida nos presentes autos, profere-se nova decisão arbitral.

 

Lisboa, 23 de Abril de 2021

 

A árbitro presidente com a concordância de todos os árbitros,

Alexandra Martins

 

 

 

Acordam os Árbitros Alexandra Coelho Martins (Árbitro Presidente), Carla Castelo Trindade e Jorge Carita, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o presente Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.            Em 5 de Setembro de 2018, A..., SGPS, S.A., pessoa colectiva n.º..., com sede na Rua..., n.º ..., ..., Lisboa, ...-... Lisboa (doravante "Requerente"), requereu a constituição de Tribunal Arbitral e apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 10.°, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações posteriores (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, a seguir RJAT), para apreciação da legalidade da demonstração de liquidação de retenções na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares ("IRS") n.º 2018 ... de 30.04.2018 e das correspondentes demonstrações de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2018..., 2018...e 2018 ..., referentes ao ano de 2013.

 

2.            A referida liquidação adicional de IRS (retenção na fonte) resultou da aplicação pela Autoridade Tributária da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.°, n.º 2, da Lei Geral Tributária ("LGT") à aquisição pela Requerente, em Maio de 2013, de 24,02% do capital social da sociedade B...- SGPS, S.A., entendendo a Administração Tributária que o pagamento do preço de aquisição das acções deve assumir a natureza de dividendos e que, como tal, a Requerente incumpriu o dever de retenção na fonte de IRS sobre lucros colocados à disposição, havendo lugar à sua responsabilização enquanto substituto tributário, por força do disposto no artigo 103.° do Código do IRS.

 

3.            Não se conformando com a referida liquidação de imposto e juros compensatórios - desde logo por considerar a operação realizada como traduzindo uma reorganização empresarial perfeitamente legítima e linear - a Requerente requereu a constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do artigo 10.°, n.º 1, alínea a), e 2.° do RJAT, formulando os seguintes pedidos na sua petição (a seguir PI):

i)             Declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2018... de 30 de Abril de 2018, com fundamento:

a)            Na falta de preenchimento concreto dos pressupostos materiais de aplicação da cláusula geral anti-abuso constantes do artigo 38.°, n.º 2 da LGT; e

b)           Na inoponibilidade à Requerente da desconsideração dos efeitos fiscais resultante da aplicação da cláusula geral anti-abuso aos actos em questão, por inconstitucionalidade material do artigo 38.°, n.º 2, da LGT, interpretado no sentido de ser apto a produzir efeitos fiscais sobre terceiros que não o contribuinte que agiu motivado para a obtenção da vantagem fiscal, face aos princípios da confiança e da segurança jurídica, ínsito no principio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da CRP e da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º da CRP.

ii)            Declaração de nulidade da liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., 2018... e 2018... referentes ao ano de 2013, em face da anulação da liquidação de IRS de que é acto consequente;

iii)           Condenação da Administração Tributária no pagamento de indemnização por eventuais encargos incorridos com a prestação indevida de garantia com vista à suspensão do processo de execução fiscal, nos termos do artigo 53.°, n.º 1, da LGT, por erro imputável aos Serviços na prolação dos actos tributários impugnados, bem como nas custas do processo arbitral.

 

Com a petição juntou 20 documentos, e arrolou 3 testemunhas.

4.            Como a Requerente optou pela não designação de árbitro, nos termos do disposto na alínea

a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo a Dra. Alexandra Coelho Martins, a Dra. Carla Castelo Trindade e o Dr. Jorge Carita, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 e no n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 19 de Novembro de 2018.

 

5.            Em 4 de Janeiro de 2019, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida”) apresentou resposta (a seguir “R.”) em que defendeu a improcedência total do pedido de pronúncia arbitral.

 

6.            No dia 19 de Fevereiro de 2019, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram prestadas declarações de parte e inquiridas as duas testemunhas apresentadas pela Requerente.

 

7.            As alegações escritas foram apresentadas pela Requerente em 12 de Março de 2019, onde concluiu dizendo que termina como no requerimento arbitral, devendo ocorrer a integral procedência do aí peticionado.

 

8.            A entidade Requerida apresentou alegações escritas em 3 de Abril de 2019, reiterando o pedido de total improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, por não provado, com as demais consequências legais.

 

As alegações apresentadas foram tidas em consideração na apreciação da matéria de facto e de direito.

 

II.            SANEAMENTO

 

9.            O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

 

O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas quaisquer questões que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa.

 

 

As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), e mostram-se devidamente representadas.

 

Tudo visto, cumpre proferir decisão final.

 

III.          QUESTÕES A DECIDIR

 

10.          Em face das posições assumidas e dos fundamentos alegados pelas partes nas suas peças processuais,  as  questões  a  decidir  no  âmbito   do   presente   processo   arbitral prendem-se com a  apreciação  da  legalidade  da  liquidação  de  IRS  (retenção  na  fonte) n.º 2018 ... de 30.04.2018, no montante de € 982.899,13 (novecentos e oitenta mil, oitocentos e noventa e nove euros e treze cêntimos) e da correspondente demonstração de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2018..., 2018... e 2018..., referentes ao ano de 2013, no montante de € 175.630,66 (cento e setenta e cinco mil, seiscentos e trinta euros e sessenta e seis cêntimos), tudo num total de € 1.158.529,79 (um milhão centos e cinquenta e oito mil, quinhentos e vinte e nove euros e setenta e nove cêntimos), em atenção aos seguintes vícios invocados pela Requerente:

a)            Inoponibilidade à Requerente, como (hipotética) substituta tributária, da desconsideração de efeitos fiscais resultante da aplicação da cláusula geral anti-abuso aos actos em questão, em concomitante violação do artigo 38.°, n.º 2, da LGT ou, caso assim se não entenda, por inconstitucionalidade dessa norma em face dos princípios da certeza e segurança jurídicas e da proporcionalidade. Assim, mesmo admitindo preenchidos os pressupostos para aplicação da cláusula geral anti-abuso, não estão preenchidos os pressupostos de que depende a retenção na fonte;

b)           Falta de preenchimento dos pressupostos de aplicação da cláusula geral anti-abuso, em violação do disposto no artigo 38. °, n.º 2, da LGT, nomeadamente por:

i.             Inexistência de motivação essencial ou principal de natureza fiscal para a compra e venda de acções da sociedade B... - SGPS, S.A., uma vez que a constituição da Requerente teve como objectivo salvaguardar as acções detidas por accionistas individuais e a posição accionista que as mesmas conferem;

ii.            Inexistência de recurso a operação artificiosa ou fraudulenta, nem abuso das formas jurídicas à sua disposição para realizar a operação;

iii.           Insuficiência da existência de vantagem fiscal obtida como resultado da compra e venda de acções para se demonstrar verificado o elemento meio;

iv.           Inexistência de desconformidade do resultado obtido com a ratio legis das normas aplicadas, por inexistir no ordenamento jurídico tributário sinais inequívocos de uma intenção de tributar aquele resultado económico;

 

Para além da apreciação da legalidade dos actos tributários impugnados nos termos acima indicados, cabe ainda, dado o correspondente pedido formulado pela Requerente, decidir sobre a condenação da Administração Tributária no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, nos termos do artigo 53.°, n.º 1, da LGT.

 

IV.          FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

IV.1.      FACTOS PROVADOS

 

11.          Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada. Tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do anterior CPC, correspondente ao artigo 596.º do actual CPC).

 

12.          Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes nos respectivos articulados (PI e alegações da Requerente, Resposta e contra-alegações da Requerida), à prova documental junta aos autos e à prova testemunhal produzida na reunião havida, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

A)           A REQUERENTE –A..., SGPS S.A.

 

1.            A Requerente foi constituída em 21 de Maio de 2013 como sociedade comercial anónima na modalidade de sociedade gestora de participações sociais, com o objecto social de «gestão de participações  noutras sociedades como  forma indirecta de exercício de actividades económicas», tendo como accionistas fundadores C..., D..., E..., F..., G... com o capital social de EUR 50.000,00, representado por 50.000 acções com o valor nominal de €1 cada, distribuídas da seguinte forma (cfr. Anexo 2 ao doc. n.º 1 e doc. n.º 3 juntos à PI):

 

Nome do Accionista        N.º de Ações

  C...       16.668

   D…      13.784

      E...   11.593

      F...   7.954

 G...       1

Total:    50.000

 

2.            No seu primeiro ano de actividade, em prossecução do seu objecto social, a Requerente adquiriu:

a)            Em 22 de Maio de 2013, um total de 7.543.660 acções da B..., SGPS, S.A.,

correspondentes a uma participação de 24,02% no capital desta empresa, pelo preço total de € 22.630.980,00 (no valor de € 3,00 por acção), a pagar em três anos (cfr. Anexo 1 ao doc. n.º 1 e doc. 6 juntos à PI);

b)           Em 28 de Maio de 2013, a Requerente adquiriu mais 29.920 acções da B... SGPS, S.A, pelo valor de € 3,00 por acção (cfr. docs. 6 e 7 juntos à PI);

c)            Em 3 de Junho de 2013, adquiriu um lote de 433.344 acções da B... SGPS, S.A., pelo valor de € 2,47 por acção (cfr. docs. 6 e 8 junto à PI);

d)           Em 28 de Junho de 2013, a Requerente recorreu a crédito bancário, concedido pelo H.../..., S.A., no montante de € 1.070.333,00 para aquisição das participações sociais referidas no ponto anterior (cfr. doc. n.º 11 junto à PI);

e)           A 31 de Dezembro de 2013, a Requerente apenas participava no capital social da B... SGPS, S.A. (cfr. doc. 1 junto à PI);

f)            Desde Maio de 2013, a Requerente reforçou a participação accionista na B..., SGPS, S.A., passando de uma percentagem inicial de detenção de 24,02%, para 32,68% em 2017 (cfr. docs. 9 e 10 juntos à PI);

g)            A Requerente tem quatro administradores e não tem colaboradores (cfr. doc. 1 junto à PI corroborado com as declarações de parte);

 

B)           A SOCIEDADE –B...- SGPS, S.A.

 

a)            A B...- SGPS, S.A. é a sociedade que lidera o Grupo I..., líder português em Tecnologias de Informação, entrando em bolsa no ano de 2000, sendo uma entidade cotada na Euronext Lisbon (https://www.bolsadelisboa.com.pt;  http://www...;

b)           À data da constituição da A...– SGPS, S.A., quatro dos accionistas que a constituíram detinham na B...– SGPS, S.A., as seguintes participações: (cfr. publicações juntas como doc. n.º 6 à PI e estrutura acionista constante do Relatório e Contas da B... – SGPS, S.A. a 31.12.2012, doc. n.º 28 junto com as alegações):

 

Accionistas        

N.º de Ações    

% Capital Social

 C…         2 514 997            8,01%

 D…        2 079 592            6,62%

 F…         1 899 799            6,05%

 E…         1 749 074            5,57%

 

a)            Os referidos accionistas detinham assim conjuntamente 8.243.462 acções representativas de 26,25% do capital social da B...– SGPS, S.A.;

b)           No ano de 2011, a B..., SGPS, S.A. distribuiu dividendos, provenientes do resultado líquido do período e de reservas livres e resultados acumulados no montante total de € 4.082.181,22, correspondendo a € 0,13 por acção (cf. documento n.º 15 junto à PI e declarações da parte minutos 41:55 a 44);

c)            Em 2012, a B..., SGPS, S.A. distribuiu dividendos, provenientes do resultado líquido do período e de reservas livres e resultados acumulados no montante total de € 942.041,82, correspondendo a € 0,03 por acção (cfr. documento n.º 16 junto à PI e declarações da parte minutos 41:55 a 44);

d)           Em 7 de Fevereiro de 2013, a B..., SGPS, S.A., anunciou a aprovação, pelo Conselho de Administração, da intenção de propor à Assembleia Geral a distribuição de um dividendo de € 0,10 por acção, no total de € 3.140.139,40 (cfr. documento n.º 17 junto à PI e declarações da parte minutos 41:55 a 44);

e)           Na Assembleia Geral da B..., SGPS, S.A., de 25 de Setembro de 2013, foi deliberada distribuição de resultados e reservas acumuladas correspondentes a € 0,50 por acção (cfr. documento n.º 18 junto à PI e declarações da parte, minuto 43);

 

C)           “REESTRUTURAÇÃO”

 

a)            Em Maio de 2000, por ocasião da entrada em bolsa desta sociedade (via IPO), um grupo

de accionistas da B...– SGPS, S.A., subscreveu um Acordo Parassocial referente a esta sociedade, com 22 accionistas subscritores (cf. documento n.º 4 junto à PI), no âmbito do qual assumiram, entre outros, o compromisso de manutenção de uma determinada percentagem no capital social e nos direitos de voto daquela sociedade, para assegurarem a estabilidade da empresa e uma posição de controlo – cfr. documento n.º 4 junto à PI;

b)           O cumprimento deste acordo parassocial e a necessária renovação/renegociação do mesmo a cada três anos, começou a suscitar questões geradoras de pressão sobre o núcleo central de accionistas, que, dos 13 iniciais, em 2013, já se restringia a 6. Essas questões prendiam-se com a:

(a)          Saída de accionistas e divórcios, que suscitavam pressão e esforço financeiro dos accionistas individuais para adquirirem acções (dos que saíam ou dos cônjuges);

(b)          Agitação do mercado nos meses antecedentes às renovações (de três em três anos) do acordo parassocial;

– cfr.  declarações de parte aos minutos  9:00  a 16:00  e depoimento  da primeira testemunha.

c)            Na sequência de uma embrionária tentativa de OPA que não se revelou viável, a constituição da Requerente (em 21 de Maio de 2013) representou uma segunda alternativa [à OPA] que visou como objetivos estratégicos:

(a)          Concentrar numa sociedade holding um lote significativo de acções da B..., SGPS, S.A., como meio de reforço da posição de quatro accionistas de referência, até perfazer 33,4% (um terço), como forma de assegurar o controlo indireto daquela sociedade [B...] a esses quatro accionistas [da Requerente], sem que, para o efeito, tivessem de lançar uma OPA

– cfr. declarações da parte aos minutos 47:40 a 47:55;

(b)          Estabilizar a manutenção da posição accionista de controlo da B..., SGPS, S.A., tornando-a menos volátil a vicissitudes pessoais, como saídas e divórcios;

 

(c)          Facilitar a compra das acções resultante dessas vicissitudes, pela via institucional (através de um veículo societário), e o respetivo recurso a financiamento bancário, cuja obtenção era mais vantajosa no caso de ser uma sociedade que juntava as quatro participações e que exercia uma “posição dominante” sobre a B..., SGPS, S.A.;

(d)          Servir de instrumento para outros investimentos futuros,

– cfr. docs. 11, 12 e 13 juntos à PI (contratos de mútuo bancário), declarações de parte aos minutos 9:00 a 30:00 e depoimento da segunda testemunha;

d)           Em 22 de Maio de 2013, a Requerente adquiriu aos seus accionistas 7.543.660 acções da B...– SGPS, S.A., correspondentes a uma participação de 24,02%, conforme referido na alínea a) supra;

e)           A aquisição das acções da B..., SGPS, S.A. pela Requerente aos seus accionistas foi realizada a preços similares ao das cotações dos títulos em bolsa – cfr. documento n.º 21 junto com as alegações da Requerente;

f)            No exercício de 2013, a Requerente recebeu da B... SGPS, S.A. € 4.760.815,00 relativos a lucros distribuídos (dividendos, distribuição de reservas e resultados acumulados), com uma retenção na fonte de € 1.190.203,75, resultando um valor líquido de € 3.570.611,25. O imposto retido foi reembolsado à Requerente em 1 Setembro de 2014, por via da autoliquidação da Mod.22 entregue em 30.05.2014 (cfr. documento n.º 1 junto à PI);

g)            No exercício de 2013, a Requerente pagou aos seus accionistas € 3.510.354,02, por conta da dívida resultante da aquisição àqueles de acções da B... SGPS, S.A.. Em 31 de Dezembro de 2013 estavam pagos e permaneciam em dívida os valores do quadro seguinte, discriminados por accionista (cfr. documento n.º 1 junto à PI):

Accionista           Valor pago          Valor em dívida

C...         € 1.166.961,20   € 6.386.186,80

D…         € 970.193,96       € 5.309.379,04

E...         € 556.200,00       € 3.043.800,00

F...         € 816.998,86       € 4.471.020,14

TOTAL   € 3.510.354,02   € 19.210.385,98

 

D)           “ACÇÃO INSPECTIVA”

 

v)            A Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu a uma inspecção externa, de âmbito parcial, com início a 27 de Outubro de 2017, ao abrigo das ordens de serviço internas n.os OI2017..., com referência ao exercício de 2013, visando analisar operações e movimentos financeiros realizados entre os accionistas e a sociedade (cfr. documento n.º 1 junto à PI - RIT, p. 6);

w)          No decurso daquela acção de inspecção foi projectada a aplicação da Cláusula Geral Anti- Abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT;

x)            Consideraram, em suma, os serviços de inspecção tributária que, “(…) a constituição da sociedade A... para parqueamento por parte dos seus accionistas das acções da B... SGPS que detinham diretamente, foram essencial ou principalmente dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, à redução de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios” (cfr. documento n.º 1 junto à PI);

y)            Em consequência, os serviços de inspecção tributária procederam à desconsideração e posterior requalificação como dividendos, para efeitos fiscais, dos montantes pagos a título de preço da aquisição das acções, quantificando a vantagem fiscal indevidamente obtida no montante total de € 982.899,13, a que acrescem juros compensatórios de € 175.630,66 (cfr. documento n.º 1 junto à PI);

z)            Nesta sequência, através do Ofício n.º..., de 09.03.2018, a Requerente foi notificada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 63.º, n.º 4 e 5, do CPPT, para exercer o direito de audição prévia quanto ao projecto de decisão de aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso (cfr. doc. n.º 1 junto à PI);

aa) No prazo legalmente previsto, a Requerente exerceu o direito de audição prévia (cfr. página 62 e seguintes do doc. n.º 1 junto à PI);

bb) Em 23.04.2018, a Requerente foi notificada do relatório final de inspecção tributária (cfr. doc. n.º 1 junto à PI);

cc) A Requerente foi notificada da demonstração de liquidações de retenção na fonte de IR e inerentes juros compensatórios, datadas de 30 de Abril de 2018, no montante total de € 1.158.529,79, que consubstanciam tais correcções, sendo a importância de € 82.899,13 relativa a imposto (liquidação n.º 2018...), e € 175.630,66 referente a juros compensatórios (liquidações n.ºs 2018..., 2018... e 2018...), com data limite de pagamento em 07-06-2018 (cfr. doc. n.º 2 junto à PI);

dd) Posteriormente foi a Requerente citada para o processo de execução fiscal n.º ...2018... instaurado para cobrança coerciva dos atos tributários objeto de pronúncia arbitral. (cfr doc. n.º 19 junto à PI);

ee) A Requerente ofereceu, para suspensão dos identificados processos de execução fiscal, garantia bancária. (cfr. doc. n.º 20 junto à PI);

ff) Em 5 de Setembro de 2018, a Requerente requereu a constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do artigo 10.°, n.°s 1, alínea a), e 2.° do RJAT visando a anulação da liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2018... de 30.04.2018, no montante de € 982.899,13 (novecentos e oitenta mil, oitocentos e noventa e nove euros e treze cêntimos) e das correspondentes demonstrações de liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., 2018... e 2018..., referentes ao ano de 2013, no montante de € 175.630,66 (cento e setenta e cinco mil, seiscentos e trinta euros e sessenta e seis cêntimos), tudo num total de € 1.158.529,79 (um milhão centos e cinquenta e oito mil, quinhentos e vinte e nove euros e setenta e nove cêntimos), e, bem assim, a condenação da Administração Tributária em indemnização pela prestação de garantia indevida.

 

13.          A convicção do Tribunal sobre a factualidade dada como provada resultou do exame dos documentos que constam dos autos, incluindo o RIT relativamente aos elementos fácticos que não se mostram contrariados ou impugnados pela Requerente (cfr. art. 76.º, n.º 1 da LGT e 115.º, n.º 2 do CPPT), bem como do reconhecimento de factos resultante da audição da parte e das testemunhas e, bem assim, do resultante de alegações, da PI que foram acolhidas pela Requerida, tudo conforme se especifica em cada um dos pontos do probatório acima enunciados.

 

IV.2.      FACTOS NÃO PROVADOS

 

Como referido, relativamente à matéria de facto dada como assente, o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada tal como dispõe o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e o artigo 607.º, n.ºs 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram, como acima se referiu, escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, não existindo outra factualidade alegada que seja relevante para a correcta composição da lide processual.

 

V.           FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

V.1 Considerações Prévias

 

Atendendo aos factos dados como provados, cabe perceber quais as questões controvertidas sobre as quais o tribunal se vai pronunciar.

 

i.             Inexistência da obrigação tributária da Requerente

O enquadramento normativo que in casu deve ser aplicado para que se efective a tributação de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos actos ou negócios jurídicos dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução de impostos prende-se com a tributação de dividendos em conformidade com a norma de incidência prevista na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS. Este envolverá, por seu turno, a aplicação de retenção na fonte à taxa liberatória prevista no artigo 71.º n.º 1, alínea c) do CIRS, com natureza de pagamento liberatório (sem prejuízo da opção pelo englobamento, nos termos do artigo 71.º, n.º 6 e 22.º, n.º 3, al. b) do CIRS), a qual deve ser efectuada pela entidade devedora dos rendimentos (artigo 101.º, n.º 2, al. a) do CIRS) no momento da sua colocação à disposição (artigo 7.º, n.º 3, al. a), n.º 2 do CIRS), sem o que o substituto seja responsável pelo pagamento do imposto não retido nos termos do n.º 3 do artigo 104.º do CIRS e do n.º 3 do artigo 28.º da LGT.

Ora, entende este Tribunal que a efectivação da tributação de acordo com as normas aplicáveis nos termos estatuídos pelo n.º 2 do artigo 38.º da LGT que cabe à Requerente a assunção do papel de substituto tributário nos termos das indicadas disposições fiscais relativas à tributação em IRS dos dividendos, constituindo, como tal, a destinatária da liquidação decorrente da desconsideração, para efeitos fiscais, dos actos e negócios jurídicos abusivos, porquanto foi ela que surgiu como entidade devedora e que colocou à disposição os valores em causa. Nestes termos, o pressuposto da obrigação de proceder à retenção na fonte, tal como determinado pelos artigos 71.º, n.º 1, al. c) e 101.º, n.º 2, al. a) do CIRS, por força da aplicação da cláusula anti abuso e da efectivação da tributação de acordo com as normas aplicáveis, formou-se em relação à Requerente.

No caso em análise esta questão coloca-se desde logo porque a CGAA permite à autoridade tributária desconsiderar certos negócios jurídicos efectuados pela A..., verificadas as suas condições, e tributar a realidade económica subjacente de acordo com as normas de incidência acima mencionadas. Como se sabe, a figura da CGAA surgiu no âmbito da Reforma Fiscal de Dezembro de 2000, pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, que conferiu precisamente a redação do artigo 38.º, n.º 2 da LGT à data dos factos. A CGAA surge enquadrada num quadro interventivo do Estado no combate à elisão fiscal, “constituindo uma válvula de escape de respiração do valor da injustiça, um instrumento adequado de combate à mera engenharia financeira ostensivamente violadora da igualdade fiscal ”. A aplicação do supra referido preceito legal, quer a nível administrativo, quer pelos tribunais, deve ser ponderada, constituindo um instrumento de ultima ratio que visa combater injustiças e desigualdades fiscais, bem como defender o próprio sistema tributário.

A resolução da questão em apreço passa pela determinação do resultado que, para a situação dos autos, advém da estatuição da norma anti-abuso do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, a qual se manifesta nos segmentos normativos relativos à ineficácia no âmbito tributário dos actos ou negócios jurídicos dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem a utilização desses meios, e à efectivação da tributação de acordo com as normas aplicáveis na ausência e à não produção das vantagens fiscais referidas. Assim, a AT liquidou a Requerente por ser esta a obrigada à retenção na fonte aquando do pagamento aos seus accionistas, os beneficiários da vantagem fiscal. O imposto é devido nos termos do artigo 5.º, n.º 2, al. h) e 71.º, n.º 1, c) do CIRS em vigor. No entanto, a Requerente sustenta que não pode a CGAA criar obrigações acessórias para os contribuintes (como a obrigação de retenção na fonte do imposto devido por outro contribuinte), pelo que devia a AT ter liquidado, no âmbito do procedimento de aplicação da CGAA os próprios beneficiários. Estes são os accionistas da A..., sendo na sua esfera devido o imposto e não na esfera da Requerente. A AT invoca que o correcto procedimento foi desencadeado nos termos do CPPT e que do artigo 38.º, n.º 2 da LGT decorre uma exigência de tributar o substituto tributário (a Requerente) uma vez que essa seria a forma de liquidar “de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência”, não tendo existido o negócio jurídico desconsiderado. Nestes termos, impõe-se reconhecer que, quando isso esteja em causa nos termos da tributação que deve ser efectuada segundo as normas aplicáveis, conforme determina o n.º 2 do artigo 38.º da LGT, sendo que o funcionamento da cláusula anti-abuso é inteiramente oponível ao substituto tributário, e que não pode deixar de ser abrangido pela sua estatuição.

Recorde-se, nesta sequência, que, segundo o artigo 20.º da LGT, a “substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte” (n.º 1) e “é efectivada através do mecanismo da retenção na fonte do imposto devido” (n.º 2). Ora, de acordo com o artigo 18.º, n.º 3 da LGT, “sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável”.

É característico da situação jurídico-tributária da substituição o “carácter legal da obrigação”,

pois, como escrevem DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e

JORGE LOPES DE SOUSA : “o legislador obriga um sujeito a realizar determinadas prestações que constituem o objecto de uma obrigação tributária a cargo de outro sujeito passivo, o que preenche os pressupostos do facto tributário. É o facto tributário realizado por uma pessoa, substituído, que dá origem à obrigação. O preenchimento de outro pressuposto de facto leva a que o substituto esteja obrigado ao cumprimento da obrigação”; “A substituição tributária envolve o preenchimento do quadro legal que determina o nascimento da obrigação tributária para um determinado sujeito passivo que é o que preenche o pressuposto de facto. Este preenchimento do quadro legal converte-se em pressuposto de facto para a obrigação do substituto”. Por isso, e como notam ainda estes Autores , “a substituição exige que o sujeito activo se dirija contra o substituto para exigir o cumprimento da obrigação tributária, na medida em que a lei o imponha” e “cumprida esta obrigação tributária, ele libera-se da sua obrigação, liberando também o substituído”. Também RUI DUARTE MORAIS  assinala sobre a retenção na fonte a taxas liberatórias que: “Nestes casos, o cumprimento da obrigação de imposto (incluindo o das inerentes obrigações acessórias) cabe, em exclusivo, ao substituto, que é o sujeito passivo da relação jurídico-fiscal, a título originário. O cumprimento esgota-se com a entrega do montante retido na fonte. Na falta de pagamento voluntário, a cobrança coerciva será dirigida contra o substituto. O substituído só será chamado à execução a título subsidiário (na falta de bens do devedor originário, o substituto) e, apenas, se - e na medida em que - tiver recebido mais do que aquilo que seria o valor dessa prestação líquida da retenção na fonte que deveria ter tido lugar (cfr. artigo 28.º da LGT)”.

 

Nestes termos, por força da estatuição do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, dado que está em causa como regime a tributação de dividendos por retenção na fonte com natureza definitiva e liberatória (artigos 5.º, n.º 2, al. h) e 71.º, n.º 1, al. c) do CIRS), admite-se que as correcções a que haja lugar nos termos da cláusula anti-abuso e a correspondente liquidação de imposto tenham como destinatário o substituto tributário – “a substituição exige que o sujeito activo se dirija contra o substituto para exigir o cumprimento da obrigação tributária, na medida em que a lei o imponha” . Entende-se, pois, que nenhuma censura de ilegalidade se pode fazer, em atenção ao artigo 38.º, n.º 2 da LGT, quanto ao facto de a liquidação de IRS (retenção na fonte) ter sido concretizada em relação à Requerente, dado que é esta que surge como substituto tributário. De qualquer modo, sempre se acrescente, não resulta da emissão desta liquidação de IRS qualquer afectação da posição patrimonial específica da Requerente, nem violação do princípio da capacidade contributiva que, nas circunstâncias em presença, se reporta materialmente aos accionistas individuais.

 

É que não se pode esquecer o funcionamento próprio da substituição tributária no que concerne às relações entre substituto e substituído que se centram no “direito de regresso” (hoc sensu) e que permitem assegurar a ligação do imposto aplicado ao substituto com o princípio da capacidade contributiva que vale em relação ao substituído. Esse direito de regresso é, como regra, prévio (caso em que a expressão regresso é, claro está, imprópria), pois tem lugar por retenção na fonte (artigo 20.º, n.º 2 da LGT), operando por dedução às quantias que o substituto deve, paga ou coloca à disposição do substituído. Pode, porém, suceder que tenha lugar posteriormente, como regresso em sentido próprio, de que é exemplo precisamente o caso de o substituto ter omitido a retenção na fonte definitiva que era devida (artigo 103.º, n.º 3 do CIRS e 28.º, n.º 3 da LGT).

 

Como já se escreveu a este propósito: “é característico da substituição tributária que o substituto tem o dever ou, pelo menos, a faculdade de descontar a importância entregue ou a entregar nos cofres do Estado nos rendimentos que deve ao contribuinte ou então pode – e muitas vezes, deve – exercer contra ele o direito de regresso para reaver o que foi despendido”; “[t]em sido este elemento da existência do direito de regresso, pelo qual quem suporta economicamente o encargos tributário é o substituído que levou à distinção entre o devedor em sentido formal (substituto) do devedor em sentido substancial (substituído), já que é este último quem deve legalmente sobre o desfalque patrimonial correspondente” .

 

Pois bem, este regresso é de exercício obrigatório pelo substituto – no caso, a Requerente – porquanto o artigo 45.º, n.º 1, al. c) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), na redacção aplicável ratione temporis, determina que não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os “impostos e quaisquer outros encargos que incidam sobre terceiros que o sujeito passivo não esteja legalmente autorizado a suportar” . Diga-se, ainda, que este Tribunal não desconhece que, em recentes acórdãos proferidos no CAAD sobre esta matéria, tem sido adoptada orientação diferente, tendo-se entendido, em face da redacção do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, o seguinte (vd., por exemplo, o acórdão proferido no proc. n.º 379/2014-T, de onde se retiram as transcrições subsequentes):

- “a parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT (redacção da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro), ao estabelecer as consequências da aplicação da cláusula geral anti-abuso

«efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» aponta decisivamente no sentido de a aplicação ter de ser efectuada em moldes que permitam afastar a produção das vantagens fiscais”;

-              “sendo esta eliminação das vantagens fiscais o objectivo expresso da cláusula geral anti- abuso, o destinatário da aplicação desta cláusula, aquele em cujo património se irão produzir os efeitos da aplicação, não pode deixar de ser quem usufruiu dessas vantagens fiscais”;

-              “Sendo os accionistas os beneficiários das vantagens referidas, a aplicação da cláusula geral anti-abuso nos termos em que foi efectuada não permite afastar essas vantagens, pois, impondo à Requerente o pagamento das quantias equivalentes a essas vantagens, é apenas a ela que é imposto este ónus, permanecendo os accionistas na titularidade intacta das vantagens patrimoniais obtidas”;

-              “a interpretação correcta do artigo 38.º, n.º 2, terá valer generalizadamente, em relação a qualquer tipo de sociedades anónimas, inclusivamente as cotadas em bolsa em que a estrutura accionista se altera constantemente, relativamente às quais é evidente que a imposição da tributação à sociedade por, com a sua intermediação, os accionistas terem criado para si próprios vantagens fiscais indevidas não ter qualquer efeito sobre quem usufruiu dessas vantagens e deixou, depois, de ser accionista”;

-              “a esta luz, é evidente que o alcance daquele artigo 38.º, n.º 2, ao estabelecer como efeito necessário da aplicação da cláusula geral anti-abuso a não produção das vantagens fiscais, pressupõe o entendimento legislativo de que a «tributação de acordo com as normas aplicáveis» incida sobre quem obteve as vantagens e não sobre quem meramente teve intervenção nos actos de que elas resultam sem beneficiar daquelas, pois só assim é possível garantir o efeito pretendido de não se produzirem as vantagens fiscais referidas”;

-              “é seguro que a redacção do n.º 2 do artigo 38.º da LGT introduzida pela Lei n.º 30-G/2000, exige que a aplicação da cláusula geral anti-abuso tenha como efeito a não produção das vantagens fiscais indevidas, pelo que está pressuposto nesta norma que, pelo menos nos casos em que as vantagens fiscais já se tenham produzido, o destinatário da aplicação seja quem delas usufrui”;

-              “Por isso, no caso em apreço, não tendo a Requerente usufruído qualquer vantagem fiscal, está afastada a possibilidade de ser responsabilizada pelo pagamento das quantias correspondentes às vantagens fiscais indevidas que a Autoridade Tributária e Aduaneira invoca”.

 

Com o devido respeito, julga-se que este entendimento não pode ser acolhido.

 

Desde logo, em termos literais, importa ter em conta que a redacção do artigo 38.º, n.º 2 da LGT autonomiza duas fenomenologias, quer a nível de hipótese quer a nível de estatuição: i) por um lado, os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico relativamente aos quais cabe efectuar a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e ii) os actos ou negócios jurídicos dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização de meios, relativamente aos quais cabe não se produzirem as vantagens fiscais referidas.

 

Como elucida, em termos que aqui inteiramente se acompanham, SALDANHA SANCHES  sobre as duas manifestações principais da fraude à lei em matéria fiscal: “[n]uma primeira manifestação, a escolha de um negócio jurídico ou mesmo de factos ou actos jurídicos fiscalmente relevantes, como forma jurídica de atingir um certo objectivo com menor oneração jurídica [rectius, fiscal] implica a opção por determinado caminhos para a obtenção de certos objectivos finais numa lógica alternativa: seguiu-se o caminho B em lugar do caminho A, para atingir o mesmo objectivo, X”; “[n]a outra das suas principais manifestações, podemos ter um conjunto de operações em que não há alternatividade (a escolha alternativa seria a ausência de negócio jurídico), o que acontece quando, por exemplo, se faz operações com o único objectivo de obter um custo dedutível para a redução do lucro tributável”. Pois bem, explica então este Autor que: “Na previsão normativa do n.º 2 do artigo 38.º da LGT essas duas vias estão claramente prefiguradas”, pois a “primeira encontra-se prevista na lei quando esta contrapõe o negócio jurídico artificioso, com a sua desoneração fiscal, e “os factos, actos ou negócios jurídico de idêntico fim económico” (a via normal foi preterida por mera razões fiscais)” e a segunda “encontra-se igualmente prevista na lei quando esta refere “a obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”, concluindo, então, que: “Se, no primeiro caso, a consequência é “a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência”, no segundo temos uma consequência de mera anulação de efeitos, “não se produzindo as vantagens fiscais referidas”, aquelas que se procura alcançar por meio dos negócios jurídicos artificiosos, sendo que o carácter artificial da segunda parte, marcado pela construção deliberada do efeito, é geralmente constituído por uma perda dedutível do lucro tributável”.

Nestes termos, uma leitura da referência a “vantagens fiscais” como a chave exclusiva de aplicação da cláusula anti-abuso entende-se, com a devida vénia, constituir uma sobre  interpretação de um vocábulo que possui um sentido bem preciso e delimitado no âmbito da estrutura do n.º 2 do artigo 38.º da LGT. Nos termos de uma interpretação contextual do próprio n.º 2 do artigo 38.º da LGT, a obtenção de “vantagens fiscais” é apenas um dos momentos constituintes da aplicabilidade da norma anti-abuso, como definido pela sua hipótese legal, com a correspondente produção das consequências jurídicas pertinentes.

 

Ora, precisamente, no caso dos autos, do que se trata é antes da dimensão normativa objecto do n.º 2 do artigo 38.º da LGT atinente aos actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico relativamente aos quais cabe efectuar a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência – precisamente, como se viu (n.º 36), na situação sub judice, tais normas são constituídas pela disciplina de tributação de dividendos por retenção na fonte com natureza definitiva e liberatória (artigo 5.º, n.º 2, al. h) e 71.º, n.º 1, al. c) do CIRS), em que o cumprimento da obrigação de imposto cabe exclusivamente ao substituto.

 

Depois, também não se julga pertinente o argumento de que, por força desta repercussão sobre o substituto das consequências advenientes da cláusula anti-abuso, este vai suportar o ónus do encargo do imposto correspondente às vantagens patrimoniais obtidas que permanecem na titularidade intacta dos accionistas. É que, como acima se antecipou (n.º 37), a substituição tributária envolve, por natureza, quando o substituto tenha omitido a retenção na fonte definitiva que era devida, o exercício de um direito de regresso, o qual se destina a assegurar precisamente que o encargo final atinente ao imposto incida sobre os titulares da capacidade contributiva, no caso os accionistas beneficiários dos acréscimos patrimoniais que foram reconfigurados como dividendos.

 

Assim sendo, a interpretação sufragada pela AT quanto ao artigo 38.º, n.º 2, da LGT, no sentido de que os efeitos fiscais decorrentes da aplicação da cláusula anti-abuso se estendem não só aos beneficiários da vantagem fiscal – os accionistas cujas vantagens patrimoniais obtidas foram qualificadas para efeitos fiscais como dividendos – mas também a um terceiro na qualidade de substituto tributário – a entidade que procedeu ao pagamento daquelas vantagens –, não padece de qualquer inconstitucionalidade material por violação do princípio da capacidade contributiva inferido nos termos dos artigos 13.º e 104.º, da CRP, na medida em que aquela extensão de efeitos está prevista e decorre do disposto no próprio artigo 38.º, n.º 2, da LGT. Por conseguinte, não decorreu da interpretação–aplicação daquela norma qualquer imposição tributária para a Requerente que não estivesse em conformidade com o quadro normativo vigente à data e que não tivesse em conta a substância económica das operações e das partes em questão. Quer isto dizer que tudo se passa como se tivessem sido distribuídos dividendos pela Requerente, relativamente aos quais era legalmente exigida e devida a respectiva retenção na fonte, não tendo essa obrigação tributária uma natureza jurídica diferente apenas pelo facto de a retenção ser devida em decorrência de um procedimento inspetivo que culminou com a declaração de ineficácia dos negócios jurídicos em questão, continuando a Requerente colocada na mesma situação que lhe seria aplicável ab initio, nomeadamente no âmbito das relações estabelecidas com os beneficiários das vantagens fiscais desconsideradas, isto é, no âmbito das relações entre substituto e substituído, nas quais se insere o direito de regresso do primeiro para com o segundo.

 

Por fim, e quanto a este ponto, não podemos ainda deixar de aditar, recorrendo a uma perspectiva sinépica, de “ponderação das consequências da decisão” , que o entendimento em referência, numa conjuntura como a que se encontra em causa, pode ter como consequência, sempre ressalvado o devido respeito, da pura e simples inviabilidade da aplicação da cláusula anti-abuso nos casos em que, como este, o esquema abusivo visa evitar a tributação dos rendimentos de dividendos que é efectuada por retenção na fonte a título definitivo à taxa liberatória prevista no artigo 71.º n.º 1, alínea c) do CIRS. É que, caso a AT dirigisse a liquidação contra os accionistas beneficiários dos acréscimos patrimoniais em causa, estes poderiam natural e fundadamente sustentar a ilegalidade dessa liquidação mediante a invocação de que não foi respeitada a determinação, constante do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, de que a tributação se deve efectuar de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, a qual exige a tributação por retenção na fonte a título definitivo à taxa liberatória quando os contribuintes não optem pelo englobamento dos rendimentos em causa. Implicando, assim, uma consequência paradoxal, inviabilizadora da aplicação, em qualquer caso, da cláusula anti-abuso, entende-se aqui não se poder subscrever a indicada posição.

 

Alegou ainda a Requerente que a interpretação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, no sentido que lhe foi conferido pela AT, violava princípio da confiança e da segurança jurídica, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.º, da CRP, ainda que não tenha concretizado tal violação. A respeito deste princípio, referiu o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 188/2009, de 22 de abril de 2009, proferido no âmbito do processo n.º 505/08, que “o princípio do Estado de direito democrático postula «uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas», conduzindo à consideração de que «a normação que, por natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança jurídica que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica» (entre outros, o acórdão n.º 303/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º vol., pág. 65)”. Por seu turno, decorre da jurisprudência daquele Tribunal, em concreto do acórdão n.º 128/2009, de 12 de março de 2009, proferido no âmbito do processo n.º 772/2007, que apenas se estará perante uma situação de confiança digna de tutela caso as expectativas dos contribuintes sejam “legítimas, justificadas e fundadas em boas razões”.

 

Ora, atendendo novamente ao caso em juízo, não pode considerar-se que aqueles pressupostos se encontrem preenchidos. De facto, no presente caso, a Requerente não se encontra na posição de um “mero” terceiro, alheio ao conjunto de operações praticadas e às motivações subjacentes às mesmas, desde logo porque era detida e havia sido constituída quase na sua totalidade pelos beneficiários das vantagens fiscais que foram desconsideradas por via da aplicação da cláusula anti-abuso constante do artigo 38.º, n.º 2, da LGT. Assim sendo, e acompanhando a posição de SÉRGIO VASQUES , a confiança e segurança jurídicas “daquele que manifestamente pretende defraudar a lei fiscal não merece tutela”, de tal forma que não se considera verificada a referida inconstitucionalidade invocada pela Requerente.

 

Por último, referiu ainda a Requerente que a interpretação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, no sentido já prontamente identificado, violava o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º, da CRP, ainda que não tenha densificado em que termos se materializava tal violação. Entende o Tribunal Constitucional a respeito deste princípio, nomeadamente no acórdão n.º 632/2008, de 23 de Dezembro de 2008, proferido no âmbito do processo n.º 977/2008 que “(…) o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos)”.

No que concerne ao subprincípio da adequação constata-se que a extensão dos efeitos fiscais à Requerente fruto da aplicação da cláusula anti-abuso não traduz uma medida inócua ou inapta à consecução dos fins visados pela norma interpretada, uma vez que aquela extensão é idónea a garantir a desconsideração das vantagens fiscais indevidamente obtidas, garantindo que a tributação é realizada em cumprimento dos pressupostos que seriam aplicáveis não fosse a realização das operações realizadas para a obtenção daqueles benefícios. Quanto ao subprincípio da exigibilidade ou necessidade verifica-se que o legislador não dispunha de outros meios menos restritivos para alcançar a finalidade de tributação da substância económica efectivamente verificada, o que é desde logo justificável pelo facto de a desconsideração fiscal das operações em questão apenas ser legalmente admissível com recurso àquela que é considerada uma opção de ultima ratio do sistema para efeitos de garantir a justiça da tributação: a cláusula anti-abuso. Em relação ao princípio da proporcionalidade em sentido estrito, constata-se que a extensão dos efeitos da aplicação da norma anti-abuso à Requerente, enquanto substituta tributária, não traduz uma medida excessiva para alcançar a tributação dos acréscimos patrimoniais indevidamente recebidos pelos respectivos beneficiários. Pelo contrário, e conforme se referiu, esta é a única interpretação que permite prosseguir e concretizar, efectivamente, os efeitos pretendidos e previstos nos termos do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, porquanto esta é a solução que permite restabelecer a situação que existiria ab initio, isto é, que existiria se não tivessem sido praticadas a operações alvo daquela norma. Desta forma, improcede igualmente a alegada inconstitucionalidade invocada pela Requerente a este respeito.

 

Em face do exposto, julga-se conforme ao disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT que a liquidação de IRS (retenção na fonte) tenha sido concretizada em relação à Requerente, dado que é esta que surge como substituto tributário.

 

ii.            Dos negócios jurídicos abusivos

A questão a decidir é, pois, a de saber se tem lugar, nas circunstâncias do caso, a aplicação da cláusula anti-abuso a que se refere o artigo 38.º, n.º 2, da LGT, o que justifica que se comece pela caracterização dessa figura como mecanismo de controlo da fraude à lei fiscal.

 

A citada disposição da LGT declara como “ineficazes, no âmbito tributário, os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”. E, nesse caso, determina que a tributação se efectue de acordo com as normas que seriam aplicáveis se esses meios não tivessem sido utilizados, não se produzindo as vantagens fiscais que se pretendia obter.

 

Complementarmente, o artigo 63.º do CPPT prevê um procedimento tributário específico para a aplicação da disposição anti-abuso e impõe à Administração um especial dever de fundamentação dessa decisão que há-de compreender necessariamente (i) a descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam; e (ii) a demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais.

 

Segundo assinala Sérgio Vasques, a cláusula geral anti-abuso consagrada na LGT é composta de três elementos essenciais. “Em primeiro lugar exige-se a prática de acto ou negócio artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, exige-se o objectivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objectivos económicos reais. Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e práticas negociais mais comuns” (Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2018, pág. 374).

 

O sentido geral da norma é, nestes termos, o de permitir a desqualificação para efeitos fiscais de um qualquer acto ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte com o único, ou principal, objectivo de obtenção de uma vantagem fiscal, que possa consubstanciar uma fraude à lei fiscal. O efeito jurídico que resulta do funcionamento da cláusula anti-abuso é o de considerar os actos como praticados de acordo com o padrão normal do comércio jurídico para obter o mesmo resultado económico, determinando-se a obrigação tributária em função dos actos equivalentes que pudessem ser praticados. Exige-se, por conseguinte, que tenha sido praticado um acto ou negócio artificioso ou fraudulento que represente um abuso das formas jurídicas e que tenha tido como objectivo único ou principal a obtenção de uma vantagem fiscal.

 

Pode apontar-se como exemplo da adopção, na jurisprudência, deste esquema analítico o arrêt de principe representado pelo acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 15.02.2011, processo n.º 04255/10, que acolheu o entendimento segundo o qual: “A previsão da norma em análise consagra quatro pressupostos da sua aplicação, os quais são:

1-O elemento meio - o qual tem a ver com a forma utilizada, portanto, com a prática de certos actos ou negócios dirigidos, essencial ou principalmente, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos;

2-O elemento resultado - o qual visa a vantagem fiscal como fim da actividade do contribuinte, portanto, a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos;

3-O elemento intelectual - o qual tem a ver com a motivação fiscal do contribuinte, portanto, com o facto dos actos ou negócios pelo mesmo praticados serem essencial ou principalmente dirigidos ao resultado que é a vantagem fiscal;

4-Elemento normativo - o qual tem a ver com a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida, portanto, o contribuinte atua com manifesto abuso das formas jurídicas (cfr. art°. 63, n° 2, do C.P.P. Tributário).

Na estatuição da norma vamos encontrar o elemento sancionatório que se traduz na ineficácia, no âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos em causa, os quais passam a ser inoponíveis à A. Fiscal (...). O elemento sancionatório corresponde, por isso, à estatuição da norma em apreciação, dependendo a sua aplicação da verificação cumulativa dos pressupostos consagrados na sua previsão”.

 

Na jurisprudência arbitral tributária deste CAAD encontra-se igualmente esta dissecação do art. 38.º, n.º 2 da LGT em cinco elementos, como se pode exemplificar com os acórdãos proferidos nos processos 143/2014-T e 208/2014-T, em que se explana o seguinte: “A doutrina e a jurisprudência têm vindo a desconstruir a letra da norma apontando cinco elementos nela patentes. Correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatro afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir – como se de um teste se tratasse – quanto à verificação de uma actividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo”, elementos estes que consistem: “– no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida

– acto ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de actos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal; – no elemento resultado, que contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos actos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente; – no elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja

«essencial ou principalmente dirigid[a] [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objectivamente, se o contribuinte «pretende um acto, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam»; – no elemento normativo, que «tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela » ; – e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT)”.“GAARs are an indispensable tool against the abuse of tax law, as the evolution of comparative law highlights. Countries, such as the United Kingdom, the legal culture  of which has traditionally been reluctant to adopt this technique, have enacted a GAAR, as has the European Union, which, in addition to introducing a GAAR in the Parent Subsidiary Directive (2011/96), has recommended that the Member States adopt a GAAR “adapted to domestic and cross- border situations confined to the Union and situations involving third countries” [European Commission, Commission recommendation on aggressive tax planning, C (2012) 8806 final (6 Dec. 2012)] .

 

 

Neste ponto discute-se a aplicação da CGAA aos negócios jurídicos realizados pela Requerente:

-              Constituição da A..., SGPS (ora, Requerente);

-              Compra das participações sociais da B..., SGPS, S.A., aos seus sócios;

Segundo a Requerente, esta segmentação dos negócios a desconsiderar através da CGAA é violadora dos pressupostos da CGAA, nomeadamente do elemento meio, uma vez que, “a haver qualquer desconsideração, teria de incidir sobre todos os actos e negócios jurídicos que integram essa estrutura”.

Ademais, refere a Requerente que a AT não teria demonstrado a factualidade necessária ao preenchimento dos pressupostos de aplicação da CGAA e ignorou as restantes motivações que levaram à criação e manutenção da Requerente. De acordo com a Requerente, “os serviços de inspeção não têm nem factos nem motivações que permitam sustentar as suas conclusões, tendo privilegiado a obtenção de receita à descoberta da verdade material.” A AT, por seu turno, considera que a estrutura montada pelo sujeito passivo é abusiva e preenche a previsão do 38.º, n.º 2 da LGT. Além disso, as motivações que foram alegadas pela Requerente são negligenciadas pela AT, dizendo mesmo que “nenhuma das razões que a requerente apontou como estando na base da sua constituição é crível”. Resumindo, a AT sustenta que a Requerente não conseguiu, nas acções inspectivas ou durante a litigância processual, demonstrar a racionalidade económica subjacente aos negócios em análise, referindo expressamente que «é manifesto que os actos e negócios jurídicos realizados pelos sujeitos passivos não são típicos nem normais na gestão de sociedades efectuada com base na simples racionalidade económica-financeira. Só é possível compreender esta sucessão de actos e negócios jurídicos no contexto da procura de um determinado resultado fiscal (a não tributação da distribuição de lucros). As condições do negócio, bem como todos os actos praticados previamente, inserem-se na lógica do esquema desenhado pelos accionistas da A... SGPS /B... SGPS, e tiveram como objectivo a transformação do pagamento de dividendos no pagamento do preço acordado e consequente redução do crédito registado contabilisticamente.»

 

Dito isto, a questão jurídica central do caso em análise é, por isso a aplicação ou não da CGAA aos negócios efectuados pelo sujeito passivo. Feito este enquadramento, aprecie-se, agora, em termos específicos, os indicados elementos “resultado”, “intelectual”, “meio” e “normativo” de aplicação da cláusula anti-abuso.

 

Vejamos em concreto cada negócio identificado acima e analisemos os ditos elementos para cada um deles. Antes de mais, perceba-se que o vector decisivo na verificação da legitimidade da aplicação da cláusula geral anti-abuso é sempre a apreciação casuística, em função dos valores e objectivos do ordenamento jurídico-tributário, das circunstâncias que estão presentes na situação fiscalmente relevante em julgamento. Como se escreve no citado acórdão do TCA Sul proferido no proc. n.º 04255/10 “a questão de determinar se algum expediente em particular é “puramente artificial” deve ser resolvida nos tribunais domésticos caso a caso”. Com efeito, o funcionamento da cláusula geral anti-abuso, consagrada no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, pressupõe sempre uma tarefa de realização concreta do Direito em função das circunstâncias fácticas e dos contornos materiais da situação sub judice, não sendo viável, a seu propósito, sob pena de se desprotegerem as necessidades reais que presidiram à sua consagração, reduzir a sua aplicação à subsunção estrita e automática das realidades a categorias jurídicas abstractas. Passemos então à análise em especial a esta estrutura.

 

iii.           Da aplicação da CGAA aos negócios jurídicos abusivos: Constituição da A..., SGPS (a Requerente) e a compra das acções pela Requerente aos accionistas da B..., SGPS, S.A.

 

Feito este enquadramento, aprecie-se, agora, em termos específicos, os indicados elementos “resultado”, “intelectual”, “meio” e “normativo” de aplicação da cláusula anti-abuso aplicada aos negócios de constituição da Requerente e da sua compra das acções aos accionistas da B..., SGPS, SA.

 

Elemento resultado: O resultado reporta-se à vantagem obtida, isto é, à consequência que advém dos negócios jurídicos praticados. A sua verificação dá-se quando, por meio da estrutura jurídica utilizada, se alcance a “redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”.

Aquilo que vemos no caso em análise é que a constituição da A... por um grupo de accionistas, juntamente com a compra das acções dos mesmos por parte da sociedade se revelou num ganho fiscal em sede de IRS, sem pagamento do preço. Através desta estrutura os accionistas puderam, por via de dividendos, receber a título de pagamento do preço das acções os montantes que, em caso de distribuição da B..., SGPS, S.A. directamente para a sua esfera, estariam sujeitos a retenção na fonte.

Para aplicação da CGAA é relevante o negócio de que resulte a eliminação, redução ou diferimento de impostos. Este requisito encontra-se preenchido. Ora, o contribuinte pretende, pois, enquanto resultado, contornar a lei fiscal e praticar certo acto ou negócio com vista a obter uma vantagem fiscal. E por vantagem fiscal entende-se qualquer situação em que, em virtude da prática de certos actos, se alcança uma carga tributária que é mais favorável do que aquela que resultaria da prática de actos normais e de efeito económico equivalente, sujeitos a tributação. Nos casos de aplicação da CGAA, a vantagem fiscal é condicionante e determinante na actuação do contribuinte.

 

Concluindo, no elemento resultado pretende-se demonstrar que, como resultado dos actos praticados, obteve-se determinada vantagem fiscal, bem como a equivalência ao nível dos efeitos económicos alcançados, com aqueles que seriam obtidos caso houvesse sido praticado o negócio considerado usual.

 

Elemento intelectual: O acto ou negócio é reprovável porque a vantagem fiscal influencia e determina plenamente a actuação do contribuinte no que toca às formas escolhidas, motivando a sua actuação com vista a alcançar o resultado fiscal pretendido. Verifica-se quando os actos ou negócios em questão tenham, pois, sido “essencial ou principalmente dirigidos” à obtenção de uma vantagem fiscal, sendo esta relevante para efeitos de aplicação da norma.

Há um problema que se revela comum às várias formas de manifestação do elemento intelectual, que é precisamente o de determinar quando e como é que o nível de importância da motivação do contribuinte para a realização de certa operação ultrapassa o limite do aceitável, de tal modo que, quando tal aconteça, leve a concluir pela verificação do elemento. Neste domínio, a “quantificação” não se apoia em limites objectivos e aritméticos, cabendo ao juiz, enquanto aplicador do direito, fazer o juízo que visa perceber e atestar se determinada conduta deve considerar-se como reprovável pelo ordenamento jurídico, por estar teleologicamente direccionada para a obtenção de uma vantagem, também ela reprovável.

Embora haja críticas no sentido de reprovar a necessidade de um requisito normativo neste domínio, isto é, perante este tipo de normas, certo é que estando em causa uma análise da motivação do contribuinte, no contexto de uma norma anti-abusiva, é tida como natural esta vertente subjectiva, não obstante ser notória uma atitude de viragem, no sentido da diluição do factor subjectivo na comprovação do elemento meio. No caso concreto, as intenções dos negócios por parte dos accionistas são variadas. A Requerente invoca outras motivações além da questão fiscal, que parece evidente que existe e que, sublinhe-se, não é por si indiciador de abuso.

 

Entre essas outras motivações estão: 1) viabilizar a compra de mais participações da B... SGPS, S.A. e reforçar a capacidade de negociação relativamente aos accionistas individuais; 2) evitar a exposição à instabilidade dos Acordos Parassociais; 3) ficar desde logo munido por uma sociedade que sempre seria necessária para o lançamento de uma OPA à B..., SGPS, S.A; 4) potenciar as possibilidades de investimento noutras empresas tecnológicas, não concorrentes da B... SGPS, S.A.. Segundo a AT, nenhum destes motivos logra provar que a operação tenha uma racionalidade económica subjacente, por serem falsos ou por não passarem de uma tentativa de criação de substância à posteriori.

A norma portuguesa adoptou uma forma intermédia no que respeita à verificação da motivação do sujeito passivo. É importante determinar quando e como é que o nível de relevo da motivação do contribuinte relativamente à realização de certa operação ultrapassa um nível admissível, de tal modo que leve a concluir pela verificação deste elemento. É ao aplicador do direito que compete o juízo subjectivo com vista a perceber se determinada conduta está finalisticamente direcionada para a obtenção de uma vantagem que deva ser reprovável pelo ordenamento jurídico. Ora, a própria determinação do elemento intencional fica refém de uma apreciação subjectiva, podendo potenciar aplicações discricionárias da CGAA. Todavia, a necessidade de analisar as motivações do contribuinte enquanto pressuposto das normas anti-abuso tem persistido, mas tem-se contudo evoluído no sentido da objectivização do funcionamento destas normas. Decorre do n.º 2 do artigo 38.º da LGT este elemento intelectual, quando fala a lei em “actos ou negócios jurídico essencial ou principalmente dirigidos”, exigindo-se, para a respectiva verificação, como prescreve o artigo 63.º, n.º 3, alínea b) do CPPT, que se ateste se o contribuinte “pretende um acto, negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionaram”.

Esta análise racionaliza a aplicação do mecanismo da CGAA, não se bastando o legislador com a mera obtenção de um resultado que é fiscalmente vantajoso, não promovendo uma aplicação automática desta norma, como acontece noutros ordenamentos.

Como bem identifica a Requerente nas suas alegações: “o que está em causa nos autos é determinar a motivação que presidiu à constituição da Requerente e, em especial, se a motivação foi exclusiva ou preponderantemente fiscal”. Isto definirá o preenchimento do elemento intelectual de aplicação da CGAA. No caso em apreço, parece-nos que a pedra de toque do preenchimento do elemento intelectual é a antes a forma de execução do contrato de compra e venda das acções e a sua não genuinidade. Note-se que diz a própria Requerente: “elementos apresentados evidenciam que o preço da venda das ações em crise nos autos ainda não se encontra pago na totalidade, tendo já decorrido o prazo estipulado no contrato para que tal obrigação fosse cumprida – 3 anos”. Sublinhe-se que é legítima, à luz da CGAA, a constituição de uma SGPS como forma alternativa para reforçar a posição accionista numa dada sociedade. O que está aqui em causa é, pois, a não genuinidade da forma como essa SGPS foi constituída, contaminando toda a estrutura montada pela Requerente. A execução do contrato de compra e venda é assim feita de forma algo suspeita uma vez que lhe subjaz uma realidade económica semelhante ao pagamento dos dividendos e não do preço das acções; e isto, no entender da maioria deste tribunal demonstra que há uma motivação “essencial ou principalmente dirigida” à poupança fiscal. No ano de 2013, a montagem do sujeito passivo permite que sejam “distribuídos aos accionistas da A... SGPS 3.510.354,02 € de um total de 3.570.611,25 € relativos a lucros, líquidos de imposto, recebidos da B... SGPS”. O incumprimento das condições iniciais estabelecidas no contrato é o ponto nevrálgico, uma vez que esse não cumprimento foi feito de forma tal que era pago o preço das acções da A..., SGPS na (quase) exacta medida em que eram recebidos por esta os lucros distribuídos na B..., SGPS, S.A.. Não se pode assim deixar de concluir pelo preenchimento do elemento intelectual. A motivação fiscal abrange qualquer conduta ou comportamento (humano) que seja finalisticamente direccionado à obtenção de uma vantagem de cariz tributário, pressupondo a predeterminação da actuação do sujeito. Deve também ser tida em atenção a utilidade final daquele negócio. A execução do contrato denuncia o comportamento fiscalmente motivado no que respeita à venda das acções no caso em concreto. Da falta de cumprimento das condições estabelecidas no contrato demonstra-se que, no caso deste negócio, a finalidade económica ficou em segundo plano, deixando sobreelevar a vantagem fiscal, preenchendo o elemento. Nos casos de elisão fiscal, a finalidade económica do negócio é desvalorizada pelo sujeito passivo, enfatizando-se substancialmente o seu propósito fiscal, enquanto razão decisiva para a sua realização.

 

Elemento normativo: É feito uso do mesmo em diferentes ordenamentos jurídicos para distinguir, no âmbito do próprio direito, a elisão fiscal da poupança fiscal legítima. Este elemento – que não está expressamente previsto no texto da lei, mas que decorre, de modo implícito, da necessidade de que o resultado da análise dos factos seja conciliado com os princípios e valores do ordenamento jurídico, só assim se podendo atestar e concluir pela reprovação do resultado ou vantagem fiscal obtida, em face do ordenamento jurídico-tributário – permite, pois, a exclusão da aplicação da CGAA do conjunto de casos que comportam actos ou negócios jurídicos que, não obstante serem levados a cabo por motivos predominantemente fiscais, não ofendem a norma, o código ou os princípios do ordenamento jurídico-fiscal.

Como se disse, este elemento não decorre directa e expressamente da letra da lei, pese embora a sua incontestável relevância. Está pois em causa a aferição da desconformidade entre o resultado obtido e a ratio legis da norma, o seu espírito e intento, sendo que esta desconformidade é característica da elisão fiscal, constituindo um insuperável requisito da CGAA.

Exige-se que o resultado fiscal obtido seja antijurídico, querendo isto significar que a desconsideração dos actos e negócios praticados apenas ocorra quando seja demonstrado que o efeito fiscal obtido é merecedor de um juízo de reprovação pelo direito.

Há que olhar, no caso concreto, aos princípios motivadores do IRS que são a igualdade e a capacidade contributiva. Podemos dizer que a alteração da estrutura fiscal destes accionistas individuais para uma estrutura de detenção interposta por uma SGPS traz consequências que permitam repensar a sua capacidade contributiva? A distribuição aos accionistas pela B..., SGPS, S.A. é, em alguma medida, distinta ao nível dos princípios da distribuição encapotada feita pela A..., SGPS, aos novos accionistas? Manifestando-se da mesma forma a capacidade contributiva na esfera destes accionistas, está preenchido o elemento normativo dado que nada no ordenamento jurídico-fiscal permite sustentar que esta realidade não deve ser tributada.

 

Elemento meio: Como ensinava SALDANHA SANCHES, é aos contribuintes que cabe “a escolha dos meios específicos pelos quais realizam os seus negócios: necessário é que exista, como motivo para a sua escolha, não uma certa via de obtenção de uma poupança fiscal contra a intenção expressa da lei, mas, sim, o que pode considerar-se como uma razão comercial legítima”.

O elemento meio consiste, assim, na via que é utilizada para alcançar a vantagem ou ganho fiscal. Note-se que os actos ou negócios em causa podem surgir de modo isolado ou integrados numa sequência lógica de actos que se dirigem à obtenção de uma vantagem fiscal. “Contrariamente ao que acontece em outros ordenamentos jurídicos, da norma decorre que o legislador estipula a ineficácia dos “atos ou negócios jurídicos”, não efetuando uma menção expressa à estrutura ou esquema elisivo no seu todo”. Em suma, o elemento meio refere-se aos “atos ou negócios jurídicos (essencialmente ou principalmente dirigidos), por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas” que possibilitem a obtenção de uma vantagem fiscal. Embora tenha sido efectuada uma análise individualizada dos diversos negócios jurídicos em causa, não foi dispensada uma análise do esquema como um todo, porquanto esta é fundamental à correcta aplicação da CGAA. Na análise do caso concreto, importa compreender que perante a adopção de certos passos aparentemente ilógicos do ponto de vista empresarial, num quadro sequencial também ele incoerente, e quanto mais rápido obtenha o contribuinte certa vantagem fiscal, mais provável é que a AT conclua pela artificialidade da estrutura em causa.

Ora, neste concreto caso conclui-se pela não genuinidade da montagem ou série de montagens em questão, na medida em que não foram postas em prática por razões comerciais válidas que reflictam a realidade económica. Foi precisamente da artificialidade dos actos praticados, da sua não genuinidade, que derivou a indiscutível vantagem de não haver tributação dos dividendos. Façamos ainda uma precisão: a artificialidade exigida pela lei verifica-se não quanto à constituição da SGPS, mas relativamente ao negócio jurídico de compra e venda de acções dos accionistas da B..., SGPS, S.A.. A execução deste negócio foi pensada e realizada de forma artificiosa, permitindo uma poupança fiscal que de outro modo não alcançaria. Ora, não há substracto económico que justifique tal execução contratual – da constituição da SGPS ser feita através da compra e venda de acções e não a da constituição da SGPS tout court -, tornando-se fraudulenta e ilegítima a vantagem fiscal assegurada com este negócio de compra e venda de acções mesmo e principalmente à luz do teste do princípio da igualdade na vertente da capacidade contributiva.

 

A ter havido genuíno e autêntico conteúdo económico, e não apenas benefícios tributários, considerar-se-ia não existir fraude à lei. Todavia, “se os caminhos normais para lograr um certo resultado não são seguidos por razões primordialmente fiscais, estamos no campo de actuação da cláusula geral anti-abuso, na medida em que, não havendo motivos económicos válidos a justificar o recurso a configurações jurídicas anómalas, nos encontramos no domínio da elisão e já não da economia de opção” .

É também indispensável, na análise do caso concreto, identificar de modo claro e preciso a existência de elementos abusivos. Relativamente à constituição da Requerente e actividade por si desenvolvida, não importa, neste caso, perceber se existe um estabelecimento real – com existência física comprovada –, com funcionários e equipamentos, capaz de reflectir uma realidade económica, dado que a actividade típica de uma SGPS não tem de implicar a existência de funcionários, equipamentos, etc.. Reforçamos a ideia de que a mera constituição da Requerente não é suficiente para aplicar a CGAA, porquanto integra a liberdade económica de cada contribuinte decidir acerca da melhor gestão do seu património, nomeadamente das suas participações sociais. Onde se encontra fundamento para aplicação da CGAA é no facto de o contrato de compra e venda das acções da B..., SGPS, S.A. ser uma configuração jurídica anómala – refira-se a falta de substracto económico na execução do contrato –, concluindo-se que se está perante uma construção fictícia, que não visa o verdadeiro e efectivo exercício de uma actividade económica, apresentando o carácter de expediente artificial. Reforce-se que o preço estipulado nunca foi pago na totalidade aos accionistas. Este é o ponto central que denuncia a falta de uma realidade económica subjacente e a preponderância da motivação fiscal da operação. Este elemento considera-se também preenchido.

 

Por estarem preenchidos todos os elementos referidos no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, e tendo sido o cumprido o procedimento plasmado no artigo 63.º do CPPT, conclui-se correcta a liquidação feita nos termos da norma anti-abuso.

 

Nestes termos, improcede o pedido acessório relativo à indemnização por prestação de garantia indevida, por não se verificar qualquer erro imputável aos Serviços, conforme previsto no artigo 53.º da LGT.

 

VI.          DECISÃO DO TRIBUNAL

 

i.             Quanto à existência da obrigação tributária da Requerente:

Julga-se improcedente o pedido arbitral e a liquidação conforme ao disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, concretizada em relação à Requerente, dado que é esta que surge como substituto tributário.

ii.            Quanto à aplicação da CGAA relativamente à constituição da A..., SGPS (a Requerente) e à compra das acções pela Requerente aos accionistas da B..., SGPS, S.A., e consequentes liquidações adicionais:

Julga-se improcedente o pedido arbitral visto estarem preenchidos todos os pressupostos de aplicação da CGAA, tendo sido as liquidações promovidas dentro da legalidade.

iii.           Quanto ao pedido de indemnização por garantia indevida

Julga-se improcedente o pedido indemnizatório por falta de verificação dos respectivos pressupostos, em concreto pela inexistência de erro imputável aos Serviços.

 

VII.         VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 1.158.529,79 (um milhão, cento e cinquenta e oito mil, quinhentos e vinte e nove euros e setenta e nove cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VIII.       CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 15.912,00 (quinze mil, novecentos e doze euros), nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 23 de Abril de 2021

 

A Árbitro Presidente

(Alexandra Martins)

Conforme declaração de voto junta

 

O Árbitro Vogal

(Jorge Carita)

 

A Árbitro Vogal

(Carla Castelo Trindade)

 

Declaração de voto

 

Discordo da decisão por entender que a cláusula geral antiabuso acolhida pelo artigo 38.º, n.º 2 da LGT visa situações em que se verifica um comportamento de contorno de normas fiscais, cuja finalidade, essencial ou preponderante, é a obtenção de um benefício tributário – de redução, eliminação ou recuperação de impostos –, traindo a finalidade e ratio das normas fiscais e pondo em causa o princípio da igualdade tributária.

 

Para tanto, a hipótese normativa do citado artigo contém dois pressupostos que, sem prejuízo do respeito por opinião diferente, considero que não se verificam no caso concreto. São eles, a saber: (i) os atos ou negócios terem sido gizados essencial ou principalmente à obtenção de uma vantagem fiscal; (ii) terem sido empregues meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas. Dito de outro modo, a aplicação deste regime reclama o caráter não genuíno da operação e que a mesma não seja realizada por razões económicas válidas.

 

No caso dos autos, ficou patente e resulta do quadro factológico que a motivação inequívoca de constituição da Requerente foi a criação de um veículo societário que reunisse as participações que quatro pessoas (físicas) detinham no capital social da B..., SGPS, S.A., sociedade cotada em bolsa, para, a partir daí, reforçarem essas participações e alcançarem o controlo dessa sociedade.

 

Objetivo este que, aliás, já tinham ensaiado por outra via, que à data não se revelou exequível, e que passava por uma OPA. Cujas razões justificativas eram as mesmas: concentração de capital, em vez de dispersão, e controlo.

 

Acresce que o parqueamento das participações num veículo societário facilitava a subsequente gestão coordenada e institucional dessas participações, com a obtenção de financiamento em condições mais vantajosas e a ultrapassagem de diversas questões atinentes às vicissitudes pessoais que pudessem surgir na esfera dos accionistas individuais e de governo societário.

 

Por outro lado, os meios empregues são os típicos e normais, seja quanto à forma (jurídica), seja quanto à prática (negocial), pois essa é precisamente a vocação das sociedades holding (SGPS), que podem revestir diversas modalidades, como sejam as holdings passivas ou financeiras e as holdings directivas, não sendo de estranhar que não disponham de colaboradores, quando o seu objectivo é estratégico, de detenção e reforço de participações, como neste caso e, diga-se, em inúmeros outros, e não de prestação de serviços técnicos ou corporativos à(s) sociedade(s) participada(s).

 

Trata-se ainda do exercício de actividade económica, embora, conforme refere o regime das

SGPS, de um “exercício indirecto” de uma actividade económica.

 

Deste modo, para além de motivos económicos válidos, que se concretizaram, pois ocorreram efetivamente: (i) a concentração de participações; (ii) o reforço de capital almejado; (iii) a detenção e gestão institucional das participações, não se consegue identificar qualquer configuração jurídica anómala ou artificiosa.

 

A parcial coincidência entre a cadência do recebimento de dividendos pela Requerente e o pagamento, por esta, da dívida gerada com a aquisição das acções da B..., SGPS, S.A. aos seus accionistas, revela a opção da Requerente em utilizar os rendimentos da sua actividade para diminuir o seu passivo. Não tem a virtualidade de, sem mais, espelhar ou indiciar a transformação de um fluxo financeiro (pagamento de dividendos, tributado), noutro fluxo financeiro (pagamento do preço das acções, não tributado).

 

Interessa ainda notar que, como entendia o saudoso Professor Saldanha Sanches, a cláusula antiabuso constitui uma solução de última ratio, de natureza excepcional. A escolha pelo Requerente da via fiscalmente menos onerosa, relativamente a uma operação cujo móbil não é predominantemente fiscal e que recorre a meios normais e típicos de efectivação, não deve merecer tal desvalor. Sob pena de se fragilizarem os alicerces do sistema, fundados na tipicidade e legalidade, enveredando-se por um casuísmo metodológico que, por razões de segurança jurídica, não se advoga.

 

Lisboa, 23 de Abril de 2021

Alexandra Coelho Martins

 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os Árbitros Alexandra Coelho Martins (Árbitro Presidente), Carla Castelo Trindade e Jorge Carita, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o presente Tribunal Arbitral, na seguinte

 

I – RELATÓRIO

 

1. Em 5 de Setembro de 2018, A..., SGPS, S.A., pessoa colectiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º..., ..., Lisboa, ...-... Lisboa (doravante "Requerente"), requereu a constituição de Tribunal Arbitral e apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 10.°, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações posteriores (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, a seguir RJAT), para apreciação da legalidade da demonstração de liquidação de retenções na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares ("IRS") n.º 2018 ... de 30.04.2018 e das correspondentes demonstrações de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2018 ..., 2018 ... e 2018 ..., referentes ao ano de 2013.

 

2. A referida liquidação adicional de IRS (retenção na fonte) resultou da aplicação pela Autoridade Tributária da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.°, n.º 2, da Lei Geral Tributária ("LGT") à aquisição pela Requerente, em Maio de 2013, de 24,02% do capital social da sociedade B...- SGPS, S.A., entendendo a Administração Tributária que o pagamento do preço de aquisição das acções deve assumir a natureza de dividendos e que, como tal, a Requerente incumpriu o dever de retenção na fonte de IRS sobre lucros colocados à disposição, havendo lugar à sua responsabilização enquanto substituto tributário, por força do disposto no artigo 103.° do Código do IRS.

 

3. Não se conformando com a referida liquidação de imposto e juros compensatórios - desde logo por considerar a operação realizada como traduzindo uma reorganização empresarial perfeitamente legítima e linear - a Requerente requereu a constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do artigo 10.°, n.º 1, alínea a), e 2.° do RJAT, formulando os seguintes pedidos na sua petição (a seguir PI):

i)             Declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2018 ... de 30 de Abril de 2018, com fundamento:

a)            Na falta de preenchimento concreto dos pressupostos materiais de aplicação da cláusula geral anti-abuso constantes do artigo 38.°, n.º 2 da LGT; e

b)           Na inoponibilidade à Requerente da desconsideração dos efeitos fiscais resultante da aplicação da cláusula geral anti-abuso aos actos em questão, por inconstitucionalidade material do artigo 38.°, n.º 2, da LGT, interpretado no sentido de ser apto a produzir efeitos fiscais sobre terceiros que não o contribuinte que agiu motivado para a obtenção da vantagem fiscal, face aos princípios da confiança e da segurança jurídica, ínsito no principio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da CRP e da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º da CRP.

ii)            Declaração de nulidade da liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., 2018... e 2018... referentes ao ano de 2013, em face da anulação da liquidação de IRS de que é acto consequente;

iii)           Condenação da Administração Tributária no pagamento de indemnização por eventuais encargos incorridos com a prestação indevida de garantia com vista à suspensão do processo de execução fiscal, nos termos do artigo 53.°, n.º 1, da LGT, por erro imputável aos Serviços na prolação dos actos tributários impugnados, bem como nas custas do processo arbitral.

Com a petição juntou 20 documentos, e arrolou 3 testemunhas.

4. Como a Requerente optou pela não designação de árbitro, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo a Dra. Alexandra Coelho Martins, a Dra. Carla Castelo Trindade e o Dr. Jorge Carita, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 e no n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 19 de Novembro de 2018.

5. Em 4 de Janeiro de 2019, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida”) apresentou resposta (a seguir “R.”) em que defendeu a improcedência total do pedido de pronúncia arbitral.

6. No dia 19 de Fevereiro de 2019, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram prestadas declarações de parte e inquiridas as duas testemunhas apresentadas pela Requerente.

7. As alegações escritas foram apresentadas pela Requerente em 12 de Março de 2019, onde concluiu dizendo que termina como no requerimento arbitral, devendo ocorrer a integral procedência do aí peticionado.

8. A entidade Requerida apresentou alegações escritas em 3 de Abril de 2019, reiterando o pedido de total improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, por não provado, com as demais consequências legais.

 

As alegações apresentadas foram tidas em consideração na apreciação da matéria de facto e de direito.

 

II. SANEAMENTO

9. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas quaisquer questões que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa.

As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), e mostram-se devidamente representadas.

Tudo visto, cumpre proferir decisão final.

 

 

III. QUESTÕES A DECIDIR

 

10. Em face das posições assumidas e dos fundamentos alegados pelas partes nas suas peças processuais, as questões a decidir no âmbito do presente processo arbitral

prendem-se com a apreciação da legalidade da liquidação de IRS (retenção na fonte)

n.º 2018... de 30.04.2018, no montante de € 982.899,13 (novecentos e oitenta mil, oitocentos e noventa e nove euros e treze cêntimos) e da correspondente demonstração de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2018..., 2018... e 2018..., referentes ao ano de 2013, no montante de € 175.630,66 (cento e setenta e cinco mil, seiscentos e trinta euros e sessenta e seis cêntimos), tudo num total de € 1.158.529,79 (um milhão centos e cinquenta e oito mil, quinhentos e vinte e nove euros e setenta e nove cêntimos), em atenção aos seguintes vícios invocados pela Requerente:

a) Inoponibilidade à Requerente, como (hipotética) substituta tributária, da desconsideração de efeitos fiscais resultante da aplicação da cláusula geral anti-abuso aos actos em questão, em concomitante violação do artigo 38.°, n.º 2, da LGT ou, caso assim se não entenda, por inconstitucionalidade dessa norma em face dos princípios da certeza e segurança jurídicas e da proporcionalidade. Assim, mesmo admitindo preenchidos os pressupostos para aplicação da cláusula geral anti-abuso, não estão preenchidos os pressupostos de que depende a retenção na fonte;

b) Falta de preenchimento dos pressupostos de aplicação da cláusula geral anti-abuso, em violação do disposto no artigo 38. °, n.º 2, da LGT, nomeadamente por:

i. Inexistência de motivação essencial ou principal de natureza fiscal para a compra e venda de acções da sociedade B...- SGPS, S.A., uma vez que a constituição da Requerente teve como objectivo salvaguardar as acções detidas por accionistas individuais e a posição accionista que as mesmas conferem;

ii. Inexistência de recurso a operação artificiosa ou fraudulenta, nem abuso das formas jurídicas à sua disposição para realizar a operação;

iii. Insuficiência da existência de vantagem fiscal obtida como resultado da compra e venda de acções para se demonstrar verificado o elemento meio;

iv. Inexistência de desconformidade do resultado obtido com a ratio legis das normas aplicadas, por inexistir no ordenamento jurídico tributário sinais inequívocos de uma intenção de tributar aquele resultado económico;

 

Para além da apreciação da legalidade dos actos tributários impugnados nos termos acima indicados, cabe ainda, dado o correspondente pedido formulado pela Requerente, decidir sobre a condenação da Administração Tributária no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, nos termos do artigo 53.°, n.º 1, da LGT.

 

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

IV.1. FACTOS PROVADOS

11. Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada. Tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do anterior CPC, correspondente ao artigo 596.º do actual CPC).

12. Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes nos respectivos articulados (PI e alegações da Requerente, Resposta e contra-alegações da Requerida), à prova documental junta aos autos e à prova testemunhal produzida na reunião havida, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

A)           A REQUERENTE –A..., SGPS S.A.

 

1.            A Requerente foi constituída em 21 de Maio de 2013 como sociedade comercial anónima na modalidade de sociedade gestora de participações sociais, com o objecto social de «gestão de participações noutras sociedades como forma indirecta de exercício de actividades económicas», tendo como accionistas fundadores C..., D..., E..., F..., G... com o capital social de EUR 50.000,00, representado por 50.000 acções com o valor nominal de €1 cada, distribuídas da seguinte forma (cfr. Anexo 2 ao doc. n.º 1 e doc. n.º 3 juntos à PI):

Nome do Accionista        N.º de Ações

C...         16.668

   D...     13.784

E...         11.593

F...         7.954

G...        1

Total:    50.000

               

 

2.            No seu primeiro ano de actividade, em prossecução do seu objecto social, a Requerente adquiriu:

a)            Em 22 de Maio de 2013, um total de 7.543.660 acções da B..., SGPS, S.A., correspondentes a uma participação de 24,02% no capital desta empresa, pelo preço total de € 22.630.980,00 (no valor de € 3,00 por acção), a pagar em três anos (cfr. Anexo 1 ao doc. n.º 1 e doc. 6 juntos à PI);

b)           Em 28 de Maio de 2013, a Requerente adquiriu mais 29.920 acções da B... SGPS, S.A, pelo valor de € 3,00 por acção (cfr. docs. 6 e 7 juntos à PI);

c)            Em 3 de Junho de 2013, adquiriu um lote de 433.344 acções da B... SGPS, S.A., pelo valor de € 2,47 por acção (cfr. docs. 6 e 8 junto à PI);

d)           Em 28 de Junho de 2013, a Requerente recorreu a crédito bancário, concedido pelo BANCO H.../I..., S.A., no montante de € 1.070.333,00 para aquisição das participações sociais referidas no ponto anterior (cfr. doc. n.º 11 junto à PI);

e)           A 31 de Dezembro de 2013, a Requerente apenas participava no capital social da B... SGPS, S.A. (cfr. doc. 1 junto à PI);

f)            Desde Maio de 2013, a Requerente reforçou a participação accionista na B..., SGPS, S.A., passando de um percentagem inicial de detenção de 24,02%, para 32,68% em 2017 (cfr. docs. 9 e 10 juntos à PI);

g)            A Requerente tem quatro administradores e não tem colaboradores (cfr. doc. 1 junto à PI corroborado com as declarações de parte);

 

B)           A SOCIEDADE –B...- SGPS, S.A.

 

h)           A B... - SGPS, S.A. é a sociedade que lidera o Grupo J..., líder português em Tecnologias de Informação, entrando em bolsa no ano de 2000, sendo uma entidade cotada na Euronext Lisbon (https://www.bolsadelisboa.com.pt; http://www.... ;

i)             À data da constituição da A...– SGPS, S.A., quatro dos accionistas que a constituíram detinham na B... – SGPS, S.A., as seguintes participações: (cfr. publicações juntas como doc. n.º 6 à PI e estrutura acionista constante do Relatório e Contas da B...– SGPS, S.A. a 31.12.2012, doc. n.º 28 junto com as alegações):

 

Accionistas         N.º de Ações      % Capital Social

C...         2 514 997            8,01%

   D...     2 079 592            6,62%

F...         1 899 799            6,05%

E...         1 749 074            5,57%

                              

j)             Os referidos accionistas detinham assim conjuntamente 8.243.462 acções representativas de 26,25% do capital social da B...– SGPS, S.A.;

k)            No ano de 2011, a B..., SGPS, S.A. distribuiu dividendos, provenientes do resultado líquido do período e de reservas livres e resultados acumulados no montante total de € 4.082.181,22, correspondendo a € 0,13 por acção (cf. documento n.º 15 junto à PI e declarações da parte minutos 41:55 a 44);

l)             Em 2012, a B..., SGPS, S.A. distribuiu dividendos, provenientes do resultado líquido do período e de reservas livres e resultados acumulados no montante total de € 942.041,82, correspondendo a € 0,03 por acção (cfr. documento n.º 16 junto à PI e declarações da parte minutos 41:55 a 44);

m)          Em 7 de Fevereiro de 2013, a B..., SGPS, S.A., anunciou a aprovação, pelo Conselho de Administração, da intenção de propor à Assembleia Geral a distribuição de um dividendo de € 0,10 por acção, no total de € 3.140.139,40 (cfr. documento n.º 17 junto à PI e declarações da parte minutos 41:55 a 44);

n)           Na Assembleia Geral da B..., SGPS, S.A., de 25 de Setembro de 2013, foi deliberada distribuição de resultados e reservas acumuladas correspondentes a € 0,50 por acção (cfr. documento n.º 18 junto à PI e declarações da parte, minuto 43);

 

C)           “REESTRUTURAÇÃO”

 

o)           Em Maio de 2000, por ocasião da entrada em bolsa desta sociedade (via IPO), um grupo de accionistas da B... – SGPS, S.A., subscreveu um Acordo Parassocial referente a esta sociedade, com 22 accionistas subscritores (cf. documento n.º 4 junto à PI), no âmbito do qual assumiram, entre outros, o compromisso de manutenção de uma determinada percentagem no capital social e nos direitos de voto daquela sociedade, para assegurarem a estabilidade da empresa e uma posição de controlo – cfr. documento n.º 4 junto à PI;

p)           O cumprimento deste acordo parassocial e a necessária renovação/renegociação do mesmo a cada três anos, começou a suscitar questões geradoras de pressão sobre o núcleo central de accionistas, que, das 13 iniciais, em 2013, já se restringia a 6. Essas questões prendiam-se com a:

(a)          Saída de accionistas e divórcios, que suscitavam pressão e esforço financeiro dos accionistas individuais para adquirirem acções (dos que saíam ou dos cônjuges);

(b)          Agitação do mercado nos meses antecedentes às renovações (de três em três anos) do acordo parassocial;

– cfr. declarações de parte aos minutos 9:00 a 16:00 e depoimento da primeira testemunha.

q)           Na sequência de uma embrionária tentativa de OPA que não se revelou viável, a constituição da Requerente (em 21 de Maio de 2013) representou uma segunda alternativa [à OPA] que visou como objetivos estratégicos:

(a)          Concentrar numa sociedade holding um lote significativo de acções da B..., SGPS, S.A., como meio de reforço da posição de quatro accionistas de referência, até perfazer 33,4% (um terço), como forma de assegurar o controlo indireto daquela sociedade [B...] a esses quatro accionistas [da Requerente], sem que, para o efeito, tivessem de lançar uma OPA – cfr. declarações da parte aos minutos 47:40 a 47:55;

(b)          Estabilizar a manutenção da posição accionista de controlo da B..., SGPS, S.A., tornando-a menos volátil a vicissitudes pessoais, como saídas e divórcios;

(c)          Facilitar a compra das acções resultante dessas vicissitudes, pela via institucional (através de um veículo societário), e o respetivo recurso a financiamento bancário, cuja obtenção era mais vantajosa no caso de ser uma sociedade que juntava as quatro participações e que exercia uma “posição dominante” sobre a B..., SGPS, S.A.;

(d)          Servir de instrumento para outros investimentos futuros,

– cfr. docs. 11, 12 e 13 juntos à PI (contratos de mútuo bancário), declarações de parte aos minutos 9:00 a 30:00 e depoimento da segunda testemunha;

r)            Em 22 de Maio de 2013, a Requerente adquiriu aos seus accionistas 7.543.660 acções da B...– SGPS, S.A., correspondentes a uma participação de 24,02%, conforme referido na alínea a) supra;

s)            A aquisição das acções da B..., SGPS, S.A. pela Requerente aos seus accionistas foi realizada a preços similares ao das cotações dos títulos em bolsa – cfr. documento n.º 21 junto com as alegações da Requerente;

t)            No exercício de 2013, a Requerente recebeu da B... SGPS, S.A. € 4.760.815,00 relativos a lucros distribuídos (dividendos, distribuição de reservas e resultados acumulados), com uma retenção na fonte de € 1.190.203,75, resultando um valor líquido de € 3.570.611,25. O imposto retido foi reembolsado à Requerente em 1 Setembro de 2014, por via da autoliquidação da Mod.22 entregue em 30.05.2014 (cfr. documento n.º 1 junto à PI);

u)           No exercício de 2013, a Requerente pagou aos seus accionistas € 3.510.354,02, por conta da dívida resultante da aquisição àqueles de acções da B... SGPS, S.A.. Em 31 de Dezembro de 2013 estavam pagos e permaneciam em dívida os valores do quadro seguinte, discriminados por accionista (cfr. documento n.º 1 junto à PI):

 

Accionista           Valor pago          Valor em dívida

C...         € 1.166.961,20   € 6.386.186,80

D...         € 970.193,96       € 5.309.379,04

E...         € 556.200,00       € 3.043.800,00

F...         € 816.998,86       € 4.471.020,14

TOTAL   € 3.510.354,02   € 19.210.385,98

 

D)           “ACÇÃO INSPECTIVA”

v)            A Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu a uma inspecção externa, de âmbito parcial, com início a 27 de Outubro de 2017, ao abrigo das ordens de serviço internas n.os OI2017..., com referência ao exercício de 2013, visando analisar operações e movimentos financeiros realizados entre os accionistas e a sociedade (cfr. documento n.º 1 junto à PI - RIT, p. 6);

w)          No decurso daquela acção de inspecção foi projectada a aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT;

x)            Consideraram, em suma, os serviços de inspecção tributária que, “(…) a constituição da sociedade A... para parqueamento por parte dos seus accionistas das acções da B... SGPS que detinham diretamente, foram essencial ou principalmente dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, à redução de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios” (cfr. documento n.º 1 junto à PI);

y)            Em consequência, os serviços de inspecção tributária procederam à desconsideração e posterior requalificação como dividendos, para efeitos fiscais, dos montantes pagos a título de preço da aquisição das acções, quantificando a vantagem fiscal indevidamente obtida no montante total de € 982.899,13, a que acrescem juros compensatórios de € 175.630,66 (cfr. documento n.º 1 junto à PI);

z)            Nesta sequência, através do Ofício n.º..., de 09.03.2018, a Requerente foi notificada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 63.º, n.º 4 e 5, do CPPT, para exercer o direito de audição prévia quanto ao projecto de decisão de aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso (cfr. doc. n.º 1 junto à PI);

aa)         No prazo legalmente previsto, a Requerente exerceu o direito de audição prévia (cfr. página 62 e seguintes do doc. n.º 1 junto à PI);

bb)         Em 23.04.2018, a Requerente foi notificada do relatório final de inspecção tributária (cfr. doc. n.º 1 junto à PI);

cc)          A Requerente foi notificada da demonstração de liquidações de retenção na fonte de IR e inerentes juros compensatórios, datadas de 30 de Abril de 2018, no montante total de € 1.158.529,79, que consubstanciam tais correcções, sendo a importância de € 982.899,13 relativa a imposto (liquidação n.º 2018...), e € 175.630,66 referente a juros compensatórios (liquidações n.ºs 2018..., 2018... e 2018...), com data limite de pagamento em 07-06-2018 (cfr. doc. n.º 2 junto à PI);

dd)         Posteriormente foi a Requerente citada para o processo de execução fiscal n.º ...2018... instaurado para cobrança coerciva dos atos tributários objeto de pronúncia arbitral. (cfr doc. n.º 19 junto à PI);

ee)         A Requerente ofereceu, para suspensão dos identificados processos de execução fiscal, garantia bancária. (cfr. doc. n.º 20 junto à PI);

ff)           Em 5 de Setembro de 2018, a Requerente requereu a constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do artigo 10.°, n.°s 1, alínea a), e 2.° do RJAT visando a anulação da liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2018...de 30.04.2018, no montante de € 982.899,13 (novecentos e oitenta mil, oitocentos e noventa e nove euros e treze cêntimos) e das correspondentes demonstrações de liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., 2018... e 2018..., referentes ao ano de 2013, no montante de € 175.630,66 (cento e setenta e cinco mil, seiscentos e trinta euros e sessenta e seis cêntimos), tudo num total de € 1.158.529,79 (um milhão centos e cinquenta e oito mil, quinhentos e vinte e nove euros e setenta e nove cêntimos), e, bem assim, a condenação da Administração Tributária em indemnização pela prestação de garantia indevida.

13. A convicção do Tribunal sobre a factualidade dada como provada resultou do exame dos documentos que constam dos autos, incluindo o RIT relativamente aos elementos fácticos que não se mostram contrariados ou impugnados pela Requerente (cfr. art. 76.º, n.º 1 da LGT e 115.º, n.º 2 do CPPT), bem como do reconhecimento de factos resultante da audição da parte e das testemunhas e, bem assim, do resultante de alegações, da PI que foram acolhidas pela Requerida, tudo conforme se especifica em cada um dos pontos do probatório acima enunciados.

 

IV.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Como referido, relativamente à matéria de facto dada como assente, o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada tal como dispõe o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e o artigo 607.º, n.ºs 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram, como acima se referiu, escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, não existindo outra factualidade alegada que seja relevante para a correcta composição da lide processual.

 

V. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

V.1 Considerações Prévias

Atendendo aos factos dados como provados, cabe perceber quais as questões controvertidas sobre as quais o tribunal se vai pronunciar.

 

i.             Inexistência da obrigação tributária da Requerente

O enquadramento normativo que in casu deve ser aplicado para que se efective a tributação de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos actos ou negócios jurídicos dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução de impostos prende-se com a tributação de dividendos em conformidade com a norma de incidência prevista na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS. Este envolverá, por seu turno, a aplicação de retenção na fonte à taxa liberatória prevista no artigo 71.º n.º 1, alínea c) do CIRS, com natureza de pagamento liberatório (sem prejuízo da opção pelo englobamento, nos termos do artigo 71.º, n.º 6 e 22.º, n.º 3, al. b) do CIRS), a qual deve ser efectuada pela entidade devedora dos rendimentos (artigo 101.º, n.º 2, al. a) do CIRS) no momento da sua colocação à disposição (artigo 7.º, n.º 3, al. a), n.º 2 do CIRS), sem o que o substituto seja responsável pelo pagamento do imposto não retido nos termos do n.º 3 do artigo 104.º do CIRS e do n.º 3 do artigo 28.º da LGT.

Ora, entende este Tribunal que a efectivação da tributação de acordo com as normas aplicáveis nos termos estatuídos pelo n.º 2 do artigo 38.º da LGT que cabe à Requerente a assunção do papel de substituto tributário nos termos das indicadas disposições fiscais relativas à tributação em IRS dos dividendos, constituindo, como tal, a destinatária da liquidação decorrente da desconsideração, para efeitos fiscais, dos actos e negócios jurídicos abusivos, porquanto foi ela que surgiu como entidade devedora e que colocou à disposição os valores em causa. Nestes termos, o pressuposto da obrigação de proceder à retenção na fonte, tal como determinado pelos artigos 71.º, n.º 1, al. c) e 101.º, n.º 2, al. a) do CIRS, por força da aplicação da cláusula anti-abuso e da efectivação da tributação de acordo com as normas aplicáveis, formou-se em relação à Requerente.

No caso em análise esta questão coloca-se desde logo porque a CGAA permite à autoridade tributária desconsiderar certos negócios jurídicos efectuados pela A..., verificadas as suas condições, e tributar a realidade económica subjacente de acordo com as normas de incidência acima mencionadas. Como se sabe, a figura da CGAA surgiu no âmbito da Reforma Fiscal de Dezembro de 2000, pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, que conferiu precisamente a redação do artigo 38.º, n.º 2 da LGT à data dos factos. A CGAA surge enquadrada num quadro interventivo do Estado no combate à elisão fiscal, “constituindo uma válvula de escape de respiração do valor da injustiça, um instrumento adequado de combate à mera engenharia financeira ostensivamente violadora da igualdade fiscal ”. A aplicação do supra referido preceito legal, quer a nível administrativo, quer pelos tribunais, deve ser ponderada, constituindo um instrumento de ultima ratio que visa combater injustiças e desigualdades fiscais, bem como defender o próprio sistema tributário.

A resolução da questão em apreço passa pela determinação do resultado que, para a situação dos autos, advém da estatuição da norma anti-abuso do n.º 2 do artigo. 38.º da LGT, a qual se manifesta nos segmentos normativos relativos à ineficácia no âmbito tributário dos actos ou negócios jurídicos dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem a utilização desses meios, e à efectivação da tributação de acordo com as normas aplicáveis na ausência e à não produção das vantagens fiscais referidas. Assim, a AT liquidou a Requerente por ser esta a obrigada à retenção na fonte aquando do pagamento aos seus accionistas, os beneficiários da vantagem fiscal. O imposto é devido nos termos do artigo 5.º, n.º 2, al. h) e 71.º, n.º 1, c) do CIRS em vigor. No entanto, a Requerente sustenta que não pode a CGAA criar obrigações acessórias para os contribuintes (como a obrigação de retenção na fonte do imposto devido por outro contribuinte), pelo que devia a AT ter liquidado, no âmbito do procedimento de aplicação da CGAA os próprios beneficiários. Estes são os accionistas da A..., sendo na sua esfera devido o imposto e não na esfera da Requerente. A AT invoca que o correcto procedimento foi desencadeado nos termos do CPPT e que do artigo 38.º, n.º 2 da LGT decorre uma exigência de tributar o substituto tributário (a Requerente) uma vez que essa seria a forma de liquidar “de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência”, não tendo existido o negócio jurídico desconsiderado. Nestes termos, impõe-se reconhecer que, quando isso esteja em causa nos termos da tributação que deve ser efectuada segundo as normas aplicáveis, conforme determina o n.º 2 do artigo 38.º da LGT, sendo que o funcionamento da cláusula anti-abuso é inteiramente oponível ao substituto tributário, e que não pode deixar de ser abrangido pela sua estatuição.

Recorde-se, nesta sequência, que, segundo o artigo 20.º da LGT, a “substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte” (n.º 1) e “é efectivada através do mecanismo da retenção na fonte do imposto devido” (n.º 2). Ora, de acordo com o artigo 18.º, n.º 3 da LGT, “sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável”.

É característico da situação jurídico-tributária da substituição o “carácter legal da obrigação”, pois, como escrevem DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA : “o legislador obriga um sujeito a realizar determinadas prestações que constituem o objecto de uma obrigação tributária a cargo de outro sujeito passivo, o que preenche os pressupostos do facto tributário. É o facto tributário realizado por uma pessoa, substituído, que dá origem à obrigação. O preenchimento de outro pressuposto de facto leva a que o substituto esteja obrigado ao cumprimento da obrigação”; “A substituição tributária envolve o preenchimento do quadro legal que determina o nascimento da obrigação tributária para um determinado sujeito passivo que é o que preenche o pressuposto de facto. Este preenchimento do quadro legal converte-se em pressuposto de facto para a obrigação do substituto”. Por isso, e como notam ainda estes Autores , “a substituição exige que o sujeito activo se dirija contra o substituto para exigir o cumprimento da obrigação tributária, na medida em que a lei o imponha” e “cumprida esta obrigação tributária, ele libera-se da sua obrigação, liberando também o substituído”. Também RUI DUARTE MORAIS  assinala sobre a retenção na fonte a taxas liberatórias que: “Nestes casos, o cumprimento da obrigação de imposto (incluindo o das inerentes obrigações acessórias) cabe, em exclusivo, ao substituto, que é o sujeito passivo da relação jurídico-fiscal, a título originário. O cumprimento esgota-se com a entrega do montante retido na fonte. Na falta de pagamento voluntário, a cobrança coerciva será dirigida contra o substituto. O substituído só será chamado à execução a título subsidiário (na falta de bens do devedor originário, o substituto) e, apenas, se - e na medida em que - tiver recebido mais do que aquilo que seria o valor dessa prestação líquida da retenção na fonte que deveria ter tido lugar (cfr. artigo 28.º da LGT)”.

 

Nestes termos, por força da estatuição do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, dado que está em causa como regime a tributação de dividendos por retenção na fonte com natureza definitiva e liberatória (artigos 5.º, n.º 2, al. h) e 71.º, n.º 1, al. c) do CIRS), admite-se que as correcções a que haja lugar nos termos da cláusula anti-abuso e a correspondente liquidação de imposto tenham como destinatário o substituto tributário – “a substituição exige que o sujeito activo se dirija contra o substituto para exigir o cumprimento da obrigação tributária, na medida em que a lei o imponha” . Entende-se, pois, que nenhuma censura de ilegalidade se pode fazer, em atenção ao artigo 38.º, n.º 2 da LGT, quanto ao facto de a liquidação de IRS (retenção na fonte) ter sido concretizada em relação à Requerente, dado que é esta que surge como substituto tributário. De qualquer modo, sempre se acrescente, não resulta da emissão desta liquidação de IRS qualquer afectação da posição patrimonial específica da Requerente, nem violação do princípio da capacidade contributiva que, nas circunstâncias em presença, se reporta materialmente aos accionistas individuais.

 

É que não se pode esquecer o funcionamento próprio da substituição tributária no que concerne às relações entre substituto e substituído que se centram no “direito de regresso” (hoc sensu) e que permitem assegurar a ligação do imposto aplicado ao substituto com o princípio da capacidade contributiva que vale em relação ao substituído. Esse direito de regresso é, como regra, prévio (caso em que a expressão regresso é, claro está, imprópria), pois tem lugar por retenção na fonte (artigo 20.º, n.º 2 da LGT), operando por dedução às quantias que o substituto deve, paga ou coloca à disposição do substituído. Pode, porém, suceder que tenha lugar posteriormente, como regresso em sentido próprio, de que é exemplo precisamente o caso de o substituto ter omitido a retenção na fonte definitiva que era devida (artigo 103.º, n.º 3 do CIRS e 28.º, n.º 3 da LGT).

 

Como já se escreveu a este propósito: “é característico da substituição tributária que o substituto tem o dever ou, pelo menos, a faculdade de descontar a importância entregue ou a entregar nos cofres do Estado nos rendimentos que deve ao contribuinte ou então pode – e muitas vezes, deve – exercer contra ele o direito de regresso para reaver o que foi despendido”; “[t]em sido este elemento da existência do direito de regresso, pelo qual quem suporta economicamente o encargos tributário é o substituído que levou à distinção entre o devedor em sentido formal (substituto) do devedor em sentido substancial (substituído), já que é este último quem deve legalmente sobre o desfalque patrimonial correspondente” .

 

Pois bem, este regresso é de exercício obrigatório pelo substituto – no caso, a Requerente – porquanto o artigo 45.º, n.º 1, al. c) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), na redacção aplicável ratione temporis, determina que não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os “impostos e quaisquer outros encargos que incidam sobre terceiros que o sujeito passivo não esteja legalmente autorizado a suportar” .

Diga-se, ainda, que este Tribunal não desconhece que, em recentes acórdãos proferidos no CAAD sobre esta matéria, tem sido adoptada orientação diferente, tendo-se entendido, em face da redacção do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, o seguinte (vd., por exemplo, o acórdão proferido no proc. n.º 379/2014-T, de onde se retiram as transcrições subsequentes):

- “a parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT (redacção da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro), ao estabelecer as consequências da aplicação da cláusula geral anti-abuso «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» aponta decisivamente no sentido de a aplicação ter de ser efectuada em moldes que permitam afastar a produção das vantagens fiscais”;

- “sendo esta eliminação das vantagens fiscais o objectivo expresso da cláusula geral anti-abuso, o destinatário da aplicação desta cláusula, aquele em cujo património se irão produzir os efeitos da aplicação, não pode deixar de ser quem usufruiu dessas vantagens fiscais”;

- “Sendo os accionistas os beneficiários das vantagens referidas, a aplicação da cláusula geral anti-abuso nos termos em que foi efectuada não permite afastar essas vantagens, pois, impondo à Requerente o pagamento das quantias equivalentes a essas vantagens, é apenas a ela que é imposto este ónus, permanecendo os accionistas na titularidade intacta das vantagens patrimoniais obtidas”;

- “a interpretação correcta do artigo 38.º, n.º 2, terá valer generalizadamente, em relação a qualquer tipo de sociedades anónimas, inclusivamente as cotadas em bolsa em que a estrutura accionista se altera constantemente, relativamente às quais é evidente que a imposição da tributação à sociedade por, com a sua intermediação, os accionistas terem criado para si próprios vantagens fiscais indevidas não ter qualquer efeito sobre quem usufruiu dessas vantagens e deixou, depois, de ser accionista”;

- “a esta luz, é evidente que o alcance daquele artigo 38.º, n.º 2, ao estabelecer como efeito necessário da aplicação da cláusula geral anti-abuso a não produção das vantagens fiscais, pressupõe o entendimento legislativo de que a «tributação de acordo com as normas aplicáveis» incida sobre quem obteve as vantagens e não sobre quem meramente teve intervenção nos actos de que elas resultam sem beneficiar daquelas, pois só assim é possível garantir o efeito pretendido de não se produzirem as vantagens fiscais referidas”;

- “é seguro que a redacção do n.º 2 do artigo 38.º da LGT introduzida pela Lei n.º 30-G/2000, exige que a aplicação da cláusula geral anti-abuso tenha como efeito a não produção das vantagens fiscais indevidas, pelo que está pressuposto nesta norma que, pelo menos nos casos em que as vantagens fiscais já se tenham produzido, o destinatário da aplicação seja quem delas usufrui”;

- “Por isso, no caso em apreço, não tendo a Requerente usufruído qualquer vantagem fiscal, está afastada a possibilidade de ser responsabilizada pelo pagamento das quantias correspondentes às vantagens fiscais indevidas que a Autoridade Tributária e Aduaneira invoca”.

 

Com o devido respeito, julga-se que este entendimento não pode ser acolhido.

 

Desde logo, em termos literais, importa ter em conta que a redacção do artigo 38.º, n.º 2 da LGT autonomiza duas fenomenologias, quer a nível de hipótese quer a nível de estatuição: i) por um lado, os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico relativamente aos quais cabe efectuar a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e ii) os actos ou negócios jurídicos dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização de meios, relativamente aos quais cabe não se produzirem as vantagens fiscais referidas.

 

Como elucida, em termos que aqui inteiramente se acompanham, SALDANHA SANCHES  sobre as duas manifestações principais da fraude à lei em matéria fiscal: “[n]uma primeira manifestação, a escolha de um negócio jurídico ou mesmo de factos ou actos jurídicos fiscalmente relevantes, como forma jurídica de atingir um certo objectivo com menor oneração jurídica [rectius, fiscal] implica a opção por determinado caminhos para a obtenção de certos objectivos finais numa lógica alternativa: seguiu-se o caminho B em lugar do caminho A, para atingir o mesmo objectivo, X”; “[n]a outra das suas principais manifestações, podemos ter um conjunto de operações em que não há alternatividade (a escolha alternativa seria a ausência de negócio jurídico), o que acontece quando, por exemplo, se faz operações com o único objectivo de obter um custo dedutível para a redução do lucro tributável”. Pois bem, explica então este Autor que: “Na previsão normativa do n.º 2 do artigo 38.º da LGT essas duas vias estão claramente prefiguradas”, pois a “primeira encontra-se prevista na lei quando esta contrapõe o negócio jurídico artificioso, com a sua desoneração fiscal, e “os factos, actos ou negócios jurídico de idêntico fim económico” (a via normal foi preterida por mera razões fiscais)” e a segunda “encontra-se igualmente prevista na lei quando esta refere “a obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”, concluindo, então, que: “Se, no primeiro caso, a consequência é “a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência”, no segundo temos uma consequência de mera anulação de efeitos, “não se produzindo as vantagens fiscais referidas”, aquelas que se procura alcançar por meio dos negócios jurídicos artificiosos, sendo que o carácter artificial da segunda parte, marcado pela construção deliberada do efeito, é geralmente constituído por uma perda dedutível do lucro tributável”.

Nestes termos, uma leitura da referência a “vantagens fiscais” como a chave exclusiva de aplicação da cláusula anti-abuso entende-se, com a devida vénia, constituir uma sobre-interpretação de um vocábulo que possui um sentido bem preciso e delimitado no âmbito da estrutura do n.º 2 do artigo 38.º da LGT. Nos termos de uma interpretação contextual do próprio n.º 2 do artigo 38.º da LGT, a obtenção de “vantagens fiscais” é apenas um dos momentos constituintes da aplicabilidade da norma anti-abuso, como definido pela sua hipótese legal, com a correspondente produção das consequências jurídicas pertinentes.

 

Ora, precisamente, no caso dos autos, do que se trata é antes da dimensão normativa objecto do n.º 2 do artigo 38.º da LGT atinente aos actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico relativamente aos quais cabe efectuar a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência – precisamente, como se viu (n.º 36), na situação sub judice, tais normas são constituídas pela disciplina de tributação de dividendos por retenção na fonte com natureza definitiva e liberatória (artigo 5.º, n.º 2, al. h) e 71.º, n.º 1, al. c) do CIRS), em que o cumprimento da obrigação de imposto cabe exclusivamente ao substituto.

 

Depois, também não se julga pertinente o argumento de que, por força desta repercussão sobre o substituto das consequências advenientes da cláusula anti-abuso, este vai suportar o ónus do encargo do imposto correspondente às vantagens patrimoniais obtidas que permanecem na titularidade intacta dos accionistas. É que, como acima se antecipou (n.º 37), a substituição tributária envolve, por natureza, quando o substituto tenha omitido a retenção na fonte definitiva que era devida, o exercício de um direito de regresso, o qual se destina a assegurar precisamente que o encargo final atinente ao imposto incida sobre os titulares da capacidade contributiva, no caso os accionistas beneficiários dos acréscimos patrimoniais que foram reconfigurados como dividendos.

 

Por fim, não podemos ainda deixar de aditar, recorrendo a uma perspectiva sinépica, de “ponderação das consequências da decisão” , que o entendimento em referência, numa conjuntura como a que se encontra em causa, pode ter como consequência, sempre ressalvado o devido respeito, da pura e simples inviabilidade da aplicação da cláusula anti-abuso nos casos em que, como este, o esquema abusivo visa evitar a tributação dos rendimentos de dividendos que é efectuada por retenção na fonte a título definitivo à taxa liberatória prevista no artigo 71.º n.º 1, alínea c) do CIRS. É que, caso a AT dirigisse a liquidação contra os accionistas beneficiários dos acréscimos patrimoniais em causa, estes poderiam natural e fundadamente sustentar a ilegalidade dessa liquidação mediante a invocação de que não foi respeitada a determinação, constante do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, de que a tributação se deve efectuar de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, a qual exige a tributação por retenção na fonte a título definitivo à taxa liberatória quando os contribuintes não optem pelo englobamento dos rendimentos em causa. Implicando, assim, uma consequência paradoxal, inviabilizadora da aplicação, em qualquer caso, da cláusula anti-abuso, entende-se aqui não se poder subscrever a indicada posição.

 

Termos em que se reitera, nesta decisão arbitral, julgar conforme ao disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT que a liquidação de IRS (retenção na fonte) tenha sido concretizada em relação à Requerente, dado que é esta que surge como substituto tributário.

 

ii.            Dos negócios jurídicos abusivos

A questão a decidir é, pois, a de saber se tem lugar, nas circunstâncias do caso, a aplicação da cláusula anti-abuso a que se refere o artigo 38.º, n.º 2, da LGT, o que justifica que se comece pela caracterização dessa figura como mecanismo de controlo da fraude à lei fiscal.

 

A citada disposição da LGT declara como “ineficazes, no âmbito tributário, os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”. E, nesse caso, determina que a tributação se efectue de acordo com as normas que seriam aplicáveis se esses meios não tivessem sido utilizados, não se produzindo as vantagens fiscais que se pretendia obter.

 

Complementarmente, o artigo 63.º do CPPT prevê um procedimento tributário específico para a aplicação da disposição anti-abuso e impõe à Administração um especial dever de fundamentação dessa decisão que há-de compreender necessariamente (i) a descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam; e (ii) a demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais. 

 

Segundo assinala Sérgio Vasques, a cláusula geral anti-abuso consagrada na LGT é composta de três elementos essenciais. “Em primeiro lugar exige-se a prática de acto ou negócio artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, exige-se o objectivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objectivos económicos reais. Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e práticas negociais mais comuns” (Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2018, pág. 374).

 

O sentido geral da norma é, nestes termos, o de permitir a desqualificação para efeitos fiscais de um qualquer acto ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte com o único, ou principal, objectivo de obtenção de uma vantagem fiscal, que possa consubstanciar uma fraude à lei fiscal. O efeito jurídico que resulta do funcionamento da cláusula anti-abuso é o de considerar os actos como praticados de acordo com o padrão normal do comércio jurídico para obter o mesmo resultado económico, determinando-se a obrigação tributária em função dos actos equivalentes que pudessem ser praticados. Exige-se, por conseguinte, que tenha sido praticado um acto ou negócio artificioso ou fraudulento que represente um abuso das formas jurídicas e que tenha tido como objectivo único ou principal a obtenção de uma vantagem fiscal.

 

Pode apontar-se como exemplo da adopção, na jurisprudência, deste esquema analítico o arrêt de principe representado pelo acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 15.02.2011, processo n.º 04255/10, que acolheu o entendimento segundo o qual: “A previsão da norma em análise consagra quatro pressupostos da sua aplicação, os quais são:

1-O elemento meio - o qual tem a ver com a forma utilizada, portanto, com a prática de certos actos ou negócios dirigidos, essencial ou principalmente, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos;

2-O elemento resultado - o qual visa a vantagem fiscal como fim da actividade do contribuinte, portanto, a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos;

3-O elemento intelectual - o qual tem a ver com a motivação fiscal do contribuinte, portanto, com o facto dos actos ou negócios pelo mesmo praticados serem essencial ou principalmente dirigidos ao resultado que é a vantagem fiscal;

4-Elemento normativo - o qual tem a ver com a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida, portanto, o contribuinte atua com manifesto abuso das formas jurídicas (cfr. art°. 63, n° 2, do C.P.P. Tributário).

Na estatuição da norma vamos encontrar o elemento sancionatório que se traduz na ineficácia, no âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos em causa, os quais passam a ser inoponíveis à A. Fiscal (...). O elemento sancionatório corresponde, por isso, à estatuição da norma em apreciação, dependendo a sua aplicação da verificação cumulativa dos pressupostos consagrados na sua previsão”.

 

Na jurisprudência arbitral tributária deste CAAD encontra-se igualmente esta dissecação do art. 38.º, n.º 2 da LGT em cinco elementos, como se pode exemplificar com os acórdãos proferidos nos processos 143/2014-T e 208/2014-T, em que se explana o seguinte: “A doutrina e a jurisprudência têm vindo a desconstruir a letra da norma apontando cinco elementos nela patentes. Correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatro afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir – como se de um teste se tratasse – quanto à verificação de uma actividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo”, elementos estes que consistem: “– no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida – acto ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de actos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal; – no elemento resultado, que contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos actos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente; – no elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja «essencial ou principalmente dirigid[a] [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objectivamente, se o contribuinte «pretende um acto, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam»; – no elemento normativo, que «tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela » ; – e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT)” .

 

“GAARs are an indispensable tool against the abuse of tax law, as the evolution of comparative law highlights. Countries, such as the United Kingdom, the legal culture of which has traditionally been reluctant to adopt this technique, have enacted a GAAR, as has the European Union, which, in addition to introducing a GAAR in the Parent Subsidiary Directive (2011/96), has recommended that the Member States adopt a GAAR “adapted to domestic and cross-border situations confined to the Union and situations involving third countries” [European Commission, Commission recommendation on aggressive tax

planning, C (2012) 8806 final (6 Dec. 2012)] .

 

Neste ponto discute-se a aplicação da CGAA aos negócios jurídicos realizados pela Requerente:

- Constituição da A..., SGPS (ora, Requerente);

- Compra das participações sociais da B..., SGPS, S.A., aos seus sócios;

Segundo a Requerente, esta segmentação dos negócios a desconsiderar através da CGAA é violadora dos pressupostos da CGAA, nomeadamente do elemento meio, uma vez que, “a haver qualquer desconsideração, teria de incidir sobre todos os actos e negócios jurídicos que integram essa estrutura”.

Ademais, refere a Requerente que a AT não teria demonstrado a factualidade necessária ao preenchimento dos pressupostos de aplicação da CGAA e ignorou as restantes motivações que levaram à criação e manutenção da Requerente. De acordo com a Requerente, “os serviços de inspeção não têm nem factos nem motivações que permitam sustentar as suas conclusões, tendo privilegiado a obtenção de receita à descoberta da verdade material.” A AT, por seu turno, considera que a estrutura montada pelo sujeito passivo é abusiva e preenche a previsão do 38.º, n.º 2 da LGT. Além disso, as motivações que foram alegadas pela Requerente são negligenciadas pela AT, dizendo mesmo que “nenhuma das razões que a requerente apontou como estando na base da sua constituição é crível”. Resumindo, a AT sustenta que a Requerente não conseguiu, nas acções inspectivas ou durante a litigância processual, demonstrar a racionalidade económica subjacente aos negócios em análise, referindo expressamente que «é manifesto que os actos e negócios jurídicos realizados pelos sujeitos passivos não são típicos nem normais na gestão de sociedades efectuada com base na simples racionalidade económica-financeira. Só é possível compreender esta sucessão de actos e negócios jurídicos no contexto da procura de um determinado resultado fiscal (a não tributação da distribuição de lucros). As condições do negócio, bem como todos os actos praticados previamente, inserem-se na lógica do esquema desenhado pelos accionistas da  A... SGPS /B... SGPS, e tiveram como objectivo a transformação do pagamento de dividendos no pagamento do preço acordado e consequente redução do crédito registado contabilisticamente.»

 

Dito isto, a questão jurídica central do caso em análise é, por isso a aplicação ou não da CGAA aos negócios efectuados pelo sujeito passivo. Feito este enquadramento, aprecie-se, agora, em termos específicos, os indicados elementos “resultado”, “intelectual”, “meio” e “normativo” de aplicação da cláusula anti-abuso.

 

Vejamos em concreto cada negócio identificado acima e analisemos os ditos elementos para cada um deles. Antes de mais, perceba-se que o vector decisivo na verificação da legitimidade da aplicação da cláusula geral anti-abuso é sempre a apreciação casuística, em função dos valores e objectivos do ordenamento jurídico-tributário, das circunstâncias que estão presentes na situação fiscalmente relevante em julgamento. Como se escreve no citado acórdão do TCA Sul proferido no proc. n.º 04255/10 “a questão de determinar se algum expediente em particular é “puramente artificial” deve ser resolvida nos tribunais domésticos caso a caso”. Com efeito, o funcionamento da cláusula geral anti-abuso, consagrada no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, pressupõe sempre uma tarefa de realização concreta do Direito em função das circunstâncias fácticas e dos contornos materiais da situação sub judice, não sendo viável, a seu propósito, sob pena de se desprotegerem as necessidades reais que presidiram à sua consagração, reduzir a sua aplicação à subsunção estrita e automática das realidades a categorias jurídicas abstractas. Passemos então à análise em especial a esta estrutura.

 

iii.           Da aplicação da CGAA aos negócios jurídicos abusivos: Constituição da A..., SGPS (a Requerente) e a compra das acções pela Requerente aos accionistas da B..., SGPS, S.A.

 

Feito este enquadramento, aprecie-se, agora, em termos específicos, os indicados elementos “resultado”, “intelectual”, “meio” e “normativo” de aplicação da cláusula anti-abuso aplicada aos negócios de constituição da Requerente e da sua compra das acções aos accionistas da B..., SGPS, SA.

 

Elemento resultado: O resultado reporta-se à vantagem obtida, isto é, à consequência que advém dos negócios jurídicos praticados. A sua verificação dá-se quando, por meio da estrutura jurídica utilizada, se alcance a “redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”.

Aquilo que vemos no caso em análise é que a constituição da A... por um grupo de accionistas, juntamente com a compra das acções dos mesmos por parte da sociedade se revelou num ganho fiscal em sede de IRS, sem pagamento do preço. Através desta estrutura os accionistas puderam, por via de dividendos, receber a título de pagamento do preço das acções os montantes que, em caso de distribuição da B..., SGPS, S.A. directamente para a sua esfera, estariam sujeitos a retenção na fonte.

Para aplicação da CGAA é relevante o negócio de que resulte a eliminação, redução ou diferimento de impostos. Este requisito encontra-se preenchido. Ora, o contribuinte pretende, pois, enquanto resultado, contornar a lei fiscal e praticar certo acto ou negócio com vista a obter uma vantagem fiscal. E por vantagem fiscal entende-se qualquer situação em que, em virtude da prática de certos actos, se alcança uma carga tributária que é mais favorável do que aquela que resultaria da prática de actos normais e de efeito económico equivalente, sujeitos a tributação. Nos casos de aplicação da CGAA, a vantagem fiscal é condicionante e determinante na actuação do contribuinte.

 

Concluindo, no elemento resultado pretende-se demonstrar que, como resultado dos actos praticados, obteve-se determinada vantagem fiscal, bem como a equivalência ao nível dos efeitos económicos alcançados, com aqueles que seriam obtidos caso houvesse sido praticado o negócio considerado usual.

 

Elemento intelectual: O acto ou negócio é reprovável porque a vantagem fiscal influencia e determina plenamente a actuação do contribuinte no que toca às formas escolhidas, motivando a sua actuação com vista a alcançar o resultado fiscal pretendido. Verifica-se quando os actos ou negócios em questão tenham, pois, sido “essencial ou principalmente dirigidos” à obtenção de uma vantagem fiscal, sendo esta relevante para efeitos de aplicação da norma.

Há um problema que se revela comum às várias formas de manifestação do elemento intelectual, que é precisamente o de determinar quando e como é que o nível de importância da motivação do contribuinte para a realização de certa operação ultrapassa o limite do aceitável, de tal modo que, quando tal aconteça, leve a concluir pela verificação do elemento. Neste domínio, a “quantificação” não se apoia em limites objectivos e aritméticos, cabendo ao juiz, enquanto aplicador do direito, fazer o juízo que visa perceber e atestar se determinada conduta deve considerar-se como reprovável pelo ordenamento jurídico, por estar teleologicamente direccionada para a obtenção de uma vantagem, também ela reprovável.

Embora haja críticas no sentido de reprovar a necessidade de um requisito normativo neste domínio, isto é, perante este tipo de normas, certo é que estando em causa uma análise da motivação do contribuinte, no contexto de uma norma anti-abusiva, é tida como natural esta vertente subjectiva, não obstante ser notória uma atitude de viragem, no sentido da diluição do factor subjectivo na comprovação do elemento meio. No caso concreto, as intenções dos negócios por parte dos accionistas são variadas. A Requerente invoca outras motivações além da questão fiscal, que parece evidente que existe e que, sublinhe-se, não é por si indiciador de abuso.

Entre essas outras motivações estão: 1) viabilizar a compra de mais participações da B... SGPS, S.A. e reforçar a capacidade de negociação relativamente aos accionistas individuais; 2) evitar a exposição à instabilidade dos Acordos Parassociais; 3) ficar desde logo munido por uma sociedade que sempre seria necessária para o lançamento de uma OPA à B..., SGPS, S.A; 4) potenciar as possibilidades de investimento noutras empresas tecnológicas, não concorrentes da B... SGPS, S.A.. Segundo a AT, nenhum destes motivos logra provar que a operação tenha uma racionalidade económica subjacente, por serem falsos ou por não passarem de uma tentativa de criação de substância à posteriori.

A norma portuguesa adoptou uma forma intermédia no que respeita à verificação da motivação do sujeito passivo. É importante determinar quando e como é que o nível de relevo da motivação do contribuinte relativamente à realização de certa operação ultrapassa um nível admissível, de tal modo que leve a concluir pela verificação deste elemento. É ao aplicador do direito que compete o juízo subjectivo com vista a perceber se determinada conduta está finalisticamente direcionada para a obtenção de uma vantagem que deva ser reprovável pelo ordenamento jurídico. Ora, a própria determinação do elemento intencional fica refém de uma apreciação subjectiva, podendo potenciar aplicações discricionárias da CGAA. Todavia, a necessidade de analisar as motivações do contribuinte enquanto pressuposto das normas anti-abuso tem persistido, mas tem-se contudo evoluído no sentido da objectivização do funcionamento destas normas. Decorre do n.º 2 do artigo 38.º da LGT este elemento intelectual, quando fala a lei em “actos ou negócios jurídico essencial ou principalmente dirigidos”, exigindo-se, para a respectiva verificação, como prescreve o artigo 63.º, n.º 3, alínea b) do CPPT, que se ateste se o contribuinte “pretende um acto, negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionaram”.

Esta análise racionaliza a aplicação do mecanismo da CGAA, não se bastando o legislador com a mera obtenção de um resultado que é fiscalmente vantajoso, não promovendo uma aplicação automática desta norma, como acontece noutros ordenamentos.

Como bem identifica a Requerente nas suas alegações: “o que está em causa nos autos é determinar a motivação que presidiu à constituição da Requerente e, em especial, se a motivação foi exclusiva ou preponderantemente fiscal”. Isto definirá o preenchimento do elemento intelectual de aplicação da CGAA. No caso em apreço, parece-nos que a pedra de toque do preenchimento do elemento intelectual é a antes a forma de execução do contrato de compra e venda das acções e a sua não genuinidade. Note-se que diz a própria Requerente: “elementos apresentados evidenciam que o preço da venda das ações em crise nos autos ainda não se encontra pago na totalidade, tendo já decorrido o prazo estipulado no contrato para que tal obrigação fosse cumprida – 3 anos”. Sublinhe-se que é legítima, à luz da CGAA, a constituição de uma SGPS como forma alternativa para reforçar a posição accionista numa dada sociedade. O que está aqui em causa é, pois, a não genuinidade da forma como essa SGPS foi constituída, contaminando toda a estrutura montada pela Requerente. A execução do contrato de compra e venda é assim feita de forma algo suspeita uma vez que lhe subjaz uma realidade económica semelhante ao pagamento dos dividendos e não do preço das acções; e isto, no entender da maioria deste tribunal demonstra que há uma motivação “essencial ou principalmente dirigida” à poupança fiscal. No ano de 2013, a montagem do sujeito passivo permite que sejam “distribuídos aos accionistas da A... SGPS 3.510.354,02 € de um total de 3.570.611,25 € relativos a lucros, líquidos de imposto, recebidos da B... SGPS”. O incumprimento das condições iniciais estabelecidas no contrato é o ponto nevrálgico, uma vez que esse não cumprimento foi feito de forma tal que era pago o preço das acções da A..., SGPS na (quase) exacta medida em que eram recebidos por esta os lucros distribuídos na B..., SGPS, S.A.. Não se pode assim deixar de concluir pelo preenchimento do elemento intelectual. A motivação fiscal abrange qualquer conduta ou comportamento (humano) que seja finalisticamente direccionado à obtenção de uma vantagem de cariz tributário, pressupondo a predeterminação da actuação do sujeito. Deve também ser tida em atenção a utilidade final daquele negócio. A execução do contrato denuncia o comportamento fiscalmente motivado no que respeita à venda das acções no caso em concreto. Da falta de cumprimento das condições estabelecidas no contrato demonstra-se que, no caso deste negócio, a finalidade económica ficou em segundo plano, deixando sobreelevar a vantagem fiscal, preenchendo o elemento. Nos casos de elisão fiscal, a finalidade económica do negócio é desvalorizada pelo sujeito passivo, enfatizando-se substancialmente o seu propósito fiscal, enquanto razão decisiva para a sua realização.

 

Elemento normativo: É feito uso do mesmo em diferentes ordenamentos jurídicos para distinguir, no âmbito do próprio direito, a elisão fiscal da poupança fiscal legítima. Este elemento – que não está expressamente previsto no texto da lei, mas que decorre, de modo implícito, da necessidade de que o resultado da análise dos factos seja conciliado com os princípios e valores do ordenamento jurídico, só assim se podendo atestar e concluir pela reprovação do resultado ou vantagem fiscal obtida, em face do ordenamento jurídico-tributário – permite, pois, a exclusão da aplicação da CGAA do conjunto de casos que comportam actos ou negócios jurídicos que, não obstante serem levados a cabo por motivos predominantemente fiscais, não ofendem a norma, o código ou os princípios do ordenamento jurídico-fiscal.

Como se disse, este elemento não decorre directa e expressamente da letra da lei, pese embora a sua incontestável relevância. Está, pois, em causa a aferição da desconformidade entre o resultado obtido e a ratio legis da norma, o seu espírito e intento, sendo que esta desconformidade é característica da elisão fiscal, constituindo um insuperável requisito da CGAA.

Exige-se que o resultado fiscal obtido seja antijurídico, querendo isto significar que a desconsideração dos actos e negócios praticados apenas ocorra quando seja demonstrado que o efeito fiscal obtido é merecedor de um juízo de reprovação pelo direito.

Há que olhar, no caso concreto, aos princípios motivadores do IRS que são a igualdade e a capacidade contributiva. Podemos dizer que a alteração da estrutura fiscal destes accionistas individuais para uma estrutura de detenção interposta por uma SGPS traz consequências que permitam repensar a sua capacidade contributiva? A distribuição aos accionistas pela B..., SGPS, S.A. é, em alguma medida, distinta ao nível dos princípios da distribuição encapotada feita pela A..., SGPS, aos novos accionistas? Manifestando-se da mesma forma a capacidade contributiva na esfera destes accionistas, está preenchido o elemento normativo dado que nada no ordenamento jurídico-fiscal permite sustentar que esta realidade não deve ser tributada.

 

Elemento meio: Como ensinava SALDANHA SANCHES, é aos contribuintes que cabe “a escolha dos meios específicos pelos quais realizam os seus negócios: necessário é que exista, como motivo para a sua escolha, não uma certa via de obtenção de uma poupança fiscal contra a intenção expressa da lei, mas, sim, o que pode considerar-se como uma razão comercial legítima”.

O elemento meio consiste, assim, na via que é utilizada para alcançar a vantagem ou ganho fiscal. Note-se que os actos ou negócios em causa podem surgir de modo isolado ou integrados numa sequência lógica de actos que se dirigem à obtenção de uma vantagem fiscal. “Contrariamente ao que acontece em outros ordenamentos jurídicos, da norma decorre que o legislador estipula a ineficácia dos “atos ou negócios jurídicos”, não efetuando uma menção expressa à estrutura ou esquema elisivo no seu todo”. Em suma, o elemento meio refere-se aos “atos ou negócios jurídicos (essencialmente ou principalmente dirigidos), por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas” que possibilitem a obtenção de uma vantagem fiscal. Embora tenha sido efectuada uma análise individualizada dos diversos negócios jurídicos em causa, não foi dispensada uma análise do esquema como um todo, porquanto esta é fundamental à correcta aplicação da CGAA. Na análise do caso concreto, importa compreender que perante a adopção de certos passos aparentemente ilógicos do ponto de vista empresarial, num quadro sequencial também ele incoerente, e quanto mais rápido obtenha o contribuinte, certa vantagem fiscal, mais provável é que a AT conclua pela artificialidade da estrutura em causa.

Ora, neste concreto caso conclui-se pela não genuinidade da montagem ou série de montagens em questão, na medida em que não foram postas em prática por razões comerciais válidas que reflictam a realidade económica. Foi precisamente da artificialidade dos actos praticados, da sua não genuinidade, que derivou a indiscutível vantagem de não haver tributação dos dividendos. Façamos ainda uma precisão: a artificialidade exigida pela lei verifica-se não quanto à constituição da SGPS, mas relativamente ao negócio jurídico de compra e venda de acções dos accionistas da B..., SGPS, S.A.. A execução deste negócio foi pensada e realizada de forma artificiosa, permitindo uma poupança fiscal que de outro modo não alcançaria. Ora, não há substracto económico que justifique tal execução contratual – da constituição da SGPS ser feita através da compra e venda de acções e não a da constituição da SGPS tout court -, tornando-se fraudulenta e ilegítima a vantagem fiscal assegurada com este negócio de compra e venda de acções mesmo e principalmente à luz do teste do princípio da igualdade na vertente da capacidade contributiva.

A ter havido genuíno e autêntico conteúdo económico, e não apenas benefícios tributários, considerar-se-ia não existir fraude à lei. Todavia, “se os caminhos normais para lograr um certo resultado não são seguidos por razões primordialmente fiscais, estamos no campo de actuação da cláusula geral anti-abuso, na medida em que, não havendo motivos económicos válidos a justificar o recurso a configurações jurídicas anómalas, nos encontramos no domínio da elisão e já não da economia de opção” . 

É também indispensável, na análise do caso concreto, identificar de modo claro e preciso a existência de elementos abusivos. Relativamente à constituição da Requerente e actividade por si desenvolvida, não importa, neste caso, perceber se existe um estabelecimento real – com existência física comprovada –, com funcionários e equipamentos, capaz de reflectir uma realidade económica, dado que a actividade típica de uma SGPS não tem de implicar a existência de funcionários, equipamentos, etc.. Reforçamos a ideia de que a mera constituição da Requerente não é suficiente para aplicar a CGAA, porquanto integra a liberdade económica de cada contribuinte decidir acerca da melhor gestão do seu património, nomeadamente das suas participações sociais. Onde se encontra fundamento para aplicação da CGAA é no facto de o contrato de compra e venda das acções da B..., SGPS, S.A. ser uma configuração jurídica anómala – refira-se a falta de substracto económico na execução do contrato –, concluindo-se que se está perante uma construção fictícia, que não visa o verdadeiro e efectivo exercício de uma actividade económica, apresentando o carácter de expediente artificial. Reforce-se que o preço estipulado nunca foi pago na totalidade aos accionistas. Este é o ponto central que denuncia a falta de uma realidade económica subjacente e a preponderância da motivação fiscal da operação. Este elemento considera-se também preenchido.

 

Por estarem preenchidos todos os elementos referidos no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, e tendo sido o cumprido o procedimento plasmado no artigo 63.º do CPPT, conclui-se correcta a liquidação feita nos termos da norma anti-abuso.

 

Nestes termos, improcede o pedido acessório relativo à indemnização por prestação de garantia indevida, por não se verificar qualquer erro imputável aos Serviços, conforme previsto no artigo 53.º da LGT.

 

VI. DECISÃO DO TRIBUNAL

 

i.             Quanto à existência da obrigação tributária da Requerente:

Julga-se improcedente o pedido arbitral e a liquidação conforme ao disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, concretizada em relação à Requerente, dado que é esta que surge como substituto tributário.

ii.            Quanto à aplicação da CGAA relativamente à constituição da A..., SGPS (a Requerente) e à compra das acções pela Requerente aos accionistas da B..., SGPS, S.A., e consequentes liquidações adicionais:

Julga-se improcedente o pedido arbitral visto estarem preenchidos todos os pressupostos de aplicação da CGAA, tendo sido as liquidações promovidas dentro da legalidade.

iii.           Quanto ao pedido de indemnização por garantia indevida

Julga-se improcedente o pedido indemnizatório por falta de verificação dos respectivos pressupostos, em concreto pela inexistência de erro imputável aos Serviços.

 

VII. VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 1.158.529,79 (um milhão, cento e cinquenta e oito mil, quinhentos e vinte e nove euros e setenta e nove cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VIII. CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 15.912,00 (quinze mil, novecentos e doze euros), nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

Lisboa, 15 de Maio de 2019

 

O Árbitro Presidente

(Alexandra Martins)

Conforme declaração de voto junta

 

O Árbitro Vogal

(Jorge Carita)

 

O Árbitro Vogal

(Carla Castelo Trindade)

 

 

Declaração de voto

 

Discordo da decisão por entender que a cláusula geral antiabuso acolhida pelo artigo 38.º, n.º 2 da LGT visa situações em que se verifica um comportamento de contorno de normas fiscais, cuja finalidade, essencial ou preponderante, é a obtenção de um benefício tributário – de redução, eliminação ou recuperação de impostos –, traindo a finalidade e ratio das normas fiscais e pondo em causa o princípio da igualdade tributária.

 

Para tanto, a hipótese normativa do citado artigo contém dois pressupostos que, sem prejuízo do respeito por opinião diferente, considero que não se verificam no caso concreto. São eles, a saber: (i) os atos ou negócios terem sido gizados essencial ou principalmente à obtenção de uma vantagem fiscal; (ii) terem sido empregues meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas. Dito de outro modo, a aplicação deste regime reclama o caráter não genuíno da operação e que a mesma não seja realizada por razões económicas válidas.

 

No caso dos autos, ficou patente e resulta do quadro factológico que a motivação inequívoca de constituição da Requerente foi a criação de um veículo societário que reunisse as participações que quatro pessoas (físicas) detinham no capital social da B..., SGPS, S.A., sociedade cotada em bolsa, para, a partir daí, reforçarem essas participações e alcançarem o controlo dessa sociedade.

 

Objetivo este que, aliás, já tinham ensaiado por outra via, que à data não se revelou exequível, e que passava por uma OPA. Cujas razões justificativas eram as mesmas: concentração de capital, em vez de dispersão, e controlo.

 

Acresce que o parqueamento das participações num veículo societário facilitava a subsequente gestão coordenada e institucional dessas participações, com a obtenção de financiamento em condições mais vantajosas e a ultrapassagem de diversas questões atinentes às vicissitudes pessoais que pudessem surgir na esfera dos accionistas individuais e de governo societário.

 

Por outro lado, os meios empregues são os típicos e normais, seja quanto à forma (jurídica), seja quanto à prática (negocial), pois essa é precisamente a vocação das sociedades holding (SGPS), que podem revestir diversas modalidades, como sejam as holdings passivas ou financeiras e as holdings directivas, não sendo de estranhar que não disponham de colaboradores, quando o seu objectivo é estratégico, de detenção e reforço de participações, como neste caso e, diga-se, em inúmeros outros, e não de prestação de serviços técnicos ou corporativos à(s) sociedade(s) participada(s).

 

Trata-se ainda do exercício de actividade económica, embora, conforme refere o regime das SGPS, de um “exercício indirecto” de uma actividade económica.

 

Deste modo, para além de motivos económicos válidos, que se concretizaram, pois ocorreram efetivamente: (i) a concentração de participações; (ii) o reforço de capital almejado; (iii) a detenção e gestão institucional das participações, não se consegue identificar qualquer configuração jurídica anómala ou artificiosa.

 

A parcial coincidência entre a cadência do recebimento de dividendos pela Requerente e o pagamento, por esta, da dívida gerada com a aquisição das acções da B..., SGPS, S.A. aos seus accionistas, revela a opção da Requerente em utilizar os rendimentos da sua actividade para diminuir o seu passivo. Não tem a virtualidade de, sem mais, espelhar ou indiciar a transformação de um fluxo financeiro (pagamento de dividendos, tributado), noutro fluxo financeiro (pagamento do preço das acções, não tributado).

 

Interessa ainda notar que, como entendia o saudoso Professor Saldanha Sanches, a cláusula antiabuso constitui uma solução de última ratio, de natureza excepcional. A escolha pelo Requerente da via fiscalmente menos onerosa, relativamente a uma operação cujo móbil não é predominantemente fiscal e que recorre a meios normais e típicos de efectivação, não deve merecer tal desvalor. Sob pena de se fragilizarem os alicerces do sistema, fundados na tipicidade e legalidade, enveredando-se por um casuísmo metodológico que, por razões de segurança jurídica, não se advoga.

 

Lisboa, 15 de Maio de 2019

Alexandra Coelho Martins