Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 487/2018-T
Data da decisão: 2019-03-13  IRC  
Valor do pedido: € 128.594,26
Tema: Despesas não documentadas – Tributação autónoma.
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Decisão Arbitral (consultar versão completa no PDF)

 

Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof. Doutor Miguel Augusto Rodrigues Matos Torres e Dr.ª Ana Teixeira de Sousa (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 11-12-2018, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

 

A...,  LDA.  NIPC ..., com sede na Rua ..., ..., ..., ...-...  Coimbra (doravante designada por “Requerente”), veio, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral.

A Requerente pretende a anulação da liquidação de IRC e juros compensatórios n.º 2018..., de 24-09-2018, na parte em que tem por fundamento tributação autónoma baseada em «despesas não documentadas» e correspondentes juros compensatórios.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 02-10-2018.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, os Árbitros que inicialmente foram designados pelo Conselho Deontológico comunicaram a aceitação do encargo, no prazo aplicável.

Em 21-11-2018 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 11-12-2018.

A Administração Tributária revogou parcialmente a liquidação «mantendo a correção relativa à tributação autónoma sobre as despesas não documentadas, bem como as demais correcções à matéria colectável e tributações autónomas que não foram contestadas».

A Administração Tributária e Aduaneira apresentou Resposta em que defendeu que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente.

Por despacho de 06-02-2019, foi fixado o valor da causa e dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT bem como alegações.

                               O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.

As Partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

A)           A Autoridade Tributária e Aduaneira efectuou uma acção inspectiva à Requerente, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2018...;

B)           Nessa inspecção foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais o seguinte:

III.2.1 Gastos não aceites - Despesas não documentadas

Em termos contabilísticos

A A... utiliza a «Norma contabilística e de relato financeiro para pequenas entidades» (NCRF-PE), no o tratamento de reconhecimento, de mensuração, de apresentação e de divulgação das realidades económicas e financeiras da entidade.

Na preparação das demonstrações financeiras uma das características mais importantes a preservar é a fiabilidade. A informação financeira tem a qualidade da fiabilidade quando estiver isenta de erros materiais e de preconceitos.

No sentido de evitar erros, deve-se realizar reconciliações das contas, sendo conveniente efetuar circularização de saldos de contas correntes com as entidades externas com que a empresa se relaciona, nomeadamente com os clientes, fornecedores, entidades bancárias, o Estado (Finanças e Segurança Social) e outros devedores e credores.

Deve ainda proceder-se à contagem física dos ativos físicos detidos pela empresa, nomeadamente ativos fixos tangíveis, inventários, caixa, etc..

Outro procedimento contabilístico fundamental é a realização das reconciliações bancárias das contas de depósitos à ordem, empréstimos bancários e outras operações financeiras.

O objetivo destes procedimentos (circularização, contagens físicas, reconciliações) é a identificação de possíveis diferenças entre os registos contabilísticos e a realidade relacionada com as entidades externas ou com os itens físicos detidos ou locados, podendo a seguir serem solicitados os documentos em falta ou esclarecimentos das operações em aberto que estejam em dúvida.

Em resultado da reconciliação de todas as contas, com a identificação de todas as diferenças relativas a erros, documentos em falta ou outras omissões na contabilidade é possível efetuar as necessárias regularizações com o propósito de colocar as Demonstrações Financeiras da empresa com uma imagem verdadeira e apropriada da respetiva posição financeira e desempenho, sendo este um dos objetivos principais a ter em conta na preparação e apresentação dessa informação financeira.

A A... não demonstrou que procede a qualquer circularização nem reconciliação de contas.

A ausência de documentos comprovativos das despesas, culmina na falta de identificação dos destinatários/beneficiários, consubstanciando-as em despesas não documentadas.

Em termos comerciais

Acresce que, do ponto de vista jurídico, para os sócios anteciparem o recebimento dos lucros, tal só é possível se for cumprido o estabelecido no artigo 297.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) (norma estabelecida para as sociedade anónimas, mas que é aplicável, com as devidas adaptações, para as sociedades por quotas).

Estipula este articulado que o contrato da sociedade pode autorizar que, no decurso de um exercício, sejam feitos aos acionistas adiantamentos sobre lucros, desde que observadas as seguintes regras:

• O conselho de administração ou a direção, com o consentimento do conselho fiscal ou do conselho geral, resolva o adiantamento;

• A resolução do conselho de administração ou da direção seja precedida de um balanço intercalar, elaborado com a antecedência máxima de 30 dias e certificado pelo revisor oficial de contas, que demonstre a existência, nessa ocasião, de importâncias disponíveis para os aludidos adiantamentos, que deverão observar, no que for aplicável, as regras dos artigos 32.º e 33.º, tendo em conta os resultados verificados durante a parte já decorrida do exercício em que o adiantamento é efetuado;

•  Seja efetuado um só adiantamento no decurso de cada exercício e sempre na segunda metade deste;

• As importâncias a atribuir como adiantamentos não excedam metade das que seriam distribuíeis, referidas na alínea b).

 

Neste contexto e de acordo como artigo 34.º do CSC, os sócios devem restituir à sociedade os bens que dela tenham recebido com violação do disposto na lei, já que como também refere esse artigo, os sócios deveriam não ignorar a lei, aquando da distribuição de lucros, pelo que sabendo que a mesma não podia ocorrer, devem assim restituir esse valor à sociedade.

Ora, consultadas as atas nº 15 a nº 30 do ano 2002 a 2017, respetivamente, que se juntam em Anexo 3, não existe qualquer deliberação naquele sentido, nem foi restituído à sociedade, pelos sócios, qualquer importância.

 

Operação registada na contabilidade da A...

Em dezembro de 2015 a A..., verificou que os saldos das diversas entidades bancárias registados na contabilidade eram maioritariamente superiores aos valores reais constantes dos extratos bancários, pelo que procedeu à regularização dos saldos das contas (acerto de saldos): 123 -...; 125-Montepio; 126-... e 129-..., através de uma "Nota de lançamento interna", que se junta em Anexo 4, por transferência para uma conta de outros devedores (SNC 27 - Outras contas a receber e a pagar) ficcionando um débito (dívida de terceiros à sociedade) pelos seguintes montantes:

 

Este lançamento reflete que existiram, de facto, exfluxos financeiros associados a pagamentos diversos em exercícios anteriores, consubstanciados em movimentos a crédito da conta de disponibilidades (contas SNC 12), para os quais o sujeito passivo não consegue identificar, quer a origem das despesas quer os verdadeiros beneficiários.

Em resumo, o movimento acima descrito, influenciou, em termos globais, negativamente o saldo contabilístico da conta "SNC 12 - Depósitos à ordem", tendo sido "utilizado um artifício" pelo sujeito passivo para colocar o saldo de disponibilidades em valores reais/normais, adequados à realidade da empresa e em consonância com os extratos bancários à data de 31 dezembro de 2015.

No caso em concreto, por erro ou negligência, a entidade terá efetuado a preparação e apresentação das demonstrações financeiras sem fiabilidade, por não representarem fidedignamente a realidade da posição financeira e do desempenho económico da entidade, pois foi reconhecido um débito por um valor que não corresponde à realidade financeira e económica.

Assim, a diferença entre o saldo contabilístico e o saldo real em disponibilidades da conta "SNC 12 -Depósitos à ordem" a 31 de dezembro de 2015 declarado pelo sujeito passivo de 158.753,99 € corresponderá a despesas não documentadas.

De acordo com a alínea a) do n.º 2 do artigo 123º do Código do IRC, na execução da contabilidade todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário.

Por outro lado, se o contribuinte não conseguir provar quais foram os destinatários que incorreram em despesas, então, serão consideradas como despesas não documentadas e para além de terem de ser acrescidas no quadro 07 da modelo 22 estarão sujeitas a tributação autónoma.

Por gastos não documentados entende-se todas as despesas incorridas em que não existe documento como prova da operação, nem se sabe o destino desses gastos e, portanto, não se consegue provar a natureza, finalidade e origem dos gastos. Por conseguinte as despesas não documentadas:

• Não cumprem o disposto nos números 1, 3 e 4 do artigo 23.º do CIRC (Gastos e perdas), pois não se consegue provar que os gastos foram incorridos para a obtenção de rendimentos.

•  São encargos não dedutíveis nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A do CIRC (Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais);

• São tributadas autonomamente, à taxa de 50% nos termos do n.º 1, do artigo 88.º do CIRC;

• São acrescidas no quadro 07 da modelo 22, no campo 716.

Assim nos termos dos artigos 17.º, 23.º e 23.º-A do Código do IRC, a A... deverá acrescer o montante de 158.753,99 €, no campo 716 do quadro 07 da declaração de rendimentos modelo 22 de IRC do período de tributação de 2015, despesas não documentadas do período de 2015.

 

C)           Na sequência da inspecção, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu a liquidação de IRC n.º 2018..., no valor de € 128.568,46, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se incluem, os montantes de € 81.647,98 de tributações autónomas e € 10.579,22 de juros compensatórios;

D)           Notificada para os fins previstos no artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, a Autoridade Tributária e Aduaneira veio a revogar parcialmente «o  ato  de  liquidação  adicional  de  IRC  n.º  2018... de 2018-09-24, relativo ao período de tributação de 2015, tendo sido reduzida a  matéria  coletável  apurada  pelos  serviços  de  inspeção  tributária  de  €  182.405,59 para o montante € 23.651,60 (-€ 158.753,99) mantendo-se a correção relativa à tributação autónoma sobre as despesas não documentadas» (esclarecimento apresentado pela Autoridade Tributária e Aduaneira em 26-11-2018);

E)            Na fundamentação da decisão de revogação, cujo teor se dá como reproduzido, refere-se, além do mais o seguinte:

vi) Ora, pela análise dos elementos constantes nos presentes autos constata-se que aquele montante não afetou negativamente o resultado líquido do período de tributação de 2015, pois conforme o referido no relatório de inspeção tributária (RIT), parcialmente transcrito pela recorrente no § 3° do pedido de pronúncia arbitral, o lançamento contabilístico subjacente apenas movimenta contas do ativo da empresa (bancos e outros devedores) e não contas de gastos e/ou rendimentos nem existe qualquer evidência de, em 2015, aquele montante, ter sido relevado contabilisticamente como gasto para efeitos de apuramento do resultado líquido de 2015, pelo que a sua desconsideração para efeitos de apuramento do resultado tributável não tem suporte legal devendo corrigir-se a liquidação adicional ora controvertida em consonância, ou seja, reduzindo a matéria coletável apurada pelos SIT em 158.753.99 ou seja passando a matéria coletável do montante de €182.405,59 para o montante €23.651,60 mantendo-se a correção relativa à tributação autónoma sobre aquelas despesas não documentadas.

F)            Em 01-10-2018, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base no Relatório da Inspecção Tributária e nos documentos juntos pela Requerente e pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Não há controvérsia sobre os factos provados.

 

3. Matéria de direito

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira, na inspecção que efectuou a Requerente, constatou que foi registada na contabilidade uma operação que descreveu nos seguintes termos:

«Operação registada na contabilidade da A...

Em dezembro de 2015 a A..., verificou que os saldos das diversas entidades bancárias registados na contabilidade eram maioritariamente superiores aos valores reais constantes dos extratos bancários, pelo que procedeu à regularização dos saldos das contas (acerto de saldos): 123 -...; 125-...; 126-... e 129-..., através de uma "Nota de lançamento interna", (...), por transferência para uma conta de outros devedores (SNC 27 - Outras contas a receber e a pagar) ficcionando um débito (dívida de terceiros à sociedade)»

 

Esse débito é no montante de € 158.853,99.

A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu, numa primeira fase, que «este lançamento reflete que existiram, de facto, exfluxos financeiros associados a pagamentos diversos em exercícios anteriores, consubstanciados em movimentos a crédito da conta de disponibilidades (contas SNC 12), para os quais o sujeito passivo não consegue identificar, quer a origem das despesas quer os verdadeiros beneficiários» e que «a diferença entre o saldo contabilístico e o saldo real em disponibilidades da conta "SNC 12 -Depósitos à ordem" a 31 de dezembro de 2015 declarado pelo sujeito passivo de 158.753,99 € corresponderá a despesas não documentadas».

Concluiu então a Autoridade Tributária e Aduaneira que «nos termos dos artigos 17.º, 23.º e 23.º-A do Código do IRC, a A... deverá acrescer o montante de 158.753,99 €, no campo 716 do quadro 07 da declaração de rendimentos modelo 22 de IRC do período de tributação de 2015, despesas não documentadas do período de 2015».

Na pendência do presente processo, a Autoridade Tributária e Aduaneira revogou parcialmente a liquidação que praticou, considerando que, afinal, não seria de acrescer aquele montante de € 158.753,99 à matéria tributável porque, em suma, «o lançamento contabilístico subjacente apenas movimenta contas do ativo da empresa (bancos e outros devedores) e não contas de gastos e/ou rendimentos nem existe qualquer evidência de, em 2015, aquele montante, ter sido relevado contabilisticamente como gasto para efeitos de apuramento do resultado líquido de 2015».

E, coerentemente, no documento de correcção que foi apresentado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, é referido o valor «0,00» no referido campo 716 do quadro 7, relativo a «despesas não documentadas [art.º 23.º A, n.º 1, al. b)]».

No entanto, a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu manter-se a tributação daquele montante a título de «despesas não documentadas», com a aplicação da taxa de 50% prevista no n.º 1 do artigo 88.º do CIRC.

No presente processo a Autoridade Tributária e Aduaneira defende que a Requerente «reconheceu um débito por um valor que não corresponde à realidade financeira  e  económica,  não  possuindo  qualquer  documento  de  apoio  contabilístico,  cujo  valor  probatório  fosse  possível  delimitar  as  características  da  operação  económica  subjacente  aquele  registo contabilístico, designadamente, o quê, o porquê e o para quem» e que, na esteira da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo que são despesas não documentadas «as despesas relativamente às quais não existem os documentos exigidos por lei, independentemente de ser revelada ou ocultada a sua natureza, origem e finalidade».

A Requerente, baseando-se em jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Constitucional defende, em suma:

– que a tributação autónoma relativa a despesas não documentadas se reporta a despesas suportadas pelo sujeito passivo que em termos contabilísticos afectam o resultado líquido do exercício, diminuindo-o, traduzindo-se numa penalização «associada a uma finalidade antiabuso, sendo que o abuso não pode ser elidido (isto é, não pode ser demonstrado que o beneficiário das despesas não documentadas declarou esses rendimentos para efeitos fiscais);

– «o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário)»;

– «a tributação das despesas não documentadas pretende compensar o pagamento oculto de rendimentos a outro sujeito passivo, não identificável pela administração tributária»;

– trata-se de «uma tributação da despesa e não do rendimento, com uma finalidade penalizadora, de antiabuso e implicando uma responsabilidade tributária»;

– «a tributação autónoma é um regime excecional no enquadramento jurídico constitucional da tributação do rendimento acréscimo e do rendimento real, e por isso deve ser objeto de uma interpretação restritiva»;

– «as irregularidades na contabilidade do sujeito passivo, incluindo a existência de dúvidas, resultantes dessas irregularidades, não podem cair na categoria de despesas não documentadas, mas são antes pressupostos de aplicação de métodos indiretos nos termos do art.º 87.º al. b) e 88.º da LGT»;

– «o que a AT não pode fazer é, a coberto da presunção de veracidade das declarações dos contribuintes (que, como vimos é afastada no caso), “aproveitar” uma operação contabilística que considera artificiosa e imaterial para da mesma extrair a qualificação e tributação que incidiria sobre uma operação efectiva e substancial»;

– para além disso,  o IRC é devido por cada período de tributação que coincide com o ano civil (artigo 8.º, n.º 1, do CIRC) pelo que «as despesas não documentadas que são tributadas autonomamente com referência ao exercício de 2015 são as que foram efectuadas nesse ano, aquelas que, nos termos do n.º 1 do artigo 88.º, não são consideradas gastos desse período de tributação»;

– a liquidação enferma de erro sobre os pressupostos de facto, pois «pelo menos parte daquele montante reportava-se a despesas não documentadas efectuadas em anos anteriores»;

– a AT não logrou demonstrar e provar que as despesas que pretende tributar ocorreram.

 

3.1. Conceito de «despesas não documentadas»

 

O conceito de «despesas» utilizado no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, não é definido neste Código e não coincide com o de «gastos», definido no artigo 23.º do CIRC (que inclui, designadamente, «perdas» e «ajustamentos»), pelo que deverá ser atribuído àquela expressão o alcance que tem na linguagem comum, de saída de dinheiro do património de uma empresa.

O Supremo Tribunal Administrativo entendeu, no acórdão de 7-7-2010, proferido no processo n.º 0204/10, citado pela Requerente, que «tratar-se-á de encargos ou despesas suportadas pelo sujeito passivo que em termos contabilísticos afectam o resultado líquido do exercício, diminuindo-o»: a apreciação da existência ou não da devida documentação e da confidencialidade da despesa é feita tendo por objecto o acto através do qual o sujeito passivo suporta o encargo ou a despesa que é susceptível de afectar o resultado líquido do exercício, para efeitos de determinação da matéria tributável de IRC. Isto é, o encargo não estará devidamente documentado quando não houver a prova documental exigida por lei que demonstre que ele foi efectivamente suportado pelo sujeito passivo e a despesa será confidencial quando não for revelado quem recebeu a quantia em que se consubstancia a despesa.

No entanto, mas recentemente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo não faz depender a tributação autónoma baseada em despesas não documentadas da sua relevância como gastos para determinação do lucro tributável, como pode ver-se pelo acórdão do STA de 31-3-2016, processo n.º 0505/15:

O art.º 81.º do CIRC, na redacção vigente à data da tributação definia as diversas taxas que seriam utilizadas para tributação dos tipos de despesas ali enunciadas, sem haver qualquer dispositivo legal que determinasse que essa tributação só ocorreria se estas despesas houvessem sido tidas como custos fiscais da empresa para a determinação do seu lucro tributável.

Admitindo-se que a finalidade da tributação autónoma apontada pela recorrente - reduzir a despesa fiscal evitando a fraude e evasão fiscais – seja um dos elementos considerados pelo legislador no estabelecimento desta regulamentação, essa finalidade não pode permitir, como aquela pretende que a interpretação do normativo em questão seja efectuada de molde a nele inserir um pressuposto legal sem qualquer assento no texto da lei, o que seria manifestamente desconforme com o disposto no art. 9.º do Código Civil.

As despesas em questão são tributadas apenas porque são efectuadas, havendo mesmo a cargo do contribuinte a obrigação de as tornar aparentes na sua declaração de rendimentos. Se todas ou parte delas poderiam ter sido consideradas como custos da empresa para efeitos da determinação do seu lucro tributável, aumentando a despesa fiscal com a consequente diminuição do lucro tributável, e a empresa por decisão consciente, ou esquecimento, não as considerou desse modo na sua declaração de rendimentos, nem por isso, elas perdem a sua natureza de despesas tributáveis em sede de tributação autónoma, que, por definição é uma tributação destacável da tributação em sede de IRC.

 

Na jurisprudência arbitral já havia sido defendida este entendimento, designadamente no voto de vencido proferido pelo Senhor Professor Doutor Manuel Pires no processo n.º 7/2011-T:

devem ser incluídas na tributação autónoma em causa não apenas as despesas não documentadas, contabilizadas como gastos, mas também aquelas com as mesmas características, isto é, não documentadas que, devendo ter sido reconhecidas na contabilidade, como gastos, embora fiscalmente não dedutíveis, não o foram e, portanto, não afectaram o resultado, não existindo razão excludente das vias que, embora não sejam ou possam não ser as mais evidentes, não deixam de implicar despesas não documentadas».

 

Assim, as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC reconduzem-se a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita determinar a natureza da despesa ou o seu beneficiário.

Mas, para ocorrerem despesas, é necessário que se comprove que ocorreram essas saídas de meios financeiros da empresa.

O reconhecimento de «um débito por um valor que não corresponde à realidade financeira  e  económica,  não  possuindo  qualquer  documento  de  apoio  contabilístico,  cujo  valor  probatório  fosse  possível  delimitar  as  características  da  operação  económica  subjacente  aquele  registo contabilístico, designadamente, o quê, o porquê e o para quem», que a Autoridade Tributária e Aduaneira sublinha na sua Resposta como o facto relevante para tributação autónoma como despesa não documentada, não constitui, em si mesmo, qualquer despesa, pois, só por si, não altera a situação patrimonial da empresa.

Como diz a Requerente e a Autoridade Tributária e Aduaneira acaba por concordar no acto de revogação parcial da liquidação, a mera movimentação de contas do activo (bancos e outros devedores) não implica a realização de qualquer «despesa», não afectando, só por si, o património da sociedade.

Porém, no Relatório da Inspecção, a Autoridade Tributária e Aduaneira não considerou que essa operação contabilística consubstanciasse, em si mesma, uma despesa, antes a considerou como demonstrativa de que terão ocorrido «pagamentos diversos em exercícios anteriores, consubstanciados em movimentos a crédito da conta de disponibilidades».

Assim, à face da fundamentação da liquidação impugnada, serão «esses pagamentos diversos», esses «movimentos a crédito da conta de disponibilidades», o suporte fáctico da tributação autónoma em causa.

Este entendimento é reafirmado na decisão de revogação parcial da liquidação, em que se refere:

«ii) Ou seja, sem qualquer documento de apoio contabilístico aceitável mediante o qual seja possível delimitar, sem dúvida, as características essenciais da operação económica subjacente aquele registo contabilístico, nomeadamente elementos como o quê, o porquê e o para quem. As contas da recorrente revelam que existiu inegavelmente uma saída de disponibilidades da empresa de montante substancial (€158.753,99) mas cujo objetivo, operação o(ões) subjacente(s), destino e beneficiário(s) daquele montante não se encontram identificados, nem nas contas da empresa nem a recorrente apresentou qualquer elemento adicional identificativo tanto no decurso do procedimento inspetivo como nos presentes autos».

 

Porém, esta conclusão de que houve «pagamentos diversos em exercícios anteriores», que são suporte da tributação autónoma em 2015, afigura-se insegura, numa situação em que a Autoridade Tributária e Aduaneira indica no Relatório da Inspecção Tributária deficiências na contabilidade da Requerente.

Aí, a Autoridade Tributária e Aduaneira manifestou o entendimento de que, «no sentido de evitar erros, deve-se realizar reconciliações das contas, sendo conveniente efetuar circularização de saldos de contas correntes com as entidades externas com que a empresa se relaciona», «deve ainda proceder-se à contagem física dos ativos físicos detidos pela empresa» e à «realização das reconciliações bancárias das contas de depósitos à ordem, empréstimos bancários e outras operações financeiras».

Constatou a Autoridade Tributária e Aduaneira na inspecção que «a A... não demonstrou que procede a qualquer circularização nem reconciliação de contas», e que «por erro ou negligência, a entidade terá efetuado a preparação e apresentação das demonstrações financeiras sem fiabilidade, por não representarem fidedignamente a realidade da posição financeira e do desempenho económico da entidade, pois foi reconhecido um débito por um valor que não corresponde a realidade financeira e económica».

A falta de fiabilidade da escrita não permite concluir que os «erros» contabilísticos se traduzam necessariamente em «pagamentos diversos em exercícios anteriores», pois podem resultar de lapsos ou omissões.

Neste caso, a falta de credibilidade da escrita ressalta do facto de a Autoridade Tributária e Aduaneira não ter conseguido identificar nenhum  dos «movimentos a crédito da conta de disponibilidades» a que alude, apesar de se tratar de uma conta (Conta 12 do SNC) destinada  a registar os movimentos de valores depositados à ordem em instituições financeiras, que presumivelmente poderão ser identificados com exame da documentação bancária, a que a Autoridade Tributária e Aduaneira pode aceder, nos termos do artigo 63.º-B da LGT.

Ora, a tributação autónoma de despesas não documentadas pressupõe a demonstração da existência das operações que são tributadas subjacentes aos tais «movimentos a crédito da conta de disponibilidades» de que, no entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira, resultou a diferença entre o saldo da conta 12 e os valores reais dos depósitos bancários.

Por outro lado, a conclusão retirada pela Autoridade Tributária e Aduaneira de que terão ocorrido «pagamentos diversos em exercícios anteriores, consubstanciados em movimentos a crédito da conta de disponibilidades», não permite identificar quais os exercícios em que esses invocados pagamentos possam ter ocorrido.

Aquela referência a «pagamentos diversos em exercícios anteriores» exprime, literalmente, a convicção da Autoridade Tributária e Aduaneira de que os pagamentos a que alude não terão ocorrido no ano exercício de 2015, mas nos anteriores. 

 A ser assim, como defende a Requerente, não haverá fundamento para liquidar tributação autónoma com referência ao exercício de 2015, pois, em sede de IRC, inclusivamente quanto às tributações autónomas previstas no CIRC, vigora por força do princípio da anualidade que se enuncia no artigo 8.º do CIRC. Na verdade, as tributações autónomas em IRC são, tal como o imposto que incide sobre o lucro tributável, apuradas na declaração periódica anual, a que se referem os artigos 117.º, n.º 1, alínea b), e 120.º do CIRC, pelo que no exercício de 2015 apenas poderão ser tributadas autonomamente despesas que tenham ocorrido nesse exercício.

De qualquer modo, mesmo que a Autoridade Tributária e Aduaneira, apesar do teor literal daquela expressão, estivesse a referir-se também ao exercício de 2015, é inequívoco que a conclusão que a Autoridade Tributária e Aduaneira retirou é a de que não foi apenas no exercício de 2015 que terão ocorrido as invocadas tributações autónomas, mas também numa pluralidade de exercícios anteriores não identificados, pelo que pelo menos nessa parte respeitantes a exercícios anteriores (não determinada) seria ilegal a liquidação no âmbito da liquidação adicional respeitante ao exercício de 2015  .

Assim, não se tendo apurado qualquer saída de meios financeiros do património da empresa no exercício de 2015, nem em quais os «exercícios anteriores» em que poderão ter ocorrido os invocados «pagamentos diversos», fica-se numa situação de dúvida sobre os pressupostos fácticos em que assenta a liquidação de tributações autónomas respeitantes ao exercício de 2015 com fundamento em despesas não documentadas. Essa dúvida tem de ser processualmente valorada a favor da Requerente, em face da regra do ónus da prova do artigo 74.º, n.º 1, da LGT (   ).

Pelo exposto, conclui-se que a liquidação impugnada enferma de vício de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, como defende a Requerente.

Este vício justifica a anulação da liquidação, por forma do disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

3.2. Juros compensatórios

 

A liquidação de juros compensatórios tem como pressuposto a liquidação de tributação autónoma, pelo que enferma dos mesmos vícios.

 

4. Decisão

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

a)            Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)           Anular parcialmente a liquidação de IRC e juros compensatórios n.º 2018..., de 24-09-2018, na parte em que tem por fundamento tributação autónoma baseada em «despesas não documentadas» e respectivos juros compensatórios, no valor de € 86.492,65 (€ 79.377,00 de tributação autónoma e € 7.115,65, como se refere no despacho de 01-02-2019).

 

5. Valor do processo

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 86.492,65.

 

6. Custas

                Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira. 

               

Lisboa, 13-03-2019

Os Árbitros

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

(Miguel Matos Torres)

 

(Ana Teixeira de Sousa)