Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 290/2018-T
Data da decisão: 2019-03-15  IRS  
Valor do pedido: € 258.788,64
Tema: Artigo 5.º, n.º 2, alínea p) do Código de IRS; Suprimentos; Prestações suplementares
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                Os árbitros Fernanda Maças (árbitro presidente), Nuno Cunha Rodrigues e Maria do Rosário Anjos, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 28-08-2018 decidem nos termos que seguem:

 

I.             RELATÓRIO (consultar versão completa no PDF)

 

A)           Das Partes e da Tramitação Processual

 

1.            A..., LDA, sociedade comercial por quotas, pessoa coletiva nº..., com sede em ...,  ..., doravante designada por “Requerente”, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, a alínea a) e 10º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT), para impugnação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, proferido pelo Exmo. Senhor Chefe se Serviço de Finanças de ..., bem assim como das liquidações de retenção na fonte de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), com os nºs 2013 ... (documento nº 2013...) e 2013... (documento nº 2013..., referentes aos exercícios de 2010 e 2011, e correspondentes liquidações de juros compensatórios, no montante global de €258.788,64.

 

2.            O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado pela Requerente em 18-06-2018, tendo sido aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD, em 19-06-2018, e notificado à AT na mesma data, nos termos e para os efeitos legalmente previstos. A Requerente optou por não indicar árbitro pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou, em 30-08-2018, como árbitro presidente a Exma. Senhora Conselheira Maria Fernanda dos Santos Maças e, como árbitros vogais, os Exmos. Senhores Prof. Doutor Nuno Cunha Rodrigues e Prof. Doutora Maria do Rosário Anjos, para integrar o tribunal arbitral a constituir. Todos comunicaram a sua aceitação dentro do prazo aplicável e o tribunal arbitral coletivo ficou constituído em 28-08-2018.

 

3.            Em 30/08/2018, foi proferido despacho arbitral para a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) apresentar resposta no prazo legal, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 17.º do RJAT. A Requerida veio juntar aos autos a sua resposta e o respetivo Processo Administrativo (PA), em 30-10-2018, cujo teor se dão por integralmente reproduzidos.

 

4.            Em 12-10-2018, foi proferido despacho arbitral, imediatamente notificado às partes, no qual foi agendada a realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT, a realizar em 13-12-2018 às 10 horas e 15 minutos, destinada a inquirição das testemunhas indicadas pelas partes e saneamento das questões de tramitação processual subsequentes. Em 10-12-2018, veio a Requerente prescindir da produção da prova testemunhal indicada, por requerimento junto aos autos em 10-12-2018. Assim, face ao requerimento junto e à posição das partes evidenciadas nos articulados, considerando que a natureza da questão controvertida se afigura como exclusivamente de direito, foi proferido despacho arbitral em 11-12-2018 a dar sem efeito a data agendada para a reunião e, ainda, a fixar o prazo de 15 dias, igual e sucessivo, para as partes apresentarem as suas alegações. Foi indicada como data provável para a prolação da decisão arbitral o dia 27/02/2019, posteriormente prorrogado até 23-04-2019, conforme despacho proferido em 25-02-2019, considerando que a contagem do prazo de seis meses para proferir decisão arbitral, como resulta do RJAT, não contempla as interrupções para férias judiciais previstas na lei e qua aproveitam às partes, pelo que, no caso dos presentes autos, justifica-se a necessidade de prorrogação do prazo de decisão, nos termos, aliás, previstos no n.º 2 do artigo 21.º do RJAT.

 

B)           Do Pedido Formulado

 

5.            Em síntese, a Requerente fundamenta o seu pedido arbitral na ilegalidade do despacho de indeferimento da reclamação graciosa e das liquidações impugnadas, com fundamento em erro na qualificação e na quantificação do facto tributário, com a consequente violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito.

Do ponto de vista da Requerente, o despacho de indeferimento da reclamação graciosa e as liquidações impugnadas são ilegais por terem considerado existir vantagem económica do sócio, advinda do reembolso de créditos (adquiridos abaixo do valor nominal), o que, no caso não ocorreu. Assim, do ponto de vista da Requerente a tributação em sede de IRS (como pretende a AT) só deve ocorrer no caso em que o valor de aquisição dos créditos ultrapasse o respetivo custo de aquisição, caso em que se verificará uma vantagem económica. No caso da Requerente, essa vantagem económica não se verificou, pelo que é manifestamente ilegal tributar a operação realizada. Há manifesto erro de facto e de direito, já que os atos tributários impugnados assentam no pressuposto de existência de uma vantagem económica que, efetivamente, não ocorreu.

 

C – Da Resposta da Requerida

 

6.            Na sua resposta a AT pugna pela legalidade das liquidações impugnadas e, em síntese, veio defender o entendimento, já sustentado no relatório da inspeção e nos atos tributários impugnados. Em síntese, alega a AT que o sócio da Requerente (identificado na petição), assumiu a cobertura de prejuízos da Requerente, o que o obrigava a injetar na sociedade o capital suficiente a fazer face a tais prejuízos. Contudo, como era credor da empresa, limitou-se a efetuar um movimento contabilístico, diminuindo o passivo por aumento de capitais próprios. O que significa, do ponto de vista da AT, que recebeu os suprimentos antes efetuados, procedeu à aquisição de quotas da empresa (que assumidamente estava em posição financeira debilitada). Tal como sucedeu com os suprimentos, a aquisição de quotas foi efetuada por um valor substancialmente inferior ao valor nominal.

Para a AT, não foi feita qualquer imputação específica de qualquer importância a quotas e a suprimentos, não consentindo que se conheça o real valor de aquisição de uns e de outros.

Conclui, considerando que existiu o recebimento de tais suprimentos, aqui traduzido na mobilização do seu saldo para cobrir prejuízos e outras prestações suplementares, pelo que há uma evidente compensação entre os créditos correspondentes aos suprimentos e a obrigação, assumida pelo sócio referido, de injetar capital (o que não fez) para cobrir os prejuízos da Requerente e outras prestações suplementares. A vantagem económica, evidente para a AT, resulta do recebimento (encapotado) dos suprimentos, adquiridos por valor muito inferior ao seu valor nominal.

Pugna pela legalidade de todos os atos tributários impugnados e, por último, pela improcedência do pedido.

 

 

C) Dos Pressupostos Processuais

 

7.            O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º nº2 do RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de março).

O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

Nestes termos cumpre fixar a matéria de facto relevante e proferir a adequada decisão de direito.

 

A questão a decidir consiste, no essencial, em saber se da transação realizada, resultou ou não vantagem económica suscetível de tributação nos termos pretendidos pela AT.

 

 

II. Matéria de facto

A)           Factos Provados:

 

8.            Com interesse para a decisão dos presentes autos consideram-se provados os seguintes factos:

a.            A Requerente é uma sociedade por quotas de direito português que tem objeto social a exploração agrícola da Quinta ... e outras que venham a ser adquiridas.

b.            À data dos factos a Requerente encontrava-se sujeita ao regime geral de IRC e ao regime normal de IVA com periodicidade trimestral.

c.            A Requerente foi objeto de uma inspeção tributária aos anos de 2009, 2010 e 2011, realizada pelos Serviços de Inspeção Tributária (SIT), tendo sido notificada em 11-11-2013 do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária (RIT).

d.            No dito Projeto de RIT os SIT propuseram correções aos montantes de retenções na fonte da categoria E, em sede de IRS, nos montantes de €226.022,84 e € 6.208,90, para os períodos de tributação de 2010 e 2011, respetivamente.

e.            A Requerente exerceu o seu direito de audição, manifestando a sua discordância com as correções propostas.

f.             No dia 12-12-2013 a Requerente foi notificada do RIT, no qual foram confirmadas as anunciadas correções aos montantes das retenções na fonte, mencionadas na alínea d) deste probatório.

g.            No RIT, a fundamentação, no que se refere às correções em causa nos presentes autos, consta do seguinte quadro explicativo:

 

 

h.            Ainda a propósito da fundamentação das correções efetuadas em sede de retenção na fonte de IRS, aparece a páginas 40 e ss do RIT, o seguinte:

 

 

i.             Ainda a propósito das ditas correções, consta a páginas 51 e seguinte do RIT a seguinte conclusão:

 

 

j.             Analisado todo o conteúdo do RIT, no que tange à questão das correções efetuadas em sede de retenções na fonte de IRS, bem assim como do constante dos artigos 3º a 6º da Resposta apresentada pela AT, resulta provado que:

a)            o sócio B... assumiu a cobertura de prejuízos da Requerente, o que o obrigava a injetar capital na sociedade, suficiente para fazer face aos prejuízos evidenciados na contabilidade;

b)           contudo, como era credor da empresa, limitou-se a efetuar um movimento contabilístico, diminuindo o passivo por aumento de capitais próprios.

c)            o que significa, que a aquisição da quota mencionada nos autos ocorreu por mero movimento contabilístico, ou seja, o sócio recebeu a quota por conta dos suprimentos antes efetuados;

d)           não ocorreram quaisquer transferências de valores monetários ou de outra natureza entre as contas da Requerente e do sócio B... .

 

k.            A Requerente, por não se conformar com as liquidações de imposto emitidas deduziu, em 6-06-2014, Reclamação Graciosa, a qual veio a ser indeferida em 15-03-2018, por despacho notificado à Requerente em 20-03-2018.

l.             Em 18-06-2018, a Requerente apresentou o presente pedido arbitral para impugnação das liquidações em crise (liquidações de retenção na fonte de IRS referentes a 2010 e 2011), no qual peticiona a sua anulação, com todas as consequências legais, incluindo o reembolso da quantia paga a título de imposto indevidamente liquidado e pago, no montante de €258.788,64, acrescida de juros indemnizatórios.

m.          A Requerente prestou garantia bancária em 09-05-2014, no montante de €330.742,81, emitida pelo Banco C..., como resulta do teor do documento nº 5, junto em anexo ao pedido arbitral, do qual consta:

 

 

B)           Factos não provados

 

9.            Não existem outros factos relevantes para a decisão que devam considerar-se como não provados.

 

C)           Fundamentação dos factos provados

 

10.          O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

No presente caso a matéria de facto encontra-se sustentada nos documentos juntos aos autos pela Requerente e dos constantes do Processo Administrativo (PA) junto pela Requerida, com destaque para o Relatório de Inspeção Tributária (RIT) junto aos autos.

Acresce que, a matéria de facto enunciada não se afigura controvertida e é aceite como verdadeira pelas partes, as quais divergem apenas quanto ao sentido da decisão de direito.

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT, a prova documental junta aos autos pelo Requerente e a que consta do próprio Processo Administrativo, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

III. Do mérito do pedido:

 

11.          A questão que se coloca nos presentes autos diz respeito a saber se a importância apurada pelos Serviços de Inspecção encontra enquadramento legal no artigo 5.º, n.º 2, alínea p) do Código de IRS, classificando-se os montantes em causa na categoria E, como defende a Requerida AT, por concluir tratar-se de um recebimento de suprimentos ou se, pelo contrário, como alega a Requerente, tal situação não se pode enquadrar em sede de rendimentos de capitais, porquanto não houve, por parte do sócio B..., recebimento dos créditos adquiridos razão pela qual as operações contabilísticas realizadas pela Requerente, através das quais foram utilizados suprimentos para cobertura de prejuízos e realização de prestações suplementares, não podem ser enquadradas em sede de IRS.

 

12.          Por outras palavras a Requerida AT alega que o sócio B... terá utilizado suprimentos que foram por este recebidos para posterior entrega à Requerente para cobertura de prejuízos e realização de prestações suplementares. Tal recebimento teria, no entender da Requerida AT, traduzido a obtenção de uma vantagem económica refletida, ainda de acordo com a Requerida AT, num rendimento de capitais que se repercutiu na esfera do sócio da Requerente B... .

Este suposto recebimento decorreu, no entender da Requerida AT, de terem ocorrido dois factos distintos.

Assim, num primeiro momento, as operações em causa consistiram no reembolso presumido dos suprimentos para a esfera do sócio B... para, num segundo momento, o mesmo sócio B... proceder com as entradas presumidas das mesmas disponibilidades financeiras para cobertura de prejuízos e realização de prestações suplementares na Requerente.

Importa decidir se a liquidação impugnada é ilegal.

 

13.          Cumpre, por isso, verificar se estão preenchidos os pressupostos que previstos na norma de incidência do artigo 5.º, n.º 2, alínea p), do CIRS, invocada pela Requerida AT.

Vejamos.

O Código do IRS em vigor nos anos de 2010 e 2011 dispunha da seguinte forma relativamente aos artigos em discussão:

 

Artigo 5.º

Rendimentos da categoria E

1 - Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, directa ou indirectamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respectiva modificação, transmissão ou cessação, com excepção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.

2 - Os frutos e vantagens económicas referidos no número anterior compreendem, designadamente:

(…)

p) Quaisquer outros rendimentos derivados da simples aplicação de capitais;

 

Artigo 7.º

Momento a partir do qual ficam sujeitos a tributação os rendimentos da categoria E

1 - Os rendimentos referidos no artigo 5.º ficam sujeitos a tributação desde o momento em que se vencem, se presume o vencimento, são colocados à disposição do seu titular, são liquidados ou desde a data do apuramento do respetivo quantitativo, conforme os casos.

2 - Tratando-se de mútuos, de depósitos e de aberturas de crédito, considera-se que os juros, incluindo os parcialmente presumidos, se vencem na data estipulada, ou, na sua ausência, na data do reembolso do capital, salvo quanto aos juros totalmente presumidos, cujo vencimento se considera ter lugar em 31 de dezembro de cada ano ou na data do reembolso, se anterior.

(…)

 

Artigo 71.º

Taxas liberatórias

4 - Estão sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória de 21,5%, os seguintes rendimentos obtidos em território português por não residentes:

(…)

b) Quaisquer rendimentos de capitais não referidos no n.º 1;

14.          A propósito do artigo 5.º do CIRS, e como é bem observado no acórdão do TCA Sul, de 20 de dezembro de 2012, proc. 03410/09, “a definição de “rendimentos de capitais”, implantada, pela L. 30 -G/2000 de 29.12., no art. 5.º n.º 1 CIRS, traduz e incorpora uma regra de incidência tão ampla, distendida, que é capaz de englobar qualquer situação, envolvente de valores mobiliários, que não seja tributada noutra das categorias, em que opera o IRS.”

É por isso que “são susceptíveis de integrar a versada previsão legal, “vantagens económicas”, independentemente da natureza ou denominação, pecuniárias ou em espécie, provenientes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, bem como, da respectiva modificação, transmissão ou cessação”.

 

No caso presente, a Requerida AT presume que os suprimentos do sócio B... de prestações suplementares em dois momentos.

 

Num primeiro momento, as operações em causa consistiram no reembolso presumido dos suprimentos para a esfera do sócio B... para, num segundo momento, o mesmo sócio B... proceder com as entradas presumidas das mesmas disponibilidades financeiras.

 

15.          Devemos, por isso, analisar se a transformação de suprimentos em amortização de prejuízos e prestações suplementares implicou uma vantagem económica para o sócio B... que, em algum momento, tenha sido colocada à sua disposição (cfr. artigos 5.º, n.º 1 e 7.º, n.º 1 do CIRS). Aqui, importa observar que a Administração Tributária tinha o ónus de alegar e provar factos donde se pudesse extrair aquela conclusão (cfr. artigo 74º da LGT).

 

Porém, a argumentação constante do RIT e vertida no probatório não contém factos objectivos susceptíveis de demonstrar que a quantia em causa (o valor dos suprimentos) tenha sido efectivamente colocada à disposição, em algum momento, do sócio B... .

Estão em causa, para a Requerida AT, “(…) rendimentos derivados da simples aplicação de capitais” (cfr. artigo 5.º, n.º 2, alínea p) do CIRS).

 

16.          Poder-se-á discutir se a transformação de suprimentos em prejuízos e prestações suplementares constituem rendimentos derivados da simples aplicação de capitais.

Mas, para que tal suceda, é necessário que se prove que os supostos rendimentos foram colocados à disposição dos sócios ou titulares, sendo que não existe qualquer presunção, prevista no CIRS, que seja aplicável a este caso (cfr. artigo 6.º do CIRS).

 

17.          Ora de harmonia com o artigo 7.º, n.º 1 do CIRS, os rendimentos referidos no artigo 5.º ficam sujeitos a tributação desde o momento em que se vencem, se presume o vencimento, são colocados à disposição do seu titular, são liquidados ou desde a data do apuramento do respetivo quantitativo, conforme os casos. Atenta a natureza do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares e a concepção de rendimento acréscimo patrimonial adoptada, a tributação visada pela norma em causa é a existência, ainda que a título presuntivo, de fluxos económico-financeiros da sociedade para o sócio (que contabilisticamente implicam registo a débito nas respectivas contas), pois só neste caso é indiciada a existência dum acréscimo patrimonial e de capacidade contributiva, que, como é consabido, constitui o pressuposto e o critério de tributação.

 

18.          Na verdade, o artigo 5.º, n.º 1, alínea p) do CIRS determina que são considerados como rendimentos de capitais quaisquer outros rendimentos derivados da simples aplicação de capitais sabendo-se que estes apenas ficam sujeitos a tributação desde o momento em que se vencem, se presume o vencimento, são colocados à disposição do seu titular, são liquidados ou desde a data do apuramento do respetivo quantitativo, conforme os casos (cfr. artigo 7.º, n.º 1 do CIRS).

 

19.          Ora, no caso presente, a Requerida AT não provou que o valor dos suprimentos tenha, em algum momento, se vencido; ou presumido o vencimento; ou sido colocados à disposição do seu titular; ou liquidados ou sido apurado o respetivo quantitativo (cfr. artigo 7.º, n.º 1 do CIRS).

 

A Requerida AT não demonstrou que os suprimentos do sócio B..., que foram transformados para efeitos da cobertura de prejuízos e da realização de prestações suplementares, tenham correspondido à obtenção de uma vantagem económica para o sócio B..., susceptível de ser considerada como rendimento de capitais à luz do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea p) do Código do IRS vigente à época.

É que, entende-se, em rigor esses rendimentos nunca foram colocados à disposição do sócio B... uma vez que se verificou, apenas e só, a transformação contabilística, na estrita esfera na Requerente, dos suprimentos em cobertura de prejuízos e prestações suplementares.

Note-se que essa alteração contabilística, verificada na Requerente, e referente ao valor dos suprimentos do sócio B..., não obsta a que, no futuro, este possa vir a ser tributado por aqueles montantes.

 

Exemplificativamente, o sócio B... pode vir a ser reembolsado pelo valor das prestações suplementares em que parte dos suprimentos foram transformados.

Certo é que a Requerida AT tinha o ónus de provar a existência dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, isto é, competia-lhe provar que se verificam os factos que integram o fundamento previsto na lei para liquidar o imposto que o contribuinte supostamente deixou de liquidar, demonstrando a existência e conteúdo do facto tributário.

 

Ou seja, a Administração Fiscal tinha o ónus de demonstrar que houve um primeiro momento em que o sócio B... foi reembolsado, pela Requerente, pelo valor dos suprimentos de que dispunha tendo, nesse momento, total liberdade para reafectar aqueles suprimentos. Sucede que não foi provada qualquer evidência contabilística da entrada na esfera do sócio B..., do valor, total ou parcial, dos suprimentos em causa.

Não foi sequer apresentada, pela Requerida AT, qualquer evidência de que tal valor tenha entrado em contas bancárias do sócio B... ou lhe tenha sido, por qualquer forma, entregue.

 

20.          Não se pode, assim, considerar que estamos perante rendimentos derivados da simples aplicação de capitais, para efeitos do disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alínea p) e 7.º, n.º 1 do CIRS os quais não estão, consequentemente, sujeitos ao disposto no artigo 71.º, n.º 4, alínea b) do CIRS.

Uma vez que não estavam em causa rendimentos derivados da simples aplicação de capitais inexiste, para a Requerente, qualquer obrigação de imposto, o que inquina do vício de violação de lei a liquidação impugnada de IRS, determinante da sua anulação.

 

21.          Por último, vem a Requerente peticionar o ressarcimento dos prejuízos resultantes da prestação (indevida) de garantia bancária no montante de €330.742,81, por aplicação a este valor e desde 9 de maio de 2014 das sucessivas taxas de juros indemnizatórios, em conformidade com o disposto nos artigos 54º e 43º da LGT e 171º do CPPT.

 

22.          Como resulta da alínea m) da matéria de facto provada, em 14-05-2014, a Requerente prestou a garantia bancária que consta do documento n.º 5, junto com o pedido pronúncia arbitral, para suspender a execução fiscal inevitável, a instaurar em caso de não pagamento dos valores de imposto determinados por correções efetuadas pela AT no âmbito de processo inspetivo, conforme bem resulta dos autos.

Ora, de harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito.

Resulta ainda da Lei de autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, como diretriz primacial da instituição da arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

 

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD e não faça referência a decisões constitutivas (anulatórias) e condenatórias, deverá entender-se, em sintonia com a referida autorização legislativa, que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários em relação aos actos cuja apreciação de legalidade se insere nas suas competências.

 

Apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação (artigos 99.º e 124.º do CPPT), pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida.

 

23.          Na verdade, apesar de não existir qualquer norma expressa nesse sentido, tem-se vindo pacificamente a entender nos tribunais tributários, desde a entrada em vigor dos códigos da reforma fiscal de 1958-1965, que pode ser cumulado em processo de impugnação judicial pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios com o pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência do acto, por nesses códigos se referir que o direito a juros indemnizatórios surge quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, a administração seja convencida de que houve erro de facto imputável aos serviços. Este regime foi, posteriormente, generalizado no Código de Processo Tributário, que estabeleceu no n.º 1 do seu artigo 24.º que «haverá direito a juros indemnizatórios a favor do contribuinte quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, se determine que houve erro imputável aos serviços», a seguir, na LGT, em cujo artigo 43.º, n.º 1, se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e, finalmente, no CPPT em que se estabeleceu, no n.º 2 do artigo 61.º (a que corresponde o n.º 4 na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

 

Relativamente ao pedido de condenação no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, o artigo 171.º do CPPT, estabelece que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda» e que «a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência».

 

Assim, é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido artigo 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.

 

Aliás, a cumulação de pedidos relativos ao mesmo acto tributário está implicitamente pressuposta no artigo 3.º do RJAT, ao falar em «cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos», o que deixa perceber que a cumulação de pedidos também é possível relativamente ao mesmo acto tributário e os pedidos de indemnização por juros indemnizatórios e de condenação por garantia indevida são susceptíveis de ser abrangidos por aquela fórmula, pelo que uma interpretação neste sentido tem, pelo menos, o mínimo de correspondência verbal exigido pelo n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil.

 

24.          O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 52.º da LGT, que estabelece o seguinte:

 

“Artigo 53.º

 

Garantia em caso de prestação indevida

 

1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.”

 

25.          Retornando, agora, ao caso concreto em apreço, é manifesto que os erros subjacentes às liquidações de IVA e juros compensatórios são imputáveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, pois as correções foram da sua iniciativa e a Requerente em nada contribuiu para que esses erros fossem praticados. Por isso a Requerente tem, neste caso direito a uma indemnização pelos custos com a prestação da garantia bancária. Contudo, formula o seu pedido como pedido de juros indemnizatórios pela prestação de garantia indevida.

Ora, não há nas leis tributárias qualquer suporte normativo para a atribuição de juros de mora ou indemnizatórios nos casos de indemnização por garantia indevida. Como vem entendendo o Supremo Tribunal Administrativo «o direito a indemnização por prestação indevida de garantia não comporta, em situação alguma, o direito a juros indemnizatórios e/ou de mora, nos termos dos artigos 43.º e 102.º da LGT, cingindo-se, tão somente, ao valor correspondente aos encargos efectivamente suportados com a prestação da mesma, ainda assim com o limite previsto no n.º 3 do supracitado artigo 53.º da LGT».

Neste sentido encontramos, também, aponta a jurisprudência arbitral produzida junto do CAAD, da qual destacamos, entre outras a vertida no Acórdão arbitral nº 409/2014-T, de 08-01-2015.

Por outro lado, não se insere na competência deste Tribunal Arbitral, que se restringe, nos termos do artigo 2.º do RJAT, a dirimir um litígio em matéria tributária, decidir se há ou não direito a juros com base no regime geral da responsabilidade civil extracontratual.

Assim, como bem se decidiu no Acórdão arbitral proferido no processo nº 409/2015, já supra mencionado, não havendo elementos que permitam determinar o montante da indemnização, a condenação terá de ser efectuada com referência ao que vier a ser liquidado em execução do presente acórdão [artigos 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e 565.º do Código Civil, aplicáveis neste sentido ternos do artigo 2.º, alínea d) da LGT]. Por isso, tem de se julgar improcedente o pedido de pagamento de juros.

 

IV - Decisão:

 

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, decide-se:

 

a)            Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular todos os atos tributários impugnados, incluindo as liquidações oficiosas de IRS, identificadas com os nºs 2013 ... (documento nº 2013...) e 2013... (documento nº 2013..., referentes aos exercícios de 2010 e 20111, e correspondentes liquidações de juros compensatórios, no montante global de €258.788,64.

b)           Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios pela garantia bancária prestada;

c)            Condenar a Requerida AT nas custas do processo.

 

V - Valor do processo:

Fixa-se em € 258.788,64 (duzentos e cinquenta e oito mil setecentos e oitenta e oito euros e sessenta e quatro cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VI - Custas:

Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em €4.896 (quatro mil oitocentos e noventa e seis euros) a cargo da Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 15 de março de 2019

 

Os Árbitros

 

 

(Fernanda Maças)

 

 

 

(Maria do Rosário Anjos)

 

 

 

(Nuno Cunha Rodrigues)