Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 231/2018-T
Data da decisão: 2019-01-28  IRC  
Valor do pedido: € 936.435,77
Tema: Incompetência – Pedido de revisão oficiosa. IRC – Provisões para riscos gerais de crédito – Variação anual – Dedutibilidade – art. 34.º, n.º 4 do CIRC.
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DECISÃO ARBITRAL

                                 

Os árbitros Dra. Alexandra Coelho Martins (árbitro-presidente), Dr. Pedro Nuno Ramos Roque e Prof. Doutor Jónatas Machado (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 16 de julho de 2018, acordam no seguinte:

 

 

  1.  Relatório

 

A... S.A., adiante designado por “Requerente”, pessoa coletiva identificada sob o n.º..., com sede na ..., n.º..., em Lisboa (...-...), matriculado sob o mesmo número, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e de pronúncia arbitral, ao abrigo disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

O Requerente vem deduzir pedido de declaração de ilegalidade e anulação parcial do ato de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) do exercício de 2003 e do despacho de indeferimento da Subdiretora-Geral dos Impostos, de 12 de janeiro de 2018, que recaiu sobre o pedido de revisão oficiosa daquele ato, autuado sob o n.º ...2015..., relativo ao acréscimo ao lucro tributável de € 3.121.452,55, por errónea qualificação e quantificação dos rendimentos. 

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”).

 

Como fundamento da sua pretensão o Requerente alega, em síntese, os seguintes vícios:

  1. O acréscimo de € 3.121.452,55 à matéria coletável de IRC do exercício de 2003 que reportou ­­­no quadro 07 da declaração modelo 22 é indevido, pois corresponde ao saldo da conta #7990 (constituição e dotação de provisões para riscos gerais de crédito), quando deveria ter sido considerada a variação anual da provisão e, portanto, também o saldo da conta #8490 (reposição e anulação de provisões), cujo valor no exercício de 2003 foi negativo, na importância de € 4.211.261,29, que anula a primeira;
  2. A provisão para riscos gerais de crédito deve ser considerada pelo valor da variação anual da provisão, sendo incorreto o apuramento inicial efetuado pelo Requerente na autoliquidação do IRC, quando da entrega da declaração modelo 22 referente ao exercício de 2003, como a AT reconheceu, na apreciação do pedido de revisão oficiosa submetido em maio 2007, ao referir que foi “o próprio sujeito passivo, através da autoliquidação, a cometer o erro”;
  3. Na verdade, o que se verificou ao nível da provisão para riscos gerais de crédito no exercício de 2003 não foi uma constituição/reforço de provisão de € 3.121.452,55 (saldo da conta #7990 a 31.12.2003), nem uma reposição/anulação de provisão de € 4.211.261,29 (saldo da conta #8490 a 31.12.2003), mas antes uma reposição/anulação no montante de € 1.089.808,74, correspondente à variação negativa ocorrida entre o saldo da conta #610 a 31.12.2003 (€ 19.708.421,88) e o saldo da mesma conta a 31.12.2002 (€ 20.798.230,62);
  4. Se o Requerente não estivesse obrigado a reportar mensalmente aquela informação ao Banco de Portugal, apenas teria refletido na sua contabilidade a variação anual da provisão, ou seja, um movimento a crédito na conta # #8490, de € 1.089.808,74 (que traduziria a efetiva variação face ao saldo existente a 31.12.2002);
  5. Não está em causa nem o Requerente pretende, ao contrário do que invoca a AT, a dedutibilidade desta provisão, ou a aplicação do regime transitório que vigorou para os exercícios de 2001 e 2002, que permitiu a dedução da provisão para riscos gerais de crédito, em 50%, por aplicação do artigo 7.º, n.º 6 da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, (“LOE 2011”), quando dentro dos limites impostos pelo Banco de Portugal. A variação patrimonial negativa de € 1.089.808,74 não foi relevada fiscalmente como custo no exercício de 2003 em observância do disposto no artigo 34.º, n.º 3 do Código do IRC;
  6. O problema respeita a questão diversa, que é a da correção do próprio apuramento da variação anual da provisão para riscos gerais de crédito que incorretamente se fixou, por erro do Requerente, em € 3.121.452,55, quando deveria, para efeitos fiscais, ser nula;
  7. A AT, apesar de admitir que, no exercício de 2003, a efetiva variação da provisão para riscos gerais de crédito do Requerente se cifrou no valor negativo de € 1.089.808,47, indeferiu o pedido de revisão oficiosa com fundamento na falta de prova do tratamento fiscal conferido às provisões cuja reposição / anulação foi efetuada nesse ano, por não “conhecer a decomposição do montante em causa, para se poder avaliar do valor a acrescer fiscalmente”, numa referência àquelas que, no ano da sua constituição, foram gasto fiscal;
  1. Esta posição é ilegal porque assenta em erróneos pressupostos de facto, uma vez que o Requerente não relevou nem pretende relevar a variação patrimonial negativa de € 1.089.808,47 como gasto fiscal do exercício de 2003, em conformidade com o disposto no citado artigo 34.º, n.º 4 do Código do IRC (à data);
  2. E também é ilegal por erro de direito, uma vez que é o valor da efetiva variação anual da provisão para riscos gerais de crédito que tem de ser considerado, à face do disposto no artigo 3.º, n.º 2 do Código do IRC, segundo o qual o conceito de lucro resulta da diferença entre valor do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correções do Código, e do artigo 8.º, n.º 9 do mesmo diploma, que fixa o facto gerador no dia 31 de dezembro de cada exercício (aliás, em cumprimento do princípio da especialização dos exercícios, nos termos do preceituado nos artigos 17º e 18.º do referido Código);
  3. A própria AT assim o entendeu quando decidiu as reclamações graciosas referentes aos exercícios de 2004 e 2005 e deu razão ao contribuinte [o Requerente], pelo que a decisão oposta relativa a 2003 consubstancia uma violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP, que proíbe o arbítrio e soluções diferentes para situações iguais;
  4. A decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa padece de insuficiente fundamentação, que equivale ao vício de falta de fundamentação, nos termos do artigo 125.º, n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”)[1], por não se pronunciar sobre a questão fundamental em apreciação que é a de que a provisão para riscos gerais de crédito deve ser considerada pelo valor da variação anual – cf. artigos 77.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) e 268.º, n.º 3 da Constituição (“CRP”);
  5. A AT assumiu que se tratavam de provisões constituídas antes de 2001, incorrendo em violação do vício procedimental do inquisitório e da descoberta da verdade material, pois aquela não pode presumir factos, antes deve desenvolver a atividade instrutória indispensável ao seu esclarecimento, violando com tal omissão o disposto no artigo 58.º da LGT.

 

            O Requerente conclui pelo pedido de anulação do ato de autoliquidação de IRC inerente ao seu pedido de revisão oficiosa e juntou 7 (sete) documentos.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT.

 

Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, al. a), 6.º, n.º 2, al. a) e 11.º, n.º 1, al. a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 2 do Código Deontológico do CAAD.

 

As partes, oportunamente notificadas dessa designação, não opuseram recusa nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 16 de julho de 2018, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

 

A Requerida apresentou resposta e juntou o processo administrativo (“PA”). Apresentou defesa por exceção, suscitando a incompetência material do Tribunal Arbitral, em virtude de o pedido de declaração de ilegalidade do ato não ter sido precedido do recurso à via administrativa, ao abrigo dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), que não menciona o pedido de revisão oficiosa, como postula o artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, que vincula a AT à jurisdição do CAAD (com norma habilitante no artigo 4.º, n.º 1 do RJAT).

 

Para a Requerida, a interpretação segundo a qual a via administrativa abrangeria também os pedidos de revisão oficiosa previstos no artigo 78.º da LGT não tem suporte no elemento literal, ponto de referência e de partida do intérprete.

 

Sustenta que a vontade da AT está dependente e delimitada pela vontade expressa na referida Portaria. Não pode ampliar-se o objeto fixado pelo legislador quanto à vinculação da Requerida à jurisdição arbitral, a qual limita a possibilidade de recurso em caso de decisão desfavorável configurando uma renúncia ao recurso, restrição que só por si poderia ser consentida, pelo que a equiparação que a jurisprudência preconiza do procedimento de revisão oficiosa à reclamação graciosa mencionada nos artigos 131.º a 133.º do CPPT, como etapa prévia (e necessária) à subsequente impugnação da respetiva decisão de indeferimento, está legalmente vedada em sede arbitral.

 

Opõe-se, ainda, à referida interpretação extensiva, quando transposta para a sede arbitral, por configurar uma violação dos princípios do Estado de Direito, da Separação de Poderes (cf. artigos 2.º e 111.º da CRP) e da Legalidade (artigos 3.º, n.º 2 2 e 266.º, n.º 2 da CRP) como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários (artigo 30.º, n.º 2 da LGT).

 

Por impugnação, a Requerida considera que a posição da AT é a correta e que foi alterado o entendimento que, em 2009, esteve subjacente às decisões favoráveis ao contribuinte das reclamações graciosas dos anos 2004 e 2005, por não constituir a melhor interpretação das normas fiscais.

 

Em seu entender, não ocorre vício de falta de fundamentação, tendo sido espelhadas de forma clara as razões na génese do indeferimento do pedido de revisão oficiosa, que o Requerente percebeu, pois rebate-os ponto por ponto. Por outro lado, mesmo que a fundamentação fosse insuficiente, o Requerente sempre se podia socorrer do mecanismo do artigo 37.º do CPPT, não o tendo feito. Sobre a violação dos princípios do inquisitório e da descoberta da verdade material, refere que o Requerente pretende tão-só inverter o ónus da prova que sobre si legalmente impende.

 

Propugna que seja julgada procedente a exceção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral, conducente à absolvição da instância da AT ao abrigo dos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil (“CPC”), ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, e, se assim não for, que o pedido arbitral seja julgado improcedente e absolvida a Requerida de todos os pedidos.

 

Por desnecessária, o Tribunal decidiu a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e determinou a notificação das partes para alegações escritas facultativas, conforme despacho de 18 de outubro de 2018.

 

            Em fase de alegações, Requerente e Requerida mantiveram, na essência, os argumentos que constam do pedido de pronúncia arbitral e da resposta, respetivamente. O Requerente exerceu o contraditório relativo à exceção de incompetência material, que considera improcedente atentos os argumentos invocados pela jurisprudência maioritária do CAAD, não podendo os artigos 131.º a 133.º do CPPT assumir significado diverso na sua aplicação à jurisdição arbitral.  

 

            Por despacho de 14 de janeiro de 2019, com fundamento na complexidade das questões suscitadas, foi prorrogado o prazo para prolação da decisão, ao abrigo do artigo 21.º, n.º 1 do RJAT. 

 

            Atendendo a que a procedência das exceções, a verificar-se, obsta ao conhecimento do mérito da causa, procede-se, de seguida, à sua apreciação, logo após fixação da matéria de facto.

 

 

  1. Fundamentação de Facto

 

Com relevo para a decisão, importa considerar os seguintes factos que se julgam provados:

           

A. O A..., S.A., aqui Requerente, é uma instituição de crédito que desenvolve a sua atividade na área do comércio bancário e financeiro – cf. documento n.º 5, junto com o pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) e informações oficiais constantes do PA, designadamente a informação n.º .../2018 e a fundamentação do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.

 

B. No exercício de 2003, em cumprimento do Aviso n.º 3/95 do Banco de Portugal, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 30 de junho de 1995, e alterações subsequentes, o Requerente contabilizou mensalmente na rubrica #7990 – “Provisões do exercício – Provisões diversas – Para riscos gerais de crédito” valores a título de constituição / dotação da provisão, e, na rubrica #8490 – “Reposições e anulações de provisões – Provisões diversas – Para riscos gerais de crédito” valores a título de reposição / anulação da provisão, conforme quadro infra, de que resultou uma variação negativa da provisão para riscos gerais de crédito no montante de € 1.089.808,74:

 

 

 

#7990

(a)

#8490

(b)

jan-03

54,71 €

266.664,79 €

fev-03

9.049,17 €

45.233,43 €

mar-03

234,23 €

349.672,71 €

abr-03

3.630,08 €

220.891,62 €

mai-03

290.755,35 €

14.552,97 €

jun-03

417.755,29 €

-   €

jul-03

12.141,04 €

397.389,75 €

ago-03

5.362,14 €

595.091,38 €

set-03

333.907,93 €

1.828.688,69 €

out-03

523.735,06 €

145,03 €

nov-03

4.798,34 €

489.136,01 €

dez-03

1.520.029,21 €

3.794,91 €

Total

3.121.452,55 €

4.211.261,29 €

Diferença (a) – (b)

-                                                      1.089.808,74 €

 

 

– cf. documentos 1 e 2 juntos pela Requerente.

 

            C. Com referência ao exercício de 2003, o Requerente procedeu à entrega da declaração de rendimentos modelo 22, em 29 de maio de 2004. Posteriormente, em 29 de junho de 2004, submeteu uma declaração de substituição, e posteriormente ainda, em 29 de maio de 2006, apresentou uma segunda declaração de substituição – cf. documento 5 junto com o ppa e documentos 1 a 3 juntos com o pedido de revisão oficiosa que integra o PA.

 

            D. No campo 228 do quadro 07 da declaração de rendimentos modelo 22 do exercício de 2003, o Requerente acresceu o saldo total da rubrica #7990, correspondente ao valor anual acumulado das diversas dotações / constituições de provisões, que se cifrou em € 3.121.452,55, sem ter em conta, i.e., sem deduzir, o saldo da rúbrica #8490 relativa às reposições / anulações de provisões, que no ano em causa (2003) foi de € 4.211.261,29 – cf. documento 5 junto com o ppa e documentos 1 a 3 juntos com o pedido de revisão oficiosa que integra o PA.

 

            E. Posteriormente à entrega da segunda declaração de substituição acima referida, o Requerente concluiu que havia conferido um tratamento fiscal incorreto às provisões para riscos gerais de crédito ao ter acrescido aquele valor de € 3.121.452,55 ao lucro tributável, pelo que apresentou, em 25 de maio de 2007, pedido de revisão oficiosa da autoliquidação de IRC de 2003, ao abrigo do disposto no artigo 78.º da LGT – cf. documento 3 junto com o ppa e PA.

 

            F. Neste pedido de revisão oficiosa, o Requerente solicitou a correção da autoliquidação de IRC, em concreto, que o montante de € 3.121.452,55, inscrito no campo 228 do quadro 07, fosse expurgado do apuramento do resultado do exercício. Não foi requerida a relevação, como custo do exercício, da variação patrimonial negativa de € 1.089.808,74 – cf. documento 3 junto com o ppa e PA.

 

            G. O pedido de revisão oficiosa foi primeiramente indeferido com o argumento de que tratando-se de um erro na autoliquidação praticado pelo próprio Requerente não haveria lugar à revisão oficiosa, a menos que o contribuinte tivesse sido induzido pela AT, o que não foi o caso. Esta decisão foi confirmada em sede de Recurso Hierárquico, tendo sido, porém, anulada por sentença datada de 11 de julho de 2011, do Tribunal Tributário de Lisboa, o que originou a reabertura do procedimento para reapreciação do pedido de revisão oficiosa pela AT – cf. documentos 3 a 6 juntos com o ppa e PA.

 

            H. Em dezembro de 2017, foi o Requerente notificado do projeto indeferimento do pedido de revisão oficiosa. Não foi exercido o direito de audição e o projeto de indeferimento convolou-se em definitivo, conforme despacho de 12 de janeiro de 2018, da Subdiretora-Geral, no uso de competências delegadas, notificado por ofício datado de 31 de janeiro de 2018 e expedido, por via postal registada, em 1 de fevereiro de 2018 – cf. documentos 5 e 6 juntos com o ppa e PA.

 

            I. O indeferimento do pedido de revisão oficiosa está suportado nos fundamentos que parcialmente se transcrevem, constantes da informação n.º 30/2018, datada de 9 de janeiro de 2018, que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos:

[…]

IV – Apreciação do Pedido

 Da evolução do enquadramento legal

25. Através da redação da Lei 3-B/2000, de 4 de abril, o então artigo 33º do CIRC, sob a epígrafe «Provisões fiscalmente dedutíveis» dispunha na alínea d) do nº1 que:

«1 – Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes provisões:

(…)

d) As que, de harmonia com a disciplina imposta pelo Banco de Portugal, tiverem sido constituídas pelas empresas sujeitas à sua supervisão e pelas sucursais em Portugal de instituições de crédito e de outras instituições com sede em outro Estado da União Europeia (…)»

26. Com a Lei nº 30-G/2000, de 29 de dezembro, foi a redação da alínea d) do nº 1 do artigo 33º alterada, passando a dispor que:

«1 – Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes provisões:

(…)

d) As que, no âmbito da disciplina definida pelo Banco de Portugal, e por força de uma imposição de caráter genérico e abstrato, tiverem sido obrigatoriamente constituídas pelas empresas sujeitas à sua supervisão e pelas sucursais em Portugal de instituições de crédito e de outras instituições com sede em outro Estado membro da União Europeia, com exceção da provisão para riscos gerais de crédito (…)»

27.  Veio o nº 6 do artigo 7º da Lei nº 30-G/2000, de 29 de dezembro, esclarecer que a nova redação da alínea d) do nº 1 do então artigo 33º do CIRC aplica-se às provisões constituídas a partir da entrada em vigor desta lei, sendo, no entanto, criado um regime de transição, que dispõe que são aceites como encargo dedutível nos exercícios de 2001 e 2002, 50% do valor das variações positivas das provisões para riscos gerais de crédito que não ultrapassem o montante imposto genérica e abstratamente pelo Banco de Portugal para as instituições que se encontrem sujeitas à sua supervisão.

28.  Veio ainda o citado diploma, aditar ao artigo 33º do CIRC, o nº 3, que dispõe que:

            «(…)

            3 – Quando se verifique a reposição de provisões para riscos gerais de crédito ou de outras que não visem a cobertura de riscos específicos da atividade, são consideradas proveitos do exercício, em primeiro lugar, aquelas que tenham sido custo fiscal no exercício da respetiva constituição.»

29.  Em suma temos que:

  • Até à alteração introduzida à redação da alínea d) do nº 1 do artigo 33º do CIRC (posterior artigo 34º do CIRC) pelo artigo 5º da Lei nº 30-G/2000, de 29/12, as provisões para riscos gerais de crédito constituídas num exercício económico, segundo a previsão de tal norma, eram fiscalmente dedutíveis, desde que constituídas em conformidade com o disposto no nº1 do artigo 7º do Aviso nº 3/95 do Banco de Portugal.
  • Assim, apurado o montante da provisão que em 31 de dezembro do ano n devia subsistir por imposição do Banco de Portugal, seria de reforçar a provisão caso o valor existente em 31 de dezembro do ano n-1, fosse inferior, ou efetuar uma anulação, na situação inversa.
  • Com a alteração da norma vertida na alínea d) do nº 1 do artigo 33º do CIRC as provisões para riscos gerais de crédito constituídas em cada exercício deixaram de ser dedutíveis.
  • Ainda assim, o nº 6 do artigo 7º da Lei nº 30-G/2000, de 29.12, estabeleceu um regime transitório segundo o qual a alteração da alínea b) do nº 1 do artigo 33º do CIRC se aplicava às provisões constituídas a partir da entrada em vigor daquela lei, salvaguardando a dedutibilidade como encargo fiscal, nos períodos de 2001 e 2002, de 50% do valor das variações positivas das provisões para riscos gerais de crédito que não ultrapassem o montante imposto, genérica e abstratamente, pelo Banco de Portugal para as instituições sujeitas à sua supervisão.
  • A Lei nº 30-G/2000, de 29.12, aditou, ainda, o nº 3 do artigo 33º do CIRC passando a dispor que quando se verificasse a anulação de provisões para riscos gerais de crédito, eram consideradas proveitos do exercício, em primeiro lugar, aquelas que tivessem sido custo fiscal no exercício da respetiva constituição.

 

Parecer

30.  Ora, na situação em apreço, a Requerente procedeu ao acréscimo ao resultado líquido contabilístico do exercício de 2003, para efeitos do apuramento do respetivo lucro tributável sujeito ao regime geral de tributação em sede de IRC, do montante de 3.121.452,55 € referente aos movimentos de constituição/ reforço das provisões para riscos gerais de crédito efetuados durante o ano, e refletidos a débito na conta #7990 – Provisões do exercício/ Provisões para riscos gerais de crédito.

31.  Ou seja, em obediência ao Plano de Contas para o Sistema Bancário e às normas emanadas pelo Banco de Portugal, a Requerente contabilizou custos com provisões para riscos gerais de crédito no montante de 3.121.452,55 €, valor este que acresceu para efeitos de determinação do lucro tributável.

32.  No entanto, vem a Requerente expor que o tratamento fiscal dado às provisões para riscos gerais de crédito, para efeitos de apuramento do seu lucro tributável referente ao exercício de 2003, não foi o correto.

33.  É convicção da Requerente que, tal provisão, deve ser analisada numa base anual, dado o seu caráter genérico e abstrato, devendo, ser somente considerada, em cada exercício, ou uma constituição/ dotação da provisão em apreço (caso o saldo final da provisão a 31 de dezembro do exercício n seja superior ao seu saldo a 31 de dezembro do exercício n – 1), ou uma anulação/ reposição dessa provisão (caso se verifique o oposto).

34.  Não podemos esquecer que, a partir do exercício de 2003, as provisões para riscos gerais de crédito deixaram de configurar provisões dedutíveis para efeitos fiscais, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 34º do CIRC.

35. No seguimento das alterações efetuadas ao quadro legal da tributação das provisões para riscos gerais de crédito, cabe efetuar algumas considerações e definir o entendimento a aplicar no exercício de 2003.

36.  De acordo com o regime fiscal em vigor até 31 de dezembro de 2000, as provisões que, de harmonia com a disciplina imposta pelo Banco de Portugal, nomeadamente as provisões para riscos gerais de crédito, fossem constituídas pelas empresas sujeitas à sua supervisão, podiam ser deduzidas para efeitos fiscais, desde que não ultrapassados os limites mínimos estabelecidos para o efeito pelo Banco de Portugal.

37.  No entanto, a Lei nº 30-G/2000, de 29 de dezembro, veio determinar a não aceitação como custo fiscal das provisões para riscos gerais de crédito constituídas pelas empresas sujeitas à supervisão do Banco de Portugal, através da alteração à anterior redação da alínea d) do nº 1 do artigo 34º do CIRC.

38.  Não obstante, a mesma lei veio igualmente estabelecer um período transitório, aplicável durante os exercícios de 2001 e 2002, o qual previa a aceitação, como encargo fiscalmente dedutível de 50% do valor das variações positivas das provisões para riscos gerais de crédito que não ultrapassem o montante genérica e abstratamente imposto pelo Banco de Portugal.

39.  Por outro lado, e por forma a clarificar o tratamento fiscal aplicável às reposições da provisão em apreço, foi ainda aditado ao artigo 34º do CIRC, pela Lei nº 30-G/2000 supra referida, o seu número 3, que estatui que, quando se verifique a reposição/anulação destas provisões, serão consideradas proveitos do exercício, em primeiro lugar, aquelas que tenham sido custo fiscal no exercício da sua constituição.

40.  Ou seja, em matéria de provisões para riscos gerais de crédito, as instituições de crédito e sociedades financeiras passaram a verificar três situações distintas:

  • As provisões constituídas até 31 de dezembro de 2000, desde que contidas nos limites mínimos estabelecidos no Aviso n.º 3/95 são aceites como custo no ano da respetiva constituição.
  • A variação positiva das provisões verificada nos exercícios de 2001 e 2002, a qual é reconhecida como custo em apenas 50% do respetivo montante, sendo os restantes 50% objeto de tributação em sede de IRC, devendo, para o efeito, ser acrescidos no quadro 07 da declaração de rendimentos Modelo 22.
  • As provisões constituídas/reforçadas nos exercícios de 2003 e seguintes, as quais não são consideradas, na sua totalidade como custo fiscal do exercício e, por conseguinte, são objeto de tributação em IRC através do acréscimo do respetivo montante no quadro 07 da declaração de rendimentos Modelo 22.

41. Assim, em face dos vários regimes que poderão coexistir numa mesma instituição e relativamente às provisões para riscos gerais de crédito, houve necessidade de definir qual o tratamento aplicável às reposições de provisões, uma vez que as mesmas só consubstanciam proveitos fiscais do exercício na medida em que a provisão objeto da reposição tiver sido aceite como custo fiscal no exercício da respetiva constituição.

42. No que respeita a esta matéria, é entendimento já sancionado por esta Direção de Serviços[2] que:

       «No que concerne ao regime transitório previsto, em matéria de provisões para riscos gerais de crédito, no nº 6 do artigo 7º da Lei nº 30-G/2000, de 29.12, por variação positiva daquelas provisões deve entender-se a diferença entre o saldo das provisões para riscos gerais de crédito existente em 31 de dezembro do exercício e o saldo existente em 31 de dezembro do exercício anterior».

       Quanto ao regime de reposições de provisões previsto no nº 3 do artigo 34º do CIRC relativo ao regime de reposição/anulação das provisões «o mesmo consubstancia-se em considerar que as reposições de provisões para riscos gerais de crédito ocorridas a partir de 1 de janeiro de 2001 se efetuam por utilização, em primeiro lugar, da parte do saldo acumulado dessas provisões que tenha sido reconhecido como custo fiscal no exercício da constituição das mesmas e, só quando o mesmo saldo já não inclua valores aceites como custo fiscal ou, incluindo, o mesmo não seja suficiente para cobrir a totalidade do montante a repor, é que se considera que os valores repostos se referem a provisões não aceites como custo fiscal e, consequentemente, tais valores deixarão de relevar como proveito fiscal do exercício e, por conseguinte, de estar sujeitos a tributação em sede de IRC”.

43.  De facto, atento o caráter não específico das provisões para riscos gerais de crédito, o legislador optou por, no nº 3 do artigo 34º do CIRC, estabelecer que sempre que haja lugar a reposições deste tipo de provisões consideram-se repostas, em primeiro lugar, as provisões que tiverem sido reconhecidas como custo fiscal no exercício em que foram constituídas.

44.  Significa isto, portanto, que relativamente às reposições deste tipo de provisões que sejam efetuadas a partir do exercício de 2001, inclusive, as mesmas são consideradas proveitos do exercício até à concorrência do montante que foi anteriormente aceite como custo fiscal.

45.  Ou seja, pretende-se que o saldo acumulado das provisões para riscos gerais de crédito evolua no sentido de ser composto exclusivamente por provisões que, no exercício da constituição e por força do novo regime constante da alínea d) do nº 1 do artigo 34º do CIRC, não sejam reconhecidas como custo fiscal.

46.  Obviamente que a partir do momento em que a reposição tenha por objeto montantes não reconhecidos anteriormente como custo fiscal – situação que se verificará quando o saldo acumulado das provisões para riscos gerais de crédito já não seja constituído por valores aceites fiscalmente como custo, ou que, sendo-o parcialmente, o respetivo valor seja inferior ao montante que é necessário repor – os valores repostos não serão objeto de tributação em sede de IRC.

47.  Deste modo, ao incluir-se nos proveitos a utilização ou reposição de uma provisão aceite fiscalmente e ao excluir-se desses proveitos uma não aceite fiscalmente, assegura-se a especialização dos exercícios de acordo com as regras definidas para efeitos fiscais, mais precisamente no artigo 18º do CIRC.

48.  Mais concretamente, a utilização ou reposição de provisões será proveito para efeitos fiscais até à concorrência do montante que, no ano da sua constituição ou reforço, teria sido aceite como custo para os mesmos efeitos.

49.  Do exposto, pode concluir-se que o saldo da conta de provisões não permite conhecer quais os montantes que se referem a provisões para riscos gerais de crédito que foram aceites como custo fiscal no ano da sua constituição, havendo que discriminar os períodos a que se reportam as provisões anuladas, para dar adequado cumprimento à lei.

50.  Ora, naturalmente que não será indiferente para efeitos de determinação do lucro tributável, estarmos a anular provisões que foram sujeitas a tributação ou provisões que foram aceites fiscalmente.

51.  Assim, face ao regime fiscal das provisões nos diversos períodos, não restam dúvidas, que seria necessário conhecer a decomposição do montante em causa, para se poder avaliar do valor a acrescer fiscalmente.

52.  Por outro lado, o que a Requerente vem solicitar é que, para efeitos de tratamento fiscal a conferir às provisões para riscos gerais de crédito, apenas seja considerado a variação anual desta provisão, ou seja, o valor de 1.089.808,47 €, o qual traduz a efetiva variação desta provisão no exercício de 2003 face ao saldo existente em 31 de dezembro de 2002.

53. No entanto, a Recorrente nada refere sobre os períodos a que respeitam as anulações das provisões, inferindo-se, todavia, do procedimento adotado pela Recorrente, que se tratam de anulações de provisões constituídas em períodos anteriores ao de 2001, que foram totalmente aceites como gasto.

54. E neste aspeto, cabe referir que o conceito de variação positiva da provisão apenas se reporta ao regime transitório, ou seja, aos exercícios de 2001 e 2002, não subsistindo relativamente ao exercício de 2003.

55. Neste sentido, não é possível dar provimento ao solicitado pela Requerente, pelo que se propõe o indeferimento do presente pedido. 

 

V – Conclusão e Proposta de Decisão

Posto o que antecede, deverá o presente pedido de revisão oficiosa ser indeferido.”

– cf. documentos 5 e 6 juntos com o ppa e PA.

 

            J. Não se conformando com a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa referente à autoliquidação de IRC do exercício de 2003, o Requerente apresentou no sistema informático do CAAD, em 3 de maio de 2018, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo que deu origem ao presente processo.

 

Motivação e Factos Não Provados

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se, essencialmente, na análise crítica da prova documental junta aos autos e na posição assumida por cada uma das partes que, nesta matéria, é consensual, sendo a divergência estritamente de direito.

 

Com relevo para a decisão não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

 

  1. Saneamento

 

  1. Questão Prévia: Incompetência Material

 

Segundo a Requerida, a apreciação de um ato tributário de autoliquidação (neste caso, de IRC), na sequência do indeferimento expresso de um pedido de revisão oficiosa, extravasa as competências reservadas por lei aos Tribunais Arbitrais Tributários, de acordo com o RJAT e com a Portaria de Vinculação da AT ao regime da arbitragem tributária.

 

A infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (e a falta de jurisdição do Tribunal Arbitral), a qual é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, impondo-se a sua apreciação prévia – artigos 16.º do CPPT e 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT.

 

Neste âmbito, o artigo 2.º, n.º 1 do RJAT enuncia os critérios de repartição material da competência dos Tribunais Arbitrais nos seguintes moldes:

 

“Artigo 2.º

Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável

1 — A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

          a)    A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

          b)    A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais;

          c)    (revogada)[3]”.

 

Prevê ainda o artigo 4.º, n.º 1 do RJAT que:

 

Artigo 4.º

Vinculação e funcionamento

1 — A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.

2 — […]

 

Por fim, a Portaria de Vinculação (Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março) veio estabelecer as condições e limites da vinculação voluntária da AT à jurisdição arbitral, tendo em conta a especificidade das matérias e o valor em causa.  O artigo 2.º da Portaria delimita o objeto dessa vinculação e exclui as “[p]retensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, normas que fazem referência à reclamação graciosa, mas não à revisão oficiosa dos atos tributários.

 

            No entender da AT, tais normas não comportam a interpretação extensiva que já foi acolhida pela jurisprudência relativamente à impugnabilidade dos atos na jurisdição administrativa e fiscal, no sentido de abranger também os pedidos de revisão oficiosa previstos no artigo 78.º da LGT, considerando que a mesma não tem suporte no elemento literal, ponto de referência e de partida do intérprete.

 

Em relação aos Tribunais Arbitrais, a Requerida sustenta que caso o legislador, ciente dessa jurisprudência há muito consolidada, quisesse abranger também o conhecimento pelos Tribunais Arbitrais da ilegalidade da autoliquidação, quando precedida de pedido de revisão oficiosa, ficando a AT vinculada neste âmbito, teria introduzido uma menção expressa ao procedimento de revisão oficiosa no artigo 2.º, alínea a) da citada Portaria. Não o tendo feito, deve inferir-se que é intencional essa omissão do legislador. Considera também a AT que a adesão à jurisdição arbitral é um ato de declaração de vontade que restringe os seus direitos, nomeadamente de recurso, pelo que a norma que estipula a sua vinculação à arbitragem não admite interpretação extensiva, além do que violaria diversos princípios constitucionais, de que se destaca o princípio da separação de poderes. 

 

Afigura-se, porém, que esta posição não é de sufragar, tendo este Tribunal jurisdição e competência para conhecer do pedido, pelas mesmas razões que conduziram à interpretação jurisprudencial que considera que, no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, os artigos 131.º a 133.º do CPPT devem ser entendidos como abrangendo, para além da reclamação graciosa, a via da revisão dos atos tributários aberta pelo artigo 78.º da LGT.

 

Com efeito, a finalidade visada por estas normas é a de garantir que a autoliquidação seja objeto de uma pronúncia prévia por parte da AT, por forma a racionalizar o recurso à via judicial, que só se justifica se existir uma posição divergente, um verdadeiro “litígio”. Por isso, concede-se à AT a oportunidade (e o direito) de se pronunciar sobre o erro na autoliquidação do contribuinte e de fundamentar a sua decisão antes de ser confrontada com um processo contencioso. A revisão oficiosa é uma das vias possíveis de alcançar essa pronúncia da AT, aliás, frequentes vezes será a única, pois, em geral, o prazo para a reclamação graciosa em caso de erro na autoliquidação é de dois anos e a revisão oficiosa de quatro anos, ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago (artigo 78.º, n.º 1 da LGT[4]). 

 

Como salienta o Requerente, o legislador tributário consagrou a via administrativa como condição necessária e prévia do recurso à via jurisdicional, porquanto os atos de autoliquidação (assim como os atos de retenção na fonte e de pagamento por conta) decorrem da iniciativa do contribuinte, sem que a administração tributária tenha tido qualquer intervenção, ou seja, são atos em relação aos quais a administração tributária ainda não tomou posição, razão pela qual se justifica a obrigatoriedade de recurso à via administrativa prévia, como se extrai dos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) de 12 de setembro de 2012, processo n.º 476/12, e de 12 de julho de 2006, processo n.º 402/06.

 

Não se alcança que possa ser outro o propósito da norma de remissão da Portaria de Vinculação que indica expressamente as pretensões “que não tenham sido precedid[a]s de recurso à via administrativa[5] nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, ou seja, referindo-se com clareza a um procedimento administrativo prévio e não, em exclusividade, à reclamação graciosa. Por outro lado, seria incoerente e antissistemático que os artigos 131.º a 133.º do CPPT, para os quais remete a Portaria em apreço, revestissem distintos significados consoante estivessem a ser aplicados nos Tribunais Administrativos e Fiscais e nos Tribunais Arbitrais.

 

Aliás, sob idêntica perspetiva se pode afirmar que a alegada falta de suporte literal também se verificaria quanto àqueles Tribunais (administrativos e fiscais), pois as normas interpretandas são as mesmas, o que poria em causa a jurisprudência consolidada do STA, solução a que não se adere, até porque é inequívoco que a revisão oficiosa consubstancia um procedimento de segundo grau que se insere na “via administrativa”, locução empregue pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 122-A/2011.

 

Se o legislador, conhecendo a referida interpretação jurisprudencial, a quisesse afastar tê-lo-ia feito expressamente, como há muito podia ter alterado a própria redação dos artigos 131.º e 132.º do CPPT, optando, no entanto, por não o fazer.

 

A questão em apreço tem sido discutida em diversos processos no CAAD e é prevalecente a tese oposta à da AT, conforme decisões proferidas nos processos infra mencionados, sem pretensões de exaustividade: 48/2012-T, de 6 de julho de 2012[6]; 73/2012-T, de 23 de outubro de 2012;  117/2013-T, de 6 de dezembro de 2013; 245/2013-T, de 28 de março de 2014; 244/2013-T, de 6 de maio de 2014; 202/2013-T, de 12 de maio de 2014; 630/2014-T, de 4 de março de 2015; 617/2015-T, de 22 de fevereiro de 2016; 143/2016-T, de 15 de novembro de 2016; 577/2016-T, de 1 de junho de 2017; 668/2016-T, de 7 de julho de 2017; e 473/2017-T, de 8 de abril de 2018.  Em sentido divergente podem referir-se as decisões dos processos n.ºs 51/2012-T, de 9 de novembro de 2012; 236/2012-T, de 22 de abril de 2014 e 603/2014-T, de 20 de março de 2015, estas últimas com declarações de voto que se acompanham na íntegra.

 

Como referido na decisão do processo n.º 117/2013-T, de 6 de dezembro de 2013, ainda que a solução preconizada possa configurar um caso de interpretação extensiva, esta é ”imposta pela coerência valorativa e axiológica do sistema jurídico, erigida pelo artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil em critério interpretativo primordial pela via da imposição da observância do princípio da unidade do sistema jurídico”, a que acresce o facto de a norma do artigo 2.º, alínea a) enfermar de diversos defeitos, pelo que se impõe colmatá-los, sendo tal solução a “mais acertada, porque é a mais coerente com o desígnio legislativo de «reforçar a tutela eficaz e efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes»” manifestado na Lei de Autorização legislativa que antecedeu o RJAT (artigo 124.º, n.º 3 da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril) e, “por ser a solução mais acertada, tem de se presumir ter sido normativamente adotada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil)[7].

 

Em sentido similar, a decisão do processo n.º 245/2013-T, de 28 de março de 2014, salienta ainda que “[n]ão seria de todo razoável que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito do procedimento de revisão oficiosa se exigisse uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa, com o que se criaria, sem fundamento bastante, uma nova situação de reclamação graciosa necessária privativa da jurisdição arbitral”.

 

A AT invoca em favor de entendimento distinto os princípios constitucionais do Estado de Direito e da Separação dos Poderes bem como da Legalidade como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º n.º 2 da LGT, que vinculam o legislador e toda a atividade da Requerida, dependente e delimitada pela vontade expressa na Portaria n.º 112-A/2011.

 

Semelhante configuração não é de acolher por diversas razões. Primeiro, porque se entende, como salientado na decisão do processo n.º 143/2016-T, que a natureza da Portaria não corresponde fundamentalmente a um ato decisório da Administração “de manifestação voluntária de consentimento à vinculação ao RJAT» [...] sobressaindo o seu “caráter regulamentar, sobretudo quanto ao objeto da vinculação, que se projeta em todos os litígios a dirimir por via da arbitragem tributária. E nessa medida, essa parte da portaria configura-se como um regulamento administrativo, que se integra no RJAT”, pelo que há que concluir pela plena aplicabilidade dos cânones que regem a interpretação das normas jurídicas e não dos atos de natureza convencional ou negocial.

 

À face dos elementos interpretativos acima enunciados não se alcança qualquer razão para que o legislador (entidade distinta da AT) tivesse querido subtrair à competência material dos tribunais arbitrais os casos em que houve recurso à revisão oficiosa estando em causa erros na autoliquidação.

 

Por outro lado, a tónica de que a vinculação da AT aos Tribunais Arbitrais representa uma restrição aos seus direitos, nomeadamente o direito a interpor recurso em caso de decisão judicial desfavorável, parte de uma visão desvirtuada, sem correspondente razão material, do regime da arbitragem tributária. Desde logo, porque igual limitação é imposta aos contribuintes, pelo que, sendo a decisão favorável à AT, a pretensa irrecorribilidade das decisões arbitrais a beneficia, não prejudica. Acresce que as decisões arbitrais são recorríveis e impugnáveis, nas condições dos artigos 25.º a 28.º do RJAT, sendo o recurso garantido quando exista oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com a jurisprudência dos tribunais superiores (do Tribunal Central Administrativo (“TCA”) e do STA), para além do recurso para o Tribunal Constitucional com fundamento em inconstitucionalidade. Existe, assim, uma diferente configuração do recurso no âmbito da livre margem de conformação legislativa, mas não a eliminação deste. 

 

Acresce que as decisões arbitrais relativas a pedidos que ultrapassem duas vezes o valor da alçada do TCA são tomadas por um coletivo de três árbitros e não por juiz singular, o que constitui um reforço das garantias da jurisdição, sem paralelo nas impugnações judiciais (cf. artigo 5.º, n.º 3, alínea a) do RJAT e artigo 46.º, n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (“ETAF”)). A justiça arbitral é corretamente perspetivada como um meio alternativo de resolução de litígios que assegura as garantias essenciais do exercício da função jurisdicional, como a imparcialidade e o contraditório, e de forma alguma deve ser encarada como uma restrição dos direitos da AT. 

 

No tocante à invocação do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, dir-se-á, como no processo n.º 143/2016-T que ao decidir sobre a sua competência, relevante apenas enquanto pressuposto processual, o Tribunal Arbitral não está seguramente a praticar qualquer ato de disposição de um crédito tributário, no sentido do invocado artigo 30.º, n.º 2 da LGT. Aliás, se se considerasse o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários operativo em matéria de arbitragem tributária, esta seria interdita em qualquer caso e não apenas nas situações de recurso prévio ao procedimento de revisão oficiosa. Acresce realçar que estamos perante normas de direito adjetivo tributário e não perante normas que criam impostos, como assinala Henrique Nogueira Nunes, na declaração de voto proferida na decisão arbitral n.º 236/2013-T.

 

De igual modo, a interpretação preconizada não viola os princípios do Estado de Direito e da Separação dos Poderes, cuja concretização a AT não realiza. Interessa notar que o Tribunal Constitucional se pronunciou recentemente sobre a questão aqui em discussão e conclui pela não inconstitucionalidade da norma que considera os pedidos de revisão oficiosa equivalentes às situações em que existiu “recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, para efeito da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD – Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 244/2018, de 11 de maio de 2018.

 

Conforme argumenta o Tribunal Constitucional, não está em causa ampliar a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais, mas antes interpretar uma norma da portaria que exclui essa vinculação, pelo que “não se verificando uma exclusão expressa, não se poderá dizer que estamos perante uma ampliação da vinculação, mas tão-somente perante interpretação de norma de exclusão de vinculação”.

 

O Tribunal entende ainda que não se suscita uma derrogação da garantia de acesso à tutela jurisdicional efetiva para tutela dos interesses públicos por parte da administração, assinalando que o artigo 209.º, n.º 2 da Constituição prevê expressamente a existência de tribunais arbitrais na ordem jurídica portuguesa que exercem a função jurisdicional lado a lado com os tribunais estaduais.

 

Sobre a questão da constitucionalidade do regime de recursos da decisão arbitral o Tribunal Constitucional considera que se encontra fora do âmbito da norma interpretada, na medida em que resulta de uma norma autónoma, que decorre da interpretação de preceitos distintos do RJAT e que tem um âmbito de aplicação distinto.

 

São, desta forma, afastadas eventuais dúvidas que subsistissem acerca da conformidade constitucional da solução acolhida.

 

Por fim, cabe referir que, em rigor, a exceção suscitada não se enquadra nem corresponde ao pressuposto da competência dos Tribunais Arbitrais. Este pressuposto está delimitado no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT e compreende a apreciação da ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta (alínea a)); e de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais (alínea b)). Não oferece dúvidas que a questão submetida à apreciação deste Tribunal respeita a um ato de autoliquidação (de IRC) que cabe nas competências legalmente previstas na norma em referência.

 

O problema deve ser juridicamente analisado na perspetiva das condições de procedibilidade da ação respeitantes ao próprio ato tributário (e não ao tribunal, como acabado de explicitar), pois o que está em causa é a necessidade de uma (específica) interpelação administrativa prévia (impugnação administrativa necessária) que, para a AT, teria de revestir necessariamente a forma procedimental de Reclamação Graciosa, enquanto que para o Requerente abrange igualmente o pedido de revisão oficiosa.

 

Este requisito configura o pressuposto processual da inimpugnabilidade do ato, neste caso de ato de autoliquidação, nos termos do disposto no artigo 89.º, n.º 2 e n.º 4 alínea i) do CPTA, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT (sobre esta questão vide Vieira de Andrade, “Justiça Administrativa (Lições)”, 9.ª edição, Almedina, 2007, p. 305 e segs.).  Dito de outro modo, se a tese da AT tivesse vencimento, o Tribunal Arbitral seria competente, mas o ato seria inimpugnável, pelo que do mesmo não se poderia conhecer.

 

            Em qualquer caso, independentemente da sua qualificação jurídica como incompetência do Tribunal ou como inimpugnabilidade do ato, a exceção suscitada pela Requerida é improcedente, pois não corresponde à melhor interpretação das normas aplicadas, que é a de que se encontram abrangidas pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria de Vinculação as pretensões que se prendam com a ilegalidade de atos de autoliquidação que sejam precedidos de pedido de revisão oficiosa, pelo que este Tribunal Arbitral é competente em razão da matéria e não se encontra impedido de conhecer o mérito da causa (cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT).

 

  1. Demais Pressupostos Processuais

 

            O Tribunal foi regularmente constituído (cf. artigo 5.º do RJAT) e o pedido de pronúncia arbitral tempestivo, porque apresentado no prazo previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo 10º do RJAT.

 

            As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

            O processo não enferma de nulidades. 

 

 

  1.  Do Mérito

 

  1. Delimitação do Objeto

 

A questão essencial a dilucidar é substantiva e prende-se com o valor da provisão para riscos gerais de crédito a considerar no caso de uma instituição de crédito como o Requerente, para efeitos de aplicação do artigo 34.º, n.º 1, alínea d) e n.º 3 do Código do IRC, na redação em vigor à data dos factos (2003), mais concretamente se aquele deve corresponder à variação global anual destas provisões, determinada pela diferença entre a constituição/reforço das provisões (registadas na conta # 7990) e a libertação destas por reposição/anulação (registadas na conta #8490), ou se deve ser atendido apenas (e separadamente) o saldo (acumulado) da conta #7990, relativo à constituição e reforço daquelas provisões (para riscos gerais de crédito).

 

Importa ainda apreciar o vício de insuficiente fundamentação que a Requerente imputa ao indeferimento do pedido de revisão oficiosa.

 

  1. O Regime das Provisões para Riscos Gerais de Crédito - Enquadramento

 

A Lei n.º 3-G/2000, de 29 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2001 (“LOE 2001”) alterou substancialmente o regime fiscal das provisões para riscos gerais de crédito que, até aí, eram fiscalmente dedutíveis para efeitos de IRC, desde que fossem constituídas por entidades sujeitas à supervisão do Banco de Portugal, como sucede com o Requerente, e não fossem ultrapassados os limites mínimos por este estabelecidos.

 

Interessa notar que o Banco de Portugal, por razões prudenciais, impunha às instituições de crédito a obrigação de constituir provisões para riscos gerais de crédito, conforme previsto no artigo 7.º, n.º 1 do Aviso n.º 3/95[8], que dispunha nos seguintes termos:

 

“Para efeitos da constituição de provisões para riscos gerais de crédito, será considerado o total do crédito concedido pela instituição, incluindo o representado por aceites, garantias e outros instrumentos de natureza análoga, e excluindo o relativo a operações com instituições de crédito da zona A ou por elas garantidas, a operações com instituições de crédito da zona B ou por elas garantidas, neste caso, com prazo de vencimento residual não superior a um ano, e o que tenha sido objeto de constituição de provisões nos termos dos nºs 3.º, 4.º e 12.º.”

 

A contabilização das provisões seguia, à data, o Plano de Contas para o Sistema Bancário (“PCSB”), aprovado pelo Banco de Portugal pela Instrução n.º 4/96, publicada no Boletim de Normas e Informações do Banco de Portugal, n.º 1, de 17 de junho de 1996, com várias alterações ulteriores, e disponível em https://www.bportugal.pt/instrucao/496. Em Anexo à referida instrução determinava-se o seguinte:

 

“5. PROVISÕES

5.1. A movimentação das contas de provisões deverá processar-se de acordo com o seguinte esquema:

 

 

DÉBITO

CRÉDITO

 

CONSTITUIÇÃO

OU

REFORÇO

 

79 – Provisões do Exercício

29 – Provisões acumuladas – aplicações, ou

49 – Provisões acumuladas – imobilizações financeiras, ou

61 – Provisões Diversas

 

UTILIZAÇÃO

29 – Provisões acumuladas – aplicações, ou

49 – Provisões acumuladas – imobilizações financeiras, ou

61 – Provisões Diversas

 

Contas relativas às situações de risco

REPOSIÇÃO

OU

ANULAÇÃO

29 – Provisões acumuladas – aplicações, ou

49 – Provisões acumuladas – imobilizações financeiras, ou

61 – Provisões Diversas

 

84 – Reposições e anulações de provisões

Interessa notar que seja ao abrigo do PCSB, seja do Plano Oficial de Contabilidade (“POC”)[9], ou até do atual Sistema de Normalização Contabilística[10] (Norma Contabilística e de Relato Financeiro 21), a razão de ser das provisões é a mesma, prudencial, pois visa atender a (e refletir um) provável “exfluxo de recursos” da entidade, obedecendo a uma lógica idêntica nos diversos planos contábeis. E o POC, em vigor à data dos factos, previa com clareza o seguinte:

 

“67 - Provisões do exercício:

Esta conta regista, de forma global, no final do período contabilístico, a variação positiva da estimativa dos riscos, em cada espécie de provisão, entre dois períodos contabilísticos consecutivos, que tiver características de custo operacional, com exceção da variação a registar na conta 607 «Aumento de provisões matemáticas».
       672 - Para riscos e encargos
”.

 

Com a entrada em vigor da LOE 2001, mediante alteração à anterior redação do artigo 34.º, n.º 1, alínea d) do Código do IRC, deixou de ser aceite a dedução fiscal das provisões constituídas para acautelar riscos gerais de crédito pelas entidades sujeitas à supervisão do Banco de Portugal.  Estabeleceu-se ainda um regime transitório, no artigo 7.º, n.º 6, LOE 2001, que clarificava que o novo regime se aplicava às “provisões constituídas a partir da entrada em vigor desta lei, sendo ainda aceites como encargo dedutível nos exercícios de 2001 e 2002, 50% do valor das variações positivas das provisões para riscos gerais de crédito que não ultrapa[ssa]ssem o montante imposto genérica e abstratamente pelo Banco de Portugal para as instituições que se encontrem sujeitas à sua supervisão”.

 

Por fim, a LOE 2001, aditou, ainda, um n.º 3 ao artigo 34.º do Código do IRC, que determinou que, quando se verificasse a anulação de provisões para riscos gerais de crédito, seriam consideradas proveitos do exercício, em primeiro lugar, aquelas que tivessem sido custo fiscal no exercício da respetiva constituição.

 

  1. Análise Concreta

 

Sobre a errada aplicação do artigo 34.º, n.º 1, alínea d) do Código do IRC quanto aos seus pressupostos, de facto e de direito  

 

Segundo o Requerente, a referência na previsão da alínea d) do n.º 1 do artigo 34.º do Código do IRC às provisões constituídas para riscos gerais de crédito que não podem ser  deduzidas para efeitos fiscais deve ser entendida no sentido de se reportar às provisões determinadas numa base anual, dado o seu caráter genérico e abstrato. Neste sentido, somente será considerada, em cada exercício, uma constituição/ dotação da provisão em apreço, se o saldo final da provisão a 31 de dezembro do exercício (2003) for superior ao seu saldo a 31 de dezembro do exercício anterior (2002), ou uma anulação/ reposição dessa provisão, na hipótese inversa.

 

Uma vez que no exercício em apreço a variação da provisão foi negativa, tal situação não é enquadrável na alínea d) do preceito em referência, pois, em termos líquidos, não se registou um custo contabilístico, que houvesse que acrescer para efeitos fiscais por ser indedutível. Deste modo, o acréscimo ao lucro tributável declarado pelo Requerente na modelo 22 não se afigura devido.

 

A razão que assiste ao Requerente resulta, desde logo, da interpretação do artigo 7.º, n.º 1 do Aviso do Banco de Portugal n.º 3/95, nos termos do qual esta provisão é constituída tendo em conta o “total do crédito concedido” pelo que deve ser encarada numa ótica global, que tanto pode resultar numa constituição/reforço líquido da provisão, como numa reposição/anulação líquida da mesma.

 

O raciocínio descrito encontra confirmação nas notas explicativas ao POC, no que respeita à conta #67 – Provisões. Esclarece-se aí que deve ser registado como custo do exercício, a título de constituição/reforço da provisão, “a variação positiva da estimativa dos riscos, em cada espécie de provisão, entre dois períodos contabilísticos consecutivos”. Apesar de, no caso do Requerente, a contabilização se realizar de acordo com o plano de contas aplicável ao setor financeiro (o PCSB), o que implica que são distintas as contas a movimentar, a lógica e função imanente às provisões é, como acima assinalado, idêntica, pelo que se verifica similitude de circunstâncias que justifica a aplicabilidade da mesma regra.

 

Acresce que o procedimento de reporte mensal obrigatório ao Banco de Portugal de determinada informação contabilística e financeira, gera a movimentação mensal das contas de provisões por parte do Requerente, com sistemática constituição/reforço e anulação/reposição de provisões que, não fora essa necessidade de reporte, seria realizada numa base anual agregada da qual resultaria o reflexo na contabilidade da variação anual da provisão, que na situação vertente se traduziria num movimento a crédito na conta #8490, no valor de € 1.089.808,74, representativo da efetiva variação da provisão no exercício de 2003, face ao saldo existente em 31 de dezembro de 2002. 

 

Ao contrário do que defende a AT, não se retira que, pelo facto de o conceito de variação positiva apenas estar referido de forma expressa no regime transitório que vigorou entre 2001 e 2002, seja inaplicável a consideração da provisão global anual, resultante da diferença de saldos das contas #7990 e #8490. Esta é a interpretação que decorre do regime contabilístico geral das provisões e aquela que melhor se adequa aos princípios que regem a tributação em sede de IRC.

 

Neste âmbito, o artigo 3.º, n.º 2 do Código do IRC determina que o lucro deve consistir na diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, sem prejuízo das correções nele estabelecidas. O artigo 8.º, n.º 9 do mesmo diploma estipula que o facto gerador do imposto se verifica no último dia do período de tributação, em geral, e também no caso do Requerente, no dia 31 de dezembro de cada exercício, em cumprimento do princípio da periodização e especialização dos exercícios (cf. artigos 17.º e 18.º do Código do IRC).

 

O entendimento acima exposto não deve ser condicionado ou alterado pelo facto de a contabilização das provisões do Requerente, derivada do reporte ao Banco de Portugal, se refletir mensalmente. Aliás a forma como são contabilizadas as provisões (mesmo que o fossem erradamente) não será determinante do tratamento fiscal aplicável que deve atender à realidade material pressuposta nas normas de incidência, como fundamenta o Acórdão do STA, de 15 de janeiro de 2014, no processo n.º 815/2011 que, além do mais, considera que “nada obsta a que um contribuinte invoque a ilegalidade da liquidação com fundamento num lapso por ele cometido num registo contabilístico e, consequentemente, na declaração de rendimentos para efeitos de IRC. Isto, porque a declaração não tem efeitos constitutivos e a lei permite a impugnação judicial com fundamento em qualquer ilegalidade, quer ela tenha origem na atuação da AT, quer no erro do contribuinte na declaração (Neste sentido, ALBERTO PINHEIRO XAVIER, Conceito e Natureza do Ato Tributário, Almedina, 1972, pág. 205: «o ato tributário é impugnável sempre que ilegal, quer o seu conteúdo se identifique, quer divirja do da declaração do contribuinte».), mesmo que tenha sido este a proceder à (auto)liquidação.”

 

Nestes termos, o raciocínio da AT segundo o qual seria imprescindível conhecer a decomposição do saldo da conta de provisões, para conhecer aquelas que foram aceites como custo fiscal no ano da sua constituição e, assim, dar o adequado tratamento fiscal e poder avaliar o valor a acrescer fiscalmente, é inaplicável à situação vertente.

 

Tal asserção deriva de, por um lado, não ser de operar qualquer correção fiscal (acréscimo) a provisões constituídas ou o seu reforço, pois a variação da provisão foi negativa no exercício (face ao saldo existente a 31 de dezembro de 2002) e, por outro lado, de o Requerente não ter relevado como custo fiscalmente dedutível do exercício de 2003 essa variação (patrimonial) negativa, no valor de € 1.089.808,74, uma vez que ainda apresentava saldo positivo na conta #610 (Provisões diversas – Para riscos gerais de crédito), em estrita observância do disposto no artigo 34.º, n.º 3 do Código do IRC.

 

A própria AT confirmou o entendimento do Requerente nas decisões favoráveis das Reclamações Graciosas dos atos de autoliquidação que este apresentou relativamente aos anos 2004 e 2005, com base nos mesmos fundamentos do pedido de revisão oficiosa sub judice, mal se compreendendo que precisamente sobre idênticos factos e sob o mesmo quadro legal, tenha decidido de forma oposta, formulando laconicamente ter alterado a sua interpretação.

 

Sem prejuízo do exposto, esta posição da AT não consubstancia um vício invalidante da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa por violação do princípio da igualdade. Com efeito, conforme jurisprudência constante do STA, o princípio da igualdade não confere um direito à igualdade na ilegalidade, pelo que se a segunda interpretação (a que é desfavorável ao contribuinte) fosse válida, não seria a sua dissonância face às anteriores que a faria soçobrar.

 

Sobre o vício de fundamentação

 

O Requerente invoca ainda o vício formal de fundamentação insuficiente, que considera equivalente à falta de fundamentação, de acordo com o regime que decorre artigo 153.º, n.º 2 do CPA.

 

O alegado vício é, no entanto, de reputar improcedente, pois são percetíveis as razões e a motivação da AT. E o Requerente compreendeu os argumentos, rebatendo a posição daquela e apontando as suas patentes deficiências.

 

Questão distinta é a de saber se são acertados ou demonstrados os pressupostos de tributação assumidos na fundamentação do despacho de indeferimento em discussão e válidas as razões nele aduzidas, que “tem já a ver com o mérito da decisão e com a legalidade «stricto sensu» do próprio ato” (cf. Acórdão do STA, processo n.º 1690/13, de 23 de abril de 2014). Neste caso, não se trata de aferir o vício formal de falta de fundamentação, que, pelas razões descritas improcede, mas a (in)validade substantiva do ato tributário.

 

Sobre a violação dos princípios do inquisitório e da verdade material

 

            Por fim, no que se refere à assunção por parte da AT de que se “tratam de anulações de provisões constituídas em períodos anteriores ao de 2001, que foram totalmente aceites como gasto”, desprovida de outra fundamentação, a mesma configura uma presunção que não tem suporte legal e que é, portanto, inválida, sem prejuízo de não representar, por si, uma violação dos princípios do inquisitório e da verdade material, colocados noutro plano, que não o do ónus da prova.

 

* * *

            À face do exposto, o ato tributário de autoliquidação de IRC, relativo ao exercício de 2003,  enferma, na parte impugnada, relativa ao acréscimo ao lucro tributável do valor de € 3.121.452,55, de vício de violação de lei por erro nos pressupostos, de facto e de direito, pelo que deve ser nessa medida anulado, em conformidade com o disposto no artigo 135.º do CPA (com correspondência no artigo 163.º, n.º 1 do novo CPA), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT.

 

            A invalidade do ato tributário em discussão, implica igualmente a anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa que o confirmou.

 

* * *

 

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras (cf. artigo 608.º do CPC, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT). 

 

 

  1.  Decisão

 

            Em face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar:

 

  1. Improcedente a exceção de incompetência em razão da matéria do Tribunal Arbitral;

 

  1. Procedente o pedido de anulação da autoliquidação de IRC referente ao exercício de 2003, relativa ao acréscimo à matéria coletável do valor de € 3.121.452,55, referente a provisões constituídas para riscos gerais de crédito;

 

  1. Procedente, o pedido de anulação do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa supra identificado, relativo àquele ato de liquidação

           

            Tudo com as legais consequências.

 

* * *

 

            Fixa-se ao processo o valor de € 936.435,77 de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

            Custas no montante de € 13.158,00, a cargo da Requerida, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Lisboa, 28 de janeiro de 2019

 

[Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do CPC, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT]

 

 

Os Árbitros,

 

 

 

Alexandra Coelho Martins

 

 

 

Pedro Nuno Ramos Roque

 

 

 

Jónatas Machado

 

 



[1] Cremos que o Requerente pretende referir-se ao atual artigo 153.º, n.º 2 do novo CPA, em vigor desde abril de 2015 (Decreto-lei n.º 7/2015, de 7 de janeiro).

[2] 1Informação nº 814/2002, produzida no seguimento de um pedido de informação vinculativa, que mereceu despacho concordante de 18.06.2002 do Subdiretor-Geral.

[3] A alínea c) foi revogada pelo artigo 160.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2012).

[4] Na versão em vigor à data.

[5] Sublinhado nosso.

[6] Neste processo, e bem assim no 73/2012-T, é seguido o entendimento propugnado, sem prejuízo de se julgar procedente uma exceção de incompetência quanto à pretensão de impugnação direta do ato de retenção na fonte, i.e., sem recurso prévio à via administrativa.

[7] Em consonância com o artigo 11.º, n.º 1 da LGT que determina que “[n]a determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”.

[8] Publicado no Diário da República, 2.ª série, de 30 de junho de 1995, alterado pelos seguintes Avisos do Banco de Portugal:

  • n.º 2/99, de 15 de janeiro, publicado no Diário da República, I Série, de 26 de janeiro de 1999;
  • n.º 3/99, de 23 de março, publicado no Diário da República, I Série, de 30 de março de 1999;
  • n.º 7/2000, de 27 de outubro, publicado no Diário da República, I Série, de 6 de novembro de 2000;
  • n.º 4/2002, de 11 de junho, publicado no Diário da República, I Série, de 25 de junho de 2002;
  • n.º 8/2003, de 30 de janeiro, publicado no Diário da República, I Série, de 8 de fevereiro de 2003; e
  • n.º 9/2003, de 12 de março, publicado no Diário da República, I Série, de 21 de março de 2003.

[9] Aprovado pelo Decreto-lei n.º 410/89, de 21 de novembro (e alterações posteriores).

[10] Aprovado pelo Decreto-lei n.º 158/2009, de 13 de julho (e alterações posteriores).