Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 81/2018-T
Data da decisão: 2019-02-28  IVA  
Valor do pedido: € 1.720.243,61
Tema: IVA – locação de bens imóveis – Isenção.
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Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Clotilde Celorico Palma e António Carlos dos Santos, designados no Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

 

DECISÃO ARBITRAL  (consultar versão completa no PDF)

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 2 de Março de 2018, A..., SA., NIPC..., com sede Rua..., ..., ...-... Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos seguintes actos de liquidação de IVA e respectivos juros, referentes aos períodos 201202 a 201212, no valor de €1.720.243,61, e do indeferimento tácito da reclamação graciosa e recurso hierárquico, que tiveram os mesmos como objecto:

 

  1. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que resulta dos factos provados e que enquadram as operações em análise, bem como, das normas aplicáveis, estarmos na presença de operações isentas, por aplicação do número 29, do artigo 9.º do Código do IVA.
  2. No dia 05/03/2018, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
  3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  4. A Requerente procedeu à indicação de árbitro, tendo indicado o Exm.ª Sr.ª Prof.ª Doutora Clotilde Celorico Palma, nos termos do artigo 11.º/2 do RJAT. Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, a Requerida indicou como árbitro o Exm.º Sr. Prof. Doutor António Carlos dos Santos.
  5. Os árbitros indicados pelas partes foram nomeados e aceitaram os respectivos encargos.
  6. Na sequência do requerimento apresentado pelos árbitros designados pelas partes, foi designado árbitro-presidente, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, o ora Relator, que, no prazo aplicável, também aceitou o encargo.
  7. Em 07-05-2018, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
  8. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 28-05-2018.    
  9. No dia 29-06-2018, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
  10. Por requerimento apresentado a 13-07-2018, a Requerente pediu o aproveitamento, nos presentes autos, dos depoimentos prestados no processo arbitral 246/2017T do CAAD.
  11. Notificada para se pronunciar a esse propósito, a Requerida nada disse.
  12. Face ao exposto, e ao abrigo do disposto no referido artigo 421.º do Código de Processo Civil, aplicável nos termos do artigo 29.º/1/e) do RJAT, foi deferido o requerido aproveitamento dos depoimentos prestados no processo 246/2017T do CAAD.
  13. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
  14. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pela Requerente, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
  15. Pela Requerente foram apresentados nos autos requerimentos a dar conta da emissão, no mês de setembro de 2018, de novos actos de liquidação de Juros Compensatórios, com referência aos períodos de 201202 a 201212, com os mesmos fundamentos dos actos anteriormente emitidos.
  16. Mais peticionou a Requerente que o processo prosseguisse contra as Liquidações de Juros de IVA, referidas.
  17. Procedeu, ainda, a Requerente à junção aos autos das decisões das reclamações graciosas que determinaram a anulação de liquidações de IVA dos anos de 2013 a 2015.
  18. Foi cumprido o contraditório relativamente aos referidos requerimentos apresentados pela Requerente.
  19. Foi prorrogado por duas vezes o prazo a que alude o art.º 21.º/1 do RJAT, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
  20. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, prorrogado.
  21. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea b), do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

  1. A Requerente tem como actividade principal o “Arrendamento de Bens Imobiliários”, (CAE 68 200), tendo por objecto o arrendamento, compra, venda ou revenda de imóveis, gestão de imóveis próprios, administração e exploração, prestação de serviços conexos e outras actividades relacionadas.
  2. A ora Requerente foi constituída a 23-12-2009 e iniciou a sua actividade em 30-12-2009, ficando enquadrada como sujeito passivo isento nos termos do artigo 9.º do Código do IVA, tendo em conta a declaração de início de actividade que oportunamente apresentou.
  3. A Requerente pertence a um grupo de empresas cujo capital social é detido pela B..., SGPS, sendo o capital social desta última integralmente detido pelo grupo C..., com sede na Alemanha.
  4. A Requerente “foi criada para centralizar todos os imóveis onde se encontram as empresas do grupo a exercer a sua actividade, com o intuito destes imóveis não estarem sujeitos às variações do mercado de arrendamento”.
  5. O património imobiliário do grupo era constituído por imóveis onde se encontravam instaladas clínicas de hemodiálise.
  6. Para efeitos de determinação do valor de mercado dos imóveis a transmitir à Requerente foi solicitada a respetiva avaliação à D... empresa de consultoria, internacional e multidisciplinar, no âmbito da arquitectura, planeamento urbano e avaliação patrimonial.
  7. A avaliação do património teve por objeto a determinação, à data de Abril de 2009, do “valor de mercado dos imóveis”, ou seja, o valor pelo qual cada propriedade poderia ser trocada num mercado livre aberto e competitivo e após adequada exposição.
  8. Do relatório de avaliação elaborado, consta, para além do mais, o seguinte:

Os imóveis foram avaliados no pressuposto da alteração dos usos existentes à data da avaliação por outros mais frequentes no mercado, tais como comércio e serviços”.

  1. Os imóveis foram avaliados aos valores de mercado, atendendo aos seus usos potenciais, tais como comércio e serviços, uma vez que seria promovida a mera transmissão dos espaços físicos vazios, sem qualquer dos equipamentos e infraestruturas que permitem a sua caraterização como clínicas, a manter na esfera patrimonial das sociedades responsáveis pela exploração dessas mesmas clínicas.
  2. Os imóveis que eram propriedade da B..., SGPS foram transferidos, sem qualquer equipamento e/ou mobiliário, para o activo da ora Requerente, que assumiu a gestão dos referidos imóveis.
  3. Os equipamentos e mobiliário que integravam cada uma das clínicas de hemodiálise - que se encontravam em funcionamento à data da transmissão dos respectivos imóveis - não foram transmitidos, continuando na esfera das entidades que exploravam cada uma das clínicas, como partes integrantes dos respectivos estabelecimentos.
  4. As aquisições dos ditos imóveis foram efectuadas no ano de constituição da Requerente, entre 29 e 31 de Dezembro, tendo sido elaborados os contratos de arrendamento naquela precisa data, com excepção dos edifícios que ainda estavam em construção, situados em Évora e Portalegre.
  5. Nestes últimos imóveis, os contratos de arrendamento foram elaborados mais tarde, a 01-05-2012 e a 02-09-2010.
  6. Os imóveis foram adquiridos a várias empresas que, entretanto, foram fundidas na E..., S.A., actualmente F..., S.A.
  7. Aos referidos contratos de arrendamento e aditamentos, são comuns  as seguintes especificidades:
    1. - arrendamento por tempo indeterminado;
    2. - o local arrendado destina-se à instalação e funcionamento de uma clínica médica, para o exercício da actividade que constitui o objecto social da arrendatária;
    3. os contratos de arrendamento tinham por objecto os próprios imóveis, designados por “local arrendado”;
    4. - a arrendatária fica autorizada a efectuar no local arrendado as obras necessárias ao cumprimento dos requisitos técnicos legalmente exigíveis
      à prossecução da actividade que nele desenvolve.
  8. A Requerente definiu uma renda inicial, determinada como o resultado de uma percentagem do valor de negócios esperado, no valor de 18,6%, renda que por sua vez é actualizada anualmente, de acordo com o coeficiente de actualização de rendas previsto em legislação específica.
  9. Aquando da transmissão dos imóveis já ocupados, as transmitentes mantiveram a propriedade de todos os elementos que constituem o complexo de bens e direitos que constituíam cada uma das clínicas.
  10. A ora Requerente não dispõe, nem dispunha à data da celebração dos contratos de arrendamento, nem do exercício a que respeitam os actos de liquidação, de quaisquer equipamentos, utensílios ou mobiliário relacionados com a exploração de clínicas médicas, nem, designadamente, de clínicas de hemodiálise.
  11. A ora Requerente não tem, nem nunca teve nos seus quadros, pessoal especializado como médicos e enfermeiros.
  12. A ora Requerente nunca foi titular de licenças de funcionamento de clínicas de hemodiálise.
  13. As licenças de funcionamento necessárias à abertura e funcionamento das clínicas de hemodiálise foram emitidas em nome de cada uma das entidades que explora as clínicas em apreciação, atualmente, em nome da F..., SA.
  14. Os contratos de arrendamento celebrados não tinham associada qualquer prestação de serviços, nem a contratação dos fornecimentos de electricidade, água e telefone, nem os respectivos encargos.
  15. O funcionamento de clínicas de hemodiálise implica a existência de redes eléctricas, de águas e de esgotos específicas que fazem a ligação entre as infraestruturas preexistentes (do próprio imóvel) e os vários equipamentos de controlo, de esterilização e de tratamento, e entre estes e os painéis que estão ligados às cadeiras de hemodiálise.
  16. A tubagem, que inclui painéis, tubos e condutas, instalações de tratamento de água e esgotos (bombas e filtros), é amovível (para garantir a esterilização sem ser necessário obras na alvenaria).
  17. Os equipamentos relativos às clínicas de hemodiálise de Évora e Portalegre, cujos imóveis foram adquiridos pela Requerente em momento anterior ao da entrada em funcionamento da respectiva clínica naqueles imóveis, estão registados no imobilizado da arrendatária, tendo o custo associado a cada um daqueles elementos sido efetivamente suportado por aquelas.
  18. Para a F... SA é crucial garantir que, nos casos de cessação de contratos de arrendamento, o imóvel seja entregue descaracterizado ao senhorio, para assegurar que nenhuma outra entidade, na sequência do abandono do espaço pela F... SA, o possa vir a ocupar, instalando uma clínica de hemodiálise concorrente, e que, se o fizer, tenha necessariamente de incorrer em todos os custos de adaptação necessários, tal como inicialmente suportados pela F... SA e sem que se possa aproveitar das mais-valias técnicas desta última.
  19. A Requerente foi sujeita a um procedimento de inspecção realizado pela Direcção de Finanças de Lisboa, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2016..., de 25 de Fevereiro.
  20. Pelo Ofício n.º..., datado de 3 de Novembro de 2016, emitido pelo Dep. B - Divisão IV - Equipa 41, da área da Inspecção Tributária, da Direcção de Finanças de Lisboa, a Requerente foi notificada para se pronunciar, querendo, em sede de exercício do direito de audição, sobre o Projecto de Correcções do Relatório de Inspecção.
  21. Pelo Ofício n.º..., de 29 de Novembro de 2016, emitido pelo Dep. B - Divisão IV, da área da Inspecção Tributária, da Direcção de Finanças de Lisboa, a ora Requerente foi notificada das Correcções resultantes da Acção de Inspecção ao exercício de 2012, que mantendo as correcções, anteriormente, propostas determinou correcções no montante de € 1.584.291,95.
  22. Do Relatório de Inspecção consta, para além do mais o seguinte:

  

 

  1. Na sequência das correcções notificadas, a Requerente foi notificada das Demonstrações de Liquidação do IVA e de Juros dos períodos 201202 a 201212, objecto da presenta acção arbitral.
  2. Em 3 de Fevereiro de 2017, a ora Requerente procedeu ao pagamento das referidas liquidações.
  3. Em 9 de Maio de 2017, a Requerente apresentou reclamação graciosa tendo como objecto as Demonstrações de Liquidação do IVA e de Juros dos períodos 201202 a 201212, objecto da presenta acção arbitral, à qual foi atribuído o número de entrada 2017... (10-05-2017).
  4. Em 6 de Outubro de 2017, a ora Requerente, face à formação do indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada, interpôs recurso hierárquico contra as referidas Demonstrações de Liquidação.
  5. No decurso do presente processo arbitral, a Requerente foi notificada de Demonstrações de Liquidação de Juros de IVA, com referência aos períodos de 201202 a 201212, que datam de Setembro de 2018, no valor de € 246.683,42, com referência a Juros Compensatórios, conforme quadro seguinte:

  1. As Demonstrações de Liquidação de Juros de IVA supra descritas, respeitam ao mesmo sujeito passivo (a ora Requerente), imposto (IVA) e períodos de tributação (201202 a 201212) e têm a mesma natureza (Juros de IVA) que as Liquidações de Juros de IVA que eram já objecto dos presentes autos.
  2. O valor liquidado naquelas Demonstrações de Liquidação de Juros de IVA corresponde precisamente ao valor liquidado a título de Juros Compensatórios nas Demonstrações de Liquidação de Juros de IVA contestadas nos presentes autos.
  3. As mesmas Demonstrações de Acerto de Contas das Liquidações de Juros de IVA, fazem menção na coluna “Descrição” ao estorno da liquidação do mesmo período, emitida em 2016 e objecto no presente processo e a um crédito disponível cujo valor corresponde, precisamente, ao valor liquidado a título de juros de mora nas Demonstrações de Liquidação de Juros de IVA contestadas objecto dos presentes autos e emitidas em 2016.
  4. A Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações oficiosas de IVA referentes aos períodos dos anos de 2013 a 2015, efectuadas com os mesmos fundamentos de facto e de direito das liquidações objecto da presenta acção arbitral, tendo sido proferida decisão de deferimento, e determinada a anulação daquelas liquidações, com base na informação n.º 2114 de 2018-12-20, da DSIVA, que considerou que “as operações de locação, tal como se apresentam no pedido de informação da Direção de Finanças de Lisboa, devem ser consideradas como uma operação isenta na aceção da alínea 29), do art.º 9.º, do Código do IVA , seguindo, a operação acessória de adaptação do espaço locado à atividade a desenvolver pelo locatário, o mesmo enquadramento fiscal da operação principal.”.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e testemunhal, e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Em especial, os factos dados como provados nos pontos 10, 11, 17, 18, 19, 20 e 24, resultam da prova documental disponibilizada, que foi devidamente corroborada pela prova testemunhal disponibilizada, que se apresentou coerente e com a segurança necessária para não se suscitarem dúvidas razoáveis relativamente à verificação dos factos em questão, sendo que os factos dados como provados nos pontos 23 e 26 assentam essencialmente na prova testemunhal referida, apreciada à luz da prova documental disponível e do contexto global evidenciado pelos restantes factos dados como provados.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

 

B. DO DIREITO

a. Questão prévia

            Conforme a Requerente deu conta nos autos, e não foi contestado pela Requerida, no decurso do presente processo arbitral, a Requerente foi notificada de Demonstrações de Liquidação de Juros de IVA, com referência aos períodos de 201202 a 201212, que datam de Setembro de 2018, no valor de € 246.683,42, com referência a Juros Compensatórios.

            Mais se apura que:

- As Demonstrações de Liquidação de Juros de IVA supra descritas, respeitam ao mesmo sujeito passivo (a ora Requerente), imposto (IVA) e períodos de tributação (201202 a 201212) e têm a mesma natureza (Juros de IVA) que as Liquidações de Juros de IVA que eram já objecto dos presentes autos;

- O valor liquidado naquelas Demonstrações de Liquidação de Juros de IVA corresponde precisamente ao valor liquidado a título de Juros Compensatórios nas Demonstrações de Liquidação de Juros de IVA contestadas nos presentes autos;

- As mesmas Demonstrações de Acerto de Contas das Liquidações de Juros de IVA, fazem menção na coluna “Descrição” ao estorno da liquidação do mesmo período, emitida em 2016 e objecto no presente processo e a um crédito disponível cujo valor corresponde, precisamente, ao valor liquidado a título de juros de mora nas Demonstrações de Liquidação de Juros de IVA contestadas objecto dos presentes autos e emitidas em 2016.

            A este propósito, dispõe o artigo 13.º/1 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária que:

“Nos pedidos de pronúncia arbitral que tenham por objeto a apreciação da legalidade dos atos tributários previstos no artigo 2.º, o dirigente máximo do serviço da administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo, devendo notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão, iniciando-se então a contagem do prazo referido na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º”

            Dispõe ainda o n.º 3 do mesmo artigo:

“Findo o prazo previsto no n.º 1, a administração tributária fica impossibilitada de praticar novo acto tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos.”.

            O regime legal parece suficientemente claro, no sentido de que, findo o prazo estipulado no artigo 13.º/1 do RJAT, à AT fica vedado o poder de dispor sobre a relação (jurídico-tributária) material controvertida.

            Pretender-se-á com esta disposição permitir uma estabilização da relação jurídica tributária, em termos de, submetida a mesma à jurisdição arbitral, subtraí-la à instabilidade que uma permanente disponibilidade do seu conteúdo pela AT poderia gerar.

            Conclui-se, assim, que o acto revogatório praticado após o decurso do prazo fixado no artigo 13.º/3 do RJAT será ilegal, por violação do mesmo, e, como tal, anulável.

            Caso o interessado, nada arguísse a seu respeito, ou se conformasse com o mesmo, a referida ilegalidade poderia ser sanada.

            Não o tendo feito, e considerando que:

  1. o Tribunal tem sempre competência para apreciar as questões quer incidentais quer prejudiciais que relevem para decisão do processo (artigo 91.º do CPC) podendo, quanto àquelas últimas, suspender o processo apenas se a competência para decidir couber a outra jurisdição (artigo 92.º do CPC e 15.º/1 do Novo CPTA);
  2. a Requerente arguiu a ilegalidade do acto revogatório; e
  3. a anulabilidade pode ser arguida quer por via de acção, quer por via de excepção;

no presente processo dever-se-á reconhecer a apontada ilegalidade e dela retirar os correspondentes efeitos, designadamente não reconhecendo aos actos que dela enfermam a possibilidade de afectar os actos tributários objecto da presente lide.

 

*

b. do fundo da causa

Dispõe o art.º 124.º do CPPT que:

“1 - Na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.

2 - Nos referidos grupos a apreciação dos vícios é feita pela ordem seguinte:

a) No primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos;

b) No segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior.”

            Deste modo, e não tendo sido estabelecida pela Requerente qualquer relação de subsidiariedade, passar-se-á à apreciação do vício de violação de lei, por ser aquele cuja procedência determina a mais estável e eficaz tutela dos interesses ofendidos.

 

*

Como a própria Requerida acertadamente aponta, a “questão em dissídio centra-se no facto de a AT entender que, no caso concreto, atentas as especificidades dos imóveis e atento o tipo de contrato de arrendamento celebrado, se está perante uma verdadeira prestação de serviços, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1 do CIVA, a que se não aplica a isenção prevista no artigo 9.º, 29) do CIVA.”.

            Questão idêntica foi já objecto de apreciação no âmbito do processo arbitral n.º 246/2017T, do CAAD[2], cuja prova testemunhal foi aproveitada nos presentes autos de processo arbitral, conforme indicado supra, no Relatório da presente decisão.

            No acórdão arbitral proferido naquele processo, considerou-se que:

“À face do artigo 4.º, n.º 1, do CIVA, «são consideradas como prestações de serviços as operações efectuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens».

No entanto, por força do disposto no artigo 9.º, n.º 29, do CIVA, a locação de bens imóveis está isenta de IVA, salvo nas situações descritas nas suas alíneas a) a e).

A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que os arrendamentos de imóveis efectuados pela Requerente à F… não estão isentos de IVA, pelas seguintes razões, no essencial:

– «locação é um contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição»;

– «a locação do imóvel, no sentido de uma colocação passiva do imóvel à disposição, deve ser a prestação preponderante dessa operação económica»;

– «as exceções à isenção correspondem a operações económicas que englobam não só situações de locação de imóveis propriamente ditas, mas também outro tipo de características provenientes de outros contratos e que, por esse facto, perdem a qualidade de mera colocação à disposição de locais ou de superfícies de imóveis em contrapartida de uma retribuição ligada ao decurso do tempo»;

– «são, assim, de excluir da isenção todas as situações que, apesar de partilharem alguns dos elementos do contrato de locação, caracterizam-se essencialmente por integrarem outras prestações de serviços conexas à fruição do imóvel e que implicam uma exploração ativa dos bens imóveis, para além do simples gozo temporário do bem»;

– «só se encontra isenta de IVA a locação de bens imóveis para fins habitacionais ou para fins não habitacionais - comerciais, industriais ou agrícolas - quando for efetuada "paredes nuas", no caso de prédios urbanos»;

– «o conceito "paredes nuas", não se limita ao facto de a locação ser acompanhada ou não de determinados bens de equipamento, mobiliário ou utensílios. Está intrinsecamente relacionado com a aptidão produtiva do Imóvel, ou melhor, a preparação para o exercício de uma atividade empresarial»;

– «este conceito permite, desde logo, limitar a isenção de locação de imóveis às situações em que cedência do gozo do imóvel não é acompanhada de quaisquer bens da equipamento instalados no imóvel ou acompanhada do fornecimento de mobiliário e/ou de outros utensílios»;

– «à data da elaboração dos contratos de arrendamento de todos os imóveis em questão, estes já estavam habilitados para o exercício de clínica médica, nomeadamente para tratamentos de hemodiálise, ou seja, os imóveis já estavam devidamente preparados para o exercício de uma atividade, apetrechados com um mínimo de condições que vão para além do conceito, necessariamente restrito de "paredes nuas".

Assim, a Autoridade Tributária e Aduaneira efectuou a liquidação impugnada por entender, em suma, que não se aplica aquela isenção, porque com os contratos de arrendamento não ter sido cedido apenas o gozo do imóvel («paredes nuas»), antes ter sido proporcionado também o gozo dos equipamentos para tratamentos de hemodiálise.

A prova produzida contraria esta conclusão, pois a Requerente apenas adquiriu os imóveis que foram arrendados às empresas do grupo que os detinham, sem quaisquer equipamentos destinados a hemodiálise que neles estavam instalados, que continuaram a pertencer às respectivas empresas que os detinham, e que nunca integraram o activo da Requerente.

Assim, tendo havido apenas disponibilidade dos imóveis pela Requerente e não de quaisquer equipamentos neles instalados nem de utensílios ou móveis neles existentes, tanto à data da celebração dos contratos de arrendamento como posteriormente, tem de se concluir que, com os contratos, a Requerente apenas cedeu a disponibilidade dos imóveis, «paredes nuas», que era o que detinha.

Nestes termos, conclui-se que os contratos celebrados consubstanciam «locação de bens imóveis», para efeitos do n.º 29) do artigo 9.º do CIVA, pelo que, não se verificando qualquer das excepções previstas nas suas alíneas, a isenção é aplicável.

Consequentemente, a liquidação impugnada é ilegal, por vício de violação desta norma, o que justifica a sua anulação, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.”.

            No presente processo arbitral não existe, nem sequer foi aventado pela Requerida, qualquer motivo para concluir de outra forma.

            Efectivamente, como aconteceu no referido processo arbitral n.º 246/2017T, do CAAD, também aqui se conclui, face à prova produzida, e à matéria de facto provada que nela assenta, que a Requerente apenas adquiriu os imóveis que foram arrendados às empresas do grupo que os detinham, sem quaisquer equipamentos destinados a hemodiálise que neles estavam instalados, equipamentos estes que continuaram a pertencer às respectivas empresas que os detinham, e que nunca integraram o activo da Requerente.

            Deste modo, tendo havido apenas disponibilização dos imóveis pela Requerente e não de quaisquer equipamentos neles instalados nem de utensílios ou móveis neles existentes, tanto à data da celebração dos contratos de arrendamento como posteriormente, tem de se concluir que, com os contratos, a Requerente apenas cedeu a disponibilidade dos imóveis, «paredes nuas», que era o que detinha.

            Não obstará à conclusão referida as circunstâncias apontadas pela Requerida de os contratos de arrendamento terem sido celebrados por “tempo indeterminado”, já que o regime da locação prevê expressamente a possibilidade da outorga desse tipo de contratos com “duração indeterminada” (cfr. art.º 1094.º/1 do Código Civil, aplicável aos arrendamentos de finalidade não habitacional por força do disposto no art.º 1110.º /1 também do Código Civil), não sendo por isso correcto o afirmado pela Requerida, no sentido de que “não há contratos de arrendamento de duração indeterminada.[3].

            Por outro lado, e no que diz respeito à circunstância, também apontada pela Requerida, relativamente ao modo de fixação da renda, não se descortina em que medida é que tal pode fundar a descaracterização dos contratos em questão como de arrendamento, tanto mais que tal corresponde apenas ao método de fixação do valor inicial da renda, o qual, como a própria Requerida reconhece, é anualmente actualizado de acordo com o coeficiente de actualização de rendas previsto em legislação específica.

            Não se mostrará fundada, também, face à matéria de facto apurada, o entendimento plasmado no RIT, segundo o qual os imóveis transmitidos estariam já habilitados para o exercício da actividade de tratamentos de hemodiálise, que, como resulta provado, estava à data já devidamente licenciada.

            Com efeito, e como também está provado, as referidas licenças eram tituladas pelas arrendatárias, e não pela Requerente, e assentavam na existência dos meios humanos e materiais da responsabilidade e propriedade, respectivamente, daquelas mesmas arrendatárias, sendo os contratos outorgados entre estas e a Requerente totalmente alheios à disponibilização de qualquer condição necessária à manutenção ou renovação daqueles licenciamentos, e não se apurando o mínimo indício de que a Requerente, não obstante tal não estar contratualmente previsto, tenha assumido de facto a responsabilidade de assegurar total ou parcialmente as condições necessárias ao exercício efectivo da actividade em questão, ou ao respectivo licenciamento.

            No mais, a própria citação efectuada pela Requerida no art.º 48.º da sua Resposta, esclarece que:

É claro também que a isenção do arrendamento – explicada assim pela impraticabilidade de tributar as rendas recebidas pelos senhorios “particulares” – tem de estender-se às situações em que o senhorio é uma empresa, sob pena de se provocarem distorções de tratamento fiscal e convite a “economia subterrânea”.”.

            Sendo esse o caso, haverá que concluir aqui da mesma forma que se concluiu no processo arbitral n.º 246/2017T, do CAAD, e, de resto, na decisão da reclamação graciosa relativa às liquidações de IVA, efectuadas com os mesmos fundamentos de facto e de direito, relativas aos períodos dos exercícios de 2013 a 2015, ou seja, no sentido de que “as operações de locação, tal como se (...), devem ser consideradas como uma operação isenta na aceção da alínea 29), do art.º 9.º, do Código do IVA”, sendo as liquidações objecto da presente acção arbitral ilegais, por erro de facto e, consequente, erro de direito por violação daquela norma, o que justifica a sua anulação, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas pela Requerente.

 

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Quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

No caso, o erro que afecta as liquidações anuladas é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, que praticou os actos de liquidação objecto da presente acção arbitral, sem o necessário suporte factual e legal.

Tem, pois, a Requerente direito a ser reembolsada da quantia que pagou (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força dos actos anulados e, ainda, a ser indemnizada pelo pagamento indevido através do pagamento de juros indemnizatórios, pela Requerida, desde a data do pagamento indevido, até ao seu reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

  1. declarar a ilegalidade das Demonstrações de Liquidação de Juros de IVA acima identificadas, com referência aos períodos de 201202 a 201212, que datam de Setembro de 2018, no valor de € 246.683,42, com referência a Juros Compensatórios não reconhecendo ao actos referidos a possibilidade de afectar os actos tributários objecto da presente lide;
  2. anular os actos de liquidação de IVA e respectivos juros, referentes aos períodos 201202 a 201212, no valor de €1.720.243,61, identificados no ponto 1 do Relatório da presente decisão, bem como do indeferimento tácito da reclamação graciosa e recurso hierárquico, que tiveram os mesmos como objecto;
  3. Condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios à Requerente nos termos acima fixados.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €1.720.243,61, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2019

 

O Árbitro Presidente

 

 

(José Pedro Carvalho)

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Clotilde Celorico Palma)

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(António Carlos dos Santos)

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.

[3] Porventura, haverá aqui confusão com contratos perpétuos, o que não é o mesmo (cfr. art.º 1025.º do Código Civil).