Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 614/2017-T
Data da decisão: 2018-09-17  IVA  
Valor do pedido: € 262.300,68
Tema: IVA – Regularização de Incobráveis; Artigo 78.º/7 do CIVA
Versão em PDF

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Joaquim Silvério Dias Mateus e António Carlos dos Santos, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 24 de Novembro de 2017, A..., NIPC …, com sede no ..., …, …, … …, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IVA n.º 2016 ... referente ao período 2012/12, n.º 2016 … referente ao período de 2013/01, n.º 2016 … referente ao período 2013/02, n.º 2016 … referente ao período 2013/03, n.º 2016 … referente ao período de 2013/04 e n.º 2016 …, bem como da liquidação de juros compensatórios n.º 2016 … e das liquidações de juros de mora n.º 2016 …, n.º 2016 …, n.º 2016 …, n.º 2016 … e n.º 2016 …,  no valor global de €262.300,68.

 

  1. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese:
    1. vício de violação de lei pelo facto do procedimento inspectivo ter excedido o prazo de 6 meses, sem que a Requerente tenha sido notificada de qualquer prorrogação;
    2. que o entendimento da AT assenta numa interpretação ab-rogante da lei, já que não existe qualquer norma no Código do IVA que exija uma certidão judicial que ateste a declaração de insolvência e indique a data do trânsito em julgado para que se possa proceder à regularização do IVA nos termos do artigo 78.º, n.º 7 do Código do IVA.

 

  1. No dia 27-11-2017, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente procedeu à nomeação de árbitro, tendo indicado o Exm.º Sr. Dr. Joaquim Silvério Mateus, nos termos do artigo 11.º/2 do RJAT. Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, a Requerida indicou como árbitro o Exm.º Sr. Prof. Doutor António Carlos dos Santos.

 

  1. Os árbitros indicados pelas partes foram nomeados e aceitaram os respectivos encargos e nomearam para presidir a este Tribunal Arbitral o ora Relator, que, no prazo aplicável, também aceitou o encargo.

 

  1. Em 07-02-2018, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 27-02-2018.

 

  1. No dia 26-03-2018, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se unicamente por impugnação.

 

  1. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

  1. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, abstiveram-se as partes de as apresentar.

 

  1. Foi indicado o prazo de 60 dias para a prolação de decisão final, após a apresentação de alegações pela Requerida ou o termo do prazo concedido para o efeito, tendo, posteriormente aquele primeiro prazo sido prorrogado até ao termo do prazo fixado no artigo 21.º/1 do RJAT.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

  1. A Requerente está, e estava em 2012, inscrita no Serviço de Finanças de … - …, para o exercício da actividade de “Outras actividades desportivas, N.E.”, a que corresponde o CAE 93192.
  2. A Requerente encontra-se, desde 01-01-1986 enquadrada, em sede de IVA, no regime normal de periodicidade mensal (misto com afectação real de todos os bens).
  3. A Requerente apresentou, no exercício de 2012, as respectivas declarações periódicas mensais de IVA.
  4. No campo 40 das referidas declarações constavam os seguintes valores:

  1. Durante o ano de 2012, a Requerente regularizou IVA a seu favor, no montante global de €624.374,98, distribuídos da seguinte forma:
  • €301.111,54 referente à regularização de facturas a favor da empresa, através da emissão das notas de crédito;
  • €101.950,37 referente a regularizações anuais por cálculo do pro-rata definitivo;
  • €221.313,07 referente a regularizações no âmbito de processos de insolvência.
  1. As regularizações de IVA referentes a créditos considerados como incobráveis em processos de insolvência, no montante global de €221.313,07, encontravam-se reflectidas nas contas 2434501, 2434502, 2434503 e 2434504, e dizem respeito às seguintes entidades:

  1. Em 28-12-2012, a Requerente enviou aos clientes a declaração a que se refere o artigo 78.º, n.º 11 do Código do IVA.
  2. A Requerente foi objecto de um procedimento de inspecção, de âmbito parcial e de natureza interna, através da Ordem de Serviço n.º OI201…, reportado ao exercício de 2012.
  3. A Requerente foi notificada através do ofício n.º …, de 21 de Setembro de 2015 do início do procedimento interno de inspecção.
  4. O procedimento inspectivo teve como objectivo confirmar o valor inscrito no Campo 40 das declarações periódicas mensais do IVA referentes ao ano de 2012.
  5. A 02-12-2015, a Requerente foi contactada via e-mail para a prestação de esclarecimentos adicionais.
  6. Em 22-08-2016, a Requerente foi novamente contactada via e-mail para a prestação de novos esclarecimentos.
  7. No decurso da acção inspectiva, a Requerente apresentou o anúncio de “publicidade da sentença”, publicado em Diário da República, 2ª série, onde estava identificada como insolvente cada sociedade sobre a qual foi regularizado o IVA, a que se refere o ponto 6 supra.
  8. A Requerente apresentou cópia de 18 registos de correspondência enviada a clientes seus, incluindo aqueles a que se refere o ponto 6 supra.
  9. No documento apresentado é ilegível o carimbo aposto pelos CTT, designadamente no que diz respeito à data.
  10. A Requerente apresentou, ainda no decurso do processo inspectivo, comprovativos de ter solicitado aos tribunais competentes as respectivas certidões dos processos de insolvência.
  11. A Requerente não foi notificada de qualquer prorrogação do prazo para a realização da inspecção.
  12.  A 27-09-2016, a Requerente foi notificada do Projecto de Relatório de Inspecção e para, querendo, exercer o seu direito de audição, o que fez em 12-10-2016.
  13. A Requerente exerceu, oportunamente, o seu direito de audição.
  14. No decurso do procedimento de inspecção a Requerente juntou certidões judiciais relativas às empresas “B…, Lda” e “C…, S.A.”, obtidas através do Portal Citius.
  15. No Projecto de Relatório de Inspecção foi proposta uma correcção no montante de €221.313,07 relativa a regularizações de IVA.
  16. Em 09-11-2016, a Requerente foi notificada do Relatório de Inspecção no qual se mantiveram as correcções propostas no projecto de relatório, tendo a AT feito constar o seguinte:

  1. Em 15-03-2017, a Requerente apresentou reclamação graciosa dos actos de liquidação de IVA e respectivos juros de mora.
  2. Com a Reclamação Graciosa, a Requerente procedeu à junção das certidões judiciais já recebidas à data e de nova cópia dos 18 registos de correspondência enviada clientes seus, incluindo aqueles a que se refere o ponto 6 supra.
  3. No documento apresentado em sede de reclamação graciosa é perceptível a data de 28-12-2012 no carimbo aposto pelos CTT.
  4. No requerimento de reclamação graciosa a Requerente manifestou a sua disponibilidade para se deslocar presencialmente às instalações da AT com o registo original, caso se entendesse que as cópias apresentadas não estavam legíveis.
  5. Até 20-06-2017, a Requerente apresentou à AT certidões judiciais relativas aos processos de insolvência, conforme quadro infra:

  1. A Requerente não apresentou quaisquer certidões judiciais relativas às sociedades D… e E….
  2. As certidões judiciais comportam um custo de cerca de 20€.
  3. Em 29-08-2017, a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Em especial os factos dados como provados sob os pontos 7 e 25, tiveram em conta o documento constante de fls. 69 do PA junto pela Requerida.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

 

Começa a Requerente por arguir que não foi, in casu, respeitado o prazo a que alude o artigo 36.º/2 do RCPIT, tendo o procedimento inspectivo excedido 6 meses, sem que a Requerente tenha sido notificada de qualquer prorrogação, verificando-se, por isso, violação de lei, geradora da anulabilidade do procedimento e, consequentemente, da liquidação que lhe foi subsequente.

A referida questão foi já objecto de análise jurisprudencial, podendo ler-se no Ac. do TCA-Sul de 29-09-2016, proferido no processo 09395/16, que:

A limitação temporal imposta pelo artigo 36.º, do RCPITA, para a conclusão do procedimento de inspecção (6 meses), bem como a exigência legal de notificação das ordens de Serviço constante do artigo 46.º, do mesmo diploma, apenas se aplicam aos procedimentos de inspecção externa e não aos procedimentos de inspecção interna.”.

            Estando, nos presentes autos arbitrais, em causa, incontroversamente, um procedimento de inspecção interna, aplica-se directamente a jurisprudência citada, para cuja fundamentação se remete, uma vez que a Requerente não apresenta qualquer argumento que a invalide, improcedendo, por isso, a referida alegação da Requerente.

 

*

Conforme resulta do ponto 6 dos factos dados como provados, e do quadro ali inserido, que consta de fls. 6 do RIT, em causa nos presentes autos estão regularizações de IVA efectuadas pela Requerente, com fundamento em incobrabilidade dos créditos, relativamente aos seus clientes ali identificados, tendo a AT considerado que, em relação a todos eles, não se encontrava cumprido o disposto no n.º 11 do artigo 78.º do CIVA aplicável, e que não se encontrava, igualmente, cumprido o disposto no n.º 7/b) do mesmo artigo.

            É o seguinte o teor das normas em causa:

“7 — Os sujeitos passivos podem deduzir ainda o imposto respeitante a créditos considerados incobráveis: (...)

  1. Em processo de insolvência quando a mesma seja decretada. (...)

11 — No caso previsto no n.º 7 e na alínea d) do n.º 8 é comunicada ao adquirente do bem ou serviço, que seja um sujeito passivo do imposto, a anulação total ou parcial do imposto, para efeitos de rectificação da dedução inicialmente efectuada.”.

 

*

            Relativamente ao cumprimento do disposto na norma n.º 11 do artigo 78.º do CIVA aplicável, acima transcrita, entendeu a AT que “não obstante de o sujeito passivo ter apresentado cópia da correspondência enviada aos insolventes segundo alega, o mesmo não provou ter enviado tal comunicação para efeitos da retificação da dedução inicialmente efetuada.” já que “No que respeita à obrigação de comunicar ao adquirente dos bens e serviços a anulação do imposto para efeitos da retificação da dedução inicialmente efetuada, formalismo estabelecido no nº 11 do artigo 78º do Código do IVA, o sujeito passivo apresentou cópia dos respetivos registos postais referentes à correspondência enviada, não sendo, no entanto, a data da receção da correspondência pelos CTT legível.”.

            Conforme decorre da matéria de facto assente, verifica-se que, efectivamente, no documento apresentado pela Requerente no decurso do procedimento a data constante do carimbo dos CTT era ilegível. Todavia, em sede de reclamação graciosa, a Requerente apresentou nova cópia onde é discernível a data do referido carimbo (28-12-2012).

Em sede decisão da reclamação graciosa, a AT considerou que face ao ali decidido quanto ao cumprimento do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA, ficava “prejudicada a apreciação da questão relativa à comunicação mencionada no n.º 11 do artigo 78.º do CIVA”.

Face ao apurado, conclui-se que a correcção ao abrigo do artigo 78.º/11 do CIVA não foi mantida em sede de reclamação graciosa, sendo que, em todo o caso, ao fundar as correcções efectuadas, e ora contestadas pela Requerente, na obrigação desta dar cumprimento ao disposto no artigo 78.º/11 do CIVA aplicável, incorreu o acto tributário objecto da presente acção arbitral tributária em erro nos respectivos pressupostos de facto, e consequente erro de direito, já que se verifica que a correspondência foi recebida pelos CTT a 28-12-2012, devendo assim, nessa medida, ser anulado.

 

***

Fundam-se igualmente as correcções operadas pela AT e aqui contestadas pela Requerente, na violação do disposto no artigo 78.º/7/b) do CIVA aplicável, também já atrás transcrito.

A este respeito, considerou-se no RIT que “Nos casos de insolvência, para que o sujeito passivo possa exercer direito à regularização do IVA, terá de ter na sua posse, certidão judicial, nos termos referidos no art.º 38.º n.º 2 do CIRE, onde conste que a empresa da qual é credora, foi declarada insolvente, com sentença já transitada em julgado, e só deste modo ficará em condições de provar que se encontram reunidos os requisitos adequados à regularização do IVA.”, concluindo que “o sujeito passivo não deu cumprimento ao formalismo estabelecido no n.º 7 do artigo 78º do Código do IVA”.

Em sede de decisão da reclamação graciosa, veio a AT louvar-se no despacho do SDG de 23-01-2012, proferido no processo n.º 2852, com o seguinte teor: “No que se refere a créditos incobráveis no âmbito do processo de insolvência (...) para que o sujeito passivo credor possa exercer o seu direito à dedução/regularização deve ter em seu poder uma certidão emitida pelo Tribunal competente que deve mencionar: declaração de insolvência por meio de sentença; o credor ter reclamado créditos e esses tenham sido reconhecidos; a sentença tenha transitado em julgado”.

Concluiu a decisão da reclamação graciosa por considerar, face ao quadro que consta do ponto 27 dos factos provados no presente acórdão, que “verificando-se que a reclamante não tinha em seu poder uma certidão emitida pelo Tribunal competente com as menções acima identificadas aquando das regularizações controvertidas, é de concluir que não poderia, então, exercer tal direito.”.

Deste modo, as questões a apreciar na presente sede, prendem-se com saber se:

  1. a Requerente tinha de fazer prova de que as empresas devedoras dos créditos cujo IVA pretendeu deduzir haviam, previamente à dedução, sido declaradas insolventes, com sentença transitada em julgado, bem como de que tivesse reclamado créditos e eles tenham sido reconhecidos;
  2. Se essa prova tem de ser exclusivamente feita por meio de certidão judicial;
  3. Se tal prova tinha de estar na posse da Requerente, previamente ao exercício da dedução.

Vejamos

 

*

Relativamente à regularização por incobrabilidade dos créditos, deverá considerar-se que o direito à mesma nasce com a verificação dos seus pressupostos, podendo ser exercido pelo seu titular quando o entender (dentro do prazo de 4 anos), desde que comprove aqueles, não se podendo, confundir a verificação de tais pressupostos (que condiciona o surgimento do próprio direito), com a sua prova (que contende, meramente, com a demonstração da legitimidade do exercício daquele).

Dito de outro modo, uma coisa é o facto de que depende a legitimidade do exercício do direito, e outra será o meio de prova de tal facto. Assim, o direito à dedução de créditos incobráveis em processo de insolvência, dependerá, nos termos da Lei, de que os créditos se tenham tornado incobráveis em processo de insolvência, em que a mesma tenha sido decretada, devendo o sujeito passivo que pretende efectivar tal dedução assegurar a correspondente prova daqueles factos.

Tal ocorre, ao contrário do que acontece, por exemplo, com o direito à dedução do imposto suportado a montante, relativamente ao qual o CIVA e a Directiva IVA cindem o momento do nascimento do direito, do momento do seu exercício (cfr. artigos 22.º/1 a 3 do CIVA e artigos 167.º e 178.º da Directiva), uma vez que o regime em causa não é uma decorrência imperativa do princípio da neutralidade do IVA, conforme decorre do art.º 90.º da Directiva IVA, dispõe que:

“1. Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efectuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros.

2. Em caso de não pagamento total ou parcial, os Estados-Membros podem derrogar o disposto no n.º 1.”

Desta norma da Directiva resulta que no caso de não pagamento total ou parcial do preço (e ao contrário do que acontece nos casos de anulação, rescisão, resolução, ou redução do preço depois de efectuada a operação), os Estados Membros podem não reduzir o valor tributável, ou seja, e em suma, recusar a devolução do IVA relativo a créditos incobráveis.

Não foi essa, todavia, a opção do legislador português, mas tal não obsta, antes reforça, que no mecanismo de regularização de IVA por incobrabilidade dos créditos, a que se refere o art.º 78.º/7 do CIVA, não está em causa a neutralidade do IVA pressuposta pela Directiva, já que se assim fosse não seria permitido aos Estados Membros não reduzir ou eliminar o valor tributável, nos casos de pagamento parcial ou não pagamento do preço.

A faculdade em causa conferida pela Directiva aos Estados Membros, explicar-se-á porquanto, nas situações em questão, se tratará apenas de definir se é o Estado ou o emitente da factura quem fica com o prejuízo da incobrabilidade do imposto facturado, uma vez que tal imposto, facturado mas não cobrado, terá sido (num quadro de normalidade) objecto de dedução pelo (ou mesmo de reembolso ao) devedor inadimplente da factura, e, portanto, seja o Estado seja o emitente da factura, haverá sempre, a final, um prejudicado com a incobrabilidade do crédito e respectivo imposto.     

Não se pode, assim, perder de vista que a regularização de IVA por incobrabilidade de créditos, tem em vista, unicamente, a devolução ao sujeito passivo de imposto que facturou mas que não lhe foi possível cobrar, situação que decorre de uma livre opção nesse sentido feita pelo Estado Português (porventura justificada pelo peso com que os sujeitos passivos já arcam no mecanismo de liquidação e cobrança do IVA), pelo que estará apenas em causa que a AT se assegure, com a segurança necessária, de que o crédito se tornou, efectivamente, incobrável, na data em que o sujeito passivo operou a regularização.

 

*

a)

Aqui chegados, julga-se que o requisito material pressuposto pela al. b) do n.º 7 do artigo 78.º referido, é o de que os créditos se tenham tornado incobráveis em processo de insolvência em que esta tenha sido decretada.

Com efeito, com o regime da dedução do imposto referente a créditos considerados incobráveis em processo de insolvência, o legislador tem em vista garantir que a insuficiência patrimonial do executado fique demonstrada no processo próprio, provando-se a impossibilidade do pagamento dos créditos do exequente, por motivo não imputável a este.

Deste modo, fica desde logo patente que o direito à dedução do imposto nos termos do artigo 78.º/7/b) em causa se restringe aos créditos incobráveis em processo de insolvência, o que quer dizer que, ao contrário do que parece considerar a Requerente, não basta a mera existência de créditos sobre devedores declarados insolventes, mas é, ainda, necessário que, no âmbito do processo de insolvência não tenha sido possível a satisfação dos créditos em questão.

Deste modo, e não restando dúvidas do texto legal de que é necessário ainda que a insolvência tenha sido decretada, haverá que concluir, com a AT, que o direito à dedução nos termos ora em causa, depende da existência de um processo de insolvência, com sentença transitada em julgado, onde tenham sido reclamados, sem êxito, os créditos relativos ao imposto cuja dedução o sujeito passivo pretende.

 

*

b)

Assentes os pressupostos materiais do direito que a Requerente pretende fazer valer, cumpre apurar se a prova daqueles tem de ser imperativamente feita por meio de certidão judicial, ou se pode ser feita por outros meios.

Como se sabe, a sentença, por força da Lei (cfr. artigo 153.º do Código de Processo Civil) assume, obrigatoriamente a forma escrita, sendo um documento autêntico, porque elaborado por uma autoridade pública, no exercício das suas funções (cfr. artigos 363.º/1 e 2 e 369.º do Código Civil).

Ora, nos termos do artigo 364.º do Código Civil um documento escrito, para efeitos de prova, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.

Daí que existência de uma sentença apenas possa ser provada pelo original, ou por certidão (cfr. artigo 383.º do Código Civil).

Não obstante, como se escreveu no Acórdão do STJ de 16-12-1988, proferido no processo 072358, haverá que distinguir os efeitos próprios da sentença enquanto acto jurisdicional, dos efeitos probatórios da mesma, tendo-se ali escrito que “a sentença (...) faz prova plena dos factos que o artigo 371 do Código Civil (...) atribui aos documentos autênticos, isto é, dos factos que refere como praticados pelo juiz, assim como daqueles que nela forem atestados com base nas suas percepções pessoais.”, e que “Para além desta prova plena, a sentença (...) tem ainda o efeito probatório dos factos que nela se constatam, podendo ser invocada em processo pendente em tribunal português como simples meio de prova desses factos, ainda que essa prova possa ser contrariada pela parte contrária, e cujo valor probatório será livremente apreciado pelo julgador.”.

            Deste modo, julga-se que para efeitos de prova da existência de sentença proferida em processo de insolvência, declarando esta, será suficiente qualquer documento que evidencie a sua existência e sentido, sendo o respectivo valor probatório livremente apreciado pelo julgador.

            No que diz respeito à verificação do caso julgado, escreveu-se no Acórdão do STJ de 09-07-2003, proferido no processo 04A061 que:

“O trânsito em julgado forma-se sobre uma concreta decisão, é esta que transita, não o documento que certifica ter ocorrido o trânsito.

Por outro lado, uma decisão não transita em julgado pelo facto de um documento o afirmar - há que distinguir a realidade do trânsito daquilo que efectivamente é certificado. Não pode, nem a lei lho consente, sobrepor-se o funcionário ao órgão judicial nem substituir-se-lhe.”

Deste modo, o trânsito em julgado é um facto jurídico que poderá, também ele ser provado por qualquer meio de prova, sujeito a livre apreciação do julgador, sendo que, naturalmente, o meio de prova mais corrente será a certidão emitida pelo respectivo tribunal.

Por fim, e no que diz respeito à prova de que o crédito foi reclamado e não obteve satisfação no processo de insolvência, tendo em conta a inexistência de qualquer norma legal que limite a liberdade probatória, poderá ser efectuada por qualquer meio, sendo que novamente, o meio de prova mais corrente e seguro será a certidão emitida pelo respectivo tribunal onde decorreram aqueles factos.

            Deste modo, julga-se não assistir razão à AT quanto à recusa dos restantes meios probatórios apresentados pela Requerente, para lá das certidões judiciais, para prova dos pressupostos do direito à dedução que pretendeu exercer.

 

*

c)

Relativamente à questão de saber se os meios de prova dos pressupostos do direito à dedução de imposto respeitante a créditos incobráveis tenham de estar na posse do sujeito passivo, no momento do exercício de tal direito, face ao quanto atrás se adiantou, conclui-se que carece de fundamento a referida exigência feita pela AT.

Tal entendimento não só não tem qualquer amparo no regime legal em questão, nem na respectiva ratio legis, como vai, igualmente, em contraciclo do que tem sido a jurisprudência do TJUE em matéria de IVA, destacando-se, a este respeito, o Acórdão Barlis[2].

Deste modo e pelo exposto, o relevante será a verificação dos pressupostos substanciais direito à dedução de imposto respeitante a créditos incobráveis, podendo o sujeito passivo exercer o seu esforço probatório em qualquer altura ou sede em que se discuta tal direito.

 

*

Aqui chegados, conclui-se então que a Requerente, em ordem a legitimar o exercício do direito à dedução de imposto respeitante a créditos incobráveis ora em causa, estava onerada com a demonstração, relativamente a cada um deles, de que a cobrança dos mesmos em processo de insolvência na qual esta foi decretada, não foi possível, podendo efectuar tal demonstração em qualquer momento, ou seja, não sendo necessário que os meios de prova evidenciadores daqueles pressupostos estivessem já na sua posse, aquando do exercício do referido direito.

Compulsada a matéria de facto dada como provada, verifica-se que a Requerente logrou demonstrar os referidos pressupostos relativamente aos devedores B..., F…, G…, C..., e H…, no valor total de imposto de € 206.284,24.

Assim, relativamente a tais créditos, enfermarão as liquidações objecto da presente acção arbitral de erro nos pressupostos de facto, e consequente erro de direito, e deverão, nessa medida, ser anuladas, procedendo, em igual medida, o pedido arbitral.

Relativamente aos restantes devedores, não se apura que os créditos da Requerente hajam sido reclamados nos respectivos processos de insolvência e aí não tenham obtido pagamento, e como tal, que sejam créditos “incobráveis em processo de insolvência”, pelo que não poderá, nessa parte, proceder o pedido arbitral.

 

***

 

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar parcialmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

  1. Anular as liquidações objecto da presente acção arbitral na medida em que incorporam correcções relativas à rejeição da dedução de créditos incobráveis em processo de insolvência da Requerente sobre os devedores B B..., F…, G…, C..., e H…, no valor total de imposto de € 206.284,24, e respectivos juros compensatórios e moratórios;
  2. Manter as liquidações objecto da presente acção arbitral na restante parte.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 262.300,68, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Notifique-se.

 

Lisboa

 

17 de Setembro de 2018

 

O Árbitro Presidente

 

 

(José Pedro Carvalho)

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Joaquim Silvério Dias Mateus)

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(António Carlos dos Santos)

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.

[2] Onde se pode ler que “O artigo 178.°, alínea a), da Diretiva 2006/112 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades tributárias nacionais possam recusar o direito a dedução do imposto sobre o valor acrescentado pelo simples facto de o sujeito passivo possuir uma fatura que não cumpre os requisitos exigidos pelo artigo 226.°, n.ºs 6 e 7, desta diretiva, quando essas autoridades dispõem de todas as informações necessárias para verificar se os requisitos substantivos relativos ao exercício desse direito se encontram satisfeitos.”. Não sendo o presente um caso de aplicação directa do acórdão referido, crê-se, todavia, que aquele enuncia um princípio geral em matéria de IVA, segundo o qual os requisitos formais, em sede de IVA, estão subordinados às suas finalidades substanciais.