Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 244/2019-T
Data da decisão: 2020-09-25  IRC  
Valor do pedido: € 764.502,58
Tema: IRC - Derramas; Grupo económico; Cômputo; Objecto do processo arbitral tributário; Vícios próprios da RG.
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SUMÁRIO:

I.             O processo arbitral tributário tem por objecto os actos elencados no art.º 2.º, número 1, do RJAT;

II.            Os vícios próprios do procedimento e decisão de reclamação graciosa não são arbitráveis.

III.          Nos termos dos artigos 87.º-A, n.ºs 3 e 4 do CIRC aplicável e 18.º, n.º 16, da Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro, na redacção dada pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, as derramas estadual e municipal têm por base os lucros tributáveis individuais das sociedades que integram um grupo económico sujeito ao RETGS, calculados sem a aplicação das normas próprias de tal regime, nos termos do disposto no art.º 120.º/6/b) do mesmo CIRC, o que preclude a aplicação, para esses efeitos, das regras constantes do art.º 67.º/5 do mesmo Código.

 

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), José Almeida Fernandes e Manuel Pires, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 02 de Abril de 2019, A..., LDA., NIPC..., com sede na Rua ..., n.º..., ..., ...-... ..., ..., apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando, a anulação parcial do acto de autoliquidação de IRC n.º 2018..., referente ao exercício de 2017, no valor de €764.502,58, na medida em que foram liquidadas em excesso derrama estadual e derrama municipal pela B..., S.A. e pela C... Unipessoal, Lda, sociedades que integram o grupo da Requerente, bem como do acto de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018... que teve aquele acto tributário como objecto.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:

i.             violação do princípio da protecção da confiança e da boa-fé, uma vez que a posição defendida pela AT na decisão de indeferimento da reclamação graciosa contraria o entendimento que lhe havia sido transmitido pela Unidade dos Grandes Contribuintes e que levou à restituição dos montantes de derrama estadual e municipal dos anos de 2015 e 2016;

ii.            violação do princípio da legalidade fiscal, já que, em seu entender, o manual de preenchimento altera as normas relativas à aplicação dos limites à dedutibilidade de gastos de financiamento líquidos, interferindo na norma de incidência do imposto, matéria que é de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República;

iii.           erro na interpretação e aplicação do n.º 5 do artigo 67.º do CIRC.

 

3.            No dia 04-04-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente procedeu à indicação de árbitro, tendo indicado o Exm.º Sr. Dr. José Almeida Fernandes, nos termos do artigo 11.º n.º 2 do RJAT. Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, a Requerida indicou como árbitro o Exm.º Sr. Prof. Doutor Manuel Pires.

 

5.            Os árbitros indicados pelas partes foram nomeados e aceitaram os respectivos encargos.

 

6.            Na sequência de requerimento apresentado pelos árbitros designados pelas partes para que o árbitro-presidente fosse designado pelo Conselho Deontológico, foi designado árbitro-presidente nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro e do artigo 5.º do Regulamento de Selecção e de Designação de Árbitros em Matéria Tributária, o ora Relator, que, no prazo aplicável, também aceitou o encargo.

 

7.            Em 18-06-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

8.            Em conformidade com o preceituado no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral Colectivo foi constituído em 08-07-2019.

 

9.            No dia 26-09-2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

10.          No dia 28-11-2019, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, reunião que continuou no dia 11-02-2020 e onde foram inquiridas as testemunhas arroladas nos autos.

 

11.          Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

12.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos legais.

 

13.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            A Requerente exerce a actividade com o CAE 74900 – “Outras Atividades Consultoria. Científicas, Técnicas e Similares”.

2-            No período de tributação de 2017, a Requerente era a sociedade dominante de um grupo económico sujeito ao Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades.

3-            Em 2017, o grupo de sociedades de que a Requerente era sociedade dominante era constituído pelas seguintes sociedades:

a)            B..., S.A;

b)           C..., Lda;

c)            D..., Lda;

d)           E..., S.A.:

e)           F..., Lda;

f)            G..., Lda;

g)            H..., S.A.;

h)           I..., S.A.;

i)             J..., S.A.;

j)             K..., S.A;

k)            L..., S.A.;

l)             M..., Lda;

m)          N..., Lda.;

n)           O..., Lda;

o)           P..., S.A.;

p)           Q..., Lda;

q)           R... Lda;

r)            S... Unipessoal, Lda.;

s)            T..., Unipessoal, Lda;

t)            U..., Unipessoal, Lda;

u)           V..., Unipessoal, Lda;

v)            W..., Unipessoal, Lda.

4-            A Requerente exerceu a opção, prevista no artigo 67.º, n.º 5 do Código do IRC – opção pela limitação à dedutibilidade dos gastos de financiamento líquidas para o grupo, com início em 01-01-2014.

5-            Por referência ao exercício de 2017, as sociedades dominadas, individualmente consideradas, efectuaram, para efeitos de determinação do lucro tributável, o acréscimo ao resultado líquido do exercício dos gastos de financiamento não passíveis de ser dedutíveis nos termos indicados no artigo 67.º do CIRC, como se o RETGS não fosse aplicável.

6-            Em 29-06-2018, a Requerente enquanto sociedade dominante do Grupo X..., entregou a declaração de rendimentos modelo 22 de IRC, referente aos rendimentos obtidos por referência ao ano de 2017.

7-            A Requerente inscreveu no campo 395 do Quadro 09 – “Apuramento da Matéria Coletável”, o montante de €11.137.358,93, equivalente à diferença entre os gastos de financiamento líquidos individualmente acrescidos (€30.700.062,84) e os gastos de financiamento líquidos não dedutíveis apurados pelo grupo (€19.562.703,91).

8-            Antes da submissão da Declaração Modelo 22 do grupo, a Requerente já havia submetido a sua declaração Modelo 22 de IRC individual, na qual acresceu o montante de €13.308.743,68, relativos a gastos de financiamento não dedutíveis, no campo 748 do quadro 07.

9-            As sociedades B... e C... submeteram as correspondentes declarações Modelo 22 individuais, tendo acrescido no campo 748, os montantes de € 4.379.295,33 e € 12.912.023,83, respectivamente, resultantes da limitação à dedutibilidade dos gastos de financiamento.

10-         Por força da entrega das referidas declarações Modelo 22, a Requerente autoliquidou os seguintes montantes:

•             Derrama municipal no montante de €198.436,24, por força dos resultados individuais da B... e da C...;

•             Derrama estadual no montante de €566.066,34, por força do resultado individual da C... .

11-         No seguimento da entrega da declaração modelo 22 do grupo, em 29-05-2018, foi emitida a liquidação n.º 2018..., de 30-07-2018, na qual se apurou um montante total a pagar de € 3.264.515,74.

12-         A Requerente procedeu ao pagamento do referido montante.

13-         Em 25-10-2018, a Requerente apresentou reclamação graciosa n.º ...2018... da autoliquidação de IRC n.º 2018..., relativa ao exercício de 2017, visando a sua anulação parcial. 

14-         Em 02-01-2019, foi a Requerente notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

15-         Da decisão de indeferimento da reclamação graciosa consta, além do mais, o seguinte:

“29. (…) estando em causa na situação submetida a análise um grupo que não obstante ter exercido a opção pela aplicação do n.º 5 do artigo 67.º do Código do IRC procedeu na esfera individual das empresas que o compõem à correção para efeitos de determinação dos respetivos lucros tributáveis dos gastos de financiamento não dedutíveis, acrescendo-os aos resultados líquidos do exercício, mediante inscrição no campo 748 do quadro 07 das correspondentes declarações modelo 22, foi entendido por aquela Direção de Serviços [do IRC] não ter havido qualquer pagamento em excesso a título de derrama municipal e derrama estadual. (…)

Assim sendo,

31. O regime da restrição à dedutibilidade de gastos de financiamento não interfere no cálculo das derramas, quer da estadual, quer da municipal, já que ambas incidem sobre o lucro tributável individual de cada uma das sociedades do grupo, conforme preconizam, respetivamente, o n.º 3 do artigo 87.º-A do Código do IRC e o n.º 14 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro.”

16-         Situação semelhante àquela que está em causa no presente pedido de pronúncia arbitral já havia ocorrido aquando da autoliquidação do IRC de 2015, tendo a B... – na qualidade de sociedade dominante do grupo – apresentado, relativamente à derrama estadual e à derrama municipal, reclamação graciosa por erro na autoliquidação.

17-         Em despacho de 5 de Julho de 2018, do Chefe de Divisão de Serviço Central da UGC foi proferido despacho de deferimento total da referida reclamação graciosa.

18-         Em relação ao resultado fiscal do exercício de 2016, a Requerente obteve a restituição do montante da derrama estadual e da derrama municipal pagas em excesso, por via da apresentação de uma declaração de substituição.

19-         Após a submissão da reclamação graciosa relativa ao ano de 2015 e da declaração de substituição de 2016, a Requerente informou a Unidade dos Grandes Contribuintes das alterações efectuadas, através de e-mail datado de 15-05-2018.

20-         Em 27 de Setembro de 2018, foi reembolsado à Requerente o excesso de Derramas estadual e municipal relativas ao período de tributação de 2016, na sequência da entrega das declarações de substituição efetuada em 9 de Maio de 2018.

21-         Não se conformando com a decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018..., a Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral.

22-         Em data não posterior a 9 de Maio de 2018, teve lugar, no âmbito da inspecção ao período de tributação de 2014 do Grupo dominado pela Requerente, uma reunião entre as testemunhas Y..., contabilista certificada, Directora Financeira da Requerente e responsável pela área fiscal do grupo de sociedades por esta dominado, e. Z..., inspectora tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes.

23-         Entre outros assuntos, discutiu-se na referida reunião a interpretação e forma de aplicação do n.º 5 do artigo 67.º do Código do IRC, tendo a testemunha Z... notado que na declaração periódica de rendimentos Modelo 22 do Grupo por si dominado, relativa ao período inspecionado, a Requerente adoptara um procedimento desconforme com o preconizado no Manual de Preenchimento do Quadro 07 da Declaração de Rendimentos Modelo 22 elaborado pela AT, para o exercício em questão, o que determinou o apuramento de um valor de Derrama estadual e municipal superior ao que resultaria do emprego do procedimento enunciado no dito Manual de Preenchimento.

24-         A testemunha Z... referiu também, nessa reunião, que uma vez que a UGC se encontrava vinculada às instruções constantes do Manual de Preenchimento, efectuaria as correções a favor do contribuinte resultantes da aplicação do procedimento veiculado pelos mesmos.

25-         Em 9 de Maio de 2018, a Requerente dirigiu à testemunha Z...– que acusou a respectiva receção em 15 de Maio de 2018 – uma mensagem de correio electrónico informando que, na sequência da referida reunião, havia procedido à submissão de declarações de rendimentos Modelo 22 de substituição de algumas sociedades a título individual (já expurgadas dos ajustamentos relativos à limitação da dedutibilidade dos gastos de financiamento líquidos, os quais, segundo o Manual de Preenchimento, não eram devidos) e do próprio Grupo, relativamente ao período de tributação de 2016.

26-         Em 16 de Maio de 2018, também na sequência da referida reunião, a Requerente apresentou reclamação graciosa por erro na autoliquidação das Derramas estadual e municipal relativamente ao período de tributação de 2015.

27-         Por prudência, e não por considerar tratar-se do procedimento mais correcto, a Requerente optou por seguir o procedimento adoptado nos anos anteriores, quando procedeu em 29 de Junho de 2018 à entrega da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC do Grupo por si dominado, relativamente ao período de tributação de 2017.

28-         No período que compreende os exercícios de 2015 a 2017 não houve qualquer divulgação ou aviso aos sujeitos passivos de qualquer alteração do entendimento da AT quanto à interpretação e modo de aplicação do n.º 5 do artigo 67.º do Código do IRC.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos alegados que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Em especial, os factos constantes dos pontos 22 a 27, resultam, tal como dados como provados, dos depoimentos das testemunhas, produzidos em sede da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

 

                Conforme se expôs já, a Requerente apresenta a decidir nos autos as seguintes questões:

i.             violação do princípio da protecção da confiança e da boa-fé, uma vez que a posição defendida pela AT na decisão de indeferimento da reclamação graciosa contraria o entendimento que lhe havia sido transmitido pela Unidade dos Grandes Contribuintes e que levou à restituição dos montantes de derrama estadual e municipal dos anos de 2015 e 2016;

ii.            violação do princípio da legalidade fiscal, já que, em seu entender, o manual de preenchimento altera as normas relativas à aplicação dos limites à dedutibilidade de gastos de financiamento líquidos, interferindo na norma de incidência do imposto, matéria que é de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República;

iii.           erro na interpretação e aplicação do n.º 5 do artigo 67.º do CIRC.

Vejamos.

 

***

No seu Requerimento inicial, a Requerente formula o pedido de “anulação da Decisão de Indeferimento com a consequente restituição da derrama estadual e da derrama municipal autoliquidadas em excesso, no montante de € 764.502,58 acrescido de juros indemnizatórios nos termos do disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT,”, não fazendo referência expressa à pretensão de anulação do acto de autoliquidação.

                Ora, como explica Carla Castelo Trindade , “Esta é a primeira questão que deve ficar clara: o objecto do processo arbitral é o acto de liquidação (...)”.

Prosseguindo com a mesma Autora, conclui-se que “os actos de segundo ou terceiro grau poderão sempre ser arbitráveis, na medida em que comportem, e só nessa medida, eles próprios, a (i)legalidade dos actos de liquidação em causa”.

Deste modo a competência dos tribunais arbitrais tributários, tal como delimitada pelo RJAT, está limitada à apreciação dos actos elencados no art.º 2.º, n.º 1, daquele diploma, norma que toma como objecto da competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária, os actos primários (“actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”), sendo os actos secundários unicamente relevantes como elementos proporcionadores da tempestividade da pretensão impugnatória, como resulta do artigo 10.º, n.º  1, al. a) daquele Regime, onde se impõe que os pedidos de constituição de tribunal arbitral sejam apresentados no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.º 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

Daí que, em primeira linha, se esteja no processo arbitral tributário a sindicar a legalidade dos actos elencados no referido n.º 1 do art.º 2.º do RJAT (objecto directo da competência dos tribunais arbitrais), sendo a (i)legalidade doa actos tributários de segundo e terceiro graus – cuja função principal no processo arbitral tributário é a de garantir a tempestividade da impugnação arbitral do acto primário – meramente reflexa ou derivada da (i)legalidade daquele.

Assim, no processo arbitral tributário, os pedidos anulatórios dos actos de segundo e terceiro graus não constituirão pedidos autónomos, não concorrendo, por exemplo, para o cômputo do valor da causa, mas meros pedidos acessórios (idênticos ao pedido de reembolso do imposto indevidamente pago, ou ao da atribuição de juros indemnizatórios), por constituírem um efeito necessário e automático da decisão anulatória, por força do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do art.º 24.º RJAT.

A propósito do tema em análise, exarou-se, cristalinamente, na decisão do processo arbitral 336/2018-T do CAAD , que (sublinhados nossos):

“5. Lembremos que, em rigor, a jurisdição arbitral só tem competência material para apreciar a ilegalidade da liquidação, não os vícios do indeferimento de reclamações e recursos.

6. Em contrapartida, não se impõe que a via arbitral deva ser a primeira forma de reacção à ilegalidade de uma liquidação, excluindo a via administrativa; e, pelo contrário, a via arbitral configura-se como um meio adequado de reacção ao esgotamento da via administrativa, num plano paralelo ao da via jurisdicional de reacção contenciosa, que também ela assenta no esgotamento da via administrativa, pressupondo-o explicitamente.

7. Assim, ao apreciar o indeferimento de um recurso hierárquico que manteve uma liquidação cuja legalidade se contesta, o que materialmente se aprecia são os vícios da liquidação, em relação à qual aquele indeferimento se apresenta como acto de segundo (ou terceiro) grau.

8. Do que se trata é de conferir uma tutela jurisdicional efectiva aos direitos do impugnante (artigo 268.º, n.º 4 da Constituição), não a condicionando em função da primeira escolha que o impugnante tenha feito – nomeadamente, não prejudicando a impugnação da liquidação pelo facto de o impugnante ter começado pela via administrativa, reservando para mais tarde o recurso à via arbitral, para a hipótese de insucesso na via administrativa – como faria com o recurso à via jurisdicional.

9. O facto de tanto a reclamação graciosa como o recurso hierárquico terem por objecto a liquidação impugnada é que lhes confere o carácter de actos de segundo grau, face ao acto primário da liquidação.

10. E por isso a reacção aos actos de segundo grau implica que é o acto primário que se pretende impugnar ainda – quando isso não seja porventura explicitado na própria reacção.

11. E, inversamente, a reacção ao acto primário, na sequência dos actos de segundo (ou terceiro) grau, implica que estes são igualmente visados e devem ser removidos da ordem jurídica porque os vícios do acto primário, por eles confirmados, os “contaminam” – mesmo quando isso não seja porventura explicitado naquela reacção.

12. Daí que uma interpretação favorável ao acesso ao Direito (artigo 7.º do CPTA) e à tutela jurisdicional efectiva (artigo 268.º, n.º 4 da Constituição) – favorável, portanto, à apreciação do mérito das questões e não enredada em formalismos procedimentais e processuais –, deva incluir o indeferimento expresso de uma reclamação graciosa ou de um recurso hierárquico no objecto do processo, como expressão de uma reacção tempestiva à ilegalidade do acto primário.

13. Entender de outro modo seria forçar o impugnante a uma opção exclusiva entre a via administrativa e a via arbitral, dentro do prazo para a impugnação da liquidação; mas isso contende com a arquitectura básica que presidiu ao estabelecimento da via arbitral em sede tributária – que em parte nenhuma coloca, como condição de acesso, a inexistência de uma via administrativa precedente, ou mais especificamente a inexistência de actos confirmativos que tivessem mantido, na ordem jurídica, do acto primário.

14. Mais ainda, na medida em que os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD só têem competência para apreciar a legalidade de actos de liquidação, e não de decisões de indeferimento de recursos hierárquicos ou de reclamações graciosas, poderíamos chegar à conclusão de que, tendo havido impugnação administrativa de actos de liquidação, e ultrapassando-se com isso o prazo de impugnação directa da liquidação, a via arbitral estaria vedada – não fosse o caso de o artigo 10.º, n.º 1, a) do RJAT explicitar, pelo contrário, que a notificação da decisão de indeferimento na via administrativa serve como termo inicial, afastando, assim, um tal entendimento.

15. O artigo 10.º do RJAT não confere, pois, aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a competência para apreciação directa dos actos de segundo (ou terceiro) grau; é uma norma que, referindo embora esses actos, respeita exclusivamente ao termo inicial do prazo para apresentação do pedido de pronúncia arbitral.

16. A tempestividade afere-se, portanto, em relação a esses actos de segundo (ou terceiro) grau, embora a materialidade do litígio se reporte a uma liquidação que aqueles actos se limitaram a confirmar.”

Ora, tem sido jurisprudência recorrente dos Tribunais superiores da jurisdição administrativa e fiscal que:

- “Na interpretação das peças processuais devem observar-se os critérios impostos pelos princípios do moderno processo e bem assim pelo princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, pelo que o tribunal deve extrair da redacção dada ao pedido na petição inicial o sentido mais favorável aos interesses do peticionante, estabelecendo, ainda que com recurso à figura do pedido implícito, qual a verdadeira pretensão de tutela jurídica.” ;

- “Na interpretação das peças processuais são aplicáveis, por força do disposto no art. 295.º do CC, os princípios da interpretação das declarações negociais, valendo, por isso, aquele sentido que, segundo o disposto nos arts. 236.º, n.º 1, do CC, o declaratário normal ou razoável deva retirar das declarações escritas constantes do articulado, sendo também de observar que os rigores formalistas na interpretação das peças processuais estão hoje vedados pelos princípios do moderno processo civil e bem assim pelo princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva (cfr. art. 20.º da CRP), motivo por que o tribunal deve extrair do pedido que lhe é feito o sentido mais favorável aos interesses do peticionante, indagando da sua real pretensão.” ;

- “a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, (...) tem vindo a adoptar uma posição de grande flexibilidade na interpretação do pedido quando, em face da concreta causa de pedir invocada, se possa intuir qual a verdadeira pretensão” ;

- “Porque os rigores formalistas na interpretação das peças processuais estão hoje vedados pelos princípios do moderno processo civil e bem assim pelo princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, justifica-se alguma benevolência na interpretação da petição inicial” .

                Do quanto vem de se expor, resulta, em suma que:

                - O objecto do processo arbitral tributário é o acto incluído no elenco do art.º 2.º, número 1 do RJAT, ou seja e no caso, o acto de autoliquidação;

                - A Requerente no seu Requerimento inicial não formulou expressamente o pedido de anulação do referido acto de autoliquidação;

                - Não obstante há que fazer uma leitura do pedido à luz do princípio pro accione, apurando o sentido mais favorável aos interesses do peticionante e indagando da sua real pretensão.

Neste quadro, e em conformidade com a jurisprudência citada, interpretar-se-á o pedido formulado pela Requerente, à luz do regime legal da competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária a funcionar sob a égide do CAAD, consagrado no RJAT, como visando a anulação do acto de autoliquidação de IRC n.º 2018..., referente ao exercício de 2017, no valor de €764.502,58, na medida em que foram liquidadas em excesso derrama estadual e derrama municipal pela B..., S.A. e pela C..., Sociedade Unipessoal, Lda,, bem como do acto de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018... que teve aquele acto tributário como objecto, na medida em que reflicta a(s) ilegalidade(s) daquele.

 

***

                Na sequência     Vistas as coisas desta forma, que se julga a correcta, compreender-se-á que os vícios arguidos pela Requerente relativos à violação do princípio da protecção da confiança e da boa-fé, bem como à violação do princípio da legalidade fiscal, não são susceptíveis de enfermar o acto de autoliquidação de IRC da Requerente objecto, nos termos previamente definidos, da presente acção arbitral.

Efectivamente, estando em causa na presente acção arbitral um acto de autoliquidação, não foi o mesmo realizado pela AT, pelo que, no que ao mesmo diz respeito, não se podem configurar as violações invocados pelo Requerente, do princípio da protecção da confiança e da boa-fé, bem como do princípio da legalidade fiscal, já que o referido acto tributário não resulta de qualquer procedimento tributário encetado pela AT, nem foi da autoria desta Autoridade.

                Com efeito, não foi a AT que emitiu a autoliquidação em questão nos termos em que foi efectuada, nem foi a AT que determinou a sua emissão em tais termos.

                Foi a Requerente, de sua livre iniciativa, conforme de resto resulta dos factos dados como provados, que procedeu à autoliquidação de imposto, nos termos em que o fez.

                Daí que não se possa, em caso algum, afirmar que a autoliquidação de IRC da Requerente objecto da presente acção arbitral esteja viciada pelas arguidas violação do princípio da protecção da confiança e da boa-fé, bem como à violação do princípio da legalidade fiscal.

                Efectivamente, com efeito, não foi por qualquer interferência nem, muito menos, por força de qualquer alteração de entendimento da AT que a Requerente procedeu à autoliquidação das derramas em questão nos autos nos termos e que o fez, nem, muito menos, tal ocorreu em virtude de qualquer instrução ou documento administrativo emitido pela AT.

Assim, e tal perpassa todas as alegações da Requerente relativas a tais matérias, o que se poderia equacionar era se o acto de decisão da reclamação graciosa que teve aquele acto de autoliquidação por objecto enferma ou não de tais vícios.

Ora, sucede que a decisão da reclamação graciosa apenas integra o objecto da presente acção arbitral, nos termos previamente definidos, na parte que incide sobre a legalidade da autoliquidação de imposto que lhes serviu de objecto, e não na parte que se reporte a vícios próprios de tal acto de decisão.

                Como explica cabalmente a Autora atrás citada, corroborada pela jurisprudência arbitral transcrita, apenas os vícios próprios do acto primário de (auto)liquidação, que sejam confirmados no actos de segundo e terceiro grau, poderão, em sede arbitral, determinar a anulação destes últimos actos, concomitantemente com a anulação do acto primário.

                Deste modo, e pelo exposto, sendo o objecto da presente acção arbitral o acto de autoliquidação de IRC, e o acto de decisão da reclamação graciosa apenas e na medida em que incorpore a (i)legalidade daquele primeiro acto, não se incluindo aí, portanto, os vícios próprios de tal acto, incluindo as arguidas violação do princípio da protecção da confiança e da boa-fé, bem como do princípio da legalidade fiscal, não poderá este Tribunal pronunciar-se sobre esses vícios arguidos pela Requerente, no que diz respeito ao acto de decisão da reclamação graciosa, sob pena de incorrer em excesso de pronúncia (cfr. art.º 28.º/1/c) do RJAT ) devendo concluir-se que o acto de autoliquidação de IRC da Requerente, objecto do presente processo arbitral, não enferma daqueles vícios arguidos pela Requerente, improcedendo, por isso, o pedido arbitral nesta parte, incluindo na parte referente às arguidas inconstitucionalidades .

 

***

Como decorre do quanto se vem de expor, a única e determinante questão que se apresenta a decidir nos autos, é a de apurar se o acto de autoliquidação de IRC n.º 2018 2910383464, referente ao exercício de 2017, no valor de €764.502,58, na medida em que ali foram liquidadas derrama estadual e derrama municipal pela B..., S.A. e pela C..., Sociedade Unipessoal, Lda, sociedades que integram o grupo da Requerente, enferma do arguido vício de violação do n.º 5 do artigo 67.º do CIRC.

Em termos mais prosaicos, o que se trata de apurar no presente processo arbitral é se, face à redacção do CIRC aplicável ao facto tributário em causa, o lucro individual das sociedades indicadas, integrantes do grupo económico da Requerente, sujeito ao RETGS, deve, ou não, ser calculado tendo em consideração o disposto no n.º 5 do artigo 67.º daquele mesmo CIRC.

Com interesse para a formulação da resposta a dar a tal questão, releva, desde logo, aquela referida norma, cuja aplicação, in casu, a Requerente sustenta, e cujo teor é o seguinte:

“5 - Nos casos em que exista um grupo de sociedades sujeito ao regime especial previsto no artigo 69.º, a sociedade dominante pode optar, para efeitos da determinação do lucro tributável do grupo, pela aplicação do disposto no presente artigo aos gastos de financiamento líquidos do grupo nos seguintes termos:

a) O limite para a dedutibilidade ao lucro tributável do grupo corresponde ao valor previsto na alínea a) do n.º 1, independentemente do número de sociedades pertencentes ao grupo ou, quando superior, ao previsto na alínea b) do mesmo número, calculado com base na soma algébrica dos resultados antes de depreciações, amortizações, gastos de financiamento líquidos e impostos apurados nos termos deste artigo pelas sociedades que o compõem;

b) Os gastos de financiamento líquidos de sociedades do grupo relativos aos períodos de tributação anteriores à aplicação do regime e ainda não deduzidos apenas podem ser considerados, nos termos do n.º 2, até ao limite previsto no n.º 1 correspondente à sociedade a que respeitem, calculado individualmente;

c) A parte do limite não utilizado, a que se refere o n.º 3, por sociedades do grupo em períodos de tributação anteriores à aplicação do regime apenas pode ser acrescido nos termos daquele número ao montante máximo dedutível dos gastos de financiamento líquidos da sociedade a que respeitem, calculado individualmente;

d) Os gastos de financiamento líquidos de sociedades do grupo, bem como a parte do limite não utilizado a que se refere o n.º 3, relativos aos períodos de tributação em que seja aplicável o regime, só podem ser utilizados pelo grupo, independentemente da saída de uma ou mais sociedades do grupo.”.

                Com interesse, igualmente, para a decisão proferir, dispõe o art.º 70.º do mesmo CIRC que:

“1 - Relativamente a cada um dos períodos de tributação abrangidos pela aplicação do regime especial, o lucro tributável do grupo é calculado pela sociedade dominante, através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo, corrigido, sendo caso disso, do efeito da aplicação da opção prevista no n.º 5 do artigo 67.º.”.

                Por seu lado, o art.º 87.º-A do CIRC, na redacção em causa, prescreve que:

“3 - Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, as taxas a que se refere o n.º 1 incidem sobre o lucro tributável apurado na declaração periódica individual de cada uma das sociedades do grupo, incluindo a da sociedade dominante.

4 - Os sujeitos passivos referidos nos números anteriores devem proceder à liquidação da derrama adicional na declaração periódica de rendimentos a que se refere o artigo 120.º”.

                Dispondo, ainda, o art.º 120.º do mesmo diploma que:

“6 - Quando for aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades:

a) A sociedade dominante deve enviar a declaração periódica de rendimentos relativa ao lucro tributável do grupo apurado nos termos do artigo 70.º;

b) Cada uma das sociedades do grupo, incluindo a sociedade dominante, deve enviar a sua declaração periódica de rendimentos na qual seja determinado o imposto como se aquele regime não fosse aplicável.”.

                Por fim, o n.º 16 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro, resultante da alteração operada pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, aplicável ao exercício de 2017, refere que:

“Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, a derrama incide sobre o lucro tributável individual de cada uma das sociedades do grupo, sem prejuízo do disposto no artigo 115.º do Código do IRC.”.

 

*

                Relativamente à matéria a decidir, sustenta a Requerente, em suma, que da articulação sistemática do n.º 5 do artigo 67.º do Código do IRC com o disposto no n.º 1 do artigo 70.º e na alínea b) do n.º 6 do artigo 120.º do Código do IRC não resulta que no cálculo do lucro tributável individual de cada sociedade que integra o perímetro de um grupo sujeito ao RETGS se deva ignorar a opção de apuramento colectivo do limiar de dedutibilidade dos gastos de financiamento líquidos.

                Entende a Requerente, que contrariamente ao sustentado no despacho de indeferimento da reclamação graciosa, nada na Lei permite concluir que no cálculo do lucro tributável individual de cada sociedade que integra o perímetro de um grupo sujeito ao RETGS se deva ignorar a opção de apuramento colectivo do limiar de dedutibilidade dos gastos de financiamento líquidos.

                Mais considera a Requerente que a posição da AT, segundo a qual o cálculo dos gastos de financiamento líquidos é sempre efectuado individualmente, é incompatível com a redacção do artigo 67.º, n.º 5, al. d), do Código do IRC, da qual não consta a expressão “calculado individualmente”, como sucede com as alíneas b) e c) do mesmo preceito.

                Conclui a Requerente que é muito mais coerente e congruente com o propósito do regime de limitação da dedutibilidade dos gastos de financiamento líquidos, a interpretação perfilhada pela Requerente, segundo a qual os cálculos dos limites de dedutibilidade de gastos de financiamento líquidos, no contexto da opção conferida pelo n.º 5 do artigo 67.º do Código do IRC, são alternativos e não cumulativos, e que uma vez efetuada a opção, é o lucro tributável do grupo, e não o lucro tributável individual, que passa a ser condicionado pela limitação imposta pelo artigo 67.º do Código do IRC.

 

*

                Antes de prosseguir, deve-se notar que a linha de argumentação adoptada pela Requerente, que tem como fio condutor principal o infirmar a posição sustentada pela AT nos autos, não será a mais adequada para abordar e decidir a questão ora em apreço, na medida em que, como se aludiu já, não sendo o acto tributário primário, objecto da presente acção arbitral e cuja legalidade cumpre, em primeira linha sindicar, da autoria da AT, não incumbirá à Requerente infirmar a posição daquela Autoridade, mas demonstrar que a correcta aplicação do Direito implica a ilegalidade da autoliquidação por si efectuada.

                Posto isto, o cumpre, então apreciar, é se o que o resulta da Lei, devidamente interpretada, é, ou não, que para o cálculo das derramas estadual e municipal,  se deve proceder, no cálculo do lucro tributável individual de cada sociedade integrante de um grupo económico sujeito ao RETGS, à aplicação do disposto no n.º 5 do art.º 67.º do CIRC aplicável.

                Ora ressalvado o devido respeito a outras opiniões, e em especial ao notável esforço argumentativo encetado pela Requerente, julga-se que a resposta não pode ser outra que não a de sentido negativo.

                Com efeito, e desde logo, sempre ressalvado o muito respeito devido, julga-se que a posição propugnada pela Requerente é insustentável, desde logo porquanto conduziria a uma duplicação da aplicação do referido normativo em questão.

                Assim, se considerasse, como pretende a Requerente, que na determinação do lucro tributável individual de cada sociedade integrante de um grupo económico sujeito ao RETGS, a realizar nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 120.º/6/b) do CIRC, se procedesse à aplicação do disposto no n.º 5 do art.º 67.º do CIRC, tal norma voltaria a ser aplicada aquando do cômputo do lucro tributável do grupo, ao abrigo do RETGS.

                Ou seja, e concretizando: subscrevendo-se o entendimento preconizado pela Requerente, ocorreria que, aquando da determinação do lucro tributável individual de cada sociedade integrante de um grupo económico sujeito ao RETGS, a realizar nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 120.º/6/b) do CIRC, os limites à dedutibilidade dos gastos com financiamentos fosse o que resultasse do disposto no n.º 5 do art.º 67.º do CIRC, e não o que resultaria da aplicação das normas que regulam o apuramento do lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC não abrangidos pelo RETGS.

                Posteriormente, ao calcular-se o lucro tributável do grupo sujeito ao RETGS, nos termos do art.º 70.º do CIRC, aplicar-se-ia novamente o disposto no art.º 67.º/5 do mesmo Código, por força do disposto na parte final daquele primeiro artigo, tornando este redundante e inútil.

                De resto, a menção naquele art.º 70.º aos “lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo, corrigido, sendo caso disso, do efeito da aplicação da opção prevista no n.º 5 do artigo 67.º.”, corroborará, sempre ressalvado o respeito devido a outras opiniões, o entendimento ora sufragado, indicando, justamente, que a correcção aos lucros tributáveis e prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo decorrente da aplicação da opção prevista no n.º 5 do artigo 67.º, opera em sede de aplicação daquele mesmo artigo 70.º, e não, previamente, na elaboração das declarações individuais de cada sociedade integrante do grupo.

                Daqui resultará desde logo, com clareza suficiente, julga-se, que no cômputo do lucro individual de cada sociedade integrante de um grupo sujeito ao RETGS, nos termos do art.º 120.º/6/b) do CIRC aplicável,  não se aplicam as regras constantes do art.º 67.º/5 do mesmo CIRC, norma esta que apenas será convocada, nos termos e para os efeitos do art.º 70.º do mesmo Código, aquando da determinação do lucro tributável do grupo.

                Acresce que, mesmo que assim não fosse, sempre ao mesmo resultado se chegaria por interpretação do art.º 120.º/6/b) do CIRC aplicável, já que tal norma é expressa no sentido de que na declaração periódica de rendimentos aí prevista deve ser “determinado o imposto como se aquele regime não fosse aplicável”, sendo certo que é pressuposto da aplicação do art.º 67.º/5 do CIRC em questão, a aplicabilidade do RETGS, às sociedades aí previstas, pelo que não será possível a aplicação do disposto naquela norma, respeitando a regra da determinação do “imposto como se aquele regime não fosse aplicável”.

                Dito de outro modo, às sociedades a que o RETGS não é aplicável (ou seja, nos casos em que aquele regime não é aplicável), o art.º 67.º/5 do CIRC não é aplicável, pelo que não se pode aplicar tal normativo, respeitando a imposição de determinação do “imposto como se aquele regime não fosse aplicável”.

                Assente, nos termos que vem de se expor, que no cômputo do lucro individual de cada sociedade integrante de um grupo sujeito ao RETGS, nos termos do art.º 120.º/6/b) do CIRC aplicável,  não se aplicam as regras constantes do art.º 67.º/5 do mesmo CIRC, apenas resta verificar se nos termos e para os efeitos dos artigos 87.º-A, n.ºs 3 e 4 desse mesmo CIRC, e 18.º, n.º 16, da Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro, o lucro tributável a considerar para efeitos do cálculo das respectivas derramas é o calculado nos termos daquele referido art.º 120.º/6/b) do CIRC aplicável.

                Ora, a este respeito, não se considera que possam formular-se quaisquer dúvidas razoáveis, sendo que a própria Requerente não argumenta em sentido contrário, centrando antes, como se viu, a sua argumentação no sentido de que para efeitos daquele art.º 120.º/6/b) do CIRC aplicável se deve considerar o disposto no art.º 67.º/5 do mesmo CIRC, o que, como se viu, não se pode acolher.

                De resto, o artigo 87.º-A, n.º 3 do CIRC aplicável, é expresso no sentido de que o que releva é “o lucro tributável apurado na declaração periódica individual de cada uma das sociedades do grupo”, remetendo, expressamente também, o n.º 4 do mesmo normativo para o art.º 120.ºdo mesmo diploma.

                Por seu, lado, o art.º 18.º, n.º 16, da Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro, não sendo tão expresso, é suficientemente claro no mesmo sentido, julga-se, ao referir-se ao “lucro tributável individual de cada uma das sociedades do grupo”, dado que, pelo menos por coerência sistemática, se deverá entender no único sentido possível de encontrar no contexto da legislação aplicável para a expressão “lucro tributável individual”, que será o que resulta da declaração prevista na al. b) do n.º 6 do art.º 120.º do CIRC aplicável.

                Acresce que desde a entrada em vigor do n.º 8 do art.º 14.º da Lei nº 2/2007, de 18 de Janeiro, que é pacífico que a derrama municipal é calculada com base no lucro tributável constante da declaração periódica individual de cada sociedade integrante de um grupo sujeito ao RETGS, conforme jurisprudência reiterada e constante do STA .

                Deste modo, julgando-se, nos termos expostos, que na determinação do imposto imposta pelo art.º 120.º/6/b) do CIRC aplicável, não intervém as regras previstas no art.º 67.º/5 do mesmo diploma, e que a base de incidência das derramas estadual e municipal, à data do facto tributário sub iudice, no caso de sociedades integrantes de um grupo sujeito ao RETGS, é a que resulta do imposto apurado nos termos daquele referido art.º 120.º/6/b), haverá que concluir que o acto tributário objecto da presente acção arbitral não enferma da arguida violação do n.º 5 do artigo 67.º do CIRC à data vigente, ou de qualquer outra ilegalidade que cumpra, in casu, a este Tribunal arbitral conhecer, pelo que deverá o pedido arbitral improceder.

 

***

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência, absolver a Requerida do pedido, mantendo-se na ordem jurídica o acto de autoliquidação de IRC n.º 2018..., referente ao exercício de 2017, no valor de €764.502,58, bem como do acto de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018... que teve aquele primeiro acto tributário como objecto

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 764.502,58, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e dos n.ºs 2 e 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 25 de Setembro de 2020

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(José de Almeida Fernandes)

(Vencido conforme declaração anexa)

 

O Árbitro Vogal

(Manuel Pires)

 

 

Declaração de Voto

 

Votei vencido a decisão arbitral, discordando da posição que logrou vencimento, pelos fundamentos que exponho em seguida.

Primeiro, na esteira da lição do Juiz-Conselheiro Jorge Lopes e do que entendo ser a jurisprudência arbitral maioritária e a jurisprudência dos tribunais superiores, nos tribunais arbitrais «a competência estende-se também a atos de segundo e terceiro graus que apreciem a legalidade desses atos primários, designadamente atos de indeferimento de reclamações graciosas» . Aliás, em linha com o propósito expresso do legislador de que «o processo arbitral deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial».

Assim, «nos casos em que o ato de segundo grau ou de terceiro grau conhece da legalidade do ato de liquidação, o indeferimento da reclamação (…) que confirme aquele acto faz suas as respectivas ilegalidades, pelo que da apreciação da legalidade do ato de segundo grau ou de terceiro grau decorre a ilegalidade do ato de liquidação» .

Mais a mais, quando estamos precisamente no caso sub judice perante uma reclamação graciosa por erro na autoliquidação  em que «o objeto imediato do processo impugnatório é, em regra, o ato de segundo grau que aprecia a legalidade do ato de liquidação, ato aquele que, se o confirma, tem de ser anulado, para se obter a declaração de ilegalidade do ato de liquidação ».

Ora, os tribunais superiores já se pronunciaram reiteradamente no sentido de que a «inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos actos aí indicados é efectuada através da declaração de ilegalidade de actos de segundo grau, que são o objecto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. Com efeito, relativamente a estes actos é imposta, como regra, a reclamação graciosa necessária, nos arts. 131.º a 133.º do CPPT, pelo que, nestes casos, o objecto imediato do processo impugnatório é, em regra, o acto de segundo grau que aprecia a legalidade do acto de liquidação, acto aquele que, se o confirma, tem de ser anulado para se obter a declaração de ilegalidade do acto de liquidação. A referência que na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT se faz ao n.º 2 do art. 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos actos referidos na alínea a) daquele art. 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de actos de segundo grau» (negrito nosso) (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo – Sul de 27.04.2017, Proc. n.º 08599/15, o qual foi posição acolhida pelo mesmo Tribunal no Acórdão de 25.06.2019, Proc. n.º 44/18.6BCLSB e de 11.07.2019, Proc. n.º147/17.4BCLSB e ainda reafirmado mais recentemente no Acórdão de 23.12.2019, Proc. n.º 111/18.6BCLSB).

Razão pela qual, sendo inequívoco que a competência dos Tribunais Arbitrais inclui os acto de segundo grau e a declaração da ilegalidade de actos de segundo grau, não se compreende em que medida se pode considerar o Tribunal Arbitral incompetente para conhecer os vícios próprios desse actos? A invocação na posição que logrou vencimento como único e exclusiva justificação a letra da lei aludindo restritivamente aos actos elencados no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, como afirmou o Tribunal Central Administrativo-Sul, «não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei ».

Importa ainda relevar que quer a Requerente como em particular a Requerida não suscitaram a questão da (não) competência deste Tribunal Arbitral para conhecer destes vícios do acto de segundo grau nos Autos (e não lhes foi dada a possibilidade de sobre a mesma se pronunciar), pelo que parece-nos ser lícito deduzir que também para estas não existiam dúvidas de que este Tribunal podia (e devia) se pronunciar sobre a ilegalidade do acto de segundo grau invocada pela Requerente.

Acresce também que, ao contrário do que parece se indiciar na posição que logrou vencimento, a Requerente procedeu à apresentação da sua autoliquidação de IRC precisamente nos termos determinados pelas orientações genéricas emitidas pela AT à data da submissão das declarações periódicas de rendimentos constantes do “Manual de Preenchimento do Quadro 07 da Declaração de Rendimentos Modelo 22” referentes ao período de tributação de 2017 publicado pela AT apenas em 2018, o que também deve ser aqui relevado.

Razão pela qual o Tribunal Arbitral poderia (rectius deveria) conhecer também dos vícios invocados de violação dos princípios da protecção da confiança, boa fé e legalidade porque é essa alteração de entendimento da AT apenas em 2018 (facto dado como provado) consubstanciado nessas orientações genéricas que a Requerente respeitou no acto de autoliquidação que suscita a invocação dos citados vícios e, por isso, se poderiam entender serem também vícios do próprio acto de autoliquidação impugnado.

Assim, o Tribunal Arbitral ao omitir pronunciar-se sobre os citados vícios invocados pela Requerente viola as normas e princípios processuais da arbitragem tributária, pelo que discordo da posição que sobre esta questão logrou vencimento.

Segundo, não posso também concordar com a posição que logrou vencimento, a qual no seu iter cognoscitivo assenta, com o devido respeito, em dois equívocos: (i) a suposta aplicação no caso presente do disposto no artigo 120.º, n.º 6, alínea b) do Código do IRC; e (ii) a suposta “duplicação” da aplicação do disposto no artigo 67.º do Código do IRC que estaria subjacente à interpretação propugnada pela Requerente desse artigo.

                Desde logo, o artigo 120.º, n.º 6, alínea b) do Código do IRC determina que deve a declaração periódica ser apresentada «como se aquele regime [especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS)] não fosse aplicável».

Ora, o que está em discussão não é a aplicação do RETGS ou qualquer norma que decorre ou seja consequência da aplicação do RETGS. E, por isso, não se pode argumentar que este preceito - recorde-se uma mera norma sobre obrigações declarativas - obriga as sociedades a individuais a desconsiderar a aplicação da norma prevista no n.º 5 do artigo 67.º do Código do IRC porque a sua aplicação não decorre de uma opção pela aplicação do RETGS. Os regimes são distintos e não é consequência da aplicação do RETGS a aplicação da opção prevista no n.º 5 do artigo 67.º do Código do IRC.

Acresce que a alusão aos artigos 87.º-A do Código do IRC e 18.º, n.º 8 da Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro, não relevam, com o devido respeito, para a interpretação da aplicação ou não do artigo 67.º, n.º 5 do Código do IRC no apuramento do lucro tributável a nível individual porque apenas dizem respeito ao impacto da aplicação ou não do RETGS para o cálculo das derramas e não dessa opção prevista no artigo 67.º, n.º 5 do Código do IRC.

Razão pela qual se o legislador pretendesse desconsiderar essa opção prevista no Código do IRC para o cálculo das derramas então teria necessariamente de também prever de forma expressa nestes mesmos preceitos que na base de incidência das derramas municipal e estadual se devia desconsiderar expressamente a aplicação do citado artigo 67.º, n.º 5 do Código do IRC (tal como o faz para o RETGS). E não pode a AT (ou um Tribunal Arbitral) conformar a base de incidência das derramas desta forma quando o legislador não o fez.

Mais, a extensa jurisprudência dos tribunais superiores (v.g., o próprio STA ) e arbitrais sobre a discussão se a derrama municipal se aplicava sobre o lucro tributável do grupo (e não individual) - quando já estava em vigor a norma o artigo 120.º, n.º 6, alínea b) do Código do IRC - demonstram a necessidade de intervenção legislativa expressa nestes casos .

Assim, o que está em discussão no caso sub judice é apenas se a nível individual se aplica o limite previsto no artigo 67.º e para esse efeito se desconsidera por completo a opção pelo cálculo desse limite ao nível do grupo (e não individual) que o legislador introduziu, ou seja, se como a Requerida defendia (e posição que logrou vencimento) que se deve aplicar um limite para a dedutibilidade dos encargos financeiros a nível individual e depois novamente outro limite para a dedutibilidade dos encargos financeiros a nível do grupo.

A lei não estabelece no n.º 5 do artigo 67.º ou em qualquer norma do Código do IRC a dupla aplicação do limite, ou seja, a nível individual e também ao nível do grupo, bem como não existe na letra da lei nada que suporte esta conclusão ou sequer no espírito do legislador que introduziu aquela opção.

Contraditoriamente, na posição que logrou vencimento desconsidera-se por completo o que o legislador pretendeu com a introdução do n.º 5 do artigo 67.º do Código do IRC com a Reforma do IRC (Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro): reconhecer que no contexto de um grupo empresarial não faz sentido determinar a dedutibilidade dos encargos financeiros empresa a empresa, mas apenas ao nível do grupo. A opção concedida pelo legislador decorre de se reconhecer a realidade económica dos grupos e que existem empresas que prosseguem funções diferentes no seu seio por razões de eficiência económica, pelo que interpretação que imponha para efeitos tributários se desconsidere essa realidade – como a que está subjacente à posição que fez vencimento - contraria pois desde logo o próprio fundamento da norma prevista no n.º 5 do artigo 67.º do Código do IRC.

Mais, o legislador da Reforma do IRC veio precisamente, logo em 2014, corrigir a opção antes formulada na alteração legislativa introduzida em 2013 que criou originariamente o limite à dedutibilidade dos encargos financeiros, em que este limite se calculava então apenas a nível individual e em que desconsiderava a realidade dos grupos económicos. Facto que não se pode olvidar e que necessariamente esta opção clara e expressa do legislador tem de influir na interpretação do n.º 5 do artigo 67 e do artigo 70.º do Código do IRC.

Razão pela qual, a posição que obteve vencimento conduz inevitavelmente a uma “duplicação” que a lei não prevê porque obriga necessariamente a que (1) a nível individual se proceda ao cálculo do limite à dedutibilidade de encargos financeiros e se necessário acréscimo ao lucro tributável a esse nível (como aconteceu no caso sub judice); e depois (2) a nível do grupo se proceda a um novo cálculo do limite à dedutibilidade de encargos financeiros.

Ora, essa duplicação não faz sentido, não está prevista na lei e foi isso mesmo a que o legislador pretendeu obviar com a redacção constante do n.º 5 do artigo 67.º e do artigo 70.º do Código do IRC.

Razão pela qual se compreende que a própria AT tenha defendido e partilhado essa mesma interpretação e até imediatamente logo se autovinculou nos períodos de tributação de 2014 a 2017 à interpretação  de que «é a sociedade dominante que inscreve na declaração do grupo (…) o  montante não dedutível dos gastos de financiamento líquido» e que «neste caso, os gastos de financiamento líquidos que, individualmente, excedam o limite dedutível não devem ser inscritos no campo 748 do Quadro 07 de cada uma das declarações individuais ».

Aliás, a admitir-se que tem de ocorrer essa duplicação de cálculo do limite o próprio artigo 70.º do Código do IRC pode gerar uma contradição insanável no apuramento do IRC.

A norma do artigo 70.º do Código do IRC determina que o lucro tributável do grupo é calculado «através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas de rendimentos individuais» e que essa soma algébrica é corrigida pela aplicação da opção prevista no n.º 5 do artigo 67.º do Código do IRC.

Ora, se o lucro tributável/prejuízo fiscal das sociedades individuais já reflecte a aplicação do limite à dedutibilidade dos encargos (por exemplo com acréscimos ao lucro tributável como acontece no caso sub judice), a correcção depois da aplicação do limite à dedutibilidade dos encargos financeiros ao nível do grupo não pode partir dessa “soma algébrica” porque senão teríamos uma correcção sobre outra correcção (!). Aliás, esta questão é ainda mais evidente desde a alteração introduzida pela Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio, ao n.º 13 do artigo 67.º do Código do IRC: o lucro tributável do grupo para cálculo do limite à dedutibilidade dos encargos financeiros ao nível do grupo é um lucro tributável já corrigido da aplicação desse mesmo limite a nível individual? Há uma manifesta circularidade nesse cálculo que a posição que logrou vencimento suscita ao se pretender desviar do que seria a interpretação conforme ao disposto no artigo 67.º do Código do IRC, a intenção do legislador e a interpretação inicial da própria AT: o cálculo do limite à dedutibilidade de encargos financeiros deve ser apenas realizada ao nível do grupo e não a nível individual no caso em que o contribuinte exerça essa opção nos termos previstos no n.º 5 do artigo 67.º do Código do IRC.

Logo, é claro que a intenção do legislador com a introdução da opção prevista no artigo 67.º, n.º 5 do Código do IRC é que o cálculo do limite à dedução de encargos financeiros ocorra apenas ao nível do grupo e não das sociedades individuais. Aliás, só assim se compreende o disposto na alínea d) do n.º 5 do artigo 67.º do Código do IRC de que o reporte de gastos financeiros líquidos (gfl) não deduzidos e folgas apuradas é apenas efectuado pelo grupo e não pelas sociedades individuais. Na posição que obteve vencimento na presente decisão será necessário afinal depois se defender também uma interpretação abrogante dessa alínea d) do n.º 5 do artigo 67.º do Código do IRC pois existira afinal necessariamente um apuramento e reporte de gfl não deduzido e folgas apuradas a nível individual que teria de sobreviver à saída de uma sociedade do grupo para que se seja coerente a defesa da aplicação do limite a nível individual, o que naturalmente é posição que atenta face à letra da lei e à intenção do legislador não faz sentido.

Por isso, o pedido de pronúncia arbitral deveria ser julgado procedente.

 

José Almeida Fernandes