Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 402/2019-T
Data da decisão: 2020-03-05  IRS  
Valor do pedido: € 356.760,36
Tema: IRS – aplicação da cláusula geral anti abuso do artigo 38.º, n.º2 da LGT.
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Acordam os Árbitros José Poças Falcão (Árbitro Presidente), Raquel Franco e Ricardo Marques Candeias (Árbitros Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 07 de junho de 2019, A... e B... NIF ... e ..., respetivamente, (doravante Requerentes), apresentaram pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IRS n.º 2016 ... de 10/11/2016, com valor a pagar de € 356.760,36, referente ao período de tributação de 2012, bem como do indeferimento do recurso hierárquico com o número ...2017... .

 

2.            O pedido dos Requerentes baseia-se no entendimento de que não se encontram verificados os pressupostos da CGAA porquanto não houve qualquer intenção abusiva nos comportamentos adotados e em causa no processo. Na medida em que entendem que a Requerida não faz prova da natureza abusiva das operações, consideram que os atos impugnados padecem de vício de violação de lei, o que determina a respetiva anulabilidade.

 

3.            No dia 11-06-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 01-08-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 22-08-2019.

 

7.            A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta no dia 02-10-2019, tendo junto o processo administrativo. Em síntese, alega que se encontram reunidos os pressupostos da CGAA porquanto a conjugação e a forma essencialmente artificiosa com que os atos e negócios jurídicos foram celebrados e utilizados pelos requerentes expressam que o seu objetivo foi a minimização dos impostos. O requerente era administrador da Sociedade das ações que doou e voltou indiretamente a adquirir, tomando conhecimento e fazendo parte das deliberações da mesma, tendo-se, inclusive, ausentado nas circunstâncias devidas para evitar ferir de invalidade as deliberações em votação (indiretamente relacionadas com a doação ao seu cônjuge), sempre com a finalidade de minimizar os impostos a pagar.

 

8.            Através de despacho proferido a 14.10.2019, o Tribunal agendou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, assim como a inquirição de testemunhas, para o dia 29.11.2019.

 

9.            Através de requerimento datado de 15.10.2019, a Requerente veio solicitar o aproveitamento da prova testemunhal produzida no processo 177/2017-T e, subsidiariamente, caso não fosse deferido esse pedido, a realização da inquirição por videoconferência.

 

10.          Através de despacho proferido no mesmo dia, o Tribunal notificou a Requerida para, querendo, se pronunciar sobre os pedidos da Requerente.

 

11.          No dia 16.10.2019, os Requerentes vieram ainda indicar a matéria sobre a qual pretendiam que fosse produzida a prova testemunhal e requerer o aproveitamento da prova produzida no âmbito do processo 184/2017-T e apenas em caso de essa gravação não estar em condições o aproveitamento da prova produzida no âmbito do processo 177/2017-T. Caso o pedido não fosse atendido, pediram a realização da inquirição por Skype. Juntaram ainda uma decisão proferida pelo Tribunal Central Administrativo do Sul sobre matéria idêntica.

 

12.          Em 05.11.2019, os Requerentes vieram esclarecer que, caso fosse deferido o pedido de aproveitamento da prova nos termos referidos no parágrafo anterior, prescindiam da realização da inquirição das testemunhas indicadas neste processo. Indicaram ainda preferir apresentar alegações escritas.

 

13.          Em 22.11.2019, o Tribunal deferiu o pedido de aproveitamento da prova e concedeu prazo para alegações escritas, tendo ainda fixado a data para prolação da decisão arbitral no dia 30.01.2020.

 

14.          A 29.01.2020 foi proferido despacho de prorrogação do prazo para prolação da decisão por impossibilidade do relator. O prazo foi prorrogado até ao dia 21.02.2020.

 

15.          A 22.12.2019, a Requerente apresentou as suas alegações escritas.

 

16.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

A.           A C... SGPS, SA, (C..., SGPS) é uma sociedade anónima constituída em 01.07.1998 cujo objeto é a gestão de participações sociais como forma indireta do exercício da atividade económica.

 

B.            O propósito da constituição da sociedade foi o de concentrar numa única estrutura societária a detenção da participação da família ... de 44,03% do capital social da D... BV (“D...”) e por essa via garantir a indivisibilidade dessa participação familiar.

 

 

C.            Os detentores iniciais da totalidade do capital social da C... SGPS e membros do respetivo Conselho de Administração correspondiam aos membros da segunda geração da família ..., de acordo com o seguinte quadro:

 

D.           O capital social inicial de € 6.000.000,00 é representado por 1.200.000 ações, com o valor nominal de € 5,00, cada uma.

 

E.            Em 21.05.2012 ocorreu um aumento do capital social na sociedade C... SGPS, SA, no montante de € 3.000.000,00, por incorporação de prémios de emissão no valor de € 2.992.787,38 e por incorporação de reserva legal no montante de € 7.212,62.

 

F.            Após o aumento, o capital social passou de € 6.000.000,00 para € 9.000.000,00 e o valor nominal de cada ação passou de € 5,00 para € 7,50 (cf. a ata n.º 22 da Assembleia Geral da Sociedade).

 

G.           Em 12.06.2012 foi efetuado um contrato de compra e venda de todas as ações da D... (D...) pelo valor de venda de € 141.577.919,00.

 

H.           A C... SGPS, SA era detentora de uma posição acionista de 44,03%, tendo o resultado da venda da participação sido de € 61.896.457,74.

 

I.             Esse valor total foi recebido parcelarmente, da seguinte forma:

- em julho de 2012 € 54.035.836,50;

- em abril de 2013 € 3.918.317,00;

- em outubro de 2013 € 1.959.335,00;

- em abril de 2014 € 1.982.969,24.

 

J.             A 8 e 14 de junho de 2012 e a 24 de julho de 2012 a C... SGPS distribuiu dividendos, respetivamente, no valor de € 531.927,30 e de € 3.120.000,00, conforme deliberação em atas da assembleia geral.

 

K.            Em 24.10.2012, deliberou-se a redução de capital social da C... SGPS, SA, no valor de € 8.520.000,00, passando, então de € 9.000.000,00 para € 480.000,00, sendo o valor nominal da ação reduzido de € 7,10 para € 0,40 com direta atribuição aos acionistas da importância libertada, no valor de € 8.520.000,00.

 

L.            As operações societárias descritas permitiram ao Requerente marido um encaixe financeiro de montante superior a € 1.900.000,00.

 

M.          Em 02.11.2012 ocorreram as seguintes doações de ações:

- de A... a B..., 27.500 ações;

- de E... a F..., 27.500 ações;

- de G... aos filhos H... e a I... 13.750 ações a cada.

 

N.           Em 23.11.2012, reunida a assembleia geral da C... SGPS, foi deliberada a aprovação de balanço especial a 30.09.2012, bem como a aquisição de ações próprias com o número máximo de ações a adquirir de 120.000, determinando-se, ainda, que o preço de aquisição deveria corresponder ao seu valor na data da deliberação ainda que a sua aquisição se fizesse em momento posterior assim como as pessoas a quem adquirir (aí constando, entre outros, a ora Requerente).

 

O.           Da consulta à correspondência trocada entre a C... SGPS e a SROC, relacionada com a Certificação Legal do Balanço Intercalar, resulta que a encomenda deste serviço foi efetuada em data anterior a 30.11.2012 – (cf. e-mail de 2.11.2012) no âmbito do qual consta "Certificação Legal do Balanço Intercalar, reportado a 30 de setembro de 2012.

 

P.            Em 18.12.2012, foi deliberada a aquisição de ações próprias ao preço de € 43,50 (€ 52.228.152,00/1.200.000) aos acionistas J..., B..., F..., I... e K... (cf. ata nº 27 da Assembleia Geral da Sociedade).

 

Q.           Em 20.12.2012, foram adquiridas as ações próprias aos acionistas mencionados no parágrafo anterior.

R.           

S.            A sociedade C... SGPS, SA, (NIF ...) declarou na declaração modelo 4 -Aquisição e/ou alienação de Valores Mobiliários - relativa ao mês de dezembro de 2012, a aquisição de ações próprias a vários acionistas de acordo com o quadro em baixo:

 

 

T.            Entre os acionistas a quem a C... SGPS, SA, declarou ter adquirido ações está a Requerente esposa, a quem foram adquiridas, em 20.12.2012, 27.500 ações pelo montante de € 1.196.250,00.

 

U.           Em 31.05.2013, o contribuinte A..., NIF..., e sua mulher, B..., NIF..., submeteram a declaração mod. 3 de IRS referente ao ano de 2012 nº..., com os anexos A, B, G, H e J, referente ao ano de 2012, na situação de "casados", com três dependentes, de que resultou a liquidação n.º 2013... , com um valor de imposto a pagar no montante de € 29.812,59.

 

V.           Em 06.12.2015, os Requerentes procederam à entrega da declaração de substituição mod. 3 de IRS ..., acrescentando rendimentos auferidos por ambos no anexo J, referente a rendimentos da Diretiva da Poupança n.º 2003/48/CE (restantes países não abrangidos pelo período de transição), no montante de € 22.677,00 e do Requerente marido, o montante de € 20.697,00.

 

W.          Da declaração de substituição mencionada no parágrafo anterior resultou a liquidação n.º 2015... com o valor a pagar de € 41.748, 15.

 

X.            Foi desencadeada uma ação inspetiva pela DF do Porto com o n.º OI2015..., no âmbito de IRS, para o ano de 2012.

 

Y.            No âmbito da ação inspetiva foi, também, desencadeado o procedimento de aplicação de cláusula geral antiabuso (CGAA) previsto no art.º 38°, nº 2 da LGT por recurso ao procedimento do art.º 63.º do CPPT.

 

Z.            A autorização para o procedimento de aplicação da CGAA foi emitida em 18.10.2016, por Despacho de autorização pela Sr.ª Diretora Geral da AT com a seguinte fundamentação:

“A doação sucedeu após encontrar-se prevista a aquisição de ações próprias pela C... SGPS (cf. certificação Legal do Balanço Intercalar, de 30/09/2012, pelo que os doadores, à data da doação, 02/11/2012, já tinham conhecimento da intenção e decisão de que a C... SGPS viria a adquirir ações próprias.

Conclui-se, então, que propósito na doação foi o evitar a tributação, sendo tal devidamente planeado entre os três acionistas/doadores, perfeitamente conhecedores do enquadramento fiscal, nomeadamente, do disposto no n.º 1 do artigo 45° do Código do IRS, na alínea e) do artigo 6º e na alínea a) do n. 0 3 do artigo 15°, ambos do Código do Imposto do Selo; - Porque isenta de imposto de selo; - Porque não tributável em sede de IRS, uma vez que os valores pelos quais foram adquiridas as ações garantiam que, um saldo negativo, a possibilidade de reporte, pelos donatários, nos cinco anos seguintes nos termos do artigo 55, n.º 1 ai. d) do CIRS).

Pelo exposto, conclui-se que os Requerentes beneficiaram do produto da doação realizada à cônjuge, esposa, encontrando-se comprovado que o Requerente procedeu à doação das ações da C... SGPS à cônjuge com o intuito de libertar esses rendimentos da tributação que seriam alvo caso as vendesse diretamente à C... SGPS, negócio este que corresponde àquele que seria normal suceder atenta a prática habitual e os usos comerciais.

Sendo que estes rendimentos que, indubitavelmente, voltaram à disponibilidade dos Requerentes pela via da venda das participações sociais à C... SGPS.

A que acresce a possibilidade de reporte das menos valias futuras.“

AA.        Em fevereiro de 2016, os Requerentes foram notificados do Projeto de Relatório de Inspeção, através do Ofício n.º..., de 05.02.2016.

 

BB.         Os Requerentes exerceram o direito de audição em março de 2016.

 

CC.         Posteriormente, foram notificados do Relatório de Inspeção, através do Ofício n.º 2016..., de 31.10.2016.

 

DD.        O conjunto dos rendimentos líquidos dos Requerentes sujeitos a tributação passou a ascender a € 1.627.939,31.

 

EE.          Mais tarde foi emitida a liquidação n.º 2016..., com o montante a pagar de € 398.508,51.

 

FF.          No dia 19.12.2016, os Requerentes efetuaram o pagamento integral da liquidação referida no parágrafo anterior.

 

GG.        Os Requerentes apresentaram pedido de reclamação graciosa a 18.04.2017, ao qual foi atribuído o n.º ...2017... .

 

HH.        Por despacho do Diretor de Finanças do Porto, datado de 04.05.2017, foi ratificada a alteração dos elementos declarados pelos ora Requerentes.

 

II.            Perante o indeferimento tácito da reclamação graciosa, os Requerentes apresentaram Recurso Hierárquico, ao qual foi atribuído o n.º ...2017... .

 

JJ.           O recurso foi indeferido por despacho de 04.03.2019 da Senhora Sudiretora-geral para a área do IR da AT, por subdelegação.

 

A.2. Factos dados como não provados

Não ficou provado:

- que tenha sido notificado aos reclamantes o sobredito despacho do Diretor de Finanças do Porto, datado de 4-5-2017, a ratificar a alteração dos elementos declarados pelos demandantes retroagindo os seus efeitos à data do ato em causa, nos termos do art. 164.º- 3 e 5, do Código do Procedimento Administrativo (CPA),  sanando o respetivo vício.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, bem como a prova testemunhal produzida no processo n.º 75/2016-T e aqui aproveitada, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

Infra, na apreciação do direito relativamente à competência para a prática do ato sob impugnação, se abordará a questão da factualidade não provada.

 

B. DO DIREITO

 

O tema central dos presentes autos, face à matéria de facto dada como provada, consiste em saber se se encontram ou não preenchidos os requisitos de que depende a aplicação da cláusula geral anti-abuso fixada conforme o disposto no art. 38.º, 2, LGT.

Além disso, e como questão preliminar, importa também aferir, porque alegado pelos Requerentes, do vício de incompetência relativa para a prática do ato de alteração da liquidação em sede de IRS e de demonstração de acerto de contas (liquidação adicional de IRS).

 

1. Da competência para a prática do ato

 

Alegam os Requerentes que o ato em causa padece de ilegalidade, decorrente de vício de incompetência relativa, já que o mesmo foi praticado pelo chefe de divisão da Divisão de Inspeção Tributária V, da Direção de Finanças do Porto, e não pelo diretor de finanças.

Com efeito, não obstante existir ato de delegação de competências deste para aquele o certo é que, conforme despacho n.º 5619/2016, de 27 de abril, o limite da delegação é até € 1.000.000 por cada exercício. Ora, como o montante alterado foi de € 4.255.326,36, a referida competência não foi delegada ou subdelegada, mantendo-se no diretor de finanças ou, quando muito, na diretora de finanças adjunta do Porto, mas nunca no chefe de divisão.

Desta forma, na perspetiva dos Requerentes, o ato de alteração do rendimento líquido, proferido nos termos do art. 65.º, 4, CIRS, está ferido de vício de incompetência, na medida em que foi praticado por órgão ou agente que não dispunha de competência própria, delegada ou subdelegada, gerando a anulabilidade do ato nos termos do art. 163.º, 1, CPA. Por força do princípio da impugnação unitária, positivada no art. 54.º, CPPT, ocorre também a anulação da própria liquidação ora em apreciação.

Contrapõe a AT, esgrimindo a ausência de qualquer vício pois, nos termos do art. 65.º, 5, CIRS, a competência para a prática de atos de fixação de rendimentos é do diretor de finanças do Porto, que subdelegou na diretora de finanças adjunta, a qual, por sua vez, a subdelegou no chefe de divisão até ao limite de € 1.000.000. Apesar de reconhecer que a nota de fixação/alteração foi assinada pelo chefe de divisão, acrescenta que, por despacho de 04-05-2017, o diretor de finanças do Porto ratificou a referida fixação/alteração de rendimentos, retroagindo os seus efeitos à data do ato em causa, nos termos do art. 164.º, 3, 5, CPA, considerando-se, consequentemente, sanado o respetivo vício.

Vejamos.

Conforme foi dado como provado, os ora Requerentes foram notificados do Relatório de Inspeção através do Ofício n.º 2016..., de 31.10.2016.

Na sequência do referido relatório, o conjunto dos rendimentos líquidos dos requerentes sujeitos a tributação passou a ascender a € 1.627.939,31.

Mais tarde, foi emitida a liquidação n.º 2016..., com o montante a pagar de € 398.508,51, a qual foi integralmente paga.

Por despacho do Diretor de Finanças do Porto de 04.05.2017 foi ratificada a alteração dos elementos declarados pelos ora Requerentes. No entanto, não resulta provado que esse despacho de ratificação tenha sido notificado aos sujeitos passivos. Com efeito, compulsados os autos, verificamos que o referido despacho de ratificação não se encontra integrado no PA apresentado pela Requerida. Era à AT que competia demonstrar que os SP tinham sido notificados dessa decisão, não o tendo feito.

Positiva o art. 65.º, 5, CIRS que "A competência para a prática dos atos de apuramento, fixação ou alteração referidos no presente artigo é exercida pelo diretor de finanças em cuja área se situe o domicílio fiscal dos sujeitos passivos, podendo ser delegada noutros funcionários sempre que o elevado número daqueles o justifique."

Conforme resulta da decisão arbitral 188/2017-T, em caso semelhante ao ora em apreciação, "assim, aquele ato de alteração do rendimento líquido está ferido de vício de incompetência relativa em razão da hierarquia, na medida em que foi praticado por órgão ou agente que não dispunha de competência própria, delegada ou subdelegada para a sua prolação.

Como ensina Marcello Caetano, in “Manual de Direito Administrativo”, 10.ª ed. Almedina. Coimbra, 1999, v. II, pp. 499, ss., “Diz-se incompetência a ilegalidade resultante da prática por um órgão ou agente administrativo de acto que ele não tinha o poder legal de praticar no caso dessa ilegalidade não constituir usurpação de poder”.

Para Diogo Freitas do Amaral, in “Direito Administrativo”, Lições aos alunos do curso de Direito, em 1988/89, v. III, p. 298, ss., a incompetência pode ser definida como “O vício que consiste na prática, por um órgão da Administração, de um acto incluído nas atribuições ou na competência de outro órgão da Administração”, sendo relativa quando “um órgão de uma pessoa colectiva pública pratica um acto que está fora da sua competência, mas que pertence à competência de outro órgão da mesma pessoa colectiva” e em razão da hierarquia quando “se invadem os poderes conferidos a outro órgão em função do grau hierárquico, nomeadamente quando o subalterno invade a competência do superior, ou quando o superior invade a competência própria ou exclusiva do subalterno”.

A incompetência relativa gera a anulabilidade do ato por ela viciado, cfr. art. 163.º, 1, CPA, que refere: “São anuláveis os atos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra sanção”. Gerando também, por arrastamento e extensão, a consequente anulabilidade da própria liquidação impugnada, por força do princípio da impugnação unitária prevista no artigo 54.º do CPPT."

Tendo em vista a sanação do referido ato de alteração do rendimento líquido foi apresentado pela Requerida um documento intitulado “Despacho de Ratificação”, datado de 04-05-2017.

A ratificação é o acto administrativo pelo qual o órgão competente decide sanar um acto inválido anteriormente praticado, suprindo a ilegalidade que o vicia, sendo que o ato de ratificação-sanação substitui o acto sanado na ordem jurídica e determina a perda de objecto da ação que contra ele tenha sido interposta.

Questão é, porém, que tal ato ratificativo, como qualquer outro ato administrativo, seja notificado ao seu destinatário sob pena de ineficácia.

Como já referimos, verificamos que o referido despacho de ratificação não se encontra integrado no PA apresentado pela Requerida nem resulta demonstrado que foi dado a conhecer aos requerentes.

Determina o art. 77.º, 1, LGT que "A fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo." E, continua o n.º 6 do citado artigo, que "a eficácia da decisão depende da notificação".

Por sua vez, prescreve o art. 36.º, CPPT, que " 1 – Os actos em matéria tributária que afectem os direitos e interesses legítimos dos contribuintes só produzem efeitos em relação a estes quando lhes sejam validamente notificados. 2 – As notificações conterão sempre a decisão, os seus fundamentos e meios de defesa e prazo para reagir contra o acto notificado, bem como a indicação da entidade que o praticou e se o fez no uso de delegação ou subdelegação de competências. 3 – Constitui notificação o recebimento pelo interessado de cópia de acta ou assento do acto a que assista.

A concluir o enquadramento normativo importa ainda considerar o art. 66, 1, CIRS, que prescreve que "os atos de fixação ou alteração previstos no artigo 65.º são sempre notificados aos sujeitos passivos, com a respetiva fundamentação.".

Ora, considerando a matéria dada como provada, nomeadamente, da ausência de prova, que recai sobre a AT, da notificação do despacho do Diretor de Finanças do Porto, de 04.05.2017, que ratificava a alteração dos elementos declarados aos ora Requerentes, só nos resta concluir que o referido ato é ineficaz, pelo que os atos de liquidação são, consequentemente, atos praticados sem competência, o que gera a anulabilidade de ambos.

Face ao exposto, dando-se como procedente o invocado vício de incompetência relativa invocado, prejudicada fica a pronúncia acerca do mérito da questão.

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a. Declarar a invalidade originária do sobredito ato de alteração, proferido pelo chefe de divisão da Divisão de Inspeção Tributária V, da Direção de Finanças do Porto, decorrente de vício de incompetência relativa, face ao disposto no art. 163.º, CPA;

b. Declarar a anulação dos efeitos lesivos produzidos pelo ato de alteração no período que precedeu a prolação do despacho de ratificação, por ineficaz, nos termos dos arts. 77.º, 6, LGT, 66.º, 1, CIRS, 36.º, 1, e 160.º, ambos do CPPT;

c. Julgar totalmente procedente o pedido de anulação do ato tributário de demonstração de liquidação de IRS e do de demonstração de acerto de contas (Liquidação adicional de IRS) e, consequentemente, declarar a ilegalidade da decisão de indeferimento do recurso hierárquico proferido na sequência do indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada, por vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito e anular as liquidações impugnadas, com as devidas consequências legais;

d. Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida a reembolsar as quantias indevidamente pagas pelos Requerentes, no montante global de 398.508,51 €, e juros indemnizatórios contados à taxa legal em vigor, sobre a referida quantia, desde a data do pagamento (20-12-2016) até à data do processamento da respetiva nota de crédito;

e. Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo, no montante de € 6 120,00.

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 356.760,36 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 6.120,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Autoridade Tributária e Aduaneira, uma vez que o pedido foi considerado totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 5 de março de 2020

 

O Árbitro Presidente

(José Poças Falcão)

 

O Árbitro Vogal

(Raquel Franco)

 

O Árbitro Vogal

(Ricardo Marques Candeias