Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 11/2013-T
Data da decisão: 2013-09-10  IRC  
Valor do pedido: € 187.790,72
Tema: Derrama; RETGS
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Processo n.º: 11/2013-T

 

I)RELATÓRIO:

 

…, SGPS, S.A., NIPC …, doravante designada por Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1 a), 3º nº 1 e 10º nºs 1 e 2, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando:

(i)   a declaração de ilegalidade das autoliquidações de derrama municipal do grupo fiscal … relativas aos exercícios de 2010 e 2011, nos montantes de, respetivamente, € 91.739,89 e € 96.050,83 com a sua consequente anulação, por violação das disposições legais atinentes à base de incidência da derrama municipal num contexto de aplicação do regime especial de tributação dos grupos de sociedades;

(ii)  o reembolso das quantias indevidamente autoliquidadas e pagas; e

(iii)                o pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde 09 de setembro de 2011 e 31 de maio de 2012, respetivamente, até integral reembolso.

A Requerente fundamenta o seu pedido alegando, em síntese, o seguinte:

a)A Requerente é a sociedade dominante de um grupo de sociedades (o Grupo …) sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS), previsto e regulado no artigo 69º do Código do IRC (CIRC);

b)Na qualidade de sociedade dominante do referido grupo, a Requerente apresentou as Declarações Modelo 22 referentes aos exercícios de 2010 e 2011, tendo procedido à autoliquidação de derrama municipal respeitante aos referidos exercícios;

c)O sistema informático da Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT) não permitiu, quer em 2010, quer em 2011, que a Declaração Modelo 22 fosse submetida integrando uma autoliquidação da derrama municipal apurada com base no resultado do grupo fiscal, tendo obrigado a que a derrama do grupo fosse calculada numa base individual para cada uma das sociedades integrantes e indicando como derrama municipal devida pelo grupo fiscal o somatório das referidas “derramas individuais”;

d)Tal aconteceu em cumprimento do disposto no ofício circulado da Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (DSIRC) n.º 20.132, de 14 de abril de 2008;

e)Em consequência, foi calculada, relativamente aos exercícios de 2010 e 2011, derrama municipal em excesso nos montantes de € 91.739,89 e € 96.050,83 porquanto quer em 2010 quer em 2011 o Grupo Fiscal não apurou lucro tributável, tendo suportado prejuízos no montante de € 26.060.276,10 e € 16.796.839,02;

f)O valor das derramas municipais autoliquidadas encontra-se pago;

g)A Requerente apresentou reclamações graciosas contra as referidas autoliquidações de derrama municipal respeitantes aos exercícios de 2010 e 2011, reclamações essas que foram objeto de despacho de indeferimento;

h)A derrama municipal incide sobre o lucro tributável sujeito a IRC, sendo que este, quando se aplique o RETGS, é o lucro tributável do grupo fiscal, pelo que, nos termos da legislação aplicável à data dos factos, é sobre este lucro tributável (do grupo fiscal) e não sobre a soma dos resultados individuais positivos (com exclusão dos negativos) de cada uma das sociedades do grupo, que tem de incidir a derrama municipal;

i)A redação dada ao n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, pelo artigo 57.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro apenas se aplica aos rendimentos obtidos a partir do exercício de 2012, não tendo aplicação retroativa;

j)Nas situações de aplicação do RETGS, o lucro tributável sujeito a IRC corresponde à soma dos lucros individuais apurados, subtraídos dos prejuízos em que esta ou aquela sociedade tenha incorrido.

 

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº 2 a) do RJAT, foram designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, como árbitros, os signatários – Manuel Luís Macaísta Malheiros, Alberto Amorim Pereira e Manuel Pires, nos termos do disposto no número 1 do artigo 6.º do RJAT.

 

O tribunal arbitral foi constituído em 15/03/2013, tendo na mesma data sido a Autoridade Tributária e Aduaneira, aqui Requerida, notificada para, querendo, apresentar resposta, no prazo legal.

 

A Requerida respondeu, defendendo-se por exceção e por impugnação.

 

Na defesa por exceção invocou, em síntese, que:

a)A AT não tem legitimidade para estar em juízo como única demandada em matéria respeitante a derrama municipal, imposto que tem como sujeitos ativos os municípios, limitando-se a AT a arrecadar o imposto e a entregá-lo ao município correspondente;

b)Os municípios envolvidos têm interesse em agir nos presentes autos, pelo que deveria ser suscitada a sua intervenção provocada;

c)O tribunal arbitral é incompetente para decidir quanto à legalidade da liquidação, já que os municípios, sujeitos ativos da derrama municipal, não se encontram vinculados à jurisdição do CAAD.

 

Na defesa por impugnação, sustentou a Requerida, em síntese:

a)Sendo a derrama municipal um imposto autónomo, as especificidades previstas para a tributação em sede de IRC não são aplicáveis à derrama;

b)O sujeito ativo da derrama é o município correspondente à área geográfica na qual é gerado o rendimento e o sujeito passivo as sociedades residentes que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial industrial ou agrícola, na área geográfica daquele município;

c)A incidência real da derrama municipal recai sobre o lucro tributável das sociedades, sendo a imputação da derrama aos vários sujeitos ativos feita de acordo com as disposições constantes do artigo 14.º da Lei das Finanças Locais;

d)Para efeitos de determinação da base de incidência da derrama municipal, o legislador socorre-se dos mecanismos gerais legalmente previstos no CIRC, que culminam com o apuramento do lucro tributável sujeito e não isento de IRC;

e)No caso concreto das sociedades abrangidas pelo RETGS, estamos perante situações de sujeição, pessoal e real, de cada uma das sociedades integrantes do grupo e dos respetivos rendimentos;

f)Inexistindo qualquer estatuição que considere não sujeitos ou isentos de IRC os rendimentos das sociedades que integram o perímetro de um grupo de sociedades, não poderão os mesmos estar afastados de tributação em sede de derrama;

g)A redação dada ao n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, pelo artigo 57.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, (Lei do Orçamento do Estado para 2012) tem natureza interpretativa, pelo que não se coloca a questão da sua aplicação retroativa.

Conclui a Requerida invocando a improcedência do pedido e, consequentemente, a manutenção das autoliquidações da derrama municipal do grupo … relativas aos exercícios de 2010 e 2011.

A Requerente respondeu à matéria de exceção, pugnando pelo seu indeferimento e pela procedência do pedido.

 

 

II)APRECIAÇÃO DAS EXCEÇÕES INVOCADAS

 

A Requerida deduziu exceções que, por poderem obstar ao conhecimento do mérito do pedido, importa conhecer previamente.

 

A)Da incompetência do tribunal arbitral

A Requerida fundamenta a sua pretensão, no que a esta exceção diz respeito, no facto de, no que se refere à derrama municipal, a AT apenas ter funções de arrecadação do imposto, que posteriormente entrega ao município.

Quanto à competência dos tribunais arbitrais, prescreve a alínea a) do nº 1 do artigo 2º do RJAT que os tribunais arbitrais são competentes para apreciar as pretensões de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta.

Por seu turno, quanto à vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais, dispõe o nº 1 do artigo 4º do citado regime, que esta depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das Finanças e da Justiça.

Nos termos do disposto nos artigos 1º e 2º dessa portaria – Portaria 112-A/2011 de 22 de março – resulta que a Direcção-Geral dos Impostos e a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (a que a AT sucedeu), ficam vinculadas à jurisdição dos tribunais arbitrais constituídos nos termos do RJAT, que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida.

Importa, pois, averiguar a quem está cometida a administração da derrama municipal, sendo certo que a administração de um tributo é definida em função da competência para o liquidar e cobrar, bem como para exercer as inerentes funções inspetivas, para exercer a ação de justiça tributária e para representar a Fazenda Pública junto dos órgãos judiciais.

Ora, na administração estadual, é precisamente a AT quem tem estas competências – cfr. artigos 1º e 2º do DL 118/2011, de 15 de dezembro.

Quanto à derrama municipal, muito embora a sua receita reverta integralmente para os municípios, não se poderá defender, como pretende a AT, que a sua intervenção se limite à “arrecadação” deste imposto.

Com efeito, mais do que simplesmente arrecadar este imposto, a AT conduz todo o procedimento de liquidação e cobrança da derrama, competindo-lhe, designadamente, fiscalizar os valores declarados e liquidados pelos sujeitos passivos, competindo-lhe ainda emitir as liquidações adicionais e/ou oficiosas que se revelem necessárias.

Por outro lado, é à AT que compete decidir sobre as reclamações graciosas e recursos hierárquicos que venham a ser interpostos no âmbito da derrama municipal, assim como emitir orientações genéricas, como é o caso do referido ofício circulado da Direcção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (DSIRC) n.º 20.132, de 14 de abril de 2008, e responder aos pedidos de informação vinculativa.

 

Não se olvida que, quanto à derrama municipal, a Lei das Finanças Locais atribui aos municípios, entre outros, o poder de deliberar anualmente o seu lançamento, de fixar a respetiva taxa e de receber o produto da sua cobrança. Não obstante, estes são os únicos poderes atribuídos aos municípios relativamente à derrama, encontrando-se todos os poderes inerentes à função de administração do imposto cometidos à AT.

 

Parece, pois, indiscutível a competência exclusiva da AT para a administração da derrama municipal, isto, insiste-se, pese embora o facto de os municípios serem os seus credores exclusivos e os sujeitos ativos da relação tributária subjacente à derrama municipal.

 

Assim, incumbindo à AT a administração da derrama municipal, dúvidas não restam acerca da competência do presente tribunal arbitral para apreciar a legalidade das autoliquidações em causa.

 

Em face do exposto, e sem necessidade de mais considerações, julga-se improcedente a exceção de incompetência do presente tribunal invocada pela Requerida.

 

B)Da ilegitimidade passiva da Requerida e do interesse em agir dos Municípios

Invoca ainda a AT não ter legitimidade para estar em juízo como única demandada, atento o facto de, no seu entendimento, o município ser co-administrador da derrama municipal.

Resulta do exposto em A) supra, que a administração da derrama municipal compete, em exclusivo, à AT, circunscrevendo-se os poderes dos municípios, quanto a este imposto, ao poder de deliberar anualmente o seu lançamento, de fixar a respetiva taxa e de receber o produto da sua cobrança. Ora, se a administração do imposto cabe, em exclusivo à AT, então é esta entidade quem tem legitimidade para ser demandada nos presentes autos, carecendo o município, ao invés do alegado pela Requerida, de legitimidade passiva.

 

Invoca ainda a AT que os municípios teriam interesse em agir no presente litigio por terem interesse pessoal e direto no seu resultado, já que, segundo alega, um eventual decaimento no presente litigio acarretaria para os sujeitos ativos do imposto encargos financeiros (restituição das importâncias pagas e pagamento de juros) dos quais estes não poderão ser alheados.

 

No entanto, ao contrário do defendido pela AT, o facto de estar em causa nos presentes autos a pretensão de declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação de imposto cuja receita reverte para os municípios, não torna necessária a sua intervenção. É que, conforme resulta do disposto nos nºs 1 e 4 do artigo 9º do CPPT, a legitimidade ativa no procedimento e processo judicial tributário é atribuída à administração tributária, sendo por isso irrelevante, para apurar a legitimidade processual, determinar quem é o credor tributário. Relevante é, isso sim, determinar a quem a lei atribui a competência para a liquidação e cobrança do imposto, a qual, como vimos, é atribuída em exclusivo à AT.

 

Irrelevante, também, para o efeito de determinação da legitimidade processual, são as eventuais consequências que resultem para o credor tributário da decisão arbitral. Aliás, nas normas que regulam o processo de impugnação judicial e arbitral, não se encontra qualquer preceito que permita a intervenção do credor tributário, enquanto tal, quando este não seja, simultaneamente, a própria AT.

 

E, sendo o referido artigo 9º do CPPT norma especial, fica afastada a regra do artigo 26º do Código de Processo Civil, invocada pela AT.

 

Nem se diga, como o faz a AT, que o disposto no artigo 7º do DL 433/99 de 26 de outubro, e no 54º nº 2 do ETAF imporia a intervenção dos municípios, já que, como é sabido, tais regras se aplicam a tributos administrados pelas autarquias locais, o que, como vimos, não é o caso.

 

Do exposto resulta, pois, ser a Requerida parte legítima, improcedendo, pois, a invocada exceção de ilegitimidade.

 

Assente que está a competência exclusiva da AT e a sua legitimidade passiva, sai prejudicada a apreciação do pedido de intervenção principal provocada dos municípios.

 

 

III)SANEAMENTO

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

Não existem nulidades que invalidem o processado.

As partes têm personalidade e capacidade judiciária e são legitimas, não ocorrendo vícios de patrocínio.

Não existem outras nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito e de que cumpra oficiosamente conhecer.

 

 

IV)QUESTÕES A DECIDIR

 

Nos presentes autos existe apenas uma questão a decidir e que consiste em saber se, para efeitos de determinação da derrama de um grupo de sociedades sujeito ao RETGS, releva o lucro tributável do grupo ou o lucro tributável de cada uma das sociedades que o integram.

 

 

V)MATÉRIA DE FACTO

 

A.FACTOS PROVADOS

 

1.A Requerente é a sociedade dominante de um grupo de sociedades;

2.Na qualidade de sociedade dominante do referido grupo, a Requerente apresentou as Declarações Modelo 22 referentes aos exercícios de 2010 e 2011, tendo procedido à autoliquidação de derrama municipal respeitante aos referidos exercícios;

2.O sistema informático da AT não permitiu, quer em 2010 quer em 2011, que a Declaração Modelo 22 fosse submetida integrando uma autoliquidação da derrama municipal apurada com base no resultado do grupo fiscal, tendo obrigado a que a derrama do grupo fosse calculada numa base individual para cada uma das sociedades integrantes, indicando como derrama municipal devida pelo grupo fiscal o somatório das referidas “derramas individuais”;

3.Em consequência, foi calculada pela Requerente, relativamente aos exercícios de 2010 e 2011, derrama municipal nos montantes de, respetivamente, € 91.739,89 e € 96.050,83;

4.No exercício de 2010, a Requerente sofreu prejuízos fiscais no montante de € 26.060.276,10;

5.No exercício de 2011, a Requerente sofreu prejuízos fiscais no montante de € 16.796.839,02;

6.O valor das derramas municipais autoliquidadas encontra-se pago;

7.Em 19 de setembro de 2012, a Requerente apresentou reclamações graciosas contra as referidas autoliquidações de derrama municipal respeitantes aos exercícios de 2010 e 2011, reclamações essas que foram objeto de despacho de indeferimento, notificado à Requerente em 24 de dezembro de 2012;

8.Em 14 de Abril de 2008, a Direcção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas emitiu um ofício circulado (n.º 20.132), com o conteúdo constante do documento nº 17 junto com o requerimento inicial.

 

B.FACTOS NÃO PROVADOS

 

Com interesse para os autos, não se provaram quaisquer outros factos.

 

C.FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

A factualidade provada teve por base os factos alegados pelas partes e não contestados, bem como os documentos juntos aos autos, incluindo o processo administrativo igualmente junto.

 

 

VI)DIREITO:

 

Com vista a determinar se ocorreu ou não a alegada ilegalidade da autoliquidação das derramas, importa apurar se, para efeitos de determinação da derrama de um grupo de sociedades sujeito ao RETGS, releva o lucro tributável do grupo ou o lucro tributável de cada uma das sociedades que integram o grupo.

Importa aqui convocar o quadro legal aplicável à data dos factos, em concreto os artigos 63º a 65º do CIRC e o artigo 14º da Lei das Finanças Locais, todos na redação anterior à entrada em vigor da Lei 64-B/2011 de 30 de dezembro (LOE 2012).

Assim, à data dos factos, dispunha o número 1 do artigo 63º do CIRC:

Existindo um grupo de sociedades, a sociedade dominante pode optar pela aplicação do regime especial de determinação da matéria colectável em relação a todas as sociedades do grupo”.

 

 

E o número 1 do artigo 64º do mesmo Código:

Relativamente a cada um dos períodos de tributação abrangidos pela aplicação do regime especial, o lucro tributável do grupo é calculado pela sociedade dominante, através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo”.

Por seu turno, dispunha o artigo 14º da Lei das Finanças Locais:

Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território”.

Dito isto, sendo a base de incidência da derrama o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, e não prevendo a Lei das Finanças Locais qualquer regime especifico para determinação do lucro tributável, há que recorrer às normas previstas no CIRC para apurar o lucro tributável.

Por seu turno, o CIRC prevê um regime especial de tributação dos grupos de sociedades, contendo regras especificas para o cálculo do lucro tributável nestas situações.

Assim, sendo a Requerente a sociedade dominante de um grupo fiscal, a determinação do seu lucro tributável para efeitos de IRC será calculado através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo.

É que, não prevendo a Lei das Finanças Locais qualquer regime especifico para cálculo do lucro tributável para efeitos de aplicação da derrama, não se vislumbra – e a AT não esclarece – qualquer razão que imponha a não aplicação do regime especifico de tributação previsto para os grupos de sociedades.

Com efeito, nos termos do disposto no artigo 14º da Lei das Finanças Locais, a derrama incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, calculado nos termos do CIRC.

E, prevendo o CIRC regras especificas para o cálculo do lucro tributável no âmbito de um grupo de sociedades, não se vê como poderia este regime especifico não ter aplicação no caso da derrama municipal.

Não obstante o exposto, o certo é que em 14 de Abril de 2008 a Direcção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas emitiu um ofício circulado (n.º 20.132), no qual veiculou o entendimento de que, para as sociedades que integram o perímetro do grupo abrangido pelo regime especial de tributação de grupos de sociedades, a derrama deverá ser calculada e indicada individualmente por cada uma das sociedades na sua declaração, sendo preenchido, também individualmente, o Anexo A, se for caso disso, sendo o somatório das derramas assim calculadas indicada no campo 364 do quadro 10 da correspondente declaração do grupo (cfr. ponto 8) dos factos provados).

Em síntese, foi entendido pela AT que, no âmbito dos grupos de sociedades, a derrama deveria incidir sobre o lucro tributável de cada uma das sociedades que integra o grupo e não sobre o lucro tributável do grupo.

Tal entendimento não tem, porém, qualquer apoio legal, o que veio a ser sucessiva e unanimemente defendido, quer pelas instâncias judiciais, quer pelas instâncias arbitrais, sendo hoje entendimento unânime que, até à data da entrada em vigor da LOE para 2012, nos grupos de sociedades, a derrama incide sobre o lucro tributável do grupo e não sobre o lucro tributável de cada uma das sociedades integrantes do grupo.

É certo que o artigo 57º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (LOE para 2012) veio alterar o artigo 14º da Lei das Finanças Locais, consagrando para a derrama municipal uma norma autónoma de apuramento do lucro tributável.

Nos termos desta nova redação do artigo 14º da citada Lei, “quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, a derrama incide sobre o lucro tributável individual de cada uma das sociedades do grupo, sem prejuízo do disposto no artigo 115.º do Código do IRC”.

Quanto à natureza desta alteração, defende a AT que a mesma tem natureza interpretativa, tendo como objetivo “obstar à dimanação de jurisprudência eivada de inconstitucionalidade - por violação dos princípios constitucionais ínsitos nos artigos 81º e 238º, ambos da Lei Fundamental”, razão pela qual é aplicável retroativamente, maxime à hipótese dos autos.

Não podemos, no entanto, acompanhar este entendimento sufragado pela AT.

Com efeito, desde logo, porque se a norma fosse interpretativa, o legislador tê-lo-ia feito constar do próprio texto da lei, o que não sucedeu.

Por outro lado, e seguindo de perto JOÃO BAPTISTA MACHADO, a lei interpretativa, para o ser, há-de consagrar uma solução a que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado no domínio da legislação anterior. Significa este pressuposto, antes de mais, que, se a LN vem na verdade resolver um problema cuja solução constituía até ali matéria em debate, mas o resolve fora dos quadros da controvérsia anteriormente estabelecida, deslocando-o para um terreno novo ou dando-lhe uma solução que o julgador ou o intérprete não estavam autorizados a dar-lhe, ela será indiscutivelmente uma lei inovadora.” – cfr. “Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Coimbra, Almedina, 1968, pp. 287 2 ss.

E prossegue o mesmo autor, “se a LN vem na verdade fornecer a resposta a uma questão jurídica cuja solução era lacunosa no sistema jurídico anterior, mas decide esta questão jurídica dentro de quadros sistemáticos inteiramente novos relativamente aos da LA, de modo a poder dizer-se que o intérprete, dentro dos quadros desta última lei e recorrendo aos procedimentos de preenchimento das lacunas que o respectivo sistema admitia, estava impedido de chegar a uma solução idêntica – a LN neste ponto será também inovadora, ainda que no domínio de vigência da LA não se tenha chegado a formar qualquer corrente jurisprudencial ou doutrinal relevante, ainda que o problema não tenha chegado a ser sequer discutido. Na hipótese de lacuna existente no sistema da LA dever ser preenchida, no domínio da vigência desta lei, pelo recurso a uma analogia legis ou a uma analogia juris, cremos que nunca a disposição da LN que venha resolver a mesma questão de direito através duma regra jurídica diferente da que resultaria com segurança daquela analogia poderá ter natureza interpretativa” (loc. cit).

No caso dos autos, não se está perante qualquer questão que tenha sido objeto de decisões diversas no âmbito da jurisprudência, bem ao invés.

Com efeito, tanto a jurisprudência judicial como a arbitral têm sido unânimes no entendimento de que a derrama de um grupo de sociedades incide sobre o lucro tributável do grupo e não sobre o grupo tributável de cada uma das sociedades individualmente consideradas.

Por outro lado, não se poderá defender existir aqui qualquer lacuna.

Com efeito, o facto de a Lei das Finanças Locais não prever a forma de apuramento do lucro tributável para efeito de cálculo da derrama não poderá ser considerado uma lacuna, já que, como vimos, a dita lei manda aplicar a taxa da derrama ao lucro sujeito e não isento de IRC. Logo, dúvidas não restam de que o lucro tributável terá de ser apurado de acordo com as regras previstas no CIRC.

Conforme defendido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 02MAIO2012, processo nº 234/12, in www.dgsi.pt, na nova redacção do artigo 14º da Lei das Finanças Locais não se faz nenhuma referência ao facto de esta lei ser interpretativa, “nem se surpreende no texto da Lei do Orçamento de 2012 ou no referido nº 8 do artigo 14º da Lei das Finanças Locais qualquer referência ao carácter interpretativo da norma ou a qualquer controvérsia gerada pela solução de direito anterior”, sendo - continua o mesmo aresto – “a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo pacífica, em sentido aliás inverso ao consagrado na lei nova, haveremos de concluir que não estamos perante uma lei interpretativa mas sim perante uma lei inovadora, portanto, com aplicação apenas para o futuro”.

Este entendimento tem vindo a ser reiterado sucessivamente na jurisprudência, quer judicial, quer arbitral, sendo certo que não vislumbramos qualquer razão para não o acompanharmos de perto.

Em face do exposto, a nova redação do artigo 14º da Lei das Finanças Locais tem carácter inovador e não interpretativo.

E, tendo carácter inovador, apenas poderá ser aplicada para o futuro, em face, designadamente, da proibição da retroatividade das leis fiscais, prevista no artigo 103º nº 3 da Lei Fundamental e no artigo 12º da LGT.

Assim, relativamente aos exercícios da Requerente de 2010 e 2011, em causa nos presentes autos, a derrama é calculada sobre o lucro tributável do grupo e não sobre o grupo tributável de cada uma das sociedades integrantes do grupo, sendo o lucro tributável do grupo determinado através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo,

Do exposto resulta que os atos de autoliquidação da derrama devida pela Requerente relativos aos exercícios de 2010 e 2011, em causa nos presentes autos, estão inquinados pelo vicio de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, devendo o cálculo da derrama ter incidido sobre o lucro tributável do grupo e não, como aconteceu, sobre o lucro de cada uma das sociedades integrantes do grupo individualmente consideradas.

Foi assim autoliquidada e paga derrama em excesso nos montantes de € 91.739,89 e € 96.050,83, respeitantes, respetivamente, aos exercícios de 2010 e 2011, valores estes que devem ser reembolsados à Requerente.

Peticiona ainda a Requerente a condenação da AT no pagamento dos juros indemnizatórios à taxa legal, desde 09 de setembro de 2011 e 31 de maio de 2012.

Quanto aos juros indemnizatórios, prescreve o número 1 do artigo 43º da LGT:

"São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido".

Por seu turno, dispõe o n.º 2 do mesmo artigo:

Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas".

No caso dos autos, muito embora a liquidação da derrama tenha sido efetuada pela Requerente, o certo é que foi feita com base nas orientações genéricas emitidas pela AT, em concreto com base no ofício circulado n.º 20.132/2008, de 14 abril.

Assim, são devidos juros indemnizatórios, a pagar pela AT à Requerente, calculados sobre os montantes de € 91.739,89 e € 96.050,83, desde 09 de setembro de 2011 e 31 de maio de 2012, respetivamente, e até efetivo e integral pagamento por parte da AT.

 

VII)DECISÃO

 

Em face do exposto, decide-se:

a)     Julgar improcedentes as arguidas exceções de incompetência do tribunal arbitral e de ilegitimidade passiva da Requerida;

b)     Não conhecer, consequentemente, do incidente de intervenção provocada deduzido pela Requerida;

c)     Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade das autoliquidações de derrama municipal do grupo fiscal … relativas aos exercícios de 2010 e 2011, nos montantes de, respetivamente, € 91.739,89 e € 96.050,83, com a sua consequente anulação;

d)     Julgar procedente o pedido de reembolso das quantias indevidamente autoliquidadas e pagas, nos montantes de, respetivamente, € 91.739,89 e € 96.050,83, e

e)     Julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre os montantes de € 91.739,89 e € 96.050,83, desde 09 de Setembro de 2011 e 31 de Maio de 2012, respetivamente, e até efetivo e integral pagamento por parte da AT.

 

***

De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 315.º do CPC, na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CCPT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT) fixa-se o valor do processo em € 187.790,72.

Nos termos do n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT e do artigo 4.º do RCPAT, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

***

Registe e notifique.

Lisboa, 10 de Setembro de 2013.

 

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Os Árbitros,

Manuel Luís Macaísta Malheiros

 

Alberto Amorim Pereira

 

Manuel Pires

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 138.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20/01.

A redação da presente decisão rege-se pela ortografia nova.