Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 354/2023-T
Data da decisão: 2023-11-10  IVA  
Valor do pedido: € 131.315,42
Tema: IVA – Taxa reduzida - Operação de reabilitação urbana - Verba 2.23 da Lista I Anexa ao Código do IVA.
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SUMÁRIO:

1.      A verba 2.23 da Lista I Anexa ao CIVA, tem aplicação quando verificadas as seguintes condições:

(a) Estamos perante uma empreitada de reabilitação urbana, conforme legalmente definida;

(b) A empreitada de reabilitação urbana realiza-se em imóvel ou em espaços públicos localizados em Área de Reabilitação Urbana (ARU), legalmente delimitada.

2.      O conceito de reabilitação urbana previsto no respetivo regime legal não se restringe à reabilitação de edifícios.

3.      Para além das duas condições referidas, nem da letra, nem do espírito da Lei, resulta qualquer outra exigência para a aplicação da taxa reduzida de IVA de 6%, designadamente a exigência de que uma Câmara Municipal tenha de atestar que a empreitada consubstancia uma “Operação de reabilitação urbana”.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os Árbitros, Dra. Alexandra Coelho Martins (na qualidade de Árbitro Presidente), Dr. Arlindo José Francisco (na qualidade de Árbitro Vogal e Relator) e Dra. Sílvia Oliveira (na qualidade de Árbitro Vogal) designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 25-07-2023, acordam no seguinte:

 

 

I. RELATÓRIO

 

  1. A..., S.A. (adiante designada por Requerente), NIPC..., com sede no ..., nº..., em Lisboa, vem requerer, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 2º e no artigo 10º, ambos do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, com vista à apreciação da legalidade do ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada em 22-12-2022, contra as autoliquidações adicionais de IVA, respeitantes aos 1º, 2º, 3º e 4º trimestres de 2019, nos montantes de € 20.840,99, € 29.040,35, € 48.652,24 e € 32.781,84, respetivamente, no montante total de € 131.315,42, bem como a declaração de ilegalidade daquelas autoliquidações, peticionando o reembolso das quantias já pagas, acrescidas dos correspondentes juros indemnizatórios, calculados nos termos legais.
  2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD a 15-05-2023 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante designada por Requerida) nessa mesma data.
  3. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou, em 05-07-2023, os Árbitros acima identificados para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, tendo aqueles comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  4. Na mesma data, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, nos termos conjugados do artigo11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma, pelo que em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 25-07-2023.
  5. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, no facto das aludidas autoliquidações adicionais de IVA resultarem das conclusões do Relatório da Inspeção Tributária de
    05-12-2022, emitido no âmbito do procedimento inspetivo credenciado pela referida OI 2021..., com o qual não concorda e que, em devido tempo, apresentou reclamação graciosa, que veio a ser tacitamente indeferida.
  6. Na verdade, a Requerente considera que as obras incluídas na empreitada de reabilitação do edifício identificado nos autos reuniam as condições legais para que sobre o valor das mesmas incidisse e fosse liquidado IVA, à taxa reduzida de 6%, prevista na verba 2.23 da Lista I Anexa ao CIVA, porquanto a mesma se integra no conceito de empreitada de reabilitação urbana e as referidas obras foram realizadas em edifício localizado em Área de Reabilitação Urbana (ARU).
  7. Nestes termos, vem a Requerente requerer a declaração de ilegalidade do ato de indeferimento tácito da referida reclamação graciosa e a consequente anulação das autoliquidações adicionais de IVA objeto da mesma, bem como a restituição das quantias autoliquidadas, já referidas, acrescidas dos respetivos juros indemnizatórios.
  8. A Requerida apresentou a sua Resposta em 02-10-2023, tendo-se defendido por impugnação e concluído que “(…) não se mostram reunidas as condições para aplicação da taxa reduzida ao abrigo da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA” pelo que entende que “(…) deve[m] ser mantido[s] o[s] ato[s] tributário[s] (…) impugnado[s] na ordem jurídica, com as devidas consequências legais, isto é, o não pagamento de juros indemnizatórios”.

Na mesma data, a Requerida anexou cópia do processo administrativo.

  1. Para defesa da sua posição. a Requerida considera que as obras levadas a efeito no referido imóvel não reúnem todos os requisitos para que o IVA fosse liquidado à taxa de 6% previsto na verba 2.23 da Lista I Anexa ao CIVA.
  2. Segundo alega a Requerida, a verba 2.23 acima já referida exige que se trate de uma empreitada de reabilitação urbana, de acordo com o definido em legislação específica e que o espaço objeto de intervenção se localize em área de reabilitação urbana, mas entende que falta uma certidão emitida pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) na qual se diga que a obra em questão consubstancia uma operação de reabilitação urbana.
  3. E, alega ainda a Requerida, da documentação obtida junto da CML resulta “(…) que se trata de uma obra de construção nova não prevista em Plano de Pormenor ou em operação de reabilitação urbana sistemática”.
  4. Nestes termos, conclui a Requerida que não se verificam as condições para aplicação da taxa reduzida previsto naquela verba 2.23, pelo que deverão ser mantidos na ordem jurídica os atos tributários que vêm impugnados com as devidas consequências legais.

 

II – SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, de acordo com o artigo 2º do RJAT.

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 10º do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas de harmonia com os artigos 4º e 10º, nº2 do RJAT e artigo 1º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março.

Por despacho arbitral de 04-10-2023 foi dispensada a reunião do Tribunal Arbitral a que se refere o artigo 18.º do RJAT e determinado o prosseguimento do processo mediante a notificação das partes para apresentarem, no prazo de 15 dias, alegações escritas, facultativas e simultâneas.

No mesmo despacho, foi indicado que a prolação da decisão arbitral ocorreria até à data-limite prevista no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT.

Em 18-10-2023 foi proferido despacho com vista à notificação da Requerente para pagamento da taxa de justiça subsequente (o que veio a efetuar em 23-10-2023).

Só a Requerente produziu alegações escritas, que juntou aos autos em 23-10-2023, concluindo como no pedido.

Não foram suscitadas exceções de que cumpra conhecer.

O processo não enferma de nulidades pelo que cumpre decidir.

 

III – FUNDAMENTAÇÃO

 

  1. Questões a decidir

 

No âmbito deste processo, e para efeitos de aferir da aplicabilidade ao caso em análise da taxa de IVA reduzida de 6%, prevista na verba 2.23 da Lista I Anexa ao Código do IVA, importa analisar se todas as condições previstas para a sua aplicabilidade estão verificadas e, em consequência, decidir:

  1. Se o ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa, apresentada contra as autoliquidações de IVA, respeitantes a cada um dos quatro trimestres de 2019 (identificadas no processo) deve ser anulado, bem como as respetivas autoliquidações de IVA, com a consequente devolução do respetivo imposto, no valor global de € 131.315,42, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios nos termos legais, com fundamento em ilegalidade, caso se entenda que as referidas condições estão todas verificadas (posição da Requerente) ou
  2. Se pelo contrário, o referido ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa e, consequentemente, cada uma das autoliquidações de IVA de 2019 contra as quais aquela foi deduzida, devem permanecer na ordem jurídica por não sofrerem de qualquer ilegalidade, caso se venha a entender que não estão verificadas todas as condições para a aplicação da referida taxa reduzida de IVA (posição da Requerida).

 

  1. Matéria de facto

 

Preliminarmente, e no que diz respeito à matéria de facto, importa salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada [cfr. artigo 123º, nº 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e artigo 607º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29º, nº 1, alíneas a) e), do RJAT].

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito.

 

2.1. Factos provados

 

  1. A Requerente é uma sociedade anónima, com o NIPC ... e sede no ..., n.°..., ...-... Lisboa (área do Serviço de Finanças - ... - LISBOA -...).
  2. A Requerente foi constituída em 1994 e tem como objeto social a administração de propriedades, projeção, execução e exploração de empreendimentos imobiliários, urbanísticos, hoteleiros e turísticos, incluindo o rural, a compra e venda de imóveis para construção, revenda ou sua exploração, bem como a exploração agrícola e pecuária.
  3. A Requerente tem o capital da social de € 50.000,00, constituído por 10.000 ações com o valor nominal de € 5,00 cada.
  4. Para efeitos de IRC, a Requerente está enquadrada, desde 01-01-1994 no regime geral, com contabilidade organizada e, para efeitos de IVA, a Requerente está enquadrada desde 29-04-1994, no regime normal de periodicidade trimestral, pela realização de operações mistas com um pró-rata de 33%.
  5. A Requerente, à data dos factos, era proprietária de um prédio urbano, sito na Rua ... nº ..., em Lisboa.
  6. Conforme aviso da CML n.º .../2015, publicado no Diário da República, 2.ª Série, n.º 148, de 31 de julho de 2015, foi estabelecida uma área de reabilitação urbana (ARU) em Lisboa, na qual se localiza o prédio em questão.
  7. A Requerente submeteu à CML um pedido de licenciamento (nº .../EDI/2014) para demolição e construção de um novo prédio no local identificado no ponto e), supra, tendo sido emitido, em 03-04-2018, o Alvará de Obras de Construção com Demolição nº .../CE-CML/2018.
  8. Para efeito de demolição e construção de edifício novo no referido local, a Requerente celebrou com a empresa B..., Lda., um Contrato de Empreitada relativo às obras de demolição e construção.
  9. Nas operações realizadas pela B..., Lda., a Requerente autoliquidou IVA ao abrigo do regime de inversão do sujeito passivo previsto no artigo 2.º, n.º 1, alínea j) do Código do IVA,  aplicando a taxa reduzida de 6%, por entender tratarem-se de operações integráveis na verba 2.23 da Lista Anexa ao Código do IVA.
  10. A mencionada empreitada foi executada, tendo a sua conclusão ocorrido em abril de 2020 e a respetiva licença de utilização emitida pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) em 13 de dezembro de 2021.
  11. Os Serviços de Inspeção Tributária (SIT) procederam à abertura da ordem de serviço OI2021..., de 29-10-2021, por forma a verificar se a autoliquidação de IVA à taxa reduzida de 6%, relativamente à aquisição de serviços de construção civil, se encontrava de acordo com os requisitos para aplicação desta taxa.
  12. O referido procedimento inspetivo foi de análise externa, de âmbito parcial de IVA e IRC, referente ao exercício de 2019, tendo-se iniciado em 17-12-2021 e sido concluído (os atos externos de inspeção) em 23-11-2021.
  13. Em 30-09-2022, a CML emitiu, a pedido da Requerente, relativamente ao imóvel sito em Lisboa, na Rua ..., n.º ..., s seguinte certidão declarativa:

“a) Em como o imóvel se encontra inserido em área de reabilitação urbana;

b) De que se trata de uma obra de construção nova não prevista em Plano de Pormenor ou em operação de reabilitação urbana sistemática.”

  • No âmbito do procedimento inspetivo, os SIT concluíram no Relatório de Inspeção Tributária (RIT), datado de 05-12-2022 que foram detetadas irregularidades em de IVA porquanto, e em síntese, entenderam que:

[…] Relativamente ao prédio na Rua ..., verificam-se todos os requisitos, exceto, Certidão emitida pela C.M. de Lisboa, certificando que a obra consubstancia uma “Operação de reabilitação urbana”, ou seja a CM emitiu uma certidão (Anexo V) pela negativa relativamente a este requisito, conforme imagem retirada da Certidão emitida pela CM:

a) Em como o imóvel se encontra inserido em área de reabilitação urbana;

b) De que se trata de uma obra de construção nova não prevista em Plano de Pormenor ou em operação de reabilitação urbana sistemática.

Pelo que relativamente à obra realizada na Rua ..., em que o sujeito passivo autoliquidou imposto à taxa reduzida de 6% (verba 2.23), há imposto em falta, pois deveria ter sido autoliquidado imposto à taxa de 23%”.

III.1.4. Imposto em Falta

Pelo anteriormente demonstrado, encontra-se em falta o imposto, no valor de € 131.315,42, conforme apurado […]

  • Assim, os SIT elaboraram um projeto de correções no sentido de ser autoliquidado IVA relativo à diferença de taxas, tendo a Requerente sido notificada, para efeitos do disposto no artigo 60º da LGT e no artigo 60° do RCPITA, através do Ofício nº ..., de 19-10-2022 (registo nº RH ... PT).
  • No decorrer do prazo para exercer o direito de audição, a Requerente optou por proceder à entrega das declarações de substituição do IVA para os quatro trimestres de 2019, para concretizar a regularização do alegado imposto em falta, tendo apresentado as seguintes declarações:

DP SUBSTITUIÇÃO

PERÍODO A QUE RESPEITA

DATA

MONTANTE

...

1903T

22-11-2022

20.840,99

...

1906T

29.040,35

...

1909T

48.652,24

...

1912T

32.781,84

TOTAL

131.315,42

 

 

  1. O Representante Legal da Requerente foi notificado do RIT final através do Ofício nº ..., de 13-12-2022.
  2. A Requerente apresentou, em 22-12-2022, contra as referidas autoliquidações de IVA, no valor global de € 131.315,42, reclamação graciosa (nº ...2022...), por entender que o entendimento que os SIT fizeram das condições de aplicabilidade da verba 2.23 da Lista I Anexa ao Código do IVA era ilegal porque abusiva.
  3. Até ao presente a Requerente não foi notificada da decisão da referida reclamação graciosa, pelo que esta foi considerada tacitamente indeferida.
  4. A Requerente apresentou, em 12-05-2023, este pedido de pronúncia arbitral, cujo objeto indicou ser o IVA no valor global de € 131.315,42, peticionando que “deve a presente acção ser julgada inteiração provada e procedente e, por via disso declarados que a taxa de 6% inicialmente autoliquidada pela Impugnante nos termos do ponto 2.23 da Tabela I anexa ao Código do IVA é a correcta e, consequentemente, restituindo-se (…) as quantias posteriormente autoliquidadas, acrescidas de juros indemnizatório ilegais e anulados os actos (…) ora impugnados, com todas as consequências da Lei”.

 

2.2. – Motivação quanto à matéria de facto

 

No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal Arbitral Coletivo fundou-se, para além da livre apreciação das posições assumidas pelas Partes, no teor dos documentos juntos aos autos pela Requerente e pela Requerida (processo administrativo). De referir que a Requerente invoca a qualidade de “superficiária” do prédio do n.º 60 da Rua Francisco Metrass, mas os documentos que constam dos autos, nomeadamente a certidão emitida pela CML mencionam a sua qualidade de “proprietária”.

 

2.3. - Factos não provados

 

Não se consideraram como não provados quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.

 

3. Matéria de Direito

 

A questão a decidir prende-se, essencialmente, em saber se as obras que integraram a empreitada realizada no prédio urbano, sito na Rua ... nº ..., em Lisboa, do qual a Requerente era proprietária, reuniam ou não condições legais para que o IVA fosse liquidado à taxa reduzida de 6%, de harmonia com a verba 2.23 da Lista I Anexa ao CIVA.

Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 18º, nº 1, alínea a) do Código do IVA, “para as importações, transmissões de bens e prestações de serviços constantes da lista I anexa a este diploma, a taxa [aplicável é] de 6%”, sendo que, a verba 2.23 a Lista I Anexa ao Código prevê que são sujeitas à taxa reduzida do imposto "empreitadas de reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico, realizadas em imóveis ou espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana (áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística, zonas de intervenção das sociedades de reabilitação urbana e outras) delimitadas nos termos legais, ou no âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional”.

Face ao acima transcrito, teremos de analisar e decidir se as obras, incluídas no contrato de empreitada celebrado, realizadas no prédio urbano acima identificado qualificam ou não como empreitadas de reabilitação urbana e, em caso afirmativo, verificar se o imóvel sobre o qual foi realizada a referida empreitada está localizado em ARU, delimitada nos termos legais.

Comecemos por analisar conceito de empreitada, que o legislador fiscal não estabeleceu, e que cuja definição só vamos encontrar no artigo 1207.º do Código Civil (aplicável ex vi nº 2 do artigo 11º da LGT), nos termos do qual se refere que empreitada é “o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço”.

Na mesma linha, a Requerida estabelece, no § 9 da ficha doutrinária no processo n.º 13835 que é “(…) essencial, que o contrato de empreitada tenha por objeto a realização de uma obra, feita segundo determinadas condições, por um preço previamente estipulado, um trabalho ajustado globalmente e não consoante o trabalho diário”.

No que diz respeito ao conceito de reabilitação urbana teremos que nos socorrer do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro, nos termos do qual se define, no seu artigo 2.º, alínea j), como reabilitação urbana, “a forma de intervenção integrada sobre o tecido urbano existente, em que o património urbanístico e imobiliário é mantido, no todo ou em parte substancial, e modernizado através da realização de obras de remodelação ou beneficiação dos sistemas de infraestruturas urbanas, dos equipamentos e dos espaços urbanos ou verdes de utilização coletiva e de obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou demolição dos edifícios”.

Neste âmbito, refira-se que o conceito de reabilitação urbana aqui utilizado é um conceito amplo, que vai desde a modernização ou beneficiação de infraestruturas, dos equipamentos dos espaços urbanos até à construção, reconstrução, ampliação, conservação e demolição de edifícios.

Este conceito abrangente torna-o diferente do conceito de reabilitação de edifícios, previsto na alínea i) do artigo 2º do RJRU, no qual é estabelecido a sua correspondência a uma forma de intervenção destinada a conferir adequadas características de desempenho e de segurança funcional, estrutural e construtiva a um ou a vários edifícios, às construções funcionalmente adjacentes incorporadas no seu logradouro, bem como às frações eventualmente integradas nesse edifício, ou a conceder-lhes novas aptidões funcionais, determinadas em função das opções de reabilitação urbana prosseguidas, com vista a permitir novos usos ou o mesmo uso com padrões de desempenho mais elevados, podendo compreender uma ou mais operações urbanísticas.

Com efeito, se tivermos em conta o disposto na alínea h) do já referido artigo 2.º que define “operação de reabilitação urbana” como o “conjunto articulado de intervenções visando, de forma integrada, a reabilitação urbana de uma determinada área”, reparamos que neste conceito o legislador pretendeu abarcar as intervenções numa determinada área e não edifício a edifício.

Com estas diferentes especificidades do RJRU afigura-se que o legislador fiscal pretendeu, deliberadamente, contemplar na verba 2.23 da Lista I Anexa ao Código do IVA, as obras de reabilitação urbana desde que ocorram em áreas delimitadas de reabilitação urbana (ou seja, em ARU), abrangendo as realizadas em imóveis localizados em áreas de reabilitação urbana, quer se tratem de obras de construção, reconstrução, de demolição e construção de um novo prédio (como no caso em concreto).

Que assim é também o revela a recente alteração legislativa à verba 2.23 da Lista 1 anexa ao Código do IVA, efetuada pela Lei n.º 56/2023 de 6 de outubro, que aprova medidas no âmbito da habitação. A nova redação da citada verba substituiu a expressão “empreitadas de reabilitação urbana”, aplicável à data dos factos, por outra, a vigorar para factos futuros, que é mais restritiva, nos termos seguintes: “As empreitadas de reabilitação de edifícios e as empreitadas de construção ou reabilitação de equipamentos de utilização coletiva de natureza pública”, mantendo-se o requisito da localização em áreas de reabilitação urbana. Esta nova redação não tem natureza interpretativa, pelo que não pode deixar de concluir-se que o legislador também entendeu que na redação anterior (que é aquela que rege os factos em análise nesta ação), a reabilitação não se restringia a edifícios.

Assim, não restam dúvidas a este Tribunal Arbitral que estamos em presença de uma empreitada de reabilitação urbana na situação vertente, consubstanciada na demolição de um edifício seguida da sua (re)construção.

Chegados a esta conclusão, teremos agora de verificar se o imóvel sobre o qual incidiu a empreitada de reabilitação urbana está ou não localizado em área de reabilitação urbana, delimitada nos termos legais.

Tendo em consideração a matéria de facto provada, verifica-se que a CML publicou o aviso n.º 8391/2015, no Diário da República, 2.ª Série, n.º 148, de 31 de julho de 2015, nos termos do qual se estabeleceu uma área de reabilitação urbana (ARU) em Lisboa, na qual se localiza o prédio urbano em questão.

Aliás, a própria Requerida considera verificadas estas condições e, por outro lado, a CML emitiu declaração, comprovando que o local onde decorreram as obras correspondem a uma “Área de reabilitação urbana”.

Nestes termos, considera este Tribunal que estão verificadas as duas condições legalmente previstas para que seja possível aplicar a taxa reduzida às obras realizadas no prédio da Requerente identificado nos autos.

Assim, e no que diz respeito à perspetiva defendida pela Requerida, quer no RIT, quer na Resposta, de que para efeitos de requisitos de aplicabilidade da taxa de IVA reduzida às obras de empreitada em análise faltou a certificação da CML a atestar que as obras em causa consubstanciaram uma “Operação de reabilitação urbana” (o que não veio a acontecer porquanto a CML emitiu certidão da qual consta tratar-se de obra de construção nova não prevista em Plano de Pormenor ou em operação de reabilitação urbana sistemática, conceito inerente ao RJUR).

Contudo, não pode este Tribunal concordar com este “terceiro requisito” apresentado pela Requerida, porquanto o mesmo não resulta, nem da letra, nem do espírito da norma qualquer exigência para além das acima taxativamente já referidas.

E, como vimos, do cumprimento dos dois únicos requisitos legalmente previstos resulta estarmos em presença de uma empreitada de reabilitação urbana, realizada num imóvel localizado em área de reabilitação urbana (ARU), legalmente delimitada.

Com efeito, o Tribunal considera que o argumento da Requerida, quanto à necessidade de obtenção de uma certificação da Câmara a atestar que a obra consubstancia uma “Operação de reabilitação urbana”, não é procedente, dado que na previsão da aludida verba em nenhum lado se determina que a taxa reduzida de IVA obriga a qualquer certificação da natureza pretendida pela Requerida.

Situação semelhante já foi decidida no âmbito do processo P 137/2022 do CAAD que acompanhamos e que, com a devida vénia, aqui parcialmente transcrevemos:

Em rigor estão em causa matérias distintas: (a) a (eventual) aplicação de uma taxa reduzida de IVA a empreitadas de reabilitação urbana situadas área de reabilitação urbana e (b) o processo de licenciamento de obras de reabilitação urbana. A primeira, de natureza fiscal, abrange a situação sub judice e convoca a interpretação da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, sabendo-se que esta interpretação não pode deixar de ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil). A segunda, de natureza jurídico-urbanística, está relacionada com a necessidade de submeter a apreciação e aprovação do respetivo pedido de licenciamento a execução de uma obra de reabilitação urbana. Ora o legislador tributário não previu – porque não quis - na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, a obrigação de a aplicação da taxa reduzida de IVA a empreitadas de reabilitação urbana pressupor a prévia apreciação e aprovação do respetivo pedido de licenciamento por parte da entidade competente. Tal hipótese não encontra o mínimo suporte na lei, pelo que o seu acolhimento no atual contexto violaria o princípio da legalidade tributária, maxime da tipicidade tributária, previsto no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa”. Em sentido similar, podem ainda referir-se, sem pretensões de exaustividade, as decisões dos processos arbitrais n.ºs 849/2021-T,  603/2022-T e 3/2023.

 

No caso em análise, consideramos que não pode proceder o alegado pela Requerida porquanto, na previsão da verba 2.23 não se determina que a taxa reduzida de IVA obrigue a qualquer certificação da natureza pretendida pela Requerida.

Assim, entende este Tribunal estarem reunidas todas as duas condições legalmente previstas para que se considere verificada a aplicabilidade da previsão da verba 2.23 da Lista I Anexa ao Código do IVA e, em consequência, seja de aplicar a taxa reduzida de 6% às obras incluídas no contrato de empreitada celebrado pela Requerente relativo à reabilitação do edifício identificado.

Nestes termos, conclui este Tribunal pela procedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

IV - JUROS INDEMNNIZATÓRIOS

 

A Requerente, no pedido, peticiona ainda a restituição da quantia total paga acrescida do pagamento de juros indemnizatórios.

Neste âmbito, refira-se que a jurisprudência arbitral tem reiteradamente afirmado a competência destes Tribunais para proferir pronúncias condenatórias derivadas do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios originados em atos tributários ilegais que aí sejam impugnados, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e 43.º e 100.º da LGT.

Desta disciplina deriva do dever, que recai sobre a Requerida de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da LGT, fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios por parte da AT que deve reintegrar totalmente a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que “existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado”.

Nos termos do já citado artigo 43.º, da LGT, cujo n.º 1, é estabelecido que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial que há erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

No caso concreto dos autos estamos em presença de autoliquidações que foram praticadas por indicação dos serviços inspetivos da Requerida, no âmbito do procedimento, conforme a posição formalizada no projeto de relatório de inspeção e mantida no RIT (tendo a Requerente regularizado o alegado IVA em falta, apresentando para o efeito declarações de substituição no decurso do processo inspetivo, após a notificação do projeto de relatório e antes de ter sido emitido o RIT final). Deste modo, não pode deixar de considerar-se imputável aos serviços o erro de direito de que enfermam as autoliquidações, tendo em conta o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 43.º da LGT.

 

Assim, tendo em consideração que se julgou procedente o pedido de anulação, quer das autoliquidações de IVA aqui impugnadas, quer do ato indeferimento tácito da reclamação graciosa oportunamente interposta pela Requerente, determina-se que a devolução da quantia total paga pela Requerente, no montante total de € 131.315,42, seja acrescida dos respetivos juros indemnizatórios, a calcular nos termos legais.

 

V - DECISÃO

 

Face ao exposto, decide este Tribunal Arbitral Coletivo:

 

  1. Declarar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação das autoliquidações de IVA nºs ..., ..., ... e ..., respeitantes a 2019 e do ato secundário (silente) que as manteve, bem como determinar a restituição do valor do imposto indevidamente pago no valor global de € 131.315,42, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios, calculados nos termos legais;
  2. Fixar o valor do processo em € 131.315,42, de harmonia com as disposições contidas no artigo 299º, nº 1, do CPC, artigo 97º-A do CPPT, e artigo 3º, nº2, do RCPAT;
  3. Fixar as custas a cargo da Requerida, ao abrigo do nº4 do artigo 22º do RJAT, fixando-se o respetivo montante em € 3.060,00, de acordo com o disposto na tabela I referida no artigo 4º do RCPAT.

 

Texto elaborado em computador, nos termos, nos termos do artigo 131º, nº 5 do CPC, aplicável por remissão do artigo 29º, nº1, alínea e) do RJAT, com versos em branco e revisto pelo Tribunal.

 

Notifique.

Lisboa, 10 de novembro de 2023

 

Árbitro Presidente

 

Dra. Alexandra Coelho Martins

 

Árbitro Vogal (Relator)

 

 

Dr. Arlindo Francisco

 

Árbitro Vogal

 

Dra. Sílvia Oliveira