Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 482/2023-T
Data da decisão: 2024-03-12  IRS  
Valor do pedido: € 19.191,49
Tema: IRS; Cláusula geral anti-abuso; artigo 38.º da Lei Geral Tributária
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Sumário:

I – A aplicação da CGAA implica a demonstração clara, sem qualquer margem de dúvida razoável, que os atos ou negócios foram planeados com vista a obter uma vantagem fiscal e, por outro lado, terem sido empregues meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas;

II – Para a aplicação da CGAA, revela-se imperativa a demonstração do carácter não genuíno das operações concretizadas, ou seja, que estas não foram realizadas por razões económicas válidas;

III – Não há lugar à aplicação da CGAA quando os meios empregues não podem, à luz dos usos e da prática económica da vida das empresas, ser qualificados como atípicos ou anormais, seja quanto à forma jurídica, seja quanto à prática negocial que encerra razões económicas válidas;

IV – As escolhas do sujeito passivo para alcançar um determinado fim não fiscal, recorrendo a meios normais e típicos de efetivação, não deve merecer desvalor, sob pena de se fragilizarem os alicerces do sistema, fundados na tipicidade e legalidade.

DECISÃO ARBITRAL

  1. Relatório

A…, falecido no estado de casado, residente na Avenida …,  Porto, com o Número de Identificação Fiscal (“NIF”) … (“”), representado pelos seus herdeiros B… (“…”), viúva, com o NIF …, residente na Avenida …, Porto, C… (“…”), solteira, menor, com o NIF …, e D… (“…”), solteira, menor, com o NIF …, estas últimas residentes na Rua …, São Mamede de Infesta e representadas pela sua mãe e representante legal E… (“”), divorciada, com o NIF …, residente na Rua …, São Mamede de Infesta (“Requerentes”), vieram, nos termos do artigo 102.º n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), e do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), apresentar pedido de constituição de tribunal arbitral contra o ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), relativo ao ano de 2019, com o número 2021…., de 15-01-2021, e correspondente liquidação de juros compensatórios com o número 2021…, no valor total de 19.191,49 € (dezanove mil cento e noventa e um euros e quarenta e nove cêntimos), e correspondente demonstração de acerto de contas com a data limite de pagamento a 26.04.2021, no seguimento da decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico …, de que foi notificado através do Ofício …, de 29-03-2023, da Direção de Serviços de IRS - Justiça Tributária.

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).

  1. Constituição do Tribunal Arbitral

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Singular foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”).

Pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD foi comunicada a constituição do presente tribunal arbitral singular em 12.09.2023, nos termos da alínea c) do número 1, do artigo 11.º do RJAT.

  1. História Processual

A Requerente pretende, em síntese, a anulação do ato de liquidação adicional de IRS, relativo ao ano de 2019 com o número 2021…., de 15-01-2021, emitido pela Requerida, e correspondente liquidação de juros compensatórios com o número 2021…, no valor total de 19.191,49 € (dezanove mil cento e noventa e um euros e quarenta e nove cêntimos), e correspondente demonstração de acerto de contas com a data-limite de pagamento a 26-04-2021.

Como fundamento da sua pretensão, a Requerente alega que não se encontram verificados os requisitos que permitem a aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso (“CGAA”) prevista no artigo 38.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), pelo que, consequentemente, devem os atos tributários contestados e acima melhor identificados serem anulados.

A Requerente juntou 10 documentos, procuração forense e comprovativo de pagamento da taxa de arbitragem inicial e requereu nos termos do artigo 452.º do Código do Processo Civil (“CPC”), o depoimento de parte de B…, cabeça de casal, sobre os factos vertidos nos artigos 15.º, 16.º, 17.º, 27.º, 28.º, 29.º, 38.º e 39.º.

Foi proferido despacho arbitral tendo em vista a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, querendo, solicitar produção de prova adicional.

A Requerida apresentou resposta, alegando que, no caso sub judice, encontra-se evidenciada uma situação enquadrável no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, uma vez que, face aos elementos de prova relatados ao longo de relatório de inspeção permitem aferir da verificação de uma atividade caracterizável como planeamento fiscal abusivo, ou seja, de uma atuação planeada do contribuinte traduzida num comportamento aparentemente lícito, gerador de uma vantagem fiscal não admitida pelo ordenamento tributário, e tendo sido cumprido o procedimento determinado pelo artigo 63.º do CPPT. A Requerida conclui que a emissão da liquidação efetuada nos termos da norma anti-abuso foi realizada corretamente, não assistindo, em consequência, razão aos Requerentes, por o ato recorrido resultar do escrupuloso cumprimento do quadro legal aplicável, requerendo que o pedido formulado pelos Requerentes seja julgado improcedente, com as devidas consequências legais, devendo manter-se o ato impugnado na ordem jurídica.

A 11 de março de 2024 a Requerida apresentou alegações, mantendo o essencial da linha argumentativa escorrida ao longo do processo.

  1. Saneamento

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

O processo não enferma de nulidades.

  1. Matéria de Facto
  1.  Matéria de Facto Provada

Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:

  • Factos referentes à sociedade F…, S.A. (“…”)
  1. Em 14-01-2006, foi constituída a F…, sociedade anónima com o NIF …, cujo capital social de € 5.000,00 era detido pelos seguintes sócios:
    1. A…, com o NIF …, titular de uma quota com o valor nominal de € 2.000,00;
    2. G… (“…”), com o NIF …, titular de uma quota com o valor nominal de € 2.000,00;
    3. H… (“…”), com o NIF …, titular de uma quota com o valor nominal de € 1.000,00.
  2. O objeto social da F… consiste na prestação de serviços de instalações e operações de rede de televisão privada, com ou sem publicidade, tendo por base infraestruturas informáticas, consistindo numa Startup tecnológica que tem como principal cliente a empresa “I…” do grupo ….
  3. Em 24-07-2007, a F… procedeu à entrada de novos sócios e a um aumento de capital no montante de € 3.680,00, realizado em dinheiro e da seguinte forma:

 

  1. Em 02-12-2009, ocorreu novo aumento de capital no montante de € 2.170,00 integralmente realizado em numerário, na modalidade de novas entradas e subscrito na totalidade pela nova sócia L… SGPS, S.A. (“…”), sociedade anónima com o NIF …, passando o capital social após este aumento para € 10.850,00:

 

  1. Em 24-12-2009 ocorreu novo aumento de capital social no montante de € 39.150,00, na modalidade de novas entradas em numerário e subscrito pelos sócios na proporção das suas participações socais, passando o capital social após este aumento para € 50.000,00:

 

  1. Em 24-12-2009, a F… foi transformada em sociedade anónima e o capital social de € 50.000,00 foi divido em 50.000 ações, de valor nominal de € 1,00 por cada ação;
  2. Em 31-12-2012, a M…, S.A. (“”) vendeu a N… (“”), pai de A…, e a O… (“”), pai de G…, 12.963 ações, de valor nominal de € 1,00 cada uma, representativas de parte do capital social da sociedade F… nas seguintes proporções:
    1. 6.481 ações a N…;
    2. 6.482 ações a O….
  3. O preço global da compra e venda das ações referidas no ponto anterior foi de € 2,00;
  4. Em 31-12-2012, a L… vendeu a N… e a O… na proporção de 50% para cada um, 10.000 ações, de valor nominal de € 1,00 cada uma, representativas de parte do capital social da sociedade F…, as quais se encontravam integralmente realizadas e foram transmitidas sem quaisquer ónus ou encargos e com todos os direitos associados;
  5. O preço global da compra e venda das ações referidas no ponto anterior foi de € 2,00;
  6. Em 31-12-2012, o K… (“…”) transmitiu a H… 2.705 ações, de valor nominal de €1,00 cada uma, representativas de parte do capital social da sociedade F…, passando este acionista a deter 7.571 ações;
  • Factos referentes à sociedade P…, SGPS, Lda. (“…”)
  1. Em 15-01-2014, foi constituída a sociedade P…, sociedade por quotas, com o NIF …, cujo respetivo capital social de € 1.000,00 era detido pelos seguintes dois sócios:
    1. N…, titular de uma quota com o valor nominal de € 500,00;
    2. Q… (“…”), titular de uma quota com o valor nominal de € 500,00.
  2. Em 06-02-2014 e em 20-02-2014, a P…adquiriu, mediante contratos de compra e venda, todas as ações da sociedade F… que eram detidas pelos seguintes sócios:

 

  1. Em resultado, N… e sua esposa Q…passaram a deter a totalidade do capital social da sociedade F…, 77% indiretamente através da P… e 23% diretamente;
  2. Em 17-07-2014, N… e sua esposa Q… doaram, através de contrato de transmissão de ações e quotas por doação, ao seu filho A…, as duas quotas que detinham na P… e 11.481 ações que detinham na F…, passando A… a deter, direta e indiretamente, a totalidade do capital da F…;
  3. A… alienou as 11.481 ações, recebidas por doação, à sociedade P…, pelo valor total de € 514.120,00, resultando um valor de venda por ação de €44,78;
  4. O preço convencionado entre a P… e o seu sócio A… foi fracionado no tempo, sem juros, de acordo com um plano de pagamento em prestações, a ocorrer ao longo de 3 anos, nos termos seguintes:
    1. 50% do valor nos primeiros 6 meses de 2016;
    2. 25% do valor durante o ano de 2017;
    3. Os restantes 25% durante o ano de 2018.
  5. Em resultado da aquisição pela P… ao sócio A… de parte do capital social da F…, foi constituída uma dívida total de € 514.120,00, a qual foi paga em diversas prestações ao longo dos exercícios de 2017, de 2018 e de 2019;
  6. Entre 2016 e 2018, a F… pagou à P… os seguintes montantes a título de dividendos:

 

 

  1. Em 05-12-2015, em consequência da alienação das participações sociais da F… à P… por A…, a F… passou a ser detida pela sociedade P…, que por sua vez era detida pelo sócio-gerente A…;
  2. Em 2019, a F… pagou à P…, o montante total de € 400.000,00 a título de lucros disponíveis;
  3. Em 2019, o sócio A… recebeu ainda a título de adiantamentos por conta de lucros o montante de €250.000,00, tendo a P… efetuado a retenção na fonte de IRS e entregue nos cofres do Estado o respetivo IRS retido na fonte no montante de €70.000,00 (i.e., 250.000,00*28%);
  1. Matéria de Facto Não Provada

Não existe factualidade relevante para a decisão da causa dada como não provada.

  1. Motivação da Decisão da Matéria de Facto

Conforme resulta da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT, ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes.

Desta forma, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como decorre do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Nestes termos, tendo em conta as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos anteriormente elencados.

  1. Questão a decidir

A questão que cabe apreciar no âmbito do presente processo, prende-se com a legalidade da decisão que determinou o indeferimento do recurso hierárquico apresentado por A… contra o despacho de indeferimento da reclamação graciosa do ato de liquidação adicional de IRS, relativo ao ano de 2019, com o número 2021…., de 15-01-2021, e correspondente liquidação de juros compensatórios com o número 2021…, no valor total de 19.191,49 € (dezanove mil cento e noventa e um euros e quarenta e nove cêntimos) e, em consequência, determinar a legalidade da aplicação da CGAA, prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, pela Requerida à situação tributária sub judice.

  1. Matéria de direito

Nos termos do pedido de pronúncia arbitral em referência, os Requerentes entendem, em síntese, que não estavam preenchidos os requisitos para a aplicação do 38.º, n.º 2, da LGT, porquanto nenhum dos negócios analisados ao longo do Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”), nem nenhum daqueles que a Requerida selecionou como abusivo, seja individualmente considerado ou em conjunto, têm um carácter anómalo ou inusual. Por outro lado, defendem os Requerentes que a reorganização societária concretizada pretendeu a concentração da propriedade das ações da F… na P…, sendo que esse efeito económico não poderia ser conseguido sem a transmissão das ações para a P…. Ademais, alegam os Requerentes que a doação das ações a A… e posterior alienação à P… e respetivo pagamento não deve merecer qualquer juízo de reprovação do ordenamento jurídico português. Deste modo, concluíram os Requerentes que não se encontram verificados os requisitos que permitem a aplicação da CGAA, pelo que, consequentemente, não devem os atos praticado ser sancionados nos termos do artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

Por seu turno, a Requerida alegou, em sede de resposta, que existe uma atividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo – i.e., uma atuação planeada de A… traduzida num comportamento aparentemente lícito, gerador de uma vantagem fiscal não admitida pelo ordenamento tributário, integrando um esquema de evitação fiscal – defendendo a Requerida a aplicabilidade da CGAA prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, considerando que ficou, alegadamente, demonstrado o seguinte:

  1. A verificação do elemento meio, porquanto se encontram claramente identificados os negócios jurídicos considerados abusivos, bem como a forma inusual de proceder;
  2. A verificação do elemento resultado, por A… ter logrado obter uma vantagem fiscal através dos atos ou negócios que preenchem o elemento meio;
  3. A verificação do elemento intelectual, atenta a sequência lógica e cronológica em que foram celebrados os negócios jurídicos em questão, permitindo que se considere este conjunto de negócios como um esquema concebido e executado como meio ou ferramenta para a obtenção da evitação fiscal com manifesto abuso das formas jurídicas utilizadas com a pretensão de A…, em relação à construção ou série de construções, de obter vantagens fiscais;
  4. A verificação do elemento normativo, uma vez que o aproveitamento ilícito, através de meios artificiosos ou fraudulentos do regime de exclusão tributária, não pode deixar de merecer censura normativo-sistemática por parte do ordenamento jurídico;
  5. A verificação do elemento sancionatório, nos termos do qual, entende a Requerida que a verificação dos pressupostos referidos supra, implicará a desconsideração, para efeitos fiscais, dos atos e negócios jurídicos abusivos, devendo proceder-se à tributação de acordo com as normas fiscais que seriam aplicáveis aos atos ou negócios que correspondam à substância ou realidade económica subjacente aos atos e negócios desconsiderados.

Neste contexto, concluiu a Requerida que, no caso sub judice, encontra-se evidenciada uma situação enquadrável no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, uma vez que, face aos elementos de prova relatados ao longo de relatório de inspeção permitem, alegadamente, aferir da verificação de uma atividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo, ou seja, de uma atuação planeada do contribuinte traduzida num comportamento aparentemente lícito, gerador de uma vantagem fiscal não admitida pelo ordenamento tributário, e tendo sido cumprido o procedimento determinado pelo artigo 63.º do CPPT.

Vejamos, então:

  1. Do preenchimento dos pressupostos para aplicação da CGAA

Por forma a proceder-se à análise da legalidade da aplicação da CGAA prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, importa proceder, previamente, ao enquadramento daquela norma e, bem assim, à concretização dos respetivos pressupostos de aplicação que constam da norma que a consagra.

Refira-se que o referido normativo foi já objeto de ampla e extensa análise, quer em diversa doutrina, quer em diversa jurisprudência, de que é exemplo o acórdão arbitral proferido, em 01-10-2022, no âmbito do processo n.º 860/2021-T, no qual se referiu o seguinte:

«30. Enquanto ponto de partida cumpre ter presente que aos contribuintes assiste o direito ao livre desenvolvimento de uma actividade económica, que pode ser exercida através do modelo de organização empresarial que aqueles entendam ser mais adequado para o efeito, conforme decorre dos princípios da liberdade de iniciativa económica privada e da liberdade de iniciativa, organização e gestão empresarial previstos nos artigos 61.º, n.º 1, 80.º, alínea c) e 86.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Um corolário da tutela conferida por aqueles princípios é a liberdade de gestão fiscal, nos termos da qual se assegura aos contribuintes a necessária amplitude na planificação das actividades económico-empresariais e na escolha das opções que permitam uma maximização de receitas e uma optimização de custos com a consequente obtenção, dentro dos limites da lei, de todas as vantagens fiscais possíveis.

A este respeito salienta precisamente Nuno Sá Gomes, Direito Fiscal – Vol. II, Rei dos Livros, 2000, 9.ª ed., pp. 101 e seguintes que a “racionalidade da gestão das actividades económicas pressupõe que, em princípio, os agentes económicos devam optimizar os respectivos custos comerciais, industriais, financeiros e fiscais. Sendo assim, a boa gestão fiscal, supõe, obviamente, a minimização dos custos fiscais, que a doutrina designa por economia fiscal ou poupança fiscal, sem prejuízo do rigoroso cumprimento das leis tributárias pelos agentes económicos”. Em idêntico sentido refere Saldanha Sanches, Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, 2006, pp. 62 e seguintes que “o contribuinte – agindo como um “homo economicus” que procura maximizar os seus proveitos – vai estar permanentemente atento às consequências fiscais e económicas dos seus negócios e fazer as suas escolhas depois desta avaliação”.

31. Apesar de, em abstracto, não ser ilegal que os contribuintes optem no desenvolvimento de uma actividade económica pela via menos onerosa fiscalmente, a verdade é que o direito ao planeamento e gestão fiscal não é absoluto. No plano concreto, perante uma colisão de valores conflituantes, aquele direito poderá ser objecto de restrições em virtude da existência de outros princípios ou interesses prevalecentes, tais como a garantia da satisfação das necessidades financeiras do Estado e da repartição justa dos rendimentos e da riqueza de acordo com a capacidade contributiva de cada um (artigos 81.º, alíneas b) e f), 103.º, n.º 1 e 104.º, todos da CRP).

Compreende-se, portanto, que o planeamento fiscal levado a cabo pelos contribuintes nem sempre será legítimo e admissível, particularmente se se esgota em si mesmo por não envolver quaisquer operações ou actividades dotadas de substância económica ou assentes em válidas razões comerciais. Conforme refere Saldanha Sanches, Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, 2006, pp. 176, apesar de competir aos contribuintes “(…) a escolha dos meios específicos pelos quais realizarão os seus negócios: necessário é que exista, como motivo para sua escolha, não uma certa via de obtenção de uma poupança fiscal contra a intenção expressa da lei, mas, sim, o que pode considerar-se como uma razão comercial legítima.”.

32. De modo a delimitar o planeamento fiscal admissível/legítimo do planeamento fiscal inadmissível/ilegítimo, a doutrina tende a distinguir entre três tipos de planeamento: intra ou secundum-legem, contra-legem e extra-legem (para maiores desenvolvimentos a este respeito veja-se António Carlos dos Santos, Planeamento Fiscal, evasão fiscal, elisão fiscal: o fiscalista no seu labirinto, in Revista Fiscalidade n.º 38 ISG Abril-Junho 2009; Saldanha Sanches, Abuso de Direito em matéria fiscal: natureza, alcance e fins, Centro de Estudos Fiscais, 2000 e do mesmo autor Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, 2006; Gustavo Courinha, A Cláusula Geral AntiAbuso no Direito Tributário Contributos para a sua compreensão, Almedina, 2009; Marta Caldas, O Conceito de Planeamento Fiscal Agressivo: Novos Limites ao Planeamento Fiscal?, Cadernos IDEFF n.º 18, Almedina, 2015).

Em termos sintéticos, o planeamento intra ou secundum-legem é aquele em que o contribuinte pratica ou renuncia a um certo comportamento de modo a obter uma poupança ou ganho fiscal equacionado pelo legislador, conforme sucede com o aproveitamento de isenções, deduções ou outros benefícios fiscais. No planeamento contra-legem, também designado por evasão fiscal, o contribuinte procura obter uma vantagem fiscal com recurso a actos que violam directamente a lei e que são censurados por via da aplicação de sanções penais e contraordenacionais, tal como sucede com as condutas que configurem a prática de um crime de fraude fiscal. Já no planeamento fiscal extra-legem, também designado por elisão fiscal, o contribuinte procura assegurar uma redução, diferimento ou supressão dos encargos fiscais através de actuações que, apesar de não violarem directamente a lei, são contrárias aos valores e ao espírito do ordenamento jurídicotributário, sendo por isso objecto de censura.

Para que melhor se compreenda a distinção entre evasão e elisão fiscal, vejam-se as considerações do Comité de Peritos em Cooperação Internacional em Matéria Fiscal, feitas no âmbito da sétima sessão da Revisão do Manual de Negociação de Tratados Bilaterais Fiscais, que decorreu entre 24 e 28 de Outubro de 2011, em Genebra: “Tax avoidance [elisão fiscal] is not tax evasion [evasão fiscal]. Tax avoidance, in contrast, involves the attempt to reduce the amount of taxes otherwise owed by employing legal means. Tax avoidance occurs when persons arrange their affairs in such a way as to take advantage of weaknesses or ambiguities in the tax law. Although the means employed are legal and not fraudulent, the results are considered improper or abusive. (…) The European Court of Justice (ECJ) defined tax avoidance as “artificial arrangements aimed at circumventing tax law”.

Neste sentido, serão casos de elisão fiscal aqueles em que os contribuintes utilizam expedientes anómalos, impróprios ou artificiais, que são desprovidos de racionalidade económica e comercial e cuja utilização se explica pelo intuito proeminente de contornar ou instrumentalizar as normas jurídico-tributárias tendo em vista a obtenção de uma poupança fiscal. Na medida em que são abusivos e contrários ao espírito e propósito do sistema jurídicotributário, estes mecanismos apenas se poderão considerar aparentemente legais, isto é, de um ponto de vista estritamente formal.

33. Ainda que o planeamento fiscal extra-legem seja ilegítimo, a AT não pode colocar em causa sem observância de todos os pressupostos e modos de actuação legalmente impostos e conformados os resultados fiscais obtidos pelos contribuintes. Convém sublinhar a este respeito que a AT, enquanto órgão da Administração Pública do Estado, deve observar na globalidade da sua actuação o princípio da legalidade consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT. De acordo com este princípio, que se encontra densificado no artigo 3.º do Código de Procedimento Administrativo (“CPA”), aplicável ao procedimento tributário ex vi artigo 2.º da LGT, a AT deve “actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respectivos fins”.

Quer isto dizer que, ao ser o princípio da legalidade o fundamento, o critério e o limite da actuação administrativa, e ao ser o planeamento e a gestão fiscal direitos com cobertura constitucional, a AT apenas poderá colocar em causa as opções tomadas pelos contribuintes e corrigir os resultados fiscais alcançados na exacta medida em que a lei lhe confira poderes de actuação para o efeito e em ordem ao seu cumprimento.

34. Um dos mecanismos que permite sindicar a legalidade e colocar em crise o planeamento fiscal realizado pelos contribuintes é a CGAA, que foi precisamente aplicada pela AT aos ora Requerentes de forma a corrigir as respectivas situações jurídico-tributárias. A CGAA está prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT e, à data dos factos que cumpre apreciar nos presentes autos, tinha a seguinte redacção, que constitui, pois, o enunciado legal pertinente para a resolução do caso:

“Artigo 38.º

Ineficácia de actos e negócios jurídicos

(…)

2 – São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.”

Conforme se constata, a norma que prevê a CGAA foi redigida com recurso a conceitos vagos e indeterminados que carecem de uma inevitável concretização normativa – pelos contribuintes, pela AT e, em termos decisivos, pelos Tribunais – para que seja aferida a sua aplicabilidade ao caso concreto.

De facto, tal como se sublinhou no acórdão arbitral proferido no âmbito do processo n.º 162/2017-T, em 14 de Novembro de 2017, “[a] ambiguidade parece ser o principal objectivo deste tipo de técnica legislativa. Ao recortar a CGAA do artigo 38º n.º 2 da LGT, o legislador fiscal reconhece a necessidade de preservar a base tributária e habilitar a AT e os tribunais a proteger as finalidades substantivas do legislador fiscal. A incerteza deliberadamente gerada nos contribuintes leva-os a não se aproximarem muito da linha que demarca a fraude e elisão, permitindo, a um tempo, que a CGAA seja suficientemente flexível para acompanhar as novas transações geradas pela dinâmica e acelerada “indústria do planeamento fiscal agressivo” e que a AT e os tribunais preencham as lacunas do sistema fiscal em situações imprevistas e potenciadoras de abusos”.

Por via da aplicação da CGAA, os actos ou negócios jurídicos abusivos praticados pelos contribuintes com o intuito essencial ou principal de obtenção de uma vantagem fiscal são desconsiderados e requalificados quanto aos efeitos produzidos. Significa isto que, apesar de manterem validade e eficácia quanto aos efeitos civis, são anulados os efeitos tributários que tiverem sido produzidos, “requalificando-se” os actos ou negócios jurídicos de modo que a tributação se processe com base nas normas aplicáveis aos actos equivalentes que teriam sido praticados não fosse o propósito de alcançar a vantagem fiscal indevida.

A este respeito referiu-se no acórdão arbitral proferido no âmbito do processo n.º 415/2020, em 9 de Abril de 2021, que “[o] sentido geral da norma é, nestes termos, o de permitir a desqualificação para efeitos fiscais de um qualquer acto ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte com o único, ou principal, objectivo de obtenção de uma vantagem fiscal, que possa consubstanciar uma fraude à lei fiscal. O efeito jurídico que resulta do funcionamento da cláusula antiabuso é o de considerar os actos como praticados de acordo com o padrão normal do comércio jurídico para obter o mesmo resultado económico, determinando-se a obrigação tributária em função dos actos equivalentes que pudessem ser praticados.”.

 35. Aqui chegados, cumpre então efectuar a “concretização normativa” do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, recorrendo para o efeito ao conjunto de critérios ou elementos que têm sido desenvolvidos pela doutrina, em atenção ao teor do mencionado enunciado normativo, para determinar se a CGAA é ou não aplicável a um certo caso concreto.

Segundo Sérgio Vasques, a aplicação da CGAA depende da verificação de três elementos cumulativos. Nas palavras do autor, em Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2018, pp. 375-376, “[e]m primeiro lugar, exige-se a prática de acto ou negócio artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, exige-se o objectivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objectivos económicos reais. Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e práticas negociais mais comuns”.

Na jurisprudência arbitral, esta concretização normativa foi seguida em diversos acórdãos arbitrais, de que são exemplo os proferidos no âmbito dos processos n.º 415/2020T, em 9 de Abril de 2021; n.º 142/2020-T, em 28 de Janeiro de 2021; n.º 258/2020-T, em 23 de Dezembro de 2020; n.º 788/2019-T, em 17 de Outubro de 2020; n.º 317/2019-T, em 15 de Janeiro de 2020; n.º 166/2019-T, em 26 de Novembro de 2019; n.º 357/2018-T, em 24 de Maio de 2019; n.º 166/2019, em 26 de Novembro de 2019 ou n.º 463/2018-T, em 23 de Abril de 2019.

Já para Gustavo Courinha, ob. cit., o esquema analítico de aplicação da CGAA passa pela verificação de cinco elementos, “correspondendo quatro deles aos requisitos de aplicação da CGAA e um à respectiva estatuição da norma” a saber, “a forma utilizada – elemento meio; a vantagem fiscal e a equivalência económica obtidas – elemento resultado; a motivação do contribuinte – elemento intelectual; a reprovação normativosistemática da vantagem obtida elemento normativo; a efectivação da Cláusula elemento sancionatório”.

Quanto à concretização de cada um destes elementos, registou-se no sumário do primeiro acórdão que apreciou a aplicação pela AT da CGAA, proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, no âmbito do processo n.º 04255/10, em 15 de Fevereiro de 2011, o seguinte:

“1-O elemento meio - o qual tem a ver com a forma utilizada, portanto, com a prática de certos actos ou negócios dirigidos, essencial ou principalmente, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos;

2-O elemento resultado - o qual visa a vantagem fiscal como fim da actividade do contribuinte, portanto, a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos;

3-O elemento intelectual - o qual tem a ver com a motivação fiscal do contribuinte, portanto, com o facto dos actos ou negócios pelo mesmo praticados serem essencial ou principalmente dirigidos ao resultado que é a vantagem fiscal;

4-Elemento normativo - o qual tem a ver com a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida, portanto, o contribuinte actua com manifesto abuso das formas jurídicas (cfr. art°. 63, n° 2, do C.P.P.Tributário).

Na estatuição da norma vamos encontrar o elemento sancionatório que se traduz na ineficácia, no âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos em causa, os quais passam a ser inoponíveis à A. Fiscal (...). O elemento sancionatório corresponde, por isso, à estatuição da norma em apreciação, dependendo a sua aplicação da verificação cumulativa dos pressupostos consagrados na sua previsão”.

Na jurisprudência arbitral, esta concretização normativa também foi seguida em diversos acórdãos arbitrais, de que são exemplo os proferidos no âmbito dos processos n.º 141/2020-T, em 5 de Fevereiro de 2021; n.º 481/2019-T, em 11 de Maio de 2020; n.º 480/2019-T, em 25 de Maio de 2020; n.º 359/2019-T, em 31 de Janeiro de 2020; n.º 47/2019-T, em 18 de Novembro de 2019; n.º 441/2018-T, em 15 de Maio de 2019; n.º 126/2018-T, em 26 de Novembro de 2018; n.º 324/2017T, de 5 de Agosto de 2018; n.º 219/2016-T, de 10 de Julho de 2017.

36. Independentemente da mais-valia dogmática de cada uma das concretizações normativas defendidas na doutrina e desenvolvidas pela jurisprudência, e tendo em conta que este também foi o método seguido pelas partes nos respectivos articulados, será adoptado no presente acórdão o método analítico que decompõe a aplicação da CGAA na apreciação dos elementos resultado, meio, intelectual, normativo e sancionatório.

Cada um dos referidos elementos será analisado de modo individualizado, contudo, é essencial ter presente que tal análise não poder ser feita de modo completamente estanque e segmentado. Ao estarem interligados entre si, impõe-se que a apreciação dos referidos elementos seja feita de modo articulado, encarando a operação a sindicar como um todo. Por conseguinte, e conforme sublinha Gustavo Courinha, ob. cit., p. 165, “os citados elementos, embora devam ser tratados autonomamente, pelo menos do ponto de vista doutrinal, não deixarão com frequência, e na falta de melhor expressão, de “auxiliar-se” mutuamente. A fixação de um elemento pode, na prática, depender [ou resultar da verificação, dizemos nós] de um outro elemento”.

Ainda antes de se proceder à análise de cada um dos elementos enunciados, cumpre ressalvar que a análise a efectuar tem subjacente uma inevitável apreciação casuística das concretas circunstâncias de facto inerentes ao caso sub judice. Tal como se referiu no acórdão arbitral proferido no âmbito do processo n.º 377/2014T, em 22 de Maio de 2014, () o funcionamento da cláusula geral anti-abuso, consagrada no n.º 2 do art. 38.º da LGT, pressupõe sempre uma tarefa de realização concreta do Direito em função das circunstâncias fácticas e dos contornos materiais da situação sub judice, não sendo viável, a seu propósito, sob pena de se desprotegerem as necessidades reais que presidiram à sua consagração, reduzir a sua aplicação à subsunção estrita e automática das realidades a categorias jurídicas abstractas.”.»

Entretanto, a redação da CGAA, prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, foi alterada pela lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, passando a dispor que «São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas

A respeito da atual redação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, a decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 257/2020-T, de 18-10-2021, refere que «Relativamente à versão inicial, a redação atual da CGAA destaca-se por circunscrever a ineficácia de atos e negócios jurídicos ao âmbito tributário, conservando os mesmos a sua validade e eficácia noutros domínios. Digna de nota é, outrossim, a eliminação da exigência de demonstração, sugerindo uma atenuação do standard probatório por parte da AT. No entanto, deve ter-se em conta o artigo 63º n.º 3 alínea b) do CPPT onde se dispõe que a fundamentação do projeto e da decisão de aplicação da CGAA deve conter a demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do ato jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou ato com idêntico fim económico, ou à produção de vantagens fiscais. Esta última referência, feita em termos genéricos, aponta para a irrelevância da questão de saber quem é que efetivamente obteve as vantagens fiscais. Se qualquer das partes envolvida na transação obteve uma vantagem fiscal indevida, por não ter sido contemplada pelo legislador tributário e não ter correspondência com a substância económica, cabe à AT considera-la ineficaz e neutralizar a produção da mesma. Este aspeto é especialmente relevante nos casos em que a vantagem é produzida e obtida dentro de uma lógica de grupo.

O artigo 38º n.º 2 da LGT vincula a CGAA a um principal purpose test (PPT), formulado pelo legislador nacional como propósito essencial ou principal, e à presença de condutas que indiciem o recurso a meios artificiosos e fraudulentos e o abuso de formas jurídicas. Ponto é que se tenha em vista a) a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos devidos por força de factos, atos ou negócios de idêntico fim económico ou b) a produção de vantagens fiscais dependentes daqueles meios. Num caso e noutro, a tributação é feita de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos atos e meios em causa, não se produzindo as vantagens fiscais referidas.

Da exegese do artigo 38º n.º 2 da LGT resulta que a AT deve carrear elementos indiciários que lhe permitam estabelecer a existência de uma operação artificiosa e abusiva de acordo com o crivo, de exigência intermédia, da preponderância da prova ou equilíbrio das probabilidades que em vários quadrantes tem vindo a ser associado à aplicação das CGAA’s. Isso obriga a uma abordagem contextual e factual dos casos concretos, simultaneamente atenta à teleologia das normas fiscais e às características e objetivos das transações. Especialmente importante é a análise da transação na sua totalidade, atentando a todos os seus passos e participantes, reservando um escrutínio particularmente exigente quando se tratar de transações envolvendo sócios e sociedades do mesmo grupo. Nestes casos, o princípio da primazia da substância sobre a forma admite que certas entidades “agrupadas” possam ser consideradas com um único contribuinte.

A ambiguidade parece ser o principal objetivo deste tipo de técnica legislativa. Ao recortar a CGAA do artigo 38º n.º 2 da LGT, o legislador fiscal reconhece a necessidade de preservar a base tributária e habilitar a AT e os tribunais a proteger as finalidades substantivas do legislador fiscal. A incerteza deliberadamente gerada nos contribuintes leva-os a não se aproximarem muito da linha que demarca a fraude e elisão, permitindo, a um tempo, que a CGAA seja suficientemente flexível para acompanhar as novas transações geradas pela dinâmica e acelerada “indústria do planeamento fiscal agressivo” e que a AT e os tribunais preencham as lacunas do sistema fiscal em situações imprevistas e potenciadoras de abusos.

A CGAA do artigo 38º n.º 2 da LGT não permite a redução, eliminação, diferimento de impostos ou a produção de vantagens fiscais nos casos em que a transação que as originou não possa ser razoavelmente considerada como tendo um propósito económico principal e manifeste uma utilização artificiosa, fraudulenta e abusiva das formas jurídicas. Nesses casos, a AT tem o poder/dever de requalificar a operação realizada e liquidar o imposto de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e como se a vantagem fiscal nunca tivesse sido produzida. Por outras palavras, ela tem o poder de reescrever a transação abusiva e liquidar os impostos que seriam devidos se a mesma nunca tivesse ocorrido.”»

Aqui chegados, importa, agora, proceder à análise do caso em crise em cada um dos pressupostos de que dependente a aplicação da CGAA ínsita no artigo 38.º, n.º 2, da LGT:

  1. Elemento meio

No que se refere ao elemento meio, o mesmo diz respeito à via livremente escolhida – ato ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de atos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal.

A Requerida entende que no caso vertente estamos na presença de uma estrutura, enquanto conjunto de atos e negócios sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário (encadeados), com vista a atingir um determinado objetivo fiscal.

Contudo, se é certo que a Requerida identifica um conjunto de atos ou negócios jurídicos que envolveram alterações à estrutura societária das sociedades F… e P… ao longo do tempo (i.e., entre 31-12-2012, data em que a M… vendeu a N… e a O… ações representativas de parte do capital social da sociedade F…, e 14-11-2019, data em que foi realizado o último pagamento por parte de A… à P…), a Requerida não logrou provar que os mesmos faziam parte de uma estrutura planeada e organizada de modo unitário, com vista a atingir, supostamente, o objetivo fiscal visado, no sentido de distribuir dividendos sem os sujeitar a retenção na fonte de IRS à taxa liberatória de 28%, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, e n.º 2, alínea h) do Código do IRS e, bem assim, do artigo 71.º, n.º 1, alínea a) daquele mesmo Código.

Como é da natureza das relações económicas e da vida das empresas, os grupos empresariais podem e devem criar condições favoráveis, designadamente de natureza fiscal, que facilitem e incentivem a criação de grupos económicos, enquanto instrumentos adequados a contribuir para fortalecimento do tecido empresarial, nomeadamente com vista à criação de condições que permitam reunir numa única sociedade as participações sociais, para uma gestão centralizada e especializada.

Por outro lado, acompanha-se a tese dos Requerentes quando alegam que, de facto, nenhum dos negócios, operações ou transações identificados no RIT revestem, individualmente considerados ou no seu conjunto, um carácter anómalo ou inusual no contexto factual em que se inseriam, quer a F… quer a P….

Mais, a seleção dos factos assentes não permite extrair qualquer conclusão de que os atos ou negócios jurídicos em causa tiveram motivações fiscais, uma vez que a concentração de participações numa única entidade constitui uma operação usualmente levada a cabo por razões económicas e que, só por si, não reflete qualquer intenção dos seus participantes elidir a tributação dos putativos dividendos pagos pela P… a A…. Assim, também por esta via, não assiste razão à Requerida quando alega no RIT que «(…) a venda das ações que detinha de forma não tem qualquer substância económica, dado que a situação anterior à venda se mantém após a venda.»

Neste contexto, ao contrário do que alega a Requerida, não pode afirmar-se que as operações em referência apenas tiveram como objetivo gerar uma dívida a favor do sócio de modo a este efetuar retiradas da sociedade sem serem tributadas, uma vez que as aludidas operações permitiram, pelo menos, também, que a P… passasse a deter a totalidade do capital social da F…, tendo em vista a concentração das participações nesta última sociedade.

Acresce que, o espaçamento temporal dos atos qualificados pela Requerida como integrantes do alegado esquema elisivo, que se prolongaram, pelo menos desde 31-12-2012 (data em que a M… vendeu a N…, pai de A…, e a O…, pai de G…, ações representativas de parte do capital social da sociedade F…) até 14-11-2019 (data em que foi realizado o último pagamento por parte da P… a A…) não denota nenhuma circunstância objetiva que os conexione e que permita estabelecer uma ligação aos supostamente atos finais de pagamento por parte da P…. a A….

Em paralelo, refira-se que a Requerida alega no RIT que a avaliação feita da F… por A… padece de erros metodológicos e de falta de credibilidade e que o valor encontrado tem ligação direta ao valor dos dividendos distribuídos. Contudo, a Requerida não logrou provar o que alega, não demonstrando qual o valor correto da F… e a razão subjacente para a falta de credibilidade dos métodos utilizados por A…, não podendo, a este título, ser descurado o livre funcionamento do mercado em que se inserem as entidades envolvidas e a autonomia privada que se manifesta através do exercício dos direitos subjetivos e da possibilidade de celebração de negócios jurídicos (liberdade contratual) que se encontra vigente no nosso ordenamento jurídico.

Os negócios jurídicos concretizados entre 2012 e 2019 não espelham, assim, em qualquer cenário, uma forma anómala, inusual, artificiosa, complexa ou mesmo contraditória, uma vez que o seu fim resultou, conforme alegam os Requerentes, na concentração da totalidade das participações sociais da F… na P… (o que veio efetivamente a ocorrer).

Assim, a Requerida não logrou provar a conexão objetiva, entre si, dos atos e/ou operações materializados, demonstrando que os mesmos foram pré-planificados ou que contêm um carácter unitário, isto é, que cada um dos referidos atos compõem uma série ou sequência com um objetivo fiscal final.

Deste modo, não tendo a Requerida afastado as dúvidas de que a Requerida possa ter reorganizado a estrutura societária do Grupo por outras motivações que não fiscais, entende este Tribunal não poder merecer censura o facto de A… promover os atos jurídicos necessários que permitissem a concentração de todas as ações da F… na esfera da P….

Face a todo o exposto, deve concluir-se que não se encontra preenchido o elemento meio, considerando que a Requerida não logrou provar que os atos ou negócios jurídicos concretizados por A… configuram negócios jurídicos abusivos e que os mesmos refletem uma forma inusual de proceder.

  1. Elemento resultado

Neste plano, cabe determinar se as operações concretizadas por A… e elencadas nos factos acima expostos foram executados ou ordenados de modo a obter uma redução, eliminação ou diferimento temporal do imposto. Por outras palavras, o elemento resultado reporta-se à vantagem obtida, isto é, à consequência que advém dos negócios jurídicos praticados.

A sua verificação da condição em apreço dá-se quando, por meio da estrutura jurídica utilizada, se alcance a «redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios».

Contudo, aquilo que resulta no caso em análise é que a constituição da P…visou concentrar nesta entidade a totalidade das ações da F…, com vista à constituição de uma sociedade holding que passasse a deter todas as participações detidas em outras entidades participadas.

Ora, a Requerida não logrou provar que A… pretendeu, pois, enquanto resultado, contornar a lei fiscal e praticar certo ato ou negócio com vista a obter uma vantagem fiscal. E por vantagem fiscal entende-se qualquer situação em que, em virtude da prática de certos atos, se alcança uma carga tributária que é mais favorável do que aquela que resultaria da prática de atos normais e de efeito económico equivalente, sujeitos a tributação. Nos casos de aplicação da CGAA, a vantagem fiscal é condicionante e determinante na atuação do contribuinte.

Não resulta, igualmente, provada a conexão que a Requerida pretendeu estabelecer entre a data do início da implementação do alegado esquema elisivo por parte de A… em 31-12-2012 e a data do último pagamento realizado pela P… a A… em 14-11-2019 e, que por via das operações a montante A… pretendeu obter uma determinada vantagem fiscal.

Cabendo à Requerida o ónus da prova dos factos alegados para aplicação da CGAA, no caso dos autos, tendo em conta o enquadramento fáctico, há-de concluir-se pela ausência de prova quanto à exclusividade ou preponderância do interesse fiscal na prática da sucessão de atos que também conduziram a uma efetiva poupança fiscal.

Concluindo, a Requerida não conseguiu demonstrar que A…, em resultado dos atos praticados obteve uma determinada vantagem fiscal que não obteria em resultado da prática de atos normais e de efeito económico equivalente, sujeitos a tributação.

Com efeito, entende-se não estar demonstrado o elemento resultado, de verificação necessária à aplicação da CGAA.

  1. Elemento intelectual

A este título, tratava-se de saber se, para além da verificação de um tratamento fiscal mais vantajoso, o mesmo foi alcançado como o intuito essencial ou principal do contribuinte.

Ou seja, importa concluir se o meio utilizado tinha sido escolhido com a finalidade principal de «redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos», porque apenas deveriam ser havidas como elisivas as transações em que o objetivo de economia fiscal fosse essencialmente dirigido a obter uma vantagem fiscal.

Como tem sido diversas vezes realçado, designadamente na decisão arbitral do CAAD, proferida no âmbito do processo n.º 173/2015-T, «A demonstração deste intuito principal (fiscal) pode, por isso, revelar-se complexa, e, na maioria das vezes, sê-lo-á, considerando as dificuldades inerentes à prova da vertente subjectiva (isto é, das motivações do sujeito passivo), o que, no limite, conduziria a uma “prova diabólica” ou impossível». (...) «Antes, relevará a motivação desses sujeitos, tal como é revelada em factos objectiva e concretamente apreensíveis, sem que tanto se confunda, obviamente, com a mera corporização, em documentos, de declarações de intenção. Ou seja, a prova do fim fiscal assentará, em conformidade com a concepção objectiva abraçada pelo artigo 63.º do C.P.P.T., em elementos de facto, objectivos, dos quais se retira ilação relativa à intenção do contribuinte».

Ora, efetivamente, importa reconhecer que a Requerida não suporta a suposição que faz no RIT do potencial lucrativo da empresa F… em 2013 em qualquer factualidade relevante que permita proferir tal afirmação.

A F…, desde a data da sua constituição, conheceu diversos sócios, alguns deles institucionais. Não parece plausível, como resulta da tese erigida pela Requerida, que apenas A… tivesse antecipado que aquela sociedade iria estar, diversos anos mais tarde, numa posição financeiramente favorável.

Acresce que dificilmente se possa admitir que apenas A… num hiato temporal tão alargado, como o que está em causa no caso em análise, conseguiu antecipar que a F… iria gerar lucros significativos no futuro, planeando a distribuição desses mesmo lucros de forma a elidir o pagamento dos respetivos impostos associados, sem que outros sócios, totalmente alheios a qualquer ligação ou relação familiar a A…, tivessem dado conta do potencial económico que a sociedade viria a gerar no futuro.

A Requerida não junta, assim, qualquer elemento objetivo ou prova que suporte a tese de que A… atuou de forma premeditada com vista a alcançar uma determinada vantagem fiscal e que os atos ou negócios identificados pela Requerida foram gizados essencial, principalmente ou tendo como uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal.

Também pelas razões expostas supra se entende que não se encontra provado pela Requerida o elemento intelectual, necessário à aplicação da CGAA.

  1. Elemento normativo

No que ao elemento normativo diz respeito, embora se tratando do requisito menos evidente da CGAA, a existência de uma reprovação pela lei ou pelo sistema fiscal do resultado obtido pelo contribuinte é, segundo a totalidade da doutrina, conditio insuperável da aplicação em termos constitucionalmente conformes desta disposição geral anti-abuso, porquanto traduz a importação para a sede fiscal nacional das conceções de proibição de fraude à lei já consagrada noutros ordenamentos.

A este título, acompanhamos o teor da decisão arbitral do CAAD, proferida no âmbito do processo n.º 141/2020-T, de 05-02-2021, quando aí se refere que «Nesta linha, para SALDANHA SANCHES, “Abuso de direito em matéria fiscal: natureza, alcance e limites”, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 398, 2000, pp. 26-30: “A aplicação de normas anti-abusivas não pode por isso preceder a tarefa constitucionalmente imposta ao legislador de construção de um sistema de tributação de rendimento sem falhas ostensivas nem zonas de não-tributação.” Mais recentemente, em SALDANHA SANCHES (2006), Os Limites do Planeamento Fiscal, Almedina, Coimbra, p. 177, esclarece o autor sobre a necessidade de existir, para efeitos da Cláusula Geral Anti Abuso, uma “intenção de abrangência por parte do legislador fiscal.”

Segundo GUSTAVO LOPES COURINHA, A cláusula geral anti abuso no Direito Tributário: contributos para a sua compreensão, Almedina, Coimbra, 2004, p. 144: “se o resultado fiscalmente menos oneroso – vantagem fiscal – for admitido, tolerado, ou mesmo estimulado pela lei (…) não é condenável à luz da teoria da Fraude à Lei”, o que impediria a aplicação da Cláusula Geral Anti Abuso. E, ainda segundo o mesmo autor “O ato fraudulento configura-se em função da reprovação pelo Direito da sua natureza verdadeira e substancial – os efeitos obtidos. Efeitos esses que não são desejados, previstos ou promovidos pelo Direito, mas antes rejeitados” (p. 187); a pp. 188-9, refere que: “O elemento normativo destina-se a conferir coerência ao sistema fiscal, às normas e ao Ordenamento, i.e. à interpretação e aplicação do Direito Tributário, tentando extrair, manter presente e evidenciar os princípios e propósitos que os enformam – o espírito e intenção da lei e não apenas a sua letra, contribuindo para a sua compreensão e evitando os respetivos abusos formais (...)”, concluindo, finalmente o autor que “o elemento normativo pretende auxiliar no enquadramento da norma fiscal numa perspetiva não literal, com vista à obtenção de soluções sistemática e teleologicamente consideradas.”

De acordo com RICARDO DA PALMA BORGES, A zona franca da Madeira entre a isenção e a elisão: um contributo para o estudo do direito tributário internacional português, inédito, disponível na biblioteca da FDL, 2003, pp. 383-4: “Para a viabilidade da aplicação da fraude à lei, rectius à intenção normativa, em matéria fiscal, é necessário, em primeiro lugar, estar-se perante um ordenamento jurídico que, no plano tributário, se norteie teleologicamente, nomeadamente recorrendo a uma base de incidência tão ampla quanto possível. Perante a pretensão de plenitude de previsão do sistema, será mais fácil distinguir entre omissão juridicamente intencional e não intencional ou lacuna, e fundamentar a existência de abuso. O Estado Fiscal contemporâneo supõe uma metodologia jurídico-fiscal própria, avessa a assintonias legislativas flagrantes que tributem na base da mera forma.”

Por seu turno, MARCELO COSTENARI CAVALI, Cláusula Gerais Antielusivas: Reflexões acerca da sua conformidade constitucional em Portugal e no Brasil, Almedina, Coimbra, 2006, p. 250, sustenta que: “(...) a cláusula somente será aplicável se o intérprete entender que, na sua ausência, o resultado seria contrário à razão de ser da lei e do próprio ordenamento.”»

Ora, conforme ficou claro a motivação de A… na constituição da sociedade P… foi a de criação de um veículo societário (holding) que reunisse todas as participações detidas noutras sociedades, tendo sempre com motivação subjacente a concentração de capital e controlo (deixando para trás outros sócios terceiros que estiveram na origem da sociedade F…).

Acresce que ficou por demonstrar que A… não recorreu a meios normais e típicos de efetivação das operações concretizadas e que se verificou o abuso de formas jurídicas para o alcançar.

Não se vislumbra, por conseguinte, o preenchimento do requisito da reprovação normativo-sistemática estabelecida na CGAA, por não se provar uma situação efetiva de fraude à lei.

  1. Elemento sancionatório

Por fim, não resultando a verificação cumulativa dos restantes elementos, nos termos supra expostos, não há lugar à ineficácia, no âmbito tributário, dos atos ou negócios levados a cabo por A…, nos termos do artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

  1. Conclusão

Apesar desta desconstrução, a análise dos elementos que permitem, em tese, aplicar a CGAA não pode ser estanque, pois, como realça Gustavo Lopes Courinha, «a fixação de um elemento pode, na prática, depender de um outro», pelo que estes «não deixarão com frequência [...] de auxiliar-se mutuamente».

Contudo, o não preenchimento de um dos elementos, pressupostos da aplicação da CGAA, constitui fundamento da ilegalidade dos atos tributários controvertidos.

Ora, como ficou patente, a CGAA tem a sua aplicação aos comportamentos de contorno de normas jurídico-fiscais, tendo como uma das finalidades a obtenção de uma vantagem fiscal. Para este efeito, não pode deixar de ficar claramente demonstrado, sem qualquer margem de dúvida razoável, que os atos ou negócios foram planeados com vista a obter uma vantagem fiscal e, por outro lado, terem sido empregues meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas.

Por outras palavras, para a aplicação da CGAA, revela-se imperativa a demonstração do carácter não genuíno das operações concretizadas, ou seja, que estas não foram realizadas por razões económicas válidas.

Ora, da leitura conjugada dos factos assentes resulta que a motivação da constituição da P… foi a criação de um veículo societário (holding) que reunisse as participações detidas por A…, designadamente as participações na sociedade F…, passando a detenção daquelas participações de forma direta para indireta.

Por outro lado, os meios empregues não podem, à luz dos usos e da prática económica da vida das empresas, ser qualificados como atípicos ou anormais, seja quanto à forma jurídica, seja quanto à prática negocial que encerra razões económicas válidas e que a Requerida não logrou provar o contrário.

Deste modo, para além dos motivos económicos válidos, que se concretizaram, pois vieram efetivamente a ocorrer (concentração de participações na P… e a detenção e gestão institucional das participações), não se vislumbra qualquer configuração jurídica anómala ou artificiosa, isto é, com abuso das formas jurídicas.

Em complemento, e ao contrário do que alega a Requerida, resulta de difícil compreensão que A… pudesse antever, com vários anos de antecipação, que a sociedade F… iria gerar resultados positivos no futuro quer permitissem a distribuição de dividendos, quando até então todos os dados financeiros daquela sociedade eram indiciadores do contrário e sem que os outros sócios (entidades terceiras) alcançassem semelhante raciocínio.

Mais, não se compreende que após vários anos de resultados financeiros negativos na F…, um dos seus sócios iniciasse um plano com o objetivo de vir a beneficiar dessa estrutura vários anos mais tarde, com o objetivo primordial de eliminar a tributação sobre pagamentos que, no cenário mais provável, poderia nunca vir a ocorrer.

No ordenamento jurídico português é possível encontrar diversas normas que fomentam as operações de reorganização societária, através do diferimento das suas consequências fiscais.

Não resulta, portanto, provado que a conta a receber por A… sobre a sociedade F… visou permitir que a sociedade F… pudesse distribuir dividendos ao seu sócio A… ao longo do tempo, a título de reembolso de uma dívida.

Não pode deixar de se salientar que a CGAA constitui uma solução de última ratio, de natureza excecional, não podendo deixar de ser interpretada enquanto tal. As escolhas de A… para alcançar um determinado fim não fiscal, recorrendo a meios normais e típicos de efetivação, não deve merecer tal desvalor, sob pena de se fragilizarem os alicerces do sistema, fundados na tipicidade e legalidade, enveredando-se por um casuísmo metodológico que, por razões de segurança jurídica, não se acolhe.

Com efeito, é forçoso concluir que não se encontram preenchidos os elementos de que dependente a aplicação da CGAA.

Deve assim concluir-se que a decisão que determinou o indeferimento do recurso hierárquico apresentado por A… contra o despacho de indeferimento da reclamação graciosa do ato de liquidação adicional de IRS, relativo ao ano de 2019, com o número 2021…., de 15-01-2021, e correspondente liquidação de juros compensatórios com o número 2021…, no valor total de 19.191,49 € (dezanove mil cento e noventa e um euros e quarenta e nove cêntimos) são ilegais devendo, em consequência, ser anulados, com as demais consequências legais.

  1. Decisão

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, decide o presente Tribunal Arbitral julgar totalmente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral, anulando-se a decisão de indeferimento do recurso hierárquico apresentado por A… contra o despacho de indeferimento da reclamação graciosa, bem como o ato de liquidação adicional de IRS, relativo ao ano de 2019, com o número 2021…., de 15-01-2021, e correspondente liquidação de juros compensatórios com o número 2021…, no valor total de 19.191,49 € (dezanove mil cento e noventa e um euros e quarenta e nove cêntimos);

  1. Valor do Processo

Fixa-se ao processo o valor de 19.191,49 €, em conformidade com o disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

  1. Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante de custas arbitrais em € 1.224,00 de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT, ficando o referido montante, na íntegra, a cargo da Requerida.

Notifique-se.

Lisboa, 12 de março de 2024

O Árbitro,

Sérgio Santos Pereira