Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 443/2022-T
Data da decisão: 2023-05-18  IRC  
Valor do pedido: € 177.191,22
Tema: IRC – Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento (“CFEI”)
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SUMÁRIO

O benefício fiscal previsto na Lei n.º 49/2013, de 16 de Julho, que criou o Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento, não é aplicável a activos que devam ser contabilisticamente reconhecidos como propriedades de investimento.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Nuno Maldonado Sousa e A. Sérgio de Matos, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

            1. A… , S.A., com o número de identificação fiscal …, com sede no …, …, n.º …, ….º, em Lisboa (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e dos actos de liquidação de IRC objecto daquele pedido n.ºs 2017 ... e 2019 ..., referentes ao período de tributação de 2013 e n.ºs 2017 ... e 2019 ..., referentes ao período de tributação de 2014, na parte respeitante ao Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento (“CFEI”).

 

            2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 25 de Julho de 2022 pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).

 

            3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 15 de Setembro de 2022, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

            4. O Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido, em síntese, tendo em conta os seguintes argumentos:

  1. Para efeitos da prossecução da sua actividade económica, a Requerente é proprietária e explora comercialmente o prédio urbano habitualmente designado por “Edifício ...”, designadamente através da celebração de contratos de arrendamento;
  2. A actividade da Requerente compreende um conjunto de serviços conexos com a cedência de espaço comercial que implicam que o contrato de utilização de loja extravase em larga medida a mera cedência (arrendamento) de um espaço;
  3. A Requerente oferece um produto aos consumidores, consistente num espaço comercial, incorrendo em custos vários com a decoração, manutenção, limpeza e segurança do mesmo;
  4. Os lojistas, enquanto arrendatários, comparticipam nas despesas e encargos com o funcionamento e utilização do Centro Comercial e publicidade e promoção deste, para além de pagarem uma componente de renda variável em função do volume de vendas;
  5. Estas premissas valem igualmente para os contratos de utilização de espaços destinados a escritórios e para os food-courts, nos quais são contratualmente estipuladas obrigações para a Requerente e para os arrendatários, que implicam que o contrato de arrendamento comercial extravase em larga medida a mera cedência de um espaço;
  6. Previamente à celebração dos contratos e mesmo à implementação do Centro Comercial, a Requerente levou a cabo estudos técnicos, que envolveram pesquisa de mercado, estudos de viabilidade económica, de projectos e de distribuição de “tenant mix” com vista à concepção, implantação e implementação do Centro Comercial;
  7. Durante o ano de 2013 a Requerente levou a cabo investimentos no Edifício ... que considerou elegíveis para efeitos do CFEI, no montante total de € 876.595,10;
  8. A Requerente apenas deduziu à colecta do período de tributação de 2013 o montante de € 158.871,67, tendo transitado para o período de tributação seguinte o excedente, no montante de € 18.319,55, em cumprimento do disposto no artigo 3.º, n.º 6 da Lei 49/2013;
  9. Em sede de procedimento de inspecção os Serviços de Inspecção Tributária (“SIT”) entenderam que por estar o activo em causa registado na conta “Propriedades de Investimento”, e por estarem as despesas a este associadas registadas em contas de investimento, não podia a Requerente beneficiar do CFEI, porquanto o investimento em causa não foi concretizado em bens do Activo Fixo Tangível;
  10. A correcção dos SIT é ilegal porque o Edifício ... é, em substância, um elemento tangível de exploração, ou activo operacional, cabendo na definição da NCRF 7, sendo que o registo contabilístico do activo em causa não poderá ser critério para negar o direito da Requerente a beneficiar do CFEI;
  11. Do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 49/2013, de 16 de Julho resulta que o legislador fiscal do CFEI adoptou a terminologia contabilística para definir o tipo de investimento relevante, o que nos remete necessariamente para uma interpretação dos referidos conceitos;
  12.  A Requerente registou o Edifício ... contabilisticamente como propriedade de investimento, tendo as despesas incorridas sido contabilizadas como despesas de investimento em activo afecto à exploração;
  13.  Não obstante este tratamento contabilístico, não assiste razão aos SIT para considerarem que aquele investimento não estava abrangido pelo CFEI;
  14.  No Plano Oficial de Contabilidade (“POC”) distinguiam-se os “imóveis” que se definiam como “edificações urbanas e propriedades rústicas que não estejam afectas à actividade operacional da empresa” dos “edifícios e outras construções” que eram imobilizações corpóreas, afectas à actividade operacional;
  15. Tendo em vista uma separação, no balanço, dos terrenos e edifícios adquiridos com fins de aplicação passiva de fundos ou valorização do capital, e não para serem geridos no contexto da actividade operacional das empresas, a Norma Contabilística e de Relato Financeiro (“NCRF”) 11 estabelece que as propriedades de investimento não se destinam a ser usados “na produção ou fornecimento de bens ou serviços ou para finalidades administrativas” nem a ser objecto de “[v]enda no curso ordinário do negócio”;
  16. Já na NCRF 7 dispunha-se que os activos fixos tangíveis correspondem aos activos que “Sejam detidos para uso na produção ou fornecimento de bens ou serviços, para arrendamento a outros, ou para fins administrativos” e que “Se espera que sejam usados durante mais do que um período”;
  17. Ora, o Edifício ... deve ser enquadrado materialmente no conceito de activo fixo tangível;
  18. Por um lado, porque a actividade da Requerente tendente à exploração do Edifício ... iniciou-se em momento anterior à sua construção, através da realização de estudos de mercado para que a localização e clientela se ajustassem aos lojistas e clientes que viessem a usar os espaços;
  19. Por outro lado, porque a actividade desenvolvida pela Requerente no que toca à gestão do Edifício ... reveste-se de um carácter activo, não se resumindo à mera cedência de espaços para exploração comercial por terceiros;
  20.  No plano material, o activo em causa distancia-se das características apontadas ao conceito de propriedade de investimento;
  21. Nos contratos de utilização de espaço em centro comercial é estabelecido um compromisso mútuo entre o lojista e a Requerente que se traduz, para o lojista, na sujeição à política comercial e de gestão delineada para o Edifício ... e, para a Requerente, na assunção do sucesso ou insucesso do negócio do lojista;
  22. A comprová-lo está, desde logo, a fixação de rendas variáveis em função do volume de vendas das lojas, a obrigatoriedade de os projectos de obras realizadas pelos lojistas terem a prévia aprovação da Requerente e a insusceptibilidade de transmissão da posição contratual por parte dos lojistas sem a prévia autorização da Requerente;
  23. No presente caso, existem ainda inúmeros indícios de exercício de controlo, pela Requerente, sobre o activo em questão: quem define que dias e quantas horas o espaço está aberto ao público é a Requerente; um lojista não pode em circunstância alguma sublocar o espaço a um terceiro sem a prévia autorização da Requerente e os lojistas não podem mudar a firma e manter o contrato sem a prévia autorização expressa da Requerente;
  24. Em suma, o Edifício ... reúne todas as condições para ser classificado como activo fixo tangível e não como propriedade de investimento, por ser comprovadamente indispensável para o exercício da actividade principal da Requerente e por existir uma efectiva actividade operacional permanente e de exploração do Centro Comercial por parte da Requerente, e não um mero recebimento de rendas;
  25. O registo contabilístico dos investimentos no Edifício ... como elemento de uma propriedade de investimento não pode conduzir à sua exclusão do âmbito do CFEI, porquanto o mesmo é efectivamente afecto à exploração da Requerente, de tal modo que cumpre o propósito do CFEI e pode ser qualificado como activo fixo tangível;
  26. Uma determinada classificação contabilística não permite que se ignore a realidade material ou substancial do activo em causa, nem impede que se indague a efectiva natureza das coisas e não apenas a sua veste contabilística;
  27. A classificação contabilística do activo em causa como propriedade de investimento não impede que se conclua que, materialmente, estamos perante um activo fixo tangível, abrangido pelo âmbito de aplicação do benefício fiscal do CFEI;
  28. A inacessibilidade ao CFEI pela Requerente em função da contabilização do activo como propriedade de investimento seria sempre ilegal e inconstitucional, por violação do princípio da igualdade (artigos 6.º do EBF e 13.º da Constituição da República Portuguesa), e potencialmente geradora de distorções do espírito deste benefício fiscal;
  29. À luz daquele princípio, duas realidades idênticas deverão ter o mesmo tratamento, concretamente ao nível do benefício fiscal, independentemente do que seja (ou tenha sido) o entendimento do sujeito passivo sobre a classificação contabilística a adoptar;
  30. A norma prevista no artigo 4.º, n.º 1, da Lei 49/2013 (conforme em vigor à data dos factos), interpretada no sentido de que a contabilização de um activo como propriedade de investimento, ainda que reúna todas as condições para ser classificado como activo fixo tangível, impede que as despesas a este associadas possam ser consideradas despesas de investimento elegíveis para efeitos de aplicação do CFEI, é inconstitucional por violação do princípio da igualdade, inscrito no artigo 13.º da CRP.

 

            5. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 4 de Outubro de 2022, sendo que naquela mesma data foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.

 

            6. Em 7 de Novembro de 2022, a Requerida apresentou a sua resposta, tendo-se defendido por excepção e por impugnação, requerendo a sua absolvição da instância ou, subsidiariamente, a sua absolvição de todos os pedidos:

  1. Começou a Requerida por mencionar que o pedido de revisão oficiosa e o presente pedido arbitral apresentados pela Requerente têm exclusivamente por objecto a parte das liquidações decorrentes das correcções ao benefício fiscal do CFEI, as quais não foram anteriormente contestadas e relativamente às quais a AT nunca se pronunciou;
  2. Segundo a Requerida, a Requerente conformou-se com as correcções ao CFEI feitas nos actos de liquidação de 2017, já que delas não reclamou/impugnou, em prazo, de tal modo que as mesmas se consolidaram na ordem jurídica, não podendo agora contornar esse facto através do uso do pedido de revisão oficiosa;
  3. Ao não existir erro imputável aos serviços, preclude com o decurso do prazo de reclamação o direito de o contribuinte obter a seu favor a revisão do acto de liquidação;
  4. A forma processual de reacção contra o despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa pode ser a impugnação judicial ou a acção administrativa especial, consoante a decisão comporte, ou não, a apreciação da legalidade do acto de liquidação;
  5. Acresce, de acordo com a Requerida, que tendo em conta que o pedido arbitral não foi interposto para a apreciação directa de um acto de liquidação, mas apenas para a apreciação do indeferimento de um pedido de revisão oficiosa, o Tribunal vai ter que apreciar a verificação dos pressupostos de aplicação do artigo 78.º da LGT;
  6. Ora, o Tribunal Arbitral não tem competência para apreciar e decidir a questão de saber se o indeferimento do pedido de revisão oficiosa violou, ou não, o artigo 78.º da LGT e se os pressupostos de aplicação de tal mecanismo de revisão foram, ou não, bem aplicados pela AT;
  7. Isto por força dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação de poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como do princípio da legalidade (cf. artigos 3.º, n.º 2 e 266.º, n.º 2, ambos da CRP), e do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT;
  8. É inconstitucional a interpretação, ainda que extensiva, que amplie a vinculação da AT à tutela arbitral fixada legalmente, por tal pressupor, necessariamente, a consequente dilatação das situações em que esta obrigatoriamente se submete a tal regime, renunciando nessa medida ao recurso jurisdicional pleno;
  9. Mesmo admitindo uma leitura alargada da Portaria de Vinculação, a certeza e a segurança jurídicas, a necessidade da rápida consolidação dos actos tributários, impõem o respeito por prazo mais curto, o que não é concebível face a um pedido de revisão oficiosa que é utilizado num prazo mais alargado que o da reclamação graciosa;
  10. Não se trata de restringir o pedido de revisão oficiosa, mas apenas de não se permitir na Portaria de Vinculação que a AT se vincule à jurisdição dos Tribunais Arbitrais para apreciação de um pedido de revisão apresentado “in extremis” e quando já não é mais possível interpor reclamação graciosa por estar esgotado o prazo para a dedução da mesma;
  11. Deste modo, verifica-se a existência de uma excepção dilatória, consubstanciada na incompetência material do tribunal arbitral, a qual obsta ao conhecimento do pedido, e, por isso, deve determinar a absolvição da entidade Requerida da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT;
  12. Prosseguiu a Requerida defendendo-se por impugnação, referindo que o CFEI compreende um pacote de medidas destinadas ao estímulo do investimento produtivo através de condições fiscais atractivas;
  13. As despesas de investimento elegíveis encontram-se previstas no artigo 4.º do CFEI, considerando-se como tais as relativas a activos fixos tangíveis e activos biológicos que não sejam consumíveis;
  14. Em termos subjectivos, dado que a Requerente exerce uma actividade de natureza comercial, preenche uma das condições para poder usufruir do benefício;
  15. A dúvida coloca-se ao nível das despesas de investimento elegíveis, já que, os investimentos efectuados pelo Requerente no decurso da sua actividade de exploração do centro comercial são classificados como propriedades de investimento;
  16. Por força da entrada em vigor do Sistema de Normalização Contabilística (“SNC”), a classificação contabilística dos centros comerciais por parte das entidades que o exploram, deixou de poder ser reconhecida como imobilizado corpóreo para passar a ser reconhecida como uma propriedade de investimento;
  17. Ao nível do SNC, o tratamento contabilístico das propriedades de investimento vem estabelecido na NCRF 11 Propriedades de Investimento, que é uma norma contabilística que adapta a IAS 40 - Propriedades de investimento, que também tem como objectivo o de prescrever o tratamento contabilístico das propriedades de investimento;
  18. A classificação contabilística dos centros comerciais tem um tratamento normalizado a nível internacional, não sendo uma imposição do legislador português classificar os centros comerciais como propriedades de investimento;
  19. No âmbito da NCRF 11, uma propriedade de investimento é uma propriedade, que pode ser um terreno, um prédio e/ou parte de um prédio detido pelo dono ou por um locatário para obter rendas e/ou para valorização do capital;
  20. Não obstante, nem sempre uma propriedade deve ser reconhecida como uma propriedade de investimento, já que existem casos em que aqueles bens devem ser reconhecidos como um activo fixo tangível e, como tal, sujeitar-se à aplicação da norma NCRF 7 - Activos Fixos Tangíveis;
  21. A qualificação de um terreno ou de um edifício como um activo fixo tangível ou como uma propriedade de investimento exige que se identifiquem os seus traços distintos tendo em conta dois factores: a finalidade a que se destinam e a geração (por si só) de fluxos de caixa ou o que a norma identifica como sendo a ocupação do bem pelo dono;
  22. No primeiro caso, no que respeita à finalidade a que se destina, a norma refere‑se aos bens destinados ao uso na produção, fornecimento de bens ou para finalidades administrativas e, logicamente, consideram-se ocupados pelo seu dono, ainda que a ocupação seja em regime de locação:
  23. Neste caso o bem seria classificado como um activo fixo tangível;
  24. No caso de os bens serem detidos para obter rendas ou para valorização, considera-se que o bem é capaz de gerar, por si só, fluxos de caixa, considerando-se então que o bem não é ocupado pelo seu dono;
  25. Neste caso estamos perante uma propriedade de investimento;
  26. Só nas situações em que os serviços de apoio aos ocupantes da propriedade sejam significativos para o acordo como um todo, é que se pode admitir que o item possa ser classificado como uma propriedade ocupada pelo dono e, portanto, como um activo fixo tangível;
  27. No caso em apreço, o centro comercial detido pela Requerente é classificado como uma propriedade de investimento, pelo facto de se considerar que os serviços prestados aos ocupantes dessas propriedades são pouco significativos em relação ao contrato visto como um todo;
  28. Trata-se no fundo de uma actividade de arrendamento de espaços em que, adicionalmente, se prestam serviços aos seus ocupantes;
  29. No caso particular dos centros comerciais, os activos são classificados como propriedades de investimento e, como tal, o seu tratamento contabilístico é o que vem prescrito na NCRF 11;
  30. Esta é a razão pela qual não podem preencher literalmente a definição de activos fixos tangíveis, porque se preenchessem literalmente aquela definição o seu tratamento contabilístico seria feito ao abrigo da NCRF 7;
  31. Veja-se que a NCRF 11 não configura uma norma contabilística especial da qual a NCRF 7 é a norma geral, em virtude de não haver no quadro das normas contabilísticas e de relato financeiro aplicáveis, qualquer relação de hierarquia ou de aplicação supletiva das mesmas;
  32. Por essa razão, à luz dos critérios previstos no SNC, o tratamento contabilístico dos centros comerciais terá necessariamente de ser aquele que será aplicável aos imóveis detidos para arrendamento;
  33. Se os centros comerciais fossem integrados na categoria geral de activos fixos tangíveis, embora sujeitos ao tratamento contabilístico de propriedade de investimento, seria razoável afirmar que em termos de classificação contabilística, as propriedades de investimento poderiam ser registadas numa subconta da conta 43 – Activos Fixos Tangíveis;
  34. Sucede que não é o que acontece pois, na realidade, o seu registo contabilístico é feito na conta 42 - Propriedades de Investimento, ou seja, numa conta do mesmo grau da anterior e ambas pertencentes à classe dos investimentos, o que denota que não existe qualquer relação de hierarquia;
  35. Dado que o legislador apenas previu como elegíveis para efeitos do benefício fiscal, os investimentos efectuados em activos fixos tangíveis, activos intangíveis sujeitos a deperecimento e os activos biológicos não consumíveis, os investimentos efectuados em propriedades de investimento não podem beneficiar daquele regime, mesmo tratando-se de casos em que, se fosse no âmbito do POC, poderiam beneficiar;
  36. Se o legislador tivesse intenção de os abranger teria de o ter feito de forma expressa, tanto mais que o diploma surgiu já no âmbito do novo Sistema de Normalização Contabilística;
  37. Tendo em conta que o benefício fiscal contido no CFEI não inclui os investimentos efectuados em propriedades de investimento, os investimentos efectuados no Centro Comercial …, não podem aproveitar do regime previsto no CFEI;
  38. Por conseguinte, inexiste qualquer erro imputável aos serviços que pudesse permitir a revisão oficiosa no prazo de 4 anos, sendo que o pedido de revisão também não tinha enquadramento no n.º 3 do artigo 78.º da LGT, uma vez que, o que está em causa são deduções à colecta e não o apuramento de qualquer matéria colectável.

 

            7. Em 9 de Novembro de 2022 foi proferido despacho arbitral no qual se notificou a Requerente para, querendo, exercer o contraditório relativamente à matéria de excepção invocada pela AT, direito esse que veio a ser exercido em 24 de Novembro de 2022, nos seguintes termos:

  1. Tendo em consideração o disposto nos artigos 2.º do RJAT e na Portaria de Vinculação, inexistem dúvidas quanto à competência material do Tribunal Arbitral para conhecer da ilegalidade de actos tributários, abrangendo também a ilegalidade do indeferimento de pedidos de revisão oficiosa;
  2. Apesar de a Requerida mencionar, ainda que sem extrair qualquer conclusão, que a decisão proferida em sede de procedimento de revisão pode, ou não, comportar a apreciação da legalidade do acto de liquidação, é no presente caso inequívoco que a decisão do procedimento de revisão em causa nos autos comportou a apreciação da legalidade dos actos de liquidação impugnados;
  3. Prova de tal facto, segundo a Requerente, é a afirmação da DSIRC feita no pedido de revisão oficiosa segundo a qual “não se verifica qualquer razão para se proceder à pretendida revisão oficiosa, porquanto, na situação em presença não existe qualquer erro imputável aos Serviços”;
  4. Concluiu a Requerente pela improcedência da excepção de incompetência invocada pela Requerida.

 

            8. Em 17 de Janeiro de 2023, a Requerida juntou aos autos cópia do processo administrativo.

 

            9. Em 19 de Janeiro de 2023, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, tendo sido inquirida a testemunha B…, arrolada pela Requerente, e a testemunha C…, arrolada pelas Requerida. Naquela reunião foram ainda as partes notificadas para, querendo, apresentarem alegações escritas por prazo simultâneo de 15 dias, direito que estas exerceram em 3 de Fevereiro de 2023.

 

            10. Em 30 de Março de 2023, foi prorrogado por 2 meses o prazo de arbitragem, nos

termos e para os efeitos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT.

 

II. SANEAMENTO

 

            11. O tribunal arbitral colectivo foi regularmente constituído nos termos do disposto no artigo 5.º do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março (“Portaria de Vinculação”). O processo não enferma de nulidades.

 

            12. Cumpre nesta sede apreciar a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal para apreciar a legalidade do indeferimento do pedido de revisão oficiosa referente a actos de liquidação de IRC que, no entender da Requerida, já se consolidaram na ordem jurídica por não terem sido tempestivamente impugnados.

 

            13. Enquanto ponto de partida, cumpre sublinhar, em conformidade com a jurisprudência há muito fixada pelo Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), v.g. no acórdão proferido em 12.1.2012, no processo n.º 0965/10, que os actos tributários de liquidação, enquanto actos divisíveis, tanto por natureza como por definição legal, são susceptíveis de anulação parcial.

 

            14. Esta divisibilidade confere à Requerente a possibilidade de impugnar autonomamente cada uma das correcções que estão na base dos actos de liquidação. Consequentemente, o facto de a Requerente apenas ter contestado anteriormente, junto dos Tribunais Arbitrais, a legalidade de uma parte dos actos de liquidação, não significa que a parte remanescente se consolide, sem mais, na ordem jurídica. Isto na medida em que essa parcela dos actos de liquidação ainda poderá ser impugnada pela Requerente, bastando que esta ainda esteja em prazo para o efeito. 

 

            15. Ora, os prazos de impugnação dos actos tributários não se esgotam no período de 120 dias previsto no artigo 70.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”) para o pedido de reclamação graciosa. Dependendo das circunstâncias do caso e dos fundamentos utilizados, os actos de liquidação poderão ser contestados, inclusive, a todo o tempo, conforme sucede com a contestação de actos com fundamento na respectiva nulidade (artigo 102.º, n.º 3 do CPPT) ou nos casos de revisão dos actos de liquidação com fundamento em erro imputável aos serviços, se o tributo ainda não tiver sido pago (artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte da LGT).

 

            16. Por conseguinte, carece de sentido o argumento da Requerida de que não é concebível que a Requerente contorne a consolidação dos actos de liquidação resultante da não apresentação de uma reclamação graciosa, através de um pedido de revisão deduzido “in extremis”. De facto, não compete à Requerida fazer juízos de oportunidade ou de valor relativamente ao modo segundo o qual os sujeitos passivos articulam e utilizam os diversos meios de que dispõem para contestar a legalidade de actos tributários de liquidação, mas tão só verificar, nos exactos termos da lei, se se encontram ou não preenchidos os pressupostos de que depende a utilização daqueles meios graciosos/judiciais.

 

            17. No que em concreto respeita à alegada incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade do indeferimento do pedido de revisão dos actos de liquidação, apresentado com fundamento em erro imputável aos serviços e dentro do prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte da LGT, desde já se diga que não assiste razão à Requerida.

 

            18. A competência dos Tribunais Arbitrais para apreciar a legalidade de actos de liquidação de tributos encontra-se fixada no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e 2.º, alínea a) da Portaria de Vinculação. Estas normas de competência concretizam o objectivo previsto na autorização legislativa concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, de estabelecer a arbitragem tributária como “um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

 

            19. Portanto, enquanto meio alternativo à impugnação judicial, os Tribunais Arbitrais têm competência para apreciar “a impugnação dos actos administrativos em matéria tributária que comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação”, a que alude o artigo 97.º, n.º 1, alínea d), do CPPT. Dito de outro modo, os Tribunais Arbitrais têm competência para conhecer pedidos de impugnação de actos de segundo e de terceiro grau que confirmam ilegalidades de actos de liquidação.

 

            20. Até porque, nestes casos, os actos de primeiro grau, isto é, os actos de liquidação, continuam a ser o objecto do processo, ainda que mediato. Esta é, de resto, a jurisprudência desde há muito fixada pela STA, v.g. no acórdão proferido em 18.5.2011, no processo n.º 0156/11, no qual se fixou que “[o] objecto real da impugnação é o acto de liquidação e não o acto que decidiu a reclamação, pelo que são os vícios daquela e não deste despacho que estão verdadeiramente em crise”.

 

            21. Em idêntico sentido, veja-se o acórdão do Tribunal Arbitral proferido em 23 de Fevereiro de 2022, no âmbito do processo n.º 484/2020‑T, no qual se sublinhou o seguinte:

 “[o] objecto do processo arbitral será sempre o acto de liquidação (conforme decorre do supra-transcrito artigo 2.º do RJAT), relevando unicamente a decisão dos actos de segundo e terceiro graus (reclamação graciosa, recurso hierárquico, pedido de revisão oficiosa) para efeitos da fixação do termo inicial do prazo para a apresentação do pedido arbitral.

Com efeito, não fazendo o artigo 2.º do RJAT qualquer referência, ao definir a competência do CAAD, aos actos de segundo e terceiro graus, dever-se-á concluir que competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária a funcionar no CAAD se há-de aferir, sempre, em função dos actos elencados naquele mesmo artigo 2.º do RJAT, e não de outros.

Deste modo, e como melhor e mais detalhadamente explica Carla Castelo Trindade no seu “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária - Anotado”, o contencioso arbitral tributário está estruturado à volta do acto de liquidação, sendo este que figura como objecto do mesmo no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, e sendo os actos de segundo grau, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) também do RJAT, meros referenciais para a aferição da tempestividade da apresentação do pedido arbitral.

Assim, como refere a Autora em questão na obra citada, “Esta é a primeira questão que deve ficar clara: o objecto do processo arbitral tributário é o acto de liquidação”.”.

 

            22. Por fim, cabe referir que a competência dos Tribunais Arbitrais para apreciar o indeferimento do pedido de revisão não resulta de qualquer interpretação extensiva que amplie, em sentido desconforme com a Constituição da República Portuguesa (“CRP”), a vinculação da AT à arbitragem tributária. Pelo contrário, este é o resultado interpretativo que resulta das normas de competência previstas no RJAT e na Portaria de Vinculação e que melhor concretiza o propósito de criação da arbitragem tributária expresso pelo legislador.

 

            23. Isto sem contar que a solução defendida pela Requerida implicaria uma manifesta violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, já que um sujeito passivo não poderia recorrer à arbitragem pelo simples facto de ter contestado previamente esse acto junto da AT ao invés de o contestar directamente junto dos tribunais, quando tal limitação não tem qualquer previsão legal. Levado ao limite, este entendimento implicaria que os actos de liquidação cuja contestação carece de reclamação graciosa prévia não estariam abrangidos pelo escopo material da arbitragem tributária, o que é desprovido de sentido, até pelo disposto no artigo 2.º, alíneas a) e e) da Portaria de Vinculação.

 

            24. Em face do exposto, conclui-se que o presente Tribunal Arbitral é materialmente competente para conhecer do pedido e para apreciar se os actos de liquidação de IRC contestados foram ou não emitidos com base num erro imputável aos serviços, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte da LGT.

 

III. DO MÉRITO

 

III.1. MATÉRIA DE FACTO

III.1.1. Factos provados

 

            25. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade anónima de capitais privados, com fins lucrativos;
  2. A actividade principal da Requerente está enquadrada de acordo com a Classificação Portuguesa de Actividades Económicas – CAE Rev. 3, no Código de Actividade CAE 41100;
  3. A Requerente exerce ainda a actividade de arrendamento e exploração de bens imobiliários, enquadrada no Código de Actividade CAE 68200;
  4. No desenvolvimento da sua actividade económica a Requerente é proprietária e explora comercialmente o prédio urbano, composto por edifício de seis caves e doze pisos sito na …, n.º …, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º …/…, da freguesia de … (daqui em diante “Centro Comercial”);
  5. O Centro Comercial conjuga uma galeria comercial (constituída por 78 lojas e por um “food court”), escritórios e parques público e privado de estacionamento, num total de 832 lugares de parqueamento;
  6. Na exploração do Centro Comercial a Requerente celebrou com diversos lojistas/arrendatários contratos de utilização de loja em centro comercial, (“Contratos de Utilização”);
  7. Alguns dos Contratos de Utilização foram celebrados com entidades que se dedicam à actividade de restauração e bebidas;
  8. Previamente à implementação do Centro Comercial e à celebração dos Contratos de Utilização, a Requerente levou a cabo estudos técnicos, que envolveram pesquisa de mercado, estudos de viabilidade económica, de projectos e de distribuição de “tenant mix” com vista à concepção, implantação e implementação do Centro Comercial;
  9. Nos Contratos de Utilização a Requerente vinculou-se a ceder a utilização de lojas e, bem assim, a assegurar aos arrendatários o direito de (i) acesso para os fins apropriados às áreas de uso comum, designadamente aos corredores ou “Mall”, às instalações sanitárias e utilizar como espaço de vestiário para o pessoal a seu cargo, o local situado no Piso 0, designado por “Balneário”, (ii) beneficiar dos diversos serviços e estrutura de apoio do Centro, nomeadamente serviços de limpeza, manutenção e conservação das partes e equipamentos de uso comum do Centro, segurança, administração, consultadoria e promoção do centro e (iii) usar, em conjunto com as suas, a denominação e insígnia do próprio Centro;
  10. Na exploração do Centro Comercial a Requerente incorreu em custos com a decoração, manutenção, limpeza e segurança do mesmo;
  11. Nos Contratos de Utilização os arrendatários vincularam-se perante a Requerente a comparticipar nas despesas e encargos com o funcionamento, utilização, promoção, publicidade e animação do Centro Comercial;
  12. A comparticipação referida na alínea anterior foi discriminada nas facturas emitidas pela Requerente aos arrendatários;
  13. Nos Contratos de Utilização, para além da renda fixa, foi estipulada uma componente de renda variável em função do volume de facturação bruta (sem IVA) das vendas das lojas;
  14. Nos Contratos de Utilização previu-se que a realização de obras pelos lojistas nas lojas que arrendaram carecia de prévia aprovação da Requerente;
  15. Nos Contratos de Utilização a Requerente reservou o direito de alterar a disposição e arranjo exterior das lojas do Centro Comercial independentemente do consentimento dos arrendatários;
  16. Nos Contratos de Utilização determinou-se que os lojistas não podem ceder a respectiva posição contratual sem a prévia autorização da Requerente;
  17. Na exploração do Centro Comercial a Requerente celebrou com diversos arrendatários contratos de arrendamento comercial para utilização de espaços destinados a escritórios (“Contratos de Arrendamento Comercial de Escritórios”);
  18.  Nos Contratos de Arrendamento Comercial de Escritórios determinou-se que os arrendatários podiam instalar no locado alcatifas, divisórias standard, bem como quaisquer portas anti-fogo ou portas de segurança, necessárias para cumprir disposições legais aplicáveis, desde que os respectivos desenhos, lay outs e especificações técnicas fossem previamente apresentadas à Requerente e por esta aprovados, em especial a entrega das divisórias contra vidros das fachadas;
  19. Nos Contratos de Arrendamento Comercial de Escritórios determinou-se que os pedidos de realização de obras deveriam ser acompanhados dos respectivos desenhos e especificações técnicas para poderem ser devidamente analisados e aprovados pela Requerente;
  20. Nas facturas emitidas no âmbito dos Contratos de Arrendamento Comercial de Escritórios surge discriminada uma componente referente a despesas comuns;
  21. Durante o ano de 2013, a Requerente realizou investimentos no Centro Comercial que considerou elegíveis para efeitos do CFEI, no montante total de € 876.595,10;
  22. O Centro Comercial encontra-se registado contabilisticamente como propriedade de investimento, tendo as despesas incorridas sido contabilizadas como despesas de investimento em activo afecto à exploração;
  23. Por entender poder beneficiar do CFEI, a Requerente registou, no campo 723, do quadro 07 do anexo D da declaração de rendimentos modelo 22 do período de tributação de 2013, o montante correspondente a 20% do total das despesas de investimento no Centro Comercial;
  24.  A Requerente apenas deduziu à colecta do período de tributação de 2013 o montante de € 158.871,67, em virtude da limitação prevista no n.º 3, do artigo 3.º, da Lei n.º 49/2013 de 16 de Julho;
  25. No período de tributação de 2014, a Requerente deduziu à colecta o montante de € 18.319,55, que transitou do período de tributação anterior, em conformidade com o disposto no n.º 6, do artigo 3.º, da Lei n.º 49/2013 de e 16 de Julho;
  26. A Requerente foi objecto de uma acção inspectiva externa de âmbito parcial ao IRC e ao IVA dos períodos de tributação de 2013 e 2014, ao abrigo das Ordens de Serviço n.ºs OI2016… e OI2016…, de 2.6.2016;
  27. Na sequência da acção inspectiva referida na alínea anterior, a Requerente foi notificada do acto de liquidação de IRC n.º 2017 ..., de 09.10.2017, que inclui as liquidações de juros compensatórios n.ºs 2017 … e 2017 …, de 11.10.2017, referentes ao período de tributação de 2013, cujo saldo a pagar incluído na demonstração de acerto de contas n.º 2017 … foi de € 814.605,92;
  28. Na sequência da acção inspectiva referida na alínea z), a Requerente foi notificada do acto de liquidação de IRC n.º 2017 ..., de 09.10.2017, que inclui a liquidação de juros compensatórios n.º 2017 …, de 12.10.2017, referentes ao período de tributação de 2014, cujo saldo a pagar incluído na demonstração de acerto de contas n.º 2017 … foi de € 277.698,90;
  29. Em 19.02.2018, a Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral quanto aos mencionados actos de liquidação, onde não discutiu a legalidade da correcção relativa ao CFEI;
  30. Na sequência do processo arbitral referido na alínea anterior, a Requerente foi notificada do acto de liquidação de IRC n.º 2019 ..., de 28.01.2019, que inclui a liquidação de juros compensatórios n.º 2019 …, de 30.01.2019, referentes ao período de tributação de 2013, cujo saldo a pagar incluído na demonstração de acerto de contas n.º 2019 … foi de € 0;
  31. Na sequência do processo arbitral referido na alínea cc), a Requerente foi notificada do acto de liquidação de IRC n.º 2019 ..., de 28.01.2019, que inclui a liquidação de juros compensatórios n.º 2019 …, de 31.01.2019, referentes ao período de tributação de 2014, cujo saldo a pagar incluído na demonstração de acerto de contas n.º 2019 … foi igualmente de € 0;
  32. Os actos de liquidação referidos em dd) e em ee) não tiveram qualquer influência nas correcções referentes ao benefício fiscal do CFEI;
  33. Em 13.11.2020 a Requerente requereu a revisão dos actos de liquidação de IRC e respectivos juros compensatórios referidos em aa) e bb), exclusivamente na parte decorrente das correcções ao CFEI;
  34. A Requerente foi notificada da decisão de indeferimento do procedimento de revisão oficiosa, através do ofício n.º 2035 com data de 18.4.2022;
  35. Em 21.7.2022, a Requerente apresentou o pedido arbitral que deu origem aos presentes autos.

 

III.1.2. Factos não provados

 

            26. Com relevo para a decisão da causa, não existem factos que se tenham considerados como não provados.

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

27. Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

28. Os factos dados como provados e não provados resultaram da apreciação da prova documental e testemunhal produzida nos presentes autos, o que foi feito com base na regras da experiência, da normalidade e da racionalidade, em conformidade com o previsto no artigo 16.º, alínea e) do RJAT, bem como no artigo 607.º, n.º 5 do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, das quais resulta que o julgador apreciará livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

 

            29. Como ponto de partida, cumpre fixar a legislação aplicável à data dos factos, de modo a aferir se os investimentos realizados pela Requerente no Centro Comercial eram ou não subsumíveis ao benefício fiscal do CFEI.

 

            30. Na Lei n.º 49/2013, de 16 de Julho, que criou o CFEI, dispunha-se, ao que aqui importa, o seguinte:

Artigo 3.º

Incentivo fiscal

1 – O benefício fiscal a conceder aos sujeitos passivos referidos no artigo anterior corresponde a uma dedução à coleta de IRC no montante de 20 % das despesas de investimento em ativos afetos à exploração, que sejam efetuadas entre 1 de junho de 2013 e 31 de dezembro de 2013.

2 – Para efeitos da dedução prevista no número anterior, o montante máximo das despesas de investimento elegíveis é de 5 000 000,00 EUR, por sujeito passivo.

3 – A dedução prevista nos números anteriores é efetuada na liquidação de IRC respeitante ao período de tributação que se inicie em 2013, até à concorrência de 70 % da coleta deste imposto.

(…)

6 – A importância que não possa ser deduzida nos termos dos números anteriores pode sê-lo, nas mesmas condições, nos cinco períodos de tributação subsequentes.

(…)

Artigo 4.º

Despesas de investimento elegíveis

1 – Para efeitos do presente regime, consideram-se despesas de investimento em ativos afetos à exploração as relativas a ativos fixos tangíveis (…), adquiridos em estado de novo e que entrem em funcionamento ou utilização até ao final do período de tributação que se inicie em ou após 1 de janeiro de 2014.

(…)

3 – Consideram-se despesas de investimento elegíveis as correspondentes às adições de ativos verificadas nos períodos referidos nos n.ºs 1 e 4 do artigo 3.º e, bem assim, as que, não dizendo respeito a adiantamentos, se traduzam em adições aos investimentos em curso iniciados naqueles períodos.

4 – Para efeitos do número anterior, não se consideram as adições de ativos que resultem de transferências de investimentos em curso.

(…)

9 – Os ativos subjacentes às despesas elegíveis devem ser detidos e contabilizados de acordo com as regras que determinaram a sua elegibilidade por um período mínimo de cinco anos ou, quando inferior, durante o respetivo período mínimo de vida útil, determinado nos termos do Decreto Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de setembro, alterado pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, ou até ao período em que se verifique o respetivo abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização, observadas as regras previstas no artigo 38.º do Código do IRC.”.

 

            31. Resulta do citado regime, que apenas beneficiam do CFEI as despesas relativas a activos fixos tangíveis. Sem prejuízo de tal facto, entende a Requerente que as despesas em que incorreu no ano de 2013, no montante total de € 876.595,10, relativamente ao Centro Comercial, devem beneficiar da aplicação do CFEI, ainda que aquele activo estivesse reconhecido contabilisticamente como propriedade de investimento e não como activo fixo tangível. Isto porque, na perspectiva da Requerente, aquele registo contabilístico não foi devidamente efectuado, resultando da realidade material/substancial que o Centro Comercial é um activo fixo tangível.

 

            32. Ora, na medida em que o Centro Comercial seja efectivamente classificado, do ponto de vista da substância económica, como um activo fixo tangível, deverá desconsiderar-se para efeitos fiscais o errado registo contabilístico do activo, em conformidade com o princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) e com princípio da materialidade subjacente, isto é, da prevalência da substância sobre a forma.

 

            33. Neste sentido, referiu-se no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido em 19.2.2015, no processo n.º 07918/14, que “[o] intérprete da lei fiscal não pode deixar de atender à substancia económica dos factos tributários, isto porque, como frequentemente se acentua, o que efectivamente importa ao direito fiscal são as realidades económicas, as situações reais que expressam a percepção de rendimento ou a capacidade contributiva e não as meras roupagens com que, por vezes, se apresentam exteriormente.”.

 

            34. Contudo, caso não se verifique tal substância económica, não haverá que atender aos mencionados princípios, porquanto estes não poderão justificar a aplicabilidade do regime do CFEI a um caso que não é por ele abrangido, à semelhança dos demais activos que se encontram em tal situação. Dito de outro modo, na medida em que o Centro Comercial seja classificado como propriedade de investimento, não se verificará qualquer inconstitucionalidade pela violação dos princípios da igualdade e da prevalência da substância sobre a forma.

 

            35. Assim sendo, haverá que precisar o conceito contabilístico de activo fixo tangível, previsto na NCRF 7, e de propriedade de investimento, previsto na NCRF 11, de modo aferir a qual das realidades contabilísticas se subsume o Centro Comercial detido pela Requerente.

 

            36. Quanto aos activos fixos tangíveis, dispõe-se o seguinte na NCRF 7:

Definições (§ 6)

6. Os termos que se seguem são usados nesta Norma com os significados especificados:

Activos fixos tangíveis: são itens tangíveis que:

(a) sejam detidos para uso na produção ou fornecimento de bens ou serviços, para arrendamento a outros, ou para fins administrativos; e

(b) se espera que sejam usados durante mais do que um período.

 

            37. Já quanto às propriedades de investimento, dispõe-se o seguinte na NCRF 11:

Definições ((§§ 5 a 15)

(…)

Propriedade de investimento é a propriedade (terreno ou um edifício - ou parte de um edifício - ou ambos detida (pelo dono ou pelo locatário numa locação financeira) para obter rendas ou para valorização do capital ou para ambas as finalidades, e não para

(a) uso na produção ou fornecimento de bens ou serviços ou para finalidades administrativas; ou

(b) venda no curso ordinário do negócio.

Propriedade ocupada pelo dono é a propriedade detida (pelo dono ou pelo locatário numa locação financeira) para uso na produção ou fornecimento de bens ou serviços ou para finalidades administrativas.

(…)

7. As propriedades de investimento são detidas para obter rendas ou para valorização do capital ou para ambas as finalidades. Por isso, uma propriedade de investimento gera fluxos de caixa altamente independentes dos outros activos detidos por uma entidade. Isto distingue as propriedades de investimento de propriedades ocupadas pelos donos. A produção ou fornecimento de bens ou serviços (ou o uso de propriedades para finalidades administrativas) gera fluxos de caixa que são atribuíveis não apenas às propriedades, mas também a outros activos usados no processo de produção ou de fornecimento. A NCRF 7 - Activos Fixos Tangíveis aplica-se a propriedades ocupadas pelos donos.

9. Seguem-se exemplos de itens que não são propriedades de investimento, estando, por isso, fora do âmbito desta Norma:

(a) propriedades destinadas à venda no curso ordinário do negócio ou em vias de construção ou desenvolvimento para tal venda (ver NCRF 18 – Inventários), por exemplo, propriedade adquirida exclusivamente com vista a alienação subsequente no futuro próximo ou para desenvolvimento e revenda;

(b) propriedade que esteja a ser construída ou desenvolvida por conta de terceiros (ver NCRF 19 – Contratos de Construção);

(c) propriedade ocupada pelo dono (ver NCRF 7 – Activos Fixos Tangíveis), incluindo (entre outras coisas) propriedade detida para futuro uso como propriedade ocupada pelo dono, propriedade detida para futuro desenvolvimento e uso subsequente como propriedade ocupada pelo dono, propriedade ocupada por empregados (paguem ou não os empregados rendas a taxas de mercado e propriedade ocupada pelo dono aguardando alienação;

(d) propriedade que esteja a ser construída ou desenvolvida para futuro uso como propriedade de investimento. A NCRF 7 – Activos Fixos Tangíveis aplica-se a tal propriedade até que a construção ou o desenvolvimento esteja concluído, momento em que a propriedade se torna propriedade de investimento e em que se aplica esta Norma. Porém, esta Norma aplica-se a propriedades de investimento existentes que estejam a ser desenvolvidas de novo para futuro uso continuado como propriedade de investimento (ver parágrafo 60);

10. Algumas propriedades compreendem uma parte que é detida para obter rendas ou para valorização de capital e uma outra parte que é detida para uso na produção ou fornecimento de bens ou serviços ou para finalidades administrativas. Se estas partes puderem ser vendidas separadamente (ou locadas separadamente segundo uma locação financeira), uma entidade contabilizará as partes separadamente. Se as partes não puderem ser vendidas separadamente, a propriedade só é uma propriedade de investimento se uma parte não significativa for detida para uso na produção ou fornecimento de bens ou serviços ou para finalidades administrativas.

11. Em alguns casos, uma entidade proporciona serviços de apoio aos ocupantes de uma propriedade que ela detenha. Uma entidade trata tal propriedade como propriedade de investimento se os serviços forem insignificantes em relação ao acordo como um todo. Um exemplo é quando o dono de um edifício de escritórios proporciona serviços de segurança e de manutenção aos locatários que ocupam o edifício.

12. Noutros casos, os serviços prestados são significativos. Por exemplo, se uma entidade possui e gere um hotel, os serviços proporcionados aos hóspedes são significativos para o acordo como um todo. Por isso, um hotel gerido pelo dono, é uma propriedade ocupada pelo dono e não uma propriedade de investimento.

13. Pode ser difícil determinar se os serviços de apoio são ou não tão significativos que uma propriedade não se qualifique como propriedade de investimento. Por exemplo, o dono de um hotel por vezes transfere algumas responsabilidades a terceiros segundo um contrato de gestão. Os termos de tais contratos variam grandemente. Num extremo do espectro, a posição do dono pode, em substância, ser a de um investidor passivo. No outro extremo do espectro, o dono pode simplesmente ter procurado fora funções do dia a dia, embora ficando com significativa exposição a riscos de variações nos fluxos de caixa gerados pelas operações do hotel.

14. É necessário juízo de valor para determinar se uma propriedade se qualifica como uma propriedade de investimento. (…)”. (negrito nosso)

 

            38. Tendo presente o conjunto de considerações de ordem contabilística acabadas de evidenciar, verifica-se que a classificação do Centro Comercial como activo fixo tangível ou propriedade de investimento resultará da essencialidade/importância atribuída aos serviços conexos ao arrendamento das lojas e dos espaços para escritório.

 

            39. Ora, dos Contratos de Utilização e, ainda com maior intensidade, dos Contratos de Arrendamento Comercial de Escritórios, resulta que o arrendamento é a componente principal dos contratos e a razão predominante que levou as partes a contratar. Acessoriamente a esta finalidade, a Requerente vinculou-se a prestar um conjunto diverso de serviços, designadamente de limpeza, manutenção e conservação das partes e equipamentos de uso comum do Centro Comercial, segurança e administração, consultadoria e publicidade e promoção do centro. Estes serviços, ainda que complementem a prestação principal, não possuem autonomia face à mesma, nem surgem como elementos determinantes nos termos do contratos como um todo.

 

            38. Com efeito, os serviços conexos com o arrendamento surgem, em grande medida, como prestações que mantêm a harmonia e que regulam o funcionamento do espaço comum do Centro Comercial, sendo comuns no arrendamento de espaços para lojas e para escritórios em centros comerciais.

 

            39. Para além da finalidade principal resultante dos Contratos de Utilização e dos Contratos de Arrendamento Comercial de Escritórios, decorre das facturas juntas aos autos que a obtenção de rendas, seja por via de uma componente fixa ou variável, é também o principal elemento de remuneração da Requerente, sendo meramente marginal a retribuição pela prestação dos demais serviços conexos. Na verdade, o Centro Comercial é um activo capaz de gerar, por si só, fluxos de caixa, através do recebimento de rendas, o que afasta ainda mais a sua classificação como activo fixo tangível.

 

            40. Perante o exposto, verifica-se que os serviços conexos de apoio ao arrendamento não surgem como determinantes “em relação ao acordo como um todo”, na terminologia da NCRF 11. Pelo contrário, aqueles serviços configuram inclusive uma das situações exemplificativas a que alude aquela norma contabilística, de activos detidos para obter rendas que devem ser classificados como propriedades de investimento.

 

            41. Neste sentido, decidiu o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 30.5.2018, no processo n.º 524/2017-T, onde se mencionou o seguinte:

A Requerente alega, em suma, que o princípio da substância deverá prevalecer sobre a forma, sobretudo tendo em conta as especificidades do caso concreto, e ainda os objectivos subjacentes ao incentivo aqui em causa.

Para a Requerente, mais importante do que saber qual a classificação contabilística usada é entender a actividade desenvolvida pela Requerente, que consiste não só na exploração e gestão de zonas comerciais, com o objectivo de obter rendas, mas também a prestação de serviços de suporte à actividade lojista, possuindo igualmente o centro de serviços administrativos no centro comercial.

No desenvolvimento de tal raciocínio, considerando a Requerente que boa parte dos rendimentos provém precisamente desses serviços que são prestados aos lojistas, e não propriamente das “rendas”, e que o CFEI não faz a distinção entre sectores de actividade, e dada a indispensabilidade dos activos na prossecução da actividade da Requerente, entende esta que não haverá conclusão lógica senão a elegibilidade do seu investimento para efeitos de CFEI, por satisfazerem os requisitos basilares que estiveram na criação do benefício fiscal.

Ora, dispõe o n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 49/2013:

“1 - O benefício fiscal a conceder aos sujeitos passivos referidos no artigo anterior corresponde a uma dedução à coleta de IRC no montante de 20 % das despesas de investimento em ativos afetos à exploração, que sejam efetuadas entre 1 de junho de 2013 e 31 de dezembro de 2013.”

E dispõe o n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 49/2013:

“Para efeitos do presente regime, consideram-se despesas de investimento em ativos afetos à exploração as relativas a ativos fixos tangíveis e ativos biológicos que não sejam consumíveis, adquiridos em estado de novo e que entrem em funcionamento ou utilização até ao final do período de tributação que se inicie em ou após 1 de janeiro de 2014.”

            Acrescenta ainda o n.º 5 do mesmo artigo 4.º, para além do mais, que:

“5 - Para efeitos do n.º 1, são excluídas as despesas de investimento em ativos suscetíveis de utilização na esfera pessoal, considerando-se como tais: (...)

c) As incorridas com a construção, aquisição, reparação e ampliação de quaisquer edifícios, salvo quando afetos a atividades produtivas ou administrativas.”.

            Conforme é reconhecido por Requerente e Requerida, e resulta cristalinamente da lei, apenas são admissíveis para efeitos do benefício fiscal em questão as despesas de investimento em activos fixos tangíveis ou biológicos, afectos à exploração, estando assim excluídos os investimentos nas chamadas propriedades de investimento, que são aquelas que são detidas para “para obter rendas ou para valorização do capital, ou para ambas as finalidades”, no dizer da NCRF 11.

            Como se viu, a Requerente sustenta que não desenvolve uma actividade típica de administração de imóveis ou de arrendamento de imóveis, que o objecto principal da actividade exercida consiste na exploração de centros comerciais com a finalidade de obter rendas e na disponibilização, conexamente, de diversos serviços de suporte à actividade lojista, além de possuir o centro de serviços administrativos no centro comercial.        

            Ora, desde logo, crê-se evidente que, para que possa operar a excepção à exclusão prevista na al. c) do n.º 5 do artigo 4.º da Lei n.º 49/2013, não basta que uma propriedade detida para a obtenção de rendas e/ou valorização do capital, tenha uma afectação parcial a prestações de serviços ou actividades administrativas.

            Para que possa ser sustentável que tal ocorra, é necessário que se demonstre e apure que essa actividade administrativa e/ou produtiva, corresponde à finalidade principal do imóvel onde foi realizado o investimento.

            Justamente por ter essa consciência, é que a Requerente sustenta que “boa parte” dos rendimentos provém desses serviços que são prestados aos lojistas, e não das “rendas”.

            Todavia, como se referiu já, não resultou provado nos autos que seja da prestação de tais serviços que provém a parte principal dos rendimentos gerados pela actividade da Requerente, ou, dito de outro modo, que sejam os serviços, e não a ocupação imobiliária, a principal componente da remuneração que a Requerente aufere nos contratos com os seus clientes.

            Deste modo, e claudicando este pressuposto de facto da posição sustentada pela Requerente, não se pode concluir de outra forma que não pela verificação dos pressupostos da exclusão prevista na al. c) do n.º 5 do artigo 4.º da Lei n.º 49/2013, e pela consequente legalidade da actuação da Autoridade Tributária.

 

            42. Também neste sentido, veja-se o entendimento expresso pelo árbitro Américo Brás Carlos, no acórdão proferido em 8.9.2017, no processo n.º 748/2016-T:

            “Os Requerentes qualificaram e contabilizaram - e continuam a qualificar e a contabilizar - os centros comerciais como Propriedades de Investimento (PI), tendo a Requerida considerado correcta tal qualificação e contabilização.

            Ao invés do Acórdão, entendo que a qualificação que para efeitos da contabilização dos activos é consistentemente efectuada pelas empresas não é uma «mera roupagem exterior» ou «veste contabilística» que, por «não atender à substância económica dos activos», possa ser afastada por uma interpretação que atenda «à utilização, à função económica e à essencialidade na prossecução da actividade dos imóveis detidos». É que as regras de qualificação inerentes à contabilização vigentes em Portugal impõem já a consideração da «substância económica dos ativos» e da «realidade material ou substancial das coisas». Para além dos princípios constantes da «Estrutura Conceptual» do Sistema de Normalização Contabilística (SNC) vigente, como o da «Relevância» e o da «Materialidade» (v. §§ 26 a 30 da Estrutura Conceptual)», também o § 35 da mesma Estrutura Conceptual consagra expressamente o princípio da «Substância sobre a forma», impondo com isso que os factos a representar «sejam contabilizados e apresentados de acordo com a sua substância e realidade económica». A aplicação destas regras é imperativa e a sua não aplicação traduz-se na prática de um acto ilícito sujeito à coima prevista no nº 1 do art.14º, do D.L. 158/2019, de 13 de Julho).

            Acresce à relevância dos citados princípios constantes da Estrutura Conceptual do SNC que, no caso dos autos, a NCRF-11 (reconhecendo que pode não ser fácil a classificação de um activo como propriedade de investimento) continha à data dos factos no seu §14 o seguinte normativo: «É necessário juízo de valor para determinar se uma propriedade se qualifica como uma propriedade de investimento. Uma entidade desenvolve critérios a fim de que possa exercer esse juízo de valor de forma consistente de acordo com a definição de propriedade de investimento e com a relacionada orientação nos parágrafos 7 a 13. O parágrafo 77(c) exige que uma entidade divulgue estes critérios quando a classificação for difícil.». Ora perante tal imposição e a densidade normativa destes preceitos do SNC, não se me afigura legítima a conclusão de que a contabilização levada a cabo pelas empresas possa considerar-se uma «mera roupagem exterior» ou «veste contabilística» que não atende à substância económica dos activos.

            Foi certamente depois de ponderar, em substância, a natureza dos seus centros comerciais que as Requerentes e todo o grupo económico em que se inserem, reconheceram e continuam reconhecendo contabilisticamente estes como PI (v. art. 75º e segs. e §99º e segs. da petição inicial). Contabilização essa, que goza da presunção de verdade concedida aos «dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita» nos termos do artigo 75º da LGT. Presunção de verdade que não é posta em causa pela Requerida, uma vez que concorda com o escriturado pelas Requerentes, podendo concluir-se que não há, aliás, neste processo, qualquer conflito a dirimir entre as partes no que respeita a tal classificação. Nem os Requerentes, nem a Requerida em ponto algum das suas pretensões defendem que os centros comerciais não devem ser contabilizados como PI.     

            No caso sub judice, o cuidado da análise que a distinção entre as PI e os AFT que normativamente é exigida também não legítima a conclusão de que aquelas estão contidas nestes, como conclui o Acórdão.

            O que as Requerentes defendem (v. §78º da petição inicial) é que «o âmbito material das propriedades de investimento apresenta uma clara área de intersecção com a categoria dos activos tangíveis». Note-se, todavia, que isso não transforma as PI em AFT.

            Que a classificação contabilística de alguns activos como PI ou como AFT coloca dificuldades é verdade e intui-se do próprio normativo contabilística (v. §§ 9 a 15 da NCRF-11), mas é evidente que o legislador distinguiu conceptualmente as PI regidas pela NCRF-11 dos AFT regidos pela NCRF-7. A opção pela distinção contabilística entre PI e AFT é, aliás, muito antiga, como se conclui verificando que o IASB aprovou a Norma Internacional de Contabilidade (IAS) 40 – Investment Property[6], distinguindo-a da IAS 16- Property, Plant and Equipment[7] e consagrando vários §§ com o título «Need for a Separate Standard» à explicação do objetivo de tal distinção, como se pode ver em «Basis for Conclusions on IAS 40 Investment Property».

            Sobre a questão do reconhecimento contabilístico dos centros comerciais como PI ou como AFT, em função da menor ou maior importância dos serviços prestados face à locação do espaço, o Acórdão decidiu também que «os serviços que as Requerentes prestam são essenciais ao negócio, e estão muito longe de ser insignificantes ou fracamente relevantes», concluindo que «os imóveis em causa tinham, por isso, condições para ser classificados como ativos fixos tangíveis e não como propriedades de investimento».

            Também não subscrevo esta decisão, desde logo porque nada legitima desconsiderar o juízo de significância dos serviços prestados em face da locação do espaço e do contratado como um todo que foi (e é) consistentemente feito pelas próprias Requerentes e por todo o grupo económico em que estão inseridas. As Requerentes registaram tais imóveis como PI, porque, precisamente, conhecedoras dos §§11 e 12 da NCRF 11, consideraram que os serviços não eram suficientemente significativos em «relação ao acordo (com os lojistas) como um todo». Caso contrário, não o teriam feito.

            Esta ponderação pelas Requerentes só pode presumir-se cuidadosa por se tratar de um grande grupo económico e porque há várias e diferentes consequências no registo e na mensuração das PI e dos AFT.  Recordo que a classificação contabilística não é livre como supra referido, e a não observância das regras do SNC preenche um tipo contraordenacional. 

            Tal como as Requerentes, também entendo que no cômputo do contrato com os lojistas analisado como um todo, o arrendamento é o objeto central do contrato, em torno do qual são prestados serviços. A ideia dos serviços conexos não desvirtua o arrendamento, nem numa perspetiva civilista (v. art. 1109º do CCivil) nem numa perspetiva fiscal (v. art. 8º, nº 2, a) e b) do CIRS). É a locação do espaço que determina o próprio impulso negocial e verdadeiramente condiciona todo o acordado. Ainda que tais contratos se considerassem contratos mistos, sempre tal contrato, por força da «teoria da absorção»[8] se reconduziria à parte preponderante, que é neste caso o arrendamento da loja. 

            Note-se, ainda, que a maioria dos serviços que o Acórdão indica como prestados pelos Requerentes aos lojistas não são exclusivos dos donos dos centros comerciais, sendo em regra também prestados pelo locador no exemplo expresso de PI escolhido no §11 da NCRF-11 – os edifícios de escritórios para arrendamento. Quem constrói ou adquire um imóvel para arrendamento em fracções para escritórios realiza também todo o trabalho de prospecção e adaptação com vista a assegurar a sua futura rentabilidade, assim como leva a cabo os serviços de manutenção, vigilância, segurança de todo o edifício e de organização e gestão das partes comuns, bem como de valorização do imóvel de modo a permanecer comercialmente atrativo. O co-investimento com algumas lojas - as lojas-âncoras - referido no Acórdão não é na economia da NCRF-11 um serviço, nem me parece suficiente para o considerar significativo no todo contratualizado com os lojistas dos centros comerciais. Na linha da FAQ 16 da CNC, considero que os serviços prestados pelos locadores dos centros comerciais são, por comparação com a cedência do espaço, pouco significativos em relação ao total do contratado.

            Concluindo, no que a este ponto respeita, entendo, sem margem para dúvidas, que os centros comerciais das Requerentes foram por si corretamente qualificados como PI, porque, atenta a sua substância, é essa a única qualificação a que os normativos relevantes dão guarida. E só os normativos contabilísticos vigentes são idóneos para tal qualificação.

            3. Têm os investimentos em PI direito ao CFEI?

            O nº 1 do artigo 3º da Lei nº 49/2013 (CFEI) criou um crédito fiscal aplicável a  «despesas de investimento em ativos afectos à exploração que sejam efetuadas entre 1 de junho e 31 de dezembro de 2013». Por seu lado, o nº 1 do artigo 4º da mesma Lei enumerou expressa e claramente quais as despesas de investimento em ativos afetos à exploração que podem usufruir do referido incentivo fiscal. A lei, na parte que releva para a decisão, diz: «Para efeitos do presente regime (entenda-se, do dito CFEI) consideram-se despesas de investimento em activos afetos à exploração as relativas a activos fixos tangíveis e activos biológicos que não sejam consumíveis, adquiridos em estado novo (…)». Verifica-se, assim, que só despesas de investimento em ativos afetos à exploração podem usufruir do CFEI, mas não todas. Caso contrário, a Lei ter-se-ia ficado pelo nº 1 do artigo 3º, porque não faria sentido a enumeração constante do nº 1 do seu artigo 4º.

            Não posso, assim, subscrever a premissa do Acórdão, de que a afetação de um ativo à exploração ou «activo operacional» é condição suficiente para beneficiar do CFEI. É que «activos afectos à exploração» há-os de vários tipos e o legislador, não podendo deixar de os conhecer a todos (v. art. 9º, nº 3 do CC), concedeu o incentivo fiscal a uns e a outros não. No caso, para efeitos do âmbito material do incentivo, enumerou os AFT e os Ativos Biológicos não consumíveis (ABNC) e não enumerou as PI.

            Sem o mínimo de correspondência na letra da lei, entendeu o Acórdão que, no referido nº 1 do artigo 4º da Lei nº 49/2013 se devem compreender também os activos classificados como PI, essencialmente porque «tais ativos são, em substância, elementos tangíveis de exploração, ou ativos operacionais, cabendo na definição da NCRF 7, pelo que as Requerentes dispunham de margem de flexibilidade interpretativa suficiente para contabilizar os elementos como ativos fixos tangíveis.».

            Ora já se viu que atendendo à substância e em face do normativo contabilístico, os imóveis onde estão instalados os centros comerciais são PI, como aliás corretamente as Requerentes qualificaram e vêm qualificando. E, ao invés do que decidiu o Acórdão, as Requerentes não dispunham de margem de flexibilidade interpretativa suficiente para contabilizar os elementos como AFT. É que devendo, nos termos da legislação contabilística, como vimos, ser os centros comerciais reconhecidos como PI, e, portanto, sujeitos à disciplina da NCRF-11, nunca podiam ser reconhecidos como AFT. É a própria NCRF-7-Activos Fixos Tangíveis, ao definir o seu âmbito, que o impede quando dispõe no § 2 «Esta norma deve ser aplicada na contabilização de activos fixos tangíveis excepto quando uma outra Norma exija ou permita um tratamento contabilístico diferente». E, no caso, há outra norma que exige uma contabilização diferente: a NCRF-11-Propriedades de Investimento.”.

 

            43. Aqui chegados, conclui-se que contabilisticamente o Centro Comercial é um activo que deve ser reconhecido como propriedade de investimento, de tal modo que as despesas incorridas pela Requerente não podiam beneficiar do CFEI, conforme entendeu a AT ao efectuar as correcções que estão na base dos actos de liquidação contestados pela Requerente.

 

            44. Em suma, o benefício fiscal previsto na Lei n.º 49/2013, de 16 de Julho, que criou o Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento, não é aplicável a activos que devam ser contabilisticamente reconhecidos como propriedades de investimento.

 

            45. Termos em que inexiste erro imputável aos serviços nos termos e para os efeitos previstos no artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte da LGT, sendo improcedente o pedido da Requerente.

 

IV. DECISÃO

 

Termos em que se decide:

  1. Julgar improcedente a excepção dilatória invocada pela Requerida;
  2. Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente e, em consequência, absolver a Requerida do pedido;
  3. Condenar a Requerente nas custas do processo.

 

V. VALOR DO PROCESSO

           

            Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 177.191,22.

 

VI. CUSTAS

 

            Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 3.672,00, a suportar pela Requerente, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 18 de Maio de 2023

 

A Árbitra Presidente,

 

 

Carla Castelo Trindade

(Relatora)

 

 

O Árbitro Adjunto,

 

 

Nuno Maldonado Sousa

 

 

O Árbitro Adjunto,

 

 

A. Sérgio de Matos