Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 457/2022-T
Data da decisão: 2023-01-19  IMT  
Valor do pedido: € 2.484.965,27
Tema: IMT - Indeferimento, por intempestividade, de pedido de revisão oficiosa: meio processual idóneo - Erro imputável aos serviços - Ónus de declaração e negligência do contribuinte.
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SUMÁRIO:

 

1-    Tendo um pedido de revisão oficiosa sido, liminarmente, indeferido com base na falta de pressupostos legais, nomeadamente por não se verificar erro imputável aos serviços ou injustiça grave ou notória, tal ato comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação que deu origem a tal pedido, sendo, por isso, o meio idóneo de reação o processo de impugnação judicial, para o qual os tribunais arbitrais são competentes em razão da matéria

2-    O caráter automático de uma isenção de IMT não exclui o ónus de o interessado, relativamente a determinada operação, declarar à AT a verificação dos respetivos pressupostos. 

3-    Não enferma de ilegalidade por erro imputável aos serviços a liquidação que não considerou factos que o sujeito passivo tinha o ónus de declarar.

4-     É censurável o comportamento que, durante um prazo superior a 5 anos, se abstêm de invocar perante a AT a aplicação de uma isenção a que considera ter direito.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

A..., S.A., NIPC..., com sede na ..., n.º ..., ...-..., Lisboa veio, nos termos legais, pedir a constituição de tribunal arbitral, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I - RELATÓRIO

 

A)   O pedido

A Requerente pede a anulação das liquidações de IMT identificadas (por ambas as partes) por referência à “tabela” que ora se transcreve:

 

 

 

 

 

e, consequentemente, peticiona a anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa por si apresentado. Peticiona ainda a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios

 

B) Posição das partes

 

A Requerente entende, em suma, que as aquisições de imóveis acima discriminadas, as quais estão na origem das liquidações que impugna, beneficiam da isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE e que a tal não obsta o facto de, aquando da declaração de tais aquisições, ter invocado a aplicabilidade da isenção prevista no art. 8º do CIMT, cujo condicionalismo (nº 6 do artigo 11.º do CIMT) não preencheu no prazo legal. 

Entende que tal situação configura uma ilegalidade resultante de erro imputável aos serviços, fundamento em que sustentou o pedido de revisão oficiosa.

No seu pedido arbitral, a Requerente veio a acrescentar outro fundamento para a procedência do seu pedido de revisão oficiosa: assim, se porventura se vier a concluir pela inexistência de erro imputável aos serviços, sempre será de se admitir a revisão dos atos tributários ora sindicados, dada a manifesta situação de injustiça grave ou notória.

Ou seja, a Requerente alega agora, também, a subsunção dos factos ao disposto no art. 78º, nº 4, da LGT.

 

Na sua resposta, a Requerida começa por invocar várias exceções, que adiante se analisarão.

 

Quanto à questão de fundo, que por simplicidade designaremos de “cumulação de isenções”, a Requerida, depois de expandir que entende ser a diferente ratio de cada uma das isenções em questão, sustenta, em suma, que “a lei não prevê a sucessão ou acumulação destas isenções” (…) “as condições para usufruir de uma isenção de IMT têm de ser aferidas no momento em que ocorre o facto gerador de imposto, que a isenção visa impedir”, sendo que “a obrigação tributária em sede de IMT constitui-se no momento em que ocorre a transmissão”. (cfr. n.º 2 do art.º 5.º do CIMT). Assim, “não tendo [a Requerente] optado por exercer o direito subjetivo à isenção prevista no n.º 2 art.º 270.º do CIRE à data do ato translativo do imóvel, o exercício deste direito ficou precludido (…) “tanto mais que a ora Requerente nem sequer o fez valer, em tempo oportuno, perante a entidade competente para o seu reconhecimento”Essa troca ou aplicação sucessiva de isenções representaria uma alteração súbita, inesperada e intempestiva dos elementos base da relação jurídico-tributária, que nasceu com a entrega da declaração Modelo 1 de IMT”, concluindo pela total improcedência do pedido.

A título – objetivamente- subsidiário, a Requerida sustenta que a alegada ilegalidade das liquidações apenas se pode colocar quanto às relativas a aquisições de prédios a sociedades insolventes, excluindo-se as relativas a aquisições efetuadas a pessoas singulares insolventes, em valor que computa em € 129.527,66, pois que estas nunca beneficiariam da isenção prevista no art.º 270.º nº 2 do CIRE.

 

C)   Tramitação processual 

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 28/07/2022.

 A Requerente não procedeu à indicação de árbitro, tendo a nomeação dos membros deste coletivo arbitral competido ao Conselho Deontológico do CAAD, a qual não mereceu oposição.

Os árbitros designados aceitaram tempestivamente as nomeações.

 O tribunal arbitral ficou constituído em 04/10/2022.

A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.

Em tal resposta a Requerida alegou factos que, materialmente, revestem a natureza de exceção, sobre os quais a Requerente se pronunciou por escrito.

Por despacho arbitral de 21/12/2022, foi decidido prescindir, por falta de objeto, da realização da reunião a que se refere o art.º 18º do RJAT e não haver lugar à produção de alegações, por manifestamente desnecessárias. Nenhuma das partes se opôs a este despacho arbitral.

 

 

II - SANEAMENTO

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

Mais adiante se apreciarão as exceções invocadas pela Requerida

 

III – OS FACTOS

 

III. 1 – Factos Provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)     A Requerente tem por objeto social o exercício da atividade bancária.

b)    No âmbito da sua atividade, a Requerente, na sequência da resolução de contratos de concessão de crédito, adquiriu, em processos de insolvência de clientes de que era credora, numerosos imóveis (atrás identificados).

c)     Em tais aquisições, a Requerente solicitou e beneficiou da isenção de IMT prevista no n.º 1 do artigo 8.º do CIMT. 

d)    Decorrido o prazo de cinco anos, previsto no nº 6 do art. 11º do CIMT, sem que tenha ocorrido a alienação dos imóveis em causa, a Requerente solicitou a liquidação de IMT, apresentando para tal novas declarações Modelo 1, as quais deram origem às liquidações ora impugnadas, tendo pago o imposto assim liquidado.

e)      A Requerente apresentou, a 11-03-2022, um pedido de revisão oficiosa das liquidações que ora impugna, as quais tiveram lugar em 2020,

f)      Alegando, em suma, que a isenção a ser considerada, com referência ao momento da aquisição dos imóveis, deveria ter sido a que se encontra prevista no n.º 2 do art.º 270.º do CIRE (e não a que, ao tempo, tinha invocado, a constante do n.º 1 do art.º 8.º do CIMT), por esta não estar sujeita ao cumprimento de um prazo para a alienação dos imóveis, mostrando-se manifestamente menos onerosa para o Requerente nos casos em que este vê frustrado, por várias razões, os seus planos de alienação dos imóveis. 

g)    Pelo que, em tal pedido, requereu a anulação das liquidações de IMT que ora impugna, por vício de violação de lei, nomeadamente pela não aplicação da isenção de caráter automático do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE.

h)    O pedido de revisão oficiosa foi feito ao abrigo do disposto no artigo 79º, nº 1, da LGT, ou seja, com fundamento em “erro imputável aos serviços”

i)      Tal pedido de revisão oficiosa foi liminarmente rejeitado, com a seguinte fundamentação: “Pelo que, no caso em apreço, o requerimento no qual se consubstancia o presente pedido revisão oficiosa do ato tributário é, com efeito, intempestivo, dado ter sido apresentado em 11.03.2022, em referência ao pedido de anulação de liquidações adicionais de IMT ocorridas em 2020, em consonância com o estabelecido no mencionado art.º 78.º da LGT vigente à data. A situação em apreço não comporta qualquer “erro imputável aos serviços” e, como tal, neste sentido, o pedido de revisão oficiosa NÃO SE ENCONTRA TEMPESTIVO, à luz do preceituado na primeira parte do n.º 1 do art.º 78.º da LGT, ademais quando, consabido, o n.º 2 do art.º 78.º da LGT se encontra revogado” 

j)      Com vista a fundamentar a extemporaneidade daquele pedido, a decisão de rejeição liminar do pedido de revisão oficiosa analisou detalhadamente a questão (factual e legal) da existência de “erro imputável aos serviços”. 

k)    Parte dos imóveis, adquiridos a pessoas singulares insolventes, não integrava o ativo de empresas; o valor do imposto liquidado, relativo a tais aquisições, foi de € 129.527,66,

 

Os factos de a) a j), que resultam da documentação que integra os autos, são consensuais. O dado como provado em k) foi expressamente confessado pela Requerente

 

 

III.2 – Factos não provados

 

Não ficou provado que os demais prédios adquiridos a pessoas singulares (para além dos mencionados em k) dos factos provados) integrassem o ativo de empresas tituladas, em nome próprio, pelos alienantes.

 

 

IV - O DIREITO

 

IV.1 – EXCEÇÕES

 

Como é de lei, cumpre começar pela análise das exceções invocadas pela Requerida, pois que a procedência de uma delas poderá conduzir à impossibilidade de apreciação do mérito da causa.

 

a) Incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, por a Requerente entender que, “tendo a decisão que recaiu sobre o pedido de revisão oficiosa sido de rejeição liminar, por intempestividade, ou seja, não tendo sido apreciada a legalidade do ato objeto do pedido, o meio (judicial) próprio de reação seria a ação administrativa e não o presente meio arbitral”.

 

A posição sustentada pela Requerida é conhecida, louvando-se essencialmente no que conclui ser o ensinamento de Jorge Lopes de Sousa[1]

Resumidamente, entende que havendo uma decisão de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa de uma liquidação, tal decisão só é atacável judicialmente através de ação administrativa (e não através do processo de impugnação). 

Dito de outro modo, uma tal decisão de indeferimento não consubstanciaria uma apreciação da legalidade da liquidação, mas sim a prática de um outro ato administrativo, um ato de recusa de decisão, ou seja, um ato administrativo em matéria tributária.

De onde decorreria a incompetência, em razão da matéria, dos tribunais arbitrais, atento o disposto no art.2.º, n.º 2, do RJAT.

 

Porém, não é este o entendimento que vem sido perfilhado pelo STA.

O acórdão seminal será o proferido no processo n.º 01958/13, de 14 de Maio de 2015.

Citamos:

A decisão sindicada considerou que do indeferimento do pedido de revisão dos actos tributário com base na sua intempestividade cabia acção administrativa especial.
(…)

Sucede que a informação que precede o referido despacho de indeferimento, exarado como se disse em concordância com tal fundamentação, não faz apenas referência ao decurso de prazos para concluir pelo indeferimento do pedido.

Tal informação alicerça a proposta de indeferimento do pedido de revisão na seguinte fundamentação: por um lado considerou-se que o pedido de revisão apresentado com fundamento em ilegalidade não foi apresentado dentro do prazo de reclamação administrativa referido na 1ª parte do n° 1 do artigo 78° da LGT; por outro lado entendeu-se não ter havido erro imputável aos serviços na medida em que as liquidações de IRC foram emitidas em tempo oportuno com origem nos documentos de correcção elaborados - DC 22.

Mais se ponderou que a liquidação teve por base o relatório da inspecção tributária em que se concluiu que a não consideração como custos do conjunto de facturas nele elencadas resulta do facto de se ter apurado que as mesmas não correspondiam a serviços prestados ao sujeito passivo e, por isso, não podiam ser considerados como custos para efeitos de IRC nos termos do artigo 23° do Código de IRC.

E, com base nesta argumentação, a proposta de indeferimento do pedido de revisão concluiu que não se verificou qualquer ilegalidade nem a existência de qualquer erro imputável aos Serviços.

 

Em suma no caso vertente estava em causa a legalidade do acto tributário de liquidação, sendo que a decisão do director distrital de finanças ao indeferir o pedido de revisão com base na falta de pressupostos legais, nomeadamente por não se verificar erro imputável aos serviços, comporta a apreciação da legalidade de um acto de liquidação.

 

Assim, é de concluir que no presente caso, ao atacar contenciosamente aquele despacho pela via da impugnação judicial, e não por via de acção administrativa especial, a recorrente utilizou o meio processual adequado.

 

O decidido pelo STA é inequívoco e é totalmente transponível para o caso ora em análise: o meio processual adequado para atacar contenciosamente uma decisão de indeferimento de um pedido de revisão por não verificação dos respetivos pressupostos, resultante de não se verificar erro imputável aos serviços, é o processo de impugnação.

 

Se bem entendemos, podemos sintetizar a posição do STA, estando em causa o indeferimento de um pedido de revisão oficiosa por intempestividade, como se segue: 

·    indeferimento por intempestividade do pedido de revisão por terem sido ultrapassados os prazos previstos no nº 1 do artigo 78º para a sua apresentação - sindicada através de ação administrativa;

·    indeferimento por "intempestividade" mas que, na realidade, constitui um indeferimento por inadmissibilidade legal do pedido, o que ocorre sempre que a AT considera que o pedido não é admissível face à inexistência de um erro imputável aos serviços (o que envolve uma apreciação dos fundamentos que suportam o pedido de revisão) e que, por consequência, é inaplicável o prazo fixado na 2ª parte do nº 1 do artigo 78º da LGT  - sindicada através de impugnação judicial. 

 

 

Não podemos deixar de concordar com esta visão, a nosso ver expressão de um correto entendimento que resulta da natureza, legalmente expressa, do contencioso tributário como sendo de plena jurisdição. 

Nas palavras de Aroso de Almeida[2] [o] processo de anulação ou declaração de nulidade de atos administrativos possui um objeto compósito, na medida em que a pretensão que nele é deduzida pelo autor tem uma dupla dimensão: por um lado, dirige-se à concreta anulação ou declaração de nulidade do ato impugnado, fundada no reconhecimento da sua invalidade; mas, por outro, também se dirige ao reconhecimento, por parte do tribunal, de que a posição que a administração assumiu com o ato impugnado não era fundada (…) .Nesta segunda dimensão, o objeto do processo é, assim o accertamento negativo do poder manifestado através do ato impugnado em que ele foi praticado.

 

O acórdão do STA acima citado corresponde à jurisprudência mais recente, aparecendo replicada em outras decisões dos tribunais superiores. 

 

O que foi pedido a este tribunal arbitral é, pois, que aprecie a legalidade das liquidações impugnadas, o que inclui apreciar se as mesmas, independentemente da sua eventual ilegalidade substancial, se consolidaram definitivamente por força do decurso do tempo. O que se pede a este tribunal não é, pois, que aprecie uma decisão “autónoma” de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa, pois que tal decisão surge baseada em razões relativas consolidação na ordem jurídica (e, portanto, à legalidade) das liquidações que lhe deram origem.

Sendo o objeto do processo a legalidade das liquidações impugnadas e o meio processual próprio para tal o processo de impugnação, resulta inquestionável a afirmação da competência deste tribunal arbitral em razão da matéria, atento o disposto no art. 2º, nº 1, do RJAT. Como é corrente afirmar-se, regra geral a competência dos tribunais arbitrais em razão da matéria coincide com aquilo que cabe aos tribunais estaduais apreciar através do processo de impugnação.

Acresce que também no presente processo a informação que sustenta a decisão administrativa de rejeição apreciou a questão de fundo (que atrás, por simplicidade, designámos de “cumulação de isenções”).

 

Há, assim, que concluir pela improcedência desta exceção.

 

b)    Caducidade do direito à ação decorrente da intempestividade do pedido de revisão oficiosa

 

Esta exceção, tal como configurada pela Requerida, corresponde a outro enfoque (ou a uma mera consequência) da antes apreciada. Se o tribunal concluir que o pedido de revisão oficiosa foi intempestivo, nomeadamente por inexistência de erro imputável aos serviços, então (só então) poder-se-ia colocar a questão de uma eventual “caducidade do direito à ação”[3].

Ou seja, tal como explicitado anteriormente, a apreciação da existência de “erro imputável aos serviços” constitui uma dimensão da apreciação do mérito do pedido e não uma exceção, ou seja, um facto que impede o Tribunal de conhecer de tal mérito.

Improcede assim esta exceção.

 

c)     Erro na forma do processo

A Requerida entende existir erro na forma de processo por duas diferentes razões: 

(i)             ser a ação administrativa (a ser, necessariamente interposta nos tribunais estaduais) a forma processual adequada para reagir contra a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa. 

 

Esta questão já foi apreciada anteriormente (IV a)), pelo que se remete para o aí constante.

 

(ii)           “Estarmos perante a concessão e reconhecimento de benefícios fiscais”, o que, conduziria a ser a ação administrativa a forma processual a ser utilizada pela Requerente.

 

Alega a Requerida, em suma, que a competência dos tribunais arbitrais em razão da matéria está circunscrita ao elencado no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT e que, à luz deste artigo, está excluída a apreciação de quaisquer questões referentes ao reconhecimento de isenções fiscais. Estamos, obviamente, de acordo com esta afirmação.

 

Só que a isenção prevista no artº 270º, nº 2, do CIRE é uma isenção automática, ou seja, não pressupõe um qualquer procedimento administrativo prévio dirigido à verificação dos respetivos pressupostos. Não existe, previamente à liquidação, um ato administrativo em matéria tributária destacável para efeitos de recurso contencioso.

A não consideração de uma isenção aplicável consubstancia assim um vício (uma ilegalidade) da própria liquidação, para cuja apreciação um tribunal arbitral é competente.

Cremos que a Requerida confunde “reconhecimento de uma isenção” com incumprimento do ónus de declaração dos respetivos pressupostos, tema que adiante abordaremos.

Improcede assim esta exceção.

 

d)     Incompetência do Tribunal arbitral para a apreciação do reconhecimento de isenção fiscal relacionada com a transmissão de bens imóveis integrados em processo de insolvência.

A Requerente entende que a verificação daqueles pressupostos legais [determinantes para a aplicabilidade do disposto no n.º 2 do artº 270 do CIRE] recai exclusivamente sobre o órgão judicial onde correu o processo de insolvência e que o mesmo se diga quanto à isenção prevista no n.º 1 do art.º 8.º do CIMT”

Em primeiro lugar, temos que a isenção prevista no artº 8º do CIMT não releva diretamente neste processo. A Requerente invocou estar abrangida por este benefício e dele gozou até ao momento em que constatou não ter sido preenchido o condicionalismo (revenda dos prédios centro do prazo que a lei fixa).

 

Relativamente ao disposto no nº 2 do art. 270º do CIRE, temos que, sendo uma isenção automática (sem reconhecimento prévio), fica logicamente excluída a questão de saber qual é a entidade competente para o “reconhecimento”. 

Sendo que sempre repugnaria à logica da separação de poderes que um ato de reconhecimento de um benefício fiscal, que é um ato materialmente administrativo, pudesse caber, em primeira linha, a um qualquer tribunal.

A leitura dos arestos de tribunais superiores da jurisdição comum que a Requerida cita em abono da sua tese mostra que o que neles estava em causa (pese embora a deficiente utilização do termo “reconhecimento” de um benefício fiscal) era uma questão relativa à emissão do meio de prova, do documento comprovativo da forma como foi realizada a aquisição dos prédios (em processo de insolvência de entidade titular de empresa, cujo ativo os prédios em questão integravam), documento necessário à invocação de tal isenção no ato da escritura, e que os tribunais onde correu o processo de insolvência se recusavam a emitir.

Não se coloca pois um qualquer conflito de competências entre os tribunais da jurisdição comum, onde correm os processos de insolvência, e os tribunais tributários (estaduais ou arbitrais) porque nenhum deles é competente para proceder ao reconhecimento de um benefício fiscal, competência esta que, sendo o caso, cabe à administração.

 

Se, no presente processo, estão ou não provados os pressupostos de aplicação do disposto no art. 270º, n.º 2, do CIRE é algo que, se necessário, a seguir se analisará.

Improcede assim esta exceção,

 

 

IV.2 – MÉRITO DA CAUSA 

 

Começaremos pela questão substantiva (legalidade das liquidações impugnadas) para só depois, se tal se mostrar necessário, analisarmos a questão da consolidação na ordem jurídica de tais liquidações.

 

a)    “Cumulação” de isenções[4]

Em primeiro lugar, há que salientar não estarmos perante um caso em que o legislador conferiu um direito de opção aos interessados[5].

Estaremos sim perante um concurso aparente de normas, pois a factualidade em causa (as aquisições de imóveis) é subsumível às hipóteses de dois tipos legais de isenção, as quais tutelam interesses extrafiscais diferentes (não originar uma cascata de tributações em IMT, no caso do art. 8º do CIMT; facilitar, não onerando com a incidência de imposto, a aquisição de bens integrantes de massas insolventes, de modo a permitir uma mais cabal satisfação dos credores, no caso do artº 270º do CIRE). 

Num concurso aparente de normas só uma, a apurar em sede interpretativa atentos os objetivos prosseguidos por cada uma delas, resultará aplicável.

Temos assim uma primeira conclusão: em abstrato, as aquisições de imóveis que deram origem às liquidações impugnadas, ou parte delas, estavam isentas de IMT quer ao abrigo do disposto no art. 270º do CIRE, quer ao abrigo do disposto no 8º do CIMT.

A invocação de uma não inviabiliza a possibilidade de, posteriormente, se invocar a exclui a outra, até porque o direito aos benefícios fiscais automáticos é irrenunciável (art. 8º, n.º 14 EBF).

 

B)   Aquisições abrangidas pelo artº 270º, nº 2, do CIRE

 

Nos nº 118 e ss da resposta da Requerida lê-se o seguinte: importa fazer a seguinte ressalva, qual é a de que a pretensa e alegada ilegalidade das liquidações apenas se pode colocar relativamente às liquidações relacionadas com as aquisições de prédios a sociedades insolventes, 119. e cujo valor ascende a € 2.355.437,60 (…), excluindo-se as relativas às aquisições efetuadas às pessoas singulares insolventes, cujo valor ascende a € 129.527,66.

 

Ouvida a Requerente, veio esta: (i) enumerar quais os prédios que reconhecia não integrarem o património de empresas tituladas por pessoas singulares, (ii) sustentar que, nos demais casos, os prédios em questão integravam o ativo de empresas (em nome individual) declaradas insolventes.

Porém, a Requerente não fez prova do afirmado em (ii).

Este tribunal arbitral entende que a previsão do nº 2 do artº 270º do CIRE abrange as alienações imóveis integrantes do ativo de empresas, quer estas sejam tituladas por pessoas singulares ou pessoas coletivas. Para este entendimento concorre, em primeiro lugar, o elemento literal da norma (utilização do termo empresa, o qual significa uma realidade económica e não uma figura jurídica). Em segundo lugar, mais importante, temos a sua ratio: está em causa apoiar fiscalmente a alienação de bens integrantes do ativo de empresas insolventes, quer para assegurar maior aos credores maior satisfação dos seus créditos, quer também para facilitar a recomposição do tecido empresarial (tais imóveis serão, muitas vezes, adquiridos por titulares de outras empresas. Assim sendo, à realização de tais objetivos extra fiscais resulta, naturalmente, irrelevante a qualidade jurídica do titular da empresa insolvente, se é pessoa singular ou coletiva.

Porém, no caso concreto, a questão resulta prejudicada na medida em que a Requerente não fez prova da anterior afetação empresarial de qualquer um dos imóveis que adquiriu a pessoas singulares, pelo que sempre há que concluir pela inaplicabilidade do disposto no art. 270º, nº2 do CIRE a todas essas aquisições.

 

 

 

c)     Consolidação na ordem jurídica das liquidações impugnadas

 

a)    Erro imputável aos serviços

 

Retomando o que escrevemos na decisão arbitral 613/2021-T:

Começamos por salientar que, em ambos os casos, estamos perante benefícios fiscais automáticos, pois que resultam diretamente da lei. 

Porém, o caráter automático de um benefício fiscal não desonera o interessado de o invocar perante a administração. Aliás, nem poderia ser de outro modo, pois sistemas de “tributação em massa”, como são os atuais, assentam nas declarações dos contribuintes – a obrigação de imposto é, num primeiro momento, apurada face ao por eles declarados, até pela impossibilidade prática de ser a administração a conhecer e apurar oficiosamente cada situação tributária. Isto sem prejuízo da possibilidade de posterior correção do declarado, por não correspondência à verdade ou à legalidade, a iniciativa da administração e, também, por iniciativa dos próprios, os quais se podem insurgir, através das vias procedimentais ou processuais adequadas, contra liquidações fundadas em erróneas declarações por si apresentadas.

 

Este princípio da declaração – estrutural do sistema fiscal, como vimos - aparece expressamente afirmado para casos como os em análise pela al. d) do nº 8 do art.º 10 do CIMT - são de reconhecimento automático, competindo a sua verificação e declaração ao serviço de finanças onde for apresentada a declaração prevista no n.º 1 do artigo 19.º, as seguintes isenções: d) As isenções de reconhecimento automático constantes de legislação extravagante ao presente código (no presente caso, o CIRE).

 

Está em causa um ónus, a exigência legal que o interessado pratique determinada conduta, juridicamente relevante, sob pena de não alcançar um benefício, ou, eventualmente, suportar uma desvantagem.

Neste caso, o ónus de declarar que as aquisições efetuadas preenchiam os pressupostos da isenção prevista no artº 270º, nº 2, do CIRE.

Ónus que, por regra, deveria ser cumprido antes dos atos translativos dos imóveis, como dispõe a citada norma do CIMT.

Mas tal não parece ser impeditivo de que a declaração seja apresentada em momento posterior, desde que antes da liquidação (cfr. parte final do nº 1 do art. 10º do CIMI). 

 

 

Ora, a Requerente nunca declarou à AT que tais aquisições estavam abrangidas pelo artº 270º, n.º 2 do CIRE, nunca substituiu ou tentou substituir a declaração inicial (na qual invocou a aplicabilidade da isenção prevista no artº 8º do CIMT) por outra em que invocasse a aplicabilidade desta outra isenção.

 

Como dado provado, foi a Requerente quem “provocou” as liquidações que ora impugna, apresentando novas declarações mod. 1.

É, assim, manifesto não existir um “qualquer erro imputável aos serviços” que possa ser invocado como fundamento do pedido de revisão oficiosa: as liquidações aconteceram a pedido da Requerente; a AT não tinha obrigação se saber da verificação dos pressupostos factuais subjacentes à aplicação do art. 270º do CIRE.

 

b)    Injustiça grave ou notória

 

Dispõe o nº 4 do artº 78º da LGT: o dirigente máximo do serviço pode autorizar, excecionalmente, nos três anos posteriores ao do ato tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte.

 

A Requerente também invocou esta norma como fundamento do seu pedido de revisão oficiosa das liquidações que ora impugna, o mesmo fazendo no seu requerimento inicial neste processo.

Na sua resposta (nº 33 a 35) a Requerida limitou-se a afirmar que a situação não preenche os pressupostos contidos na 2.ª parte e 1.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT e, 34. Tão pouco preenche os pressupostos do n.º 4 e 5 do art.º 78.º da LGT.

 

Cumpre pois saber se o pedido de revisão oficiosa formulado pela Requerente devia ter sido deferido ao abrigo do disposto em tal norma.

Em primeiro lugar temos o obstáculo constituído pelo elemento literal da norma: enquanto os nº 1 e 2 do artº 78º da LGT se reportam à revisão dos atos tributários (entenda-se, liquidações), o nº 4 apenas se refere a revisão da matéria coletável.

Ora, no presente caso, não está em causa a errónea quantificação da matéria coletável subjacente à liquidação do imposto, mas sim a existência de uma isenção que tem por efeito que, não obstante a existência de matéria coletável, não haja lugar à tributação que de outro modo ocorreria.

Mas, mesmo que assim não se entenda (se entenda, não obstante o teor da norma, que o âmbito de aplicação do nº 4 do artº 78º LGT coincide com o dos seus nº 1 a 3), sempre teríamos que ter em conta do disposto na parte final da norma: desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte.

 

A negligência do contribuinte consistiu, como já evidenciado, em não ter declarado à administração fiscal que as aquisições em causa preenchiam os pressupostos determinantes da aplicação da isenção prevista no art. 720º, nº 4 da LGT, em ter descurado um ónus que sobre ela impendia.

Para o que dispôs de um prazo de 5 anos contados desde a ocorrência do facto gerador, uma vez que as liquidações se encontravam suspensas ao abrigo do art. 8º do CIMT.

Ora, a mudança jurisprudencial em que a Requerente se baseia para pedir a revisão das liquidações que impugna (para afirmar a sua ilegalidade) é anterior à data em que ocorreram as aquisições aqui em questão.

 Mais, desse 2017 que a AT conformou o seu entendimento com a nova orientação do STA[6].

 

A Requerente não é um sujeito passivo qualquer: é uma entidade bancária, uma grande empresa (um grande contribuinte), sendo notório que dispõe de funcionários e consultores especializados em questões fiscais e, ainda, que, no decurso normal da sua atividade, efetua numerosas aquisições de imóveis em processos de insolvência, como demonstra o número de liquidações, relativas a um só ano, que ora impugna.

É-lhe pois exigível que esteja atenta às alterações jurisprudenciais (e às orientações administrativas) que diretamente contendem com a sua atividade, até para evitar significativas consequências económicas negativas, como é o caso.

Não é assim desculpável que, quando ocorreram as aquisições de imóveis aqui em causa) a Requerente não tivesse conhecimento do entendimento jurisprudencial de que as mesmas estavam abrangidas pelo disposto no art. 270º, nº 2, do CIRE e, logo então, não solicitasse a aplicação desta norma.

Muito menos é desculpável que, aproximando-se o termo do prazo previsto no art 6º, nº 11 do CIMT sem que tivesse logrado alienar grande número de imóveis, não tivesse invocado perante a AT, tal isenção e que, em lugar e o fazer, tivesse ela própria promovido as liquidações que ora impugna por reputar de ilegais.

Se estas liquidações aconteceram, tal deveu-se exclusivamente à inércia, à negligência, da Requerente.

O mesmo é dizer que, pese embora as liquidações impugnadas sejam intrinsecamente ilegais, as mesmas se consolidaram na ordem jurídica, não podendo, agora, haver lugar a revisão oficiosa por não estar em causa nem um erro imputável aos serviços, nem uma questão relativa à quantificação da matéria coletável, nem uma situação de injustiça não imputável ao sujeito passivo.

 

Assim sendo, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas neste processo.

 

VI- DECISÃO ARBITRAL

 

Termos em que se conclui pela total improcedência do pedido.

 

Valor: € 2.484.965,27

 

Custas arbitrais, no valor de € 32.130,00, a cargo do Requerente dado o seu total decaimento.

 

19 de janeiro de 2023

 

 

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

 

 

 

José Luís Ferreira

 

 

 


Maria do Rosário Anjos

 



[1] Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, I, 2006, pág. 675.Note-se que o Ilustre Autor não afirma expressamente, relativamente a situações como a presente, aquilo que a Requerente concluiu de tal escrito.

[2]  Manual de Processo Administrativo.

[3] O que nem sequer é exato, porquanto a tese defendida pela Requerida conduziria a uma mera absolvição de instância, abrindo a possibilidade de a requerente interpor uma ação administrativa no tribunal estadual competente.

[4] Seguimos de perto o que deixámos escrito no proc. 613/2021-T, a cuja transcrição a Requerida procedeu na sua resposta.

 

[5] Direito de opção” que a lei frequentemente concede aos interessados, nomeadamente em sede de IRS. P. ex., optar por sujeitar a englobamento os rendimentos de determinadas categorias, em princípio sujeitos a taxas liberatórias ou especiais; optar pela tributação conjunta, no caso dos casados ou unidos de facto.

[6] Circular n.º 4/2017.