Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 509/2022-T
Data da decisão: 2023-10-02  IRC  
Valor do pedido: € 1.007.284,50
Tema: Indeferimento de reclamação graciosa e processo arbitral; - IRC - gastos fiscalmente dedutíveis.
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SUMÁRIO:

 

  1. É intempestivo o pedido arbitral interposto em prazo contado a partir da notificação da decisão de recurso hierárquico que confirmou a intempestividade do anterior procedimento de reclamação graciosa, sem, por tal razão, ter havido lugar à análise da legalidade das liquidações administrativamente reclamadas.   
  2.  O princípio da periodização do lucro tributável deve ceder, quando justificado, perante o princípio da justiça.
  3.  Para efeitos de IRC, a aceitação fiscal de gastos não depende apenas da regularidade formal dos documentos que os titulam; o deles constante pode ser completado por outros meios de prova, normalmente documental.
  4.   Devem ser havidas como não documentadas, e como tal sujeitas a tributação autónoma, as “saídas/débitos” de conta bancária relativamente aos quais apenas foram apresentadas as “designações” pelas quais foram identificadas pela titular de tal conta.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

O Tribunal Arbitral Coletivo formado pelos Prof. Doutor Rui Duarte Morais, Dr. Álvaro José da Silva e Dr. António Pragal Colaço, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, acorda no seguinte:

 

  1. RELATÓRIO

 

A... Lda, NIPC ..., com sede na ..., n.º ..., ...,  ..., veio, nos termos legais, requerer a constituição de Tribunal Arbitral.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

  1. O pedido

 

A Requerente pede a anulação parcial das seguintes liquidações:

- IRC de 2016 e de 2017 - liquidações n.ºs 2021 ... e 2021 ..., no decorrente de algumas das correções efetuadas à matéria coletável;

- IVA de 2016 - liquidação n.º 2021 ...

- IRS (retenções na fonte) - liquidações n.ºs 2021 ... e 2021 ... .

 

A Requerente pede, também, a declaração de ilegalidade da decisão que indeferiu o recurso hierárquico deduzido em razão do indeferimento da reclamação graciosa antes apresentada.

Pede ainda que a Requerida seja condenada em indemnizá-la pelas despesas decorrentes da prestação de garantia bancária indevida no processo de execução fiscal respetivo, nos termos previstos no artigo 53º da LGT.

 

B) Tramitação Processual

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 29/8/2022.

Os árbitros foram designados pelo Conselho Deontológico, comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, sendo que tais nomeações não foram objeto de objeção.

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 08/11/2022.

A Requerida apresentou Resposta e juntou o respetivo processo administrativo.

Em 25 de Janeiro de 2023, realizou-se a reunião a que se refere o art. 18º do RJAT e audição das testemunhas, conforme consta da respetiva ata.

As partes apresentaram alegações no prazo consignado, tendo a Requerente junto novos documentos.

Por despacho de 17 de Março de 2023 do Sr. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, foi substituído o árbitro presidente antes nomeado, por este ter passado a ter uma situação profissional legalmente impeditiva do exercício de tais funções.

Notificadas as partes, estas nada requereram em razão de tal substituição.

Por despacho de 24 de Abril de 2023 foi prorrogado o prazo para ser proferida a decisão arbitral. Em 3 de Julho de 2023 foi decidida nova prorrogação. Em 1 de Setembro de 2023 foi decidida nova prorrogação.

 

 

  1. Posições de Requerente e da Requerida

 

A Requerente considera que:

- a inspeção tributária que deu origem às liquidações impugnadas enferma de vários vícios procedimentais dos quais resultou violação dos princípios da proporcionalidade, da cooperação e da verdade material, do inquisitório e da prossecução do interesse público

- Portugal não tem legitimidade (competência internacional) para a tributar em IRC.

- Refuta as várias correções à matéria coletável que estão na base das liquidações adicionais que impugna, em termos que oportunamente se analisarão.

- Contesta as tributações autónomas liquidadas.

 

A Requerida:

 - informou os autos que, por despacho de 2022-11-22 da Sr.ª Subdiretora Geral de IR, as liquidações de IRC impugnadas haviam sido parcialmente revogadas.

-  defende-se por impugnação, remetendo para os procedimentos graciosos.

 - explicita que a reclamação graciosa, quanto a IVA e IRS, foi indeferida por ter sido deduzida intempestivamente.

- entende que não foram cometidas quaisquer irregularidades no procedimento de inspeção.

- entende que o conceito de residente fiscal definido por cada uma das ordens jurídicas dos estados contratantes não contende com o disposto na CDT Portugal- Espanha, baseada no MOCDE; que, no caso em apreço, a Requerente será residente fiscal em Portugal por ter a sua sede estatutária em Portugal.

- defende a legalidade  das correções efetuadas, com uma exceção.

 

 

  1.  SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

O processo não enferma de nulidades ou outras irregularidades.

A cumulação de pedidos é legal porque verificados os seus pressupostos.

 

 

III - REVOGAÇÃO PARCIAL DO ATO TRIBUTÁRIO

 

A Requerida, na sua resposta, veio informar o Tribunal da revogação parcial das correções que havia efetuado em sede de IRC, pelo facto de a Requerente, com o seu requerimento inicial neste processo, ter apresentado suportes documentais de alguns gastos. Conclui tal despacho: Assim sendo, a correção efetuada para os exercícios antes mencionados, respetivamente de 145.432,35 € e de 114.373,83 €, devem ficar agora nos montantes 62.055,14 € e de 77.962,58 €., por redução dos montantes de 83.777,21€ do ano de 2016 e de 36.411,25€ do ano de 2017 à matéria tributável.

 

Existindo a possibilidade legal de anulação parcial do ato tributário, baseada no pressuposto de que o mesmo é divisível; tendo a Requerente aceitado tal revogação, não solicitando o prosseguimento deste processo para a apreciação de tais questões, há que concluir que quanto a tais matérias se verifica a inutilidade superveniente da lide nos termos aplicáveis, conduzindo à extinção parcial da instância quanto à mesma, o que se decide.

 

 

IV- QUESTÕES PRÉVIAS

 

  1. Delimitação dos poderes de cognição do tribunal arbitral

 

1 - Como consta do pedido acima sumariado, a Requerente impugna liquidações de IRC, de IVA e de IRS (retenções na fonte). Fá-lo na sequência do indeferimento da reclamação graciosa e recurso hierárquico apresentados.

Importa saber quais os fundamentos do indeferimento de tais recursos administrativos, relativamente a cada um dos impostos em causa, por terem sido diferentes.

Analisando os documentos constantes do PA, verifica-se :

- que a reclamação graciosa foi apresentada em 24/09/2021.

- que, relativamente à liquidação de IVA, a AT considerou que tendo o prazo de  pagamento voluntário terminado em 2021-05-26, a reclamação graciosa deveria ter sido apresentada até 2021-09-23.

- que, relativamente às liquidações de IRS, a AT considerou que tendo o prazo de  pagamento voluntário terminado em 2021-05-25, a reclamação graciosa deveria ter sido apresentada até 2021-09-22.

- que estes foram os únicos fundamentos invocados para o indeferimento da reclamação graciosa no relativo às liquidações de  IVA e IRS.

- na decisão do recurso hierárquico nada foi acrescentado à fundamentação constante da reclamação graciosa, concluindo-se pela REJEIÇÃO LIMINAR do pedido, quanto à matéria relativa ao IVA e ao IRS-Retenção na fonte.

- mais ainda, na decisão de indeferimento do recurso hierárquico é expressamente referido que a Requerente não pôs em causa a intempestividade da reclamação graciosa quanto a estes impostos, antes pugnou pela sua convolação em pedido de revisão oficiosa.

 

2- Apreciando:

 

Resulta da lei (art. 2º, nº 1, al. a) do RJAT) que a competência dos tribunais arbitrais (CAAD) compreende (apenas) a apreciação das seguintes pretensões: a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta.

Ora é evidente que a decisão de rejeição liminar desta reclamação graciosa e sua confirmação em sede de recurso hierárquico não envolveram qualquer apreciação da legalidade das liquidações de IRS e IVA reclamadas, mas apenas uma “contagem” dos prazos para a sua apresentação. Assim sendo, a apreciação da questão da tempestividade da reclamação graciosa, no tocante a estes impostos, sempre extravasaria o âmbito dos poderes de cognição deste tribunal.

 

Acresce: a Requerente impugna as liquidações relativas a estes impostos com base em argumentos substantivos, nada dizendo quanto ao único fundamento invocado no recurso hierárquico para decidir (para confirmar a decisão proferida em sede de reclamação graciosa) pelo indeferimento liminar: intempestividade da apresentação da reclamação.

Ou seja, a Requerente não ataca o (único) fundamento da decisão administrativa que constitui o objeto imediato deste processo arbitral.

Objeto imediato e via de acesso ao tribunal arbitral: a tempestividade do acesso ao tribunal arbitral tem como pressuposto a tempestividade dos recursos administrativos antes apresentados, pela simples razão que a presente ação arbitral não foi proposta no prazo legal contado da data final para pagamento voluntário mas sim do prazo legal contado da notificação do indeferimento do recurso hierárquico que versou sobre a decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

O mesmo é dizer que mesmo que o tribunal arbitral fosse competente em razão da matéria para apreciar da tempestividade de uma reclamação graciosa, atenta a concreta fundamentação de tal indeferimento (e, como vimos, no caso não o é), a pretensão da Requerente sempre estaria condenada a inêxito por total ausência de causa de pedir.

 

Termos em que se indefere liminarmente o pedido no tocante às liquidações de IVA 2016 e de IRS (retenções na fonte).

 

Assim sendo, a esta decisão arbitral apenas passará a apreciar a legalidade das liquidações de IRC impugnadas.

 

 

  1. Vícios do procedimento inspetivo

Nos nº 3 a 24 e 46 a 50 do requerimento inicial[1], a Requerente alega, em suma, que:

- a inspeção tributária externa de que foi objeto, assim classificada mas levada a cabo totalmente à distância, sem qualquer contacto direto com a inspecionada, sem qualquer deslocação às suas instalações e sem ter sido realizada uma única reunião com os seus representantes legais ou com a responsável pela contabilidade, não prosseguiu de forma adequada os objetivos a alcançar.

-  (…) com evidente violação dos princípios da proporcionalidade, da cooperação e da verdade material, não tendo sido concedida qualquer prorrogação do prazo de resposta - apesar de nesse momento já estar suspenso o prazo para a conclusão do procedimento de inspeção.

- (…) ter sido desconsiderado o teor do direito de audição sobre o projeto de relatório, designadamente quando ali se assinalou a incorreção das conclusões da ação inspetiva no âmbito do IRC e do IRS-RF, a pretexto de que “não foram apresentados novos elementos", em violação, na sua ótica,  dos princípios do inquisitório, da prossecução do interesse público e da busca da verdade material que presidem a todo o procedimento tributário, incluindo o procedimento de inspeção.

 

A Requerida alega, em suma, que:

- a situação de confinamento resultante da pandemia que então se vivia impossibilitou o diálogo presencial, mas houve o necessário diálogo com a contabilista da Requerente, interlocutora da AT neste procedimento, e o facto de tal diálogo não ter sido presencial em nada prejudicou o exercício do contraditório.

- a Requerente entregou em 2020-07-24, após o termo do prazo para o exercício do direito de audição, vários documentos, que foram efetivamente analisados e tidos em conta na apreciação que conduziu às conclusões do RIT, tendo o objetivo final sido alcançado, sem prejuízo para o contribuinte.

 

Apreciando:

É notório o facto de a inspeção tributária ter decorrido em período de fortes restrições devidas à pandemia, o que permite compreender a inexistência de contactos pessoais. Mas, como aconteceu em inúmeras outras situações, os meios de comunicação à distância revelaram-se razoavelmente suficientes para assegurar os necessários diálogos. Nada é alegado, em concreto, no sentido de não ter sido assim neste procedimento inspetivo.

 

Quanto ao pedido de prorrogação do prazo para o exercício do direito de audição prévia relativa ao projeto de RIT, temos que este foi fixado no máximo que a lei permite, sendo duvidosa a legalidade de uma decisão administrativa que, sem arrimo legal, o prorrogasse. O certo é que a AT afirma que teve em consideração a documentação que lhe foi entregue após o termo de tal prazo, nada tendo sido alegado/provado em contrário.

Mais, a prossecução dos princípios do inquisitório, da prossecução do interesse publico e da busca da verdade material que presidem a todo o procedimento tributário, incluindo o procedimento de inspeção, alegada pela Requerente como tendo sido violada, terá prosseguido mesmo após a notificação do RIT, como demonstra a posterior anulação parcial das liquidações.

 

Assim sendo, entende este tribunal arbitral que não existiram vícios procedimentais dos atos inspetivos (stricto sensu) capazes de, pela sua gravidade, obrigar à anulação das consequentes liquidações.

 

  1. Violação do Direito de Audição Prévia

Nos números 186 a 198 do seu requerimento inicial, a Requerente insurge-se contra o facto de não lhe ter sido facultado o direito a ser ouvida antes das decisões de indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico.

Sobre esta questão a Requerida nada disse.

Analisando o PPA, verifica-se que tal audição foi dispensada, com invocação do disposto numa circular administrativa.

Houve, pois, omissão de uma formalidade legal. A questão que se coloca é a da sua relevância, nomeadamente em termos de ser causa de anulação das liquidações subsequentes.

 

Existe jurisprudência consolidada do STA sobre esta questão: Destinando-se a audiência dos interessados a permitir a sua participação nas decisões que lhes digam respeito, contribuindo para um cabal esclarecimento dos factos e uma mais adequada e justa decisão, a omissão dessa audição constitui preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão, a menos que seja manifesto que esta só podia, em abstracto, ter o conteúdo que teve em concreto e que, por isso se impunha, o seu aproveitamento pela aplicação do princípio geral do aproveitamento do acto administrativo.


Todavia, a possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do acto exige sempre um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso, com vista a aferir se se está ou não perante uma situação de absoluta impossibilidade de a decisão do procedimento ser influenciada pela audição da requerente (Ac. do Pleno da secção do CT de 22-01-2014, proc. 0441/13).

 

Esta jurisprudência continua a ser prosseguida pelo STA, como é exemplo o recente acórdão no processo 0348/16, de 08-02-2023.

 

Procedendo à análise caso que nos ocupa, temos que a Requerente, limpidamente, afirma que a falta da possibilidade do exercício deste direito terá assumido relevância significativa relativamente às liquidações de IRS (retenção na fonte) e IVA, ou seja, implicitamente aceita que, relativamente ao IRC, não havia, à data alegado factos novos capazes de alterar a decisão projetada. Transcrevemos do nº 197 do requerimento inicial: é manifesto que a participação da Requerente na decisão final era suscetível de a alterar, porquanto, pelo menos no que diz respeito às liquidações de IRS-RF e de IVA, seria suscetível de evitar a falta de pronúncia sobre as mesmas (…)

 

Ora, como antes decidido, a apreciação, neste processo, da legalidade das liquidações de IRS e IVA resultou prejudicada, o que necessariamente prejudica, relativamente a tais liquidações, a apreciação das consequências desde vício procedimental.

Relativamente ao IRC, há que concluir, com a Requerente, que a falta da possibilidade do exercício deste direito, não a prejudicou, pelo que deve prevalecer o princípio do aproveitamento dos atos administrativos (nº 5 do art. 163.º do CPA), ainda que não tenha sido cumprida esta formalidade legal.

 

Tribunal:

  1. Não convolação da reclamação graciosa em pedido de revisão oficiosa

Nos números 199 a 210 do seu requerimento inicial, a Requerente insurge-se contra o facto de a reclamação graciosa por si intempestivamente apresentada, no tocante às liquidações de IRS – RF e IVA, não ter sido convolada em pedido de revisão oficiosa.

Independentemente da opinião de cada um dos membros do tribunal sobre esta questão, o certo é que está em causa uma decisão de recusa administrativa da prática de um ato.

Existem meios processuais próprios que permitem que este tpio de questões seja alvo de sindicância judicial, nomeadamente o previsto, “máxime” a ação de condenação à prática de ato administrativo legalmente devido (artigo 66.º e segs do Código de Processo nos Tribunais Administrativos - CPTA).

Porém, a condenação à prática de ato devido não se insere nas competências das matérias que a lei (art. 2º do RJAT) atribuiu aos tribunais arbitrais tributários, pelo que este tribunal está impossibilitado de conhecer a questão.

 

  1. Inexistência do direito à tributação por Portugal, em IRC,

 

1- Nos nº 51 a 72 do requerimento inicial, a Requerente alega que Portugal não tem legitimidade para a tributar em IRC porquanto tem a sua direção efetiva em Espanha, pois que aí residem todos os seus sócios e gerentes, são tomadas todas as decisões ao nível da estratégia comercial, financeira e de gestão, relacionadas com o exercício da atividade de pesca marítima através do barco “... Mar”, seu único ativo operacional (nº 51 do requerimento inicial) e que a sua sede registral corresponde ao endereço do escritório da sua contabilista.

Do que extrai a conclusão que, não tendo sede efetiva em Portugal, a competência para tributar os seus lucros pertence, em exclusivo, a Espanha.

Isto porquanto, segundo entende, nos termos dos n’ 1 e 3 do art. 4º da CDT Portugal Espanha, baseada no MOCDE, o critério da residência das pessoas coletivas é estabelecido em função do local onde se situa a direção efetiva e não do local onde se situa a sede.

 

2- Apreciando:

 

A Requerente labora num equívoco.

As Convenções sobre Dupla Tributação baseadas no MOCDE não definem os critérios segundo os quais uma pessoa, singular ou coletiva, deve ser considerada residente nos estados contratantes. As convenções, neste ponto, remetem para as leis internas de cada um dos estados contratantes.

Ou seja, saber se alguém, uma sociedade, deve ser considerado residente fiscal em Portugal é algo que se determina à luz da lei portuguesa, no caso do art. 4º, nº 1, do CIRC, segundo o qual  relativamente às pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, o IRC incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território.

 

Por força desta norma, Portugal considera ter legitimidade para tributar os rendimentos da Requerente, independentemente do local onde hajam sido obtidos, por esta ter a sua sede estatutária em Portugal.

 

O disposto na CDT Portugal Espanha, cuja prevalência sobre as normas internas é indiscutível, só seria aplicável no caso de se verificar a existência de um conflito de residências, ou seja, caso Espanha também considerasse ser a Requerente sua residente fiscal e, por tal razão, a tivesse sujeitado a imposto sobre os lucros numa base mundial.

A norma constante do nº 3 do art. 4 da CDT é uma “norma de desempate” (tie break rule): sendo uma pessoa coletiva considerada residente em ambos os estados contratantes, o desempate é feito a favor do estado onde se situa a direção efetiva da empresa em detrimento do estado onde se situa a sua sede registral.

 

Ou seja, no caso presente nem sequer é relevante apurar (dar como provado ou não provado) se a sede efetiva da Requerente é em Espanha, pela simples razão que esta não alega (e não consta dos autos qualquer indício nesse sentido) que foi considerada como residente em Espanha pela administração fiscal desse país e que esta a tributou ou tem a pretensão de a tributar a tal título.

 

Não existindo qualquer conflito real de residências (“dupla residência fiscal”) não há, sequer, que ter em consideração o disposto na CDT.

 

Mais, o entendimento da Requerente conduziria a uma situação não conforme com as CDT´s, a um abuso objetivo – não que tenha sido essa a intenção subjacente a este seu argumentário - da CDT em causa: não veria o seu lucro mundial ser tributado em Portugal e também não o veria ser tributado em Espanha por este país não ter exercido o direito à tributação que, porventura (segundo a lei interna espanhola) lhe assiste em razão de, eventualmente, a sede efetiva da Requerente estar situada nesse país.

 

Termos em que, liminarmente, se indefere este alegado vício de incompetência de Portugal para tributar a Requerente em IRC na qualidade de residente.

 

 

V - MATÉRIA DE FACTO:

 

  1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente tem por atividade a pesca marítima, que exerce através da embarcação, “... Mar”, registada no Funchal, estando enquadrada para efeitos de IVA no regime normal de periodicidade mensal, bem como no regime geral de IRC.
  2. A sua sede estatutária é no local indicado no cabeçalho.
  3. A Requerente foi alvo de uma ação inspetiva, de natureza parcial, em sede de IRC e IVA, incidente sobre os exercícios de 2016 e 2017, cujo objeto foi ampliado para geral, externa de IVA e IRC, dos anos de 2016 e 2017, da qual resultaram as liquidações impugnadas.
  4. O direito de audição prévia foi exercido em 29 de Março de 2021.
  5. No dia 30/3/2021, foi elaborado o relatório final de inspeção tributária, devidamente notificado à Requerida.
  6. A Requerente reclamou graciosamente das liquidações graciosas que ora impugna.
  7. Tal reclamação, no tocante às liquidações de IVA e IRS foi rejeitada liminarmente por intempestividade. Relativamente ao IRC, foram mantidas as correções reclamadas.
  8. A Requerente recorreu hierarquicamente, sendo que, na decisão deste  recurso, que não foi precedida da notificação para o exercício do direito à audição prévia, foi confirmado o decidido em sede de reclamação graciosa.
  9. A Requerente procedeu a correções voluntárias durante a realização da ação inspetiva: IRC 2016 - 302.551,63; IRC 2017 - 229.374,92; IRC - 2017 (tributações autónomas) -  290,82).
  10. A Requerente exerce a sua atividade de pesca marítima em águas internacionais ao largo do Oceano Índico, a partir da África do Sul (Durban), através da embarcação “... Mar” (única embarcação de pesca em alto mar de que dispõe), sendo os seus sócios gerentes e “mestres” do navio cidadãos de nacionalidade espanhola que residem em Espanha, em ..., Lugo.
  11. A “partida” para a pesca tem lugar no porto de Durban e envolve o abastecimento do navio, o qual é contratado a uma empresa de ship chandler (fornecedor de navios) sedeada em Durban.
  12.  O gasóleo para o navio é adquirido em Vigo a empresas de venda de combustível com parceiros em Durban onde é fornecido.
  13. O isco apropriado para a pesca, é, em parte, adquirido em Vigo (potas e cavalas) sendo transportado por via marítima.
  14. A Requerente também contrata o transporte, por via marítima, até Vigo, do peixe obtido na pesca e congelado em alto mar.
  15. A generalidade dos demais tripulantes para o navio, com exceção dos mestres, são subcontratados a uma agência de tripulação da Indonésia denominada “B...”:
  16. Os seguros da embarcação, de transporte de mercadorias, de saúde e vida dos trabalhadores, são contratados com a C...– Espanha;
  17. A Requerente, na pessoa da sua contabilista, foi notificada para prestar diversos esclarecimentos.
  18. No ponto n° 3 de tal notificação era solicitado para "Relacionar a aquisição de bens e serviços em Espanha, reconhecidas na contabilidade e constantes do “Anexo I”, com as embarcações e locais da efetiva utilização dos serviços e bens, bem como, com as atividades exercidas pela sociedade, devendo, se for o caso, juntar os documentos”.
  19. O sujeito passivo  juntou os documentos constantes do "Anexo X", do RIT, os quais, em alguns casos, mencionam o nome do barco, referindo estarem em causa fornecimentos, tais como gasóleo, mantimentos, isca para pesca, gelo para as câmaras frigorificas, materiais de conservação e reparação da embarcação, contratação de pessoal através de empresas especializadas, despesas com comunicação etc, e outros bens e serviços. Posteriormente juntou mais documentos, constantes do anexo XI ao RIT.
  20. Perante a documentação apresentada, a AT concluiu que os bens a que se referem as faturas emitidas pela empresa “D..., SL, num total de €59 977.49, relativamente a 2016, e de €38.538.35, relativamente a 2017, foram efetivamente para Durban, Africa do Sul, local onde é exercida a atividade.
  21. No mais, a AT concluiu que o sujeito passivo não relaciona estes documentos, com as aquisições de bens e serviços em Espanha, cujas faturas constam do “Anexo X” reconhecidas na contabilidade, para além de que, conforme consta dos referidos documentos de transporte, alguns destes transportes incluem bens que se destinam a outro barco (propriedade de uma empresa espanhola “E...”, cujos sócios são os mesmos do sujeito passivo), bem como não é explicado qual a intervenção da empresa "F...”, cujo nome consta dos documentos de transporte atrás referidos, uma vez que esta empresa da Africa do Sul, também é fornecedora de bens e serviços, conforme faturas constantes da contabilidade (Cfr. RIT p. 10/34, fls. 543) e ainda relativamente às outras aquisições, cujas cópias constam do “Anexo X", uma vez que não apresentou documentos comprovativos da saída de Espanha, e/ou Portugal (três faturas de 2017, emitidas por “G..., SL" indicam como destino Portugal), para Africa do Sul, local onde se encontra o barco para o exercício da atividade, consideramos que, não sendo exercida qualquer atividade em Espanha ou Portugal, não foi comprovado que estes gastos foram incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC (…), pelo que não concorrem para a determinação do lucro tributável, nos termos do artigo 23° do CIRC, no ano de 2016, o montante de €145.432,35 (€205.409,84 - €59 977,49) e no ano de 2017, o montante de €114.373,83 (€152 912,18 - €38.538,35) (cfr. RIT, p. 8/31, fls. 541).
  22. Em resultado da documentação entregue pela Requerente na pendência deste processo, a AT procedeu à revogação parcial de algumas das correções impugnadas a que se referem os pontos anteriores, como já referido nesta decisão arbitral.
  23. No ponto n° 4 da notificação referida em 17) era solicitado que o sujeito passivo relacionasse a aquisição de bens e serviços efetuada em Portugal (Peniche), reconhecidos na contabilidade, nomeadamente aquisição de bens alimentares e outros, com as embarcações e locais da efetiva utilização dos serviços e bens, bem como, com a atividade exercida pela sociedade, sendo ainda solicitado, se for o caso, para juntar os documentos alfandegários apropriados e comprovativos do destino dos bens, assim como comprovativos das deslocações dos prestadores de serviços.
  24. Na resposta, a Requerente afirmou que os gastos efetuados em Peniche são referentes a estadia dos sócios ocorrida aquando da verificação da possibilidade de aquisição de uma nova embarcação, aproveitando para adquirir pequenas peças e ferramentas destinadas à sua embarcação.
  25. Os documentos que suportam tais gastos referem-se a despesas de supermercado, de alojamento de 3 quartos simultaneamente, porcas, parafusos, contraplacado marítimo, tabuinha, etc. bem como reparações no terminal de embarcações.
  26.  Pelo que a AT concluiu que, estando a embarcação ao largo da Africa do Sul, tais despesas não são plausíveis nem é credível a justificação do sujeito passivo. Mais, deu relevo às informações obtidas junto da Agência Tributaria de Espanha relativamente à empresa "E...", cujos sócios são os mesmos do sujeito passivo, pois esta é proprietária de um barco de pesca que tem a sua base de operações no porto de Peniche, e coincidirem as datas dos gastos com a localização desse barco em Peniche, conforme “Anexo XII”.
  27. E não aceitou a dedutibilidade dos demais gastos discriminados no Anexo XIII do RIT.
  28. No ponto n° 5 da notificação, era solicitada a apresentação do extrato bancário da conta ES..., relativo a 2016, e, ainda, os documentos (faturas e/ou outros) que suportam e justificam os movimentos referidos no “Anexo II” de tal notificação, relativos a 2016 e 2017. Os movimentos em causa respeitam a registos constantes da conta bancária, entradas e saídas, não reconhecidos na contabilidade
  29. Em resposta a este ponto, o sujeito passivo apresentou, além do extrato bancário solicitado, alguns documentos comprovativos de movimentos a crédito - entradas em bancos e a debito-saídas em banco; No entanto, não apresentou a quase totalidade dos documentos que suportam e justificam os movimentos bancários, conforme resulta do mapa que constitui o “Anexo XIV” ao RIT.
  30.  Na resposta da Requerente a tal notificação é ainda referido que os documentos agora apresentados foram objeto de regularização, tendo as declarações de rendimentos mod. 22 de IRC sido substituídas,
  31. Relativamente aos débitos-saída de bancos, a Requerente alegou que os movimentos designados por "nomina” são relativos a pagamento ao pessoal espanhol, feitos por transferência bancária em tranches, e que os pagamentos designados “reintegro de efetivo" ou "gastos Durban" são também para pagamento de ordenados ao pessoal estrangeiro, que, normalmente, recebe em dinheiro.
  32. Notificada para tal, a Requerente apresentou alguns documentos de suporte, parcialmente aceites pela AT.
  33. Pelo que a AT considerou que as saídas de bancos, referidas no "Anexo II” de tal notificação, para as quais não foram apresentados documentos justificativos, deveriam ser qualificadas como despesas não documentadas, sendo, no ano de 2016, no montante de €199.899,30 e, no ano de 2017, n o montante de €371.482,77 (conforme "Anexo XIV" ao RIT), e, por tal, tributadas autonomamente, nos termos do n° 1 do artigo 88° do CIRC, à taxa de 50%.
  34. No ponto n° 9 da notificação referida em 17), era solicitada a “apresentação de documentos (faturas e/ou outros) comprovativos dos gastos discriminados no “Anexo III”, nomeadamente os relativos a “pagamentos de seguros”. Relativamente a estes, a Requerente foi notificada para  apresentar os respetivos contratos  de forma a permitir identificar o objeto seguro, beneficiários, etc .
  35. A Requerente apresentou alguns documentos, (Anexo XVII” ao RIT), para além dos constantes da sua contabilidade, que a AT considerou não estarem emitidos em forma legal. Relativamente aos recibos de pagamentos de prémios de seguros, constantes do mesmo “Anexo XVII", atendendo a que não foram apresentados os respetivos contratos, conforme notificação, concluiu, com uma exceção, não ser possível identificar os objetos seguros e respetivos beneficiários.
  36. Pelo que considerou serem despesas não documentadas os valores constantes do Anexo XVII.
  37.  No ponto n° 10 da notificação referida em 17) era solicitado para identificar e relacionar a ligação da empresa com as pessoas identificadas nos documentos emitidos pela agência de viagens espanhola "H... SA Unipersonal", constantes do “Anexo IV" da notificação, relativos a passagens aéreas, relevados contabilisticamente como gastos com deslocações.
  38. O sujeito passivo respondeu que estas despesas são relativas a deslocação do pessoal ao serviço no navio, bem como dos sócios gerentes, referindo que a maioria do pessoal é indonésio. Juntou fotocópias das faturas da agência de viagens, já constantes da contabilidade e uma cópia de um recibo de seguro de viagem. Relativamente a 2017, apresentou três “listas de tripulação" do ... Mar ( “Anexo XVIII” ao RIT), relativas a "partida” em 2017-01-13, sendo o mestre I... e J...; “chegada” em 2017-03-23, sendo J... o mestre, e, “partida” em 2017-07-01, com o mestre J....
  39. Analisando estas listas, a AT constatou que os tripulantes constantes da “partida" não são coincidentes com os que constam da “chegada”, ou seja, as pessoas que embarcam em Janeiro não são as mesmas que regressam em março.
  40. Pelo que a AT apenas aceitou como gastos as viagens dos sócios gerentes e dos funcionários (“Anexo XIX” e “Anexo XX” ao RIT), não aceitando, relativamente a 2016, o montante de €9.336,77 e, relativamente a 2017, o montante de € 10.966,59.
  41. A AT desconsiderou gastos no valor de euros 4.824,04 (exercício de 2016),e de euros 20, 506, 32 (exercício de 2017) por violação das regras de periodização do lucro, gastos estes discriminados nos anexos I e IV ao RIT.
  42. Relativamente a 2016, a AT entendeu que alguns gastos considerados na regularização efetuada pelo sujeito passivo tinham como documentos de suporte cópias de documentos que já estavam relevados contabilisticamente, pelo que, com este reconhecimento e esta regularização o sujeito passivo estaria a duplicar gastos.
  43. Os gastos relativos a seguros tinham como suporte apenas recibos.

Relativamente a outros gastos constantes da declaração de substituição, nomeadamente os que se referem a aquisições de bens em Espanha, a AT considerou que o sujeito passivo não apresentou quaisquer documentos de transporte, de Espanha para Africa do Sul, local onde se encontra a embarcação, a exercer a atividade, nem comprovou que tais gastos foram incorridos para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

  1. A AT aceitou como gasto as despesas com a segurança social dos seus funcionários pagas em Espanha, que, inicialmente, não estavam reconhecidas na contabilidade, tendo recusado  a dedutibilidade dos demais
  2. Relativamente aos rendimentos declarados, foram apresentados os respetivos documentos, conforme consta do “Anexo XV” ao RIT, sendo possível relacionar com os valores a crédito da conta bancária.
  3. Das informações recebidas da competente autoridade fiscal espanhola resultou que os sócios gerentes da Requerente apresentaram nesse país, onde residem, declarações dos rendimentos auferidos. No entanto, o valor por eles declarado em Espanha como rendimentos de trabalho, é inferior aos montantes relevados contabilisticamente, pela Requerente (“Anexo XXVII” ao RIT).
  4. Assim, a AT apenas aceitou como gastos com pessoal os montantes de salários declarados em Espanha pelos sócios gerentes, não aceitando a diferença contabilizada pela Requerente, no montante de €60.117,70, em 2016 e de €30.679,52 em 2017b).
  5. AT não aceitou como gasto os montantes titulados pelas faturas a seguir enumeradas por não conterem o nome ou a denominação social do fornecedor e do adquirente ou destinatário, nem os respetivos números de identificação fiscal

2016

 

 

 

 

 

 

DATA                 

DA 

FACTURA

NÚMERO DA 

FACTURA

VALOR RELEVADO

CONTABILISTICAMENTE

VALOR CORRIGIDO

EMITENTE

SITUAÇÃO VERIFICADA

LEGISLAÇÃO

APLICADA

DESCRITIVOS FACTURA

29/02/2016

FT 26

324,86

324,86

Quayside Engineering

Fatura s/ identificação do

adquirente

n°s 3 e 4 do artº 23° CIRC

Sold to Rebeira do Mar

30/04/2016

FT 141257

17 272,46

17 272,46

Trade Ocean Shipping Services (PTY) Ltd

Factura de €15272.46, com

denominação social do sp

incorrela

n°s 3 e 4 do artº 23° CIRC

Masters and Owners F/V Ribeira do

Mar Mar Largo Ind Pesca SL Av

Arcadio Pardinas, n.º 172, 2º C 27880

Burela Spain

30/04/2016

FT 141230

11 606,74

11 606,74

Trade Ocean Shipping Services (PTY) Ltd

FATURA de €10.606,74 com

denominação social do sp

incorrela

n°s 3 e 4 do artº 23° CIRC

Masters and Owners F/V Ribeira do

Mar  MM... Ind Pesca SL Av

Arcadio Pardinas, n.º 172, 2º C 27880

Burela Spain

31/05/2016

FT 160495

403,80

403,80

Entrepol Naval, SL  - NIF B36841450 (Espanha)

Doc com NIF e denominação

social incorrectos

n°s 3 e 4 do artº 23° CIRC

Masters and Owners F/V Ribeira do

Mar Mar Largo Ind Pesca SL Av

Arcadio Pardinas, n.º 108, 4º D 27880

Burela Lugo Ribeira do Mar

31/05/2016

FT 139718

16 749,21

16 749,21

Trade  Ocean Shipping Services (PTY) Ltd

Fatura de $16

507,28=€14,749.21 e com

denominação social do sp

incorrela

n°s 3 e 4 do artº 23° CIRC

Masters and Owners F/V Ribeira do

Mar Mar Largo Ind Pesca SL Av

Arcadio Pardinas, n.º 172, 2º C 27880

Burela Spain

31/05/2016

FT NATIONAL

SHIP

3 359,85

3 335,85

National Ship Chandlers

Documento inválido

n°s 3 e 4 do artº 23° CIRC

Av Arcadio Pardinas, n.º 172, 2º C

27880 Burela (Lugo) Spain

 

31/05/2016

FT 136101

24 865,32

24 865,32

Trade Ocean Shipping Services (PTY) Ltd

Doc  com denominação social

incorrecta do sp

n°s 3 e 4 do artº 23° CIRC

Masters and Owners F/V Ribeira do

Mar Mar Largo Ind Pesca SL Av

Arcadio Pardinas, n.º 172, 2º C 27880

Burela Spain

30/06/2016

FT 569

12,61

12,61

Carlin – Lopegar Burela, SL – NIF B27314749

Doc com NIF incorrecto

n°s 3 e 4 do artº 23° CIRC

Mar Largo Ind Pesca LDA Av

Convatentes da Grande Guerra 49577

Viana do Castelo Viana do Cas

Portugal

30/06/2016

FT 136210

25 000,00

25 000,00

Trade Ocean Shipping Services (PTY) Ltd

Doc  com denominação social

incorrecta do sp

n°s 3 e 4 do artº 23° CIRC

Masters and Owners F/V Ribeira do

Mar Mar Largo Ind Pesca SL Av

Arcadio Pardinas, n.º 172, 2º C 27880

Burela Spain

30/06/2016

FT 104

59,59

59,59

Silc Servport – NIF  B27786508

Doc sem NIF

n°s 3 e 4 do artº 23° CIRC

Mar Lago Ind Pesca Lda Lugo Avda

Combatentes Grande Guerra 212 2º

Esq Portugal 4900-544 Viana do

Castelo

30/06/2016

FT 140213

19 042,26

19 018,26

Trade Ocean Shipping Services (PTY) Ltd

Doc com denominação social

incorecta, erro contabilização a

+  1924 67 ; Fatura de

€17.093, 59

n°s 3 e 4 do artº 23° CIRC

Masters and Owners F/V Ribeira do

Mar Mar Largo Ind Pesca SL Av

Arcadio Pardinas, n.º 172, 2º C 27880

Burela Spain

31/07/2016

FT 82

2 158,40

2 158,40

P.B.Brown Electrical (PTy)Ltd

Doc. sem denominação social

n°s 3 e 4 do artº 23° CIRC

The Master and Owner Fishing Vessel

Ribeira do Mar C/O Trade Ocean 223

Florida Road Durban 4001

31/07/2016

FT 1725

4 527,97

4 497,47

National Ship Chandlers

Doc. sem denominação social

do sp

n°s 3 e 4 do artº 23° CIRC

Av Arcadio Pardinas, n.º 172, 2º C

27880 Burela (Lugo) Spain

31/07/2016

FT 136541

33 794,14

33 794,14

Trade Ocean Shipping Services (PTY) Ltd

Doc  com denominação social

incorrecta do sp

n°s 3 e 4 do artº 23° CIRC

Masters and Owners F/V Ribeira do

Mar Mar Largo Ind Pesca SL Av

Arcadio Pardinas, n.º 172, 2º C 27880

Burela Spain

31/08/2016

FT 92

244,63

244,63

P.B.  Brown  Electrical (PTy) Ltd

Doc. sem denominação social

do sp

n°s 3 e 4 do artº 23° CIRC

Fishing Vessel Ribeira do Mar

31/08/2016

FT 140769

26 837,51

26 813,51

Trade Ocean Shipping Services (PTY) Ltd

Doc  com denominação social

incorrecta do sp

n°s 3 e 4 do artº 23° CIRC

Masters and Owners F/V Ribeira do

Mar Mar Largo Ind Pesca SL Av

Arcadio Pardinas, n.º 172, 2º C 27880

Burela Spain

30/09/2016

GG...

F...

F...

O...

 

F...

...

F...

F...

F...

F...

F...

...

M...

M... SL

 

 

M..

M... SL

M...SL

 

 

M... SL

A...

M...

A...

M...

 

 

 

 

M... SL

M...SL

 

 

 

 

 

 

 

...

...

...

...

LL...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2017

 

 

  1. Na pendência deste processo (primeiro, com o requerimento inicial e, depois, com as suas alegações), a Requerente apresentou vários outros documentos em ordem a comprovar a dedutibilidade fiscal de alguns gastos, nomeadamente os relativos a fornecimentos de gasóleo, seguros e viagens, os quais se analisarão no momento próprio.
  2. A Requerida, nas suas contra-alegações, absteve-se de se pronunciar sobre os documentos juntos pela Requerente com as suas alegações.
  3. Alguns desses documentos estiveram na base da revogação administrativa referida em III deste acórdão arbitral.
  4. O contrato celebrado entre a Requerente e a  agência de tripulação “B...” previa que as viagens de Jacarta para Durban e de volta para Jacarta destes tripulantes eram da responsabilidade da Requerente.
  5. A Requerente participa em 10% no capital social da sociedade de direito espanhol E..., não estando tal participação registada na sua contabilidade.
  6. A assembleia geral da Requerente decidiu proceder a empréstimos a tal sociedade, nos valores de 412.000 euros em 2016 e 317.000 euros em 2017 para compra de um navio e necessidades de tesouraria.
  7. A AT considerou que parte dos valores transferidos pela Requerente para a sociedade E... tinham a natureza de adiantamentos por conta de lucros, pelo que os sujeitou a IRS (retenção na fonte), e outra parte, no montante 170.000 euros foi sujeita a tributação autónoma, em sede de IRC, por ter sido considerada “despesa não documentada”.

 

  1. Factos não provados

 

Não ficaram por provar factos com relevância para a decisão arbitral.

 

  1. Fundamentação da decisão quanto à matéria de facto

 

A convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas partes cuja aderência à realidade não foi posta em causa e no acervo probatório carreado para os autos, essencialmente constituído pelo processo administrativo junto pela Requerida e pelos documentos juntos pela Requerente na pendência do processo arbitral.

O Tribunal fundou-se também nos depoimentos da contabilista certificada, Dra. K..., que se mostrou credível, concordando que variada movimentação financeira bancária não tinha suporte documental nem registos, e nas declarações de parte do Sr.º I... e no testemunho de  L..., que trabalha a bordo do navio de pesca, sabendo a sua localização e zona de operação marítima.

Apesar da credibilidade demonstrada, a maioria dos depoimentos foi feita de forma genérica, ou seja, foram necessariamente pouco esclarecedores numa matéria tão específica quanto gastos e rendimentos em concreto, movimentos financeiros específicos, não permitindo a validação de entradas e saídas de dinheiro em concreto.

 

 

  • O DIREITO

 

Tendo em atenção o articulado pelas partes, incindiremos a nossa apreciação sobre três grupos de situações: periodização do lucro tributável; suporte documental de alguns gastos; tributações autónomas.

Apenas analisaremos as ilegalidades invocadas pela Requerente no seu pedido de pronúncia arbitral e os “factos novos” trazidos ao processo com as suas alegações.

 

  • Periodização do lucro tributável

 

Como dado por provado, a AT procedeu a correções invocando a violação deste princípio.

 

A Requerente insurge-se, especificamente, contra estas correções (nº 73 a 76 do requerimento inicial)

 

Apreciando:

 

O então designado princípio da especialização dos exercícios teve, entre nós, a sua primeira consagração legal no POC/77. Em 1989, o “novo” POC/89 passa a incluir sete princípios contabilísticos geralmente aceites (PGCA),  expressamente regulando o princípio da especialização (ou do acréscimo) nos seguintes termos: “[o]s proveitos e os custos são reconhecidos quando obtidos ou incorridos, independentemente do seu recebimento ou pagamento, devendo incluir-se nas demonstrações financeiras dos períodos a que respeitam”.

As modificações contabilísticas e a adaptação, por parte da União Europeia, das normas internacionais de contabilidade, (IAS e IFRS)) deram origem à aprovação, em 2010, do SNC, tendo sido revogado o POC.

O princípio da especialização (ou do acréscimo) passa a ser denominado no SNC por “regime do acréscimo”.

Este princípio encontra-se referenciado no parágrafo 22 da Estrutura Conceptual (EC) do SNC, onde se refere que “os efeitos das transações e de outros acontecimentos são reconhecidos quando eles ocorram (e não quando caixa ou equivalentes de caixa sejam recebidos ou pagos), sendo registados contabilisticamente e relatados nas demonstrações financeiras dos períodos com os quais se relacionem”.

 

Ou seja: o princípio da especialização dos exercícios / periodização do lucro / regime do acréscimo é, originária e essencialmente, um princípio contabilístico. A obrigação de adoção de uma referência temporal única para os registos de rendimentos e gastos visa assegurar a verdade da informação contabilística, a verdade do resultado apurado, o correto balanceamento de rendimentos e gastos.

 

É certo que o CIRC adota o mesmo princípio da especialização de exercícios no n.º 2 do artigo 18.º.

Porém, o que está em causa nesta norma não é, necessariamente, a verdade da informação contabilística (essa não é uma questão fiscal), mas sim a proteção dos interesses fazendários do Estado: evitar que seja cobrado menos imposto em determinado exercício, seja por antecipação temporal do registo de gastos, seja por postergação do registo de rendimentos.

O mesmo é dizer que este princípio não deve ser invocado pela AT como fundamento da não aceitação de gastos quando do erro cometido não tenha resultado prejuízo fazendário[2].

O que não significa que resulte fiscalmente irrelevante a sua violação. As consequências de uma tal infração devem, porém, acontecer no domínio contra-ordenacional e não no plano da liquidação de imposto.

Mais ainda, quando a desconsideração de gastos com tal fundamento redunda, considerado o conjunto dos vários exercícios em causa, em tributação superior à devida por não ser temporalmente possível ao sujeito passivo proceder à correção inversa, origina-se uma violação do princípio da tributação do rendimento real.

Como alega a Requerente, a jurisprudência e a doutrina vão, hoje, no sentido de que a norma do n.º 2 do artigo 18.º. deve ceder perante o princípio da justiça consagrado no artigo 55° da LGT sempre que, do seu incumprimento, não se verifique prejuízo para a economia do imposto, ou seja, prejuízo para o Estado[3].

 

No entanto, a Requerida invoca na sua resposta (artigos 81.º a 83.º), o seguinte:

 

Com referência ao exercício de 2017, refere-se que o montante de 6.106,32 €, já foi assumido pela requerente na DM22, pelo que ao ser corrigido no RIT, há lugar a duplicação.

Ora, atendendo ao facto deste montante ter sido acrescido pelo contribuinte no campo 710 do Quadro 07 da DM22 de Substituição apresentada em 25.03.2021, este montante não foi corrigido pelos SIT, conforme se pode verificar através da análise ao mapa constante da última página do RIT.

Em face do exposto, mostra - se inútil esta afirmação efetuada pela requerente.”

 

Graça alguma confusão:

O RIT fala numa declaração de substituição de IRC entregue em 2020-07-22. No entanto, a Requerida na resposta fala numa declaração de substituição de 25.03.2021, o que faz pressupor a entrega de várias declarações de substituição.

 

O certo é que a inspeção tributária procedeu à correção da mencionada verba, conforme se alcança do ponto 2-1, alínea a) do RIT e consta do quadro de apuramento corrigido do lucro tributável/matéria coletável, ponto 6 – Conclusão, 6.1- Ano de 2016, a), campo 710, constante de fls. 558 do RIT e ponto 2-2, alínea a) do RIT que consta do quadro de apuramento corrigido do lucro tributável/matéria coletável, ponto 6 – Conclusão, 6.2- Ano de 2017, a), campo 710, fls. 560 do RIT.

Este tribunal arbitral é, assim, obrigado a concluir não estar provado – sendo que tal ónus competia à AT - que tal correção foi revertida, que é inútil a apreciação desta questão.

 

Fazendo então parte das correções efetuadas pela Requerida, há que continuar a nossa análise:

- não houve qualquer prejuízo significativo para a FP, pois que tais custos foram, na sua maioria, contabilizados em exercícios posteriores àqueles em que deveriam ter sido  contabilizados.

- não foram alegados quaisquer indícios de omissões voluntárias ou intencionais, com vista a operar transferências de resultados entre exercícios.

- é impossível, pelo decurso do tempo, proceder à revisão das liquidações de imposto relativas aos exercícios em que tais gastos deveriam ter sido corretamente contabilizados, pelo que a sua desconsideração, tal como preconizado pela AT, conduziria a que a Requerente, no computo global dos exercícios em causa, resultasse tributada por um valor superior ao real.

- estão em causa valores ínfimos no contexto global da Requerente

 

Pelo que se entende que o princípio da especialização de exercícios, no caso concreto, deve conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com previsão no art. 55º da LGT, ou seja, deve aceitar-se a violação que ocorreu para se evitar incorrer num mal maior.

 

Procede assim o pedido quanto a este ponto, sendo anulada a correção destes gastos (de 4.824,04 euros, relativamente ao exercício de 2016, e de 20.506,32 euros relativamente a 2017).

 

                 II - Faturas de gastos sem denominação social, sem NIF, denominação incorreta, e documento inválido[4]

 

                 II.1 – Em geral

A Requerente insurge-se contra estas correções (em especial, nº 86 a 91 do requerimento inicial), constantes dos anexos III e VI ao RIT.

 

Da análise das faturas que titulam os gastos em causa resulta manifesto que as mesmas não preenchem todos os requisitos impostos pelos nº 4 e 6 do artº 23º do CIRC na redação introduzida pela Lei 2/2014, de 16/1.

Porém, há que ter em consideração que os emitentes de tais faturas são entidades não residentes sem estabelecimento estável em Portugal.

Haveria aqui que diferenciar dois grupos de emitentes de tais faturas: as entidades sedeadas ou com estabelecimento em Espanha e as entidades sedeadas ou estabelecidas em país terceiro (África do Sul).

 

Relativamente às primeiras, temos que estão em causa fornecedores estabelecidos no espaço da União e, como tal, sujeitos ao sistema comum de IVA.

Sendo a Requerente sujeito passivo de IVA, tal como estes seus fornecedores, as faturas em questão titulam ou vendas/prestações de serviços intracomunitárias ou operações triangulares (p. ex., o fornecimento de gasóleo com entrega em Durban), ou seja, em ambos os casos, operações económicas abrangidas pelo sistema comum do IVA.

Ao tempo, estava já em vigor a Diretiva 2006/112/CE[5], que, no seu artigo 226º, estipula quais as menções que, obrigatoriamente, devem constar das faturas emitidas pelos sujeitos passivos da União, nomeadamente

4)

O número de identificação para efeitos do IVA do adquirente ou destinatário, referido no artigo 214.o, ao abrigo do qual foi efectuada uma entrega de bens ou uma prestação de serviços pela qual aquele seja devedor do imposto ou uma entrega de bens referida no artigo 138.o;

 

5)

O nome e o endereço completo do sujeito passivo e do adquirente ou destinatário;

 

6)

A quantidade e natureza dos bens entregues ou a extensão e natureza dos serviços prestados;

 

7)

A data em que foi efetuada, ou concluída, a entrega de bens ou a prestação de serviços ou a data em que foi efetuado o pagamento por conta, referido nos pontos 4) e 5) do artigo 220.o, na medida em que essa data esteja determinada e seja diferente da data de emissão da fatura;

 

Há pois que concluir que as entidades espanholas não cumpriram com as formalidades legais a que o Direito da União as obrigava.

Ou seja, as faturas emitidas por sujeitos passivos comunitários devem estar de acordo com a legislação aplicável no país de origem, Contudo, essa legislação estava já harmonizada pela Diretiva 2001/115/CE, pelo que somos do entendimento que a fatura comunitária deveria apresentar os requisitos do artigo 36.º e 40.º do CIVA, com as devidas adaptações resultantes da lei do país de origem[6].

 

Relativamente às faturas emitidas por entidades sedeadas na África do Sul, aceitemos, por mera disciplina de raciocínio, que apenas têm que obedecer aos requisitos formais previstos na lei deste país.

 

Porém, no presente caso, atenta a fundamentação administrativa das correções efetuadas, a questão não pode ser reduzida à mera inobservância dos requisitos formais das faturas.

A AT notificou, por várias vezes, o sujeito passivo para prestar esclarecimentos (indicando detalhadamente os documentos que pretendia obter) e, nos casos que considerou suficiente a documentação apresentada, não procedeu a correções.

A prova “nova” feita perante este tribunal arbitral, quanto a este ponto testemunhal, não permite concluir em sentido diferente.

 

Na realidade, temos, por um lado, que os descritivos destas faturas são, no mínimo, equívocos: ”sold ... do mar”, “... do Mare, nos demais casos Masters and Owners F/V ... Mar;  m... SL Av ... Spain.

Ou seja, da análise global das faturas em causa resulta, em primeiro lugar, a impossibilidade de se determinar, com um mínimo de rigor, se a Requerente foi a adquirente dos bens ou serviços em causa,

Mais, os descritivos sugerem que as faturas se destinam a uma outra entidade,  M... SL Av..., n.º ... Spain.

 

É certo que muitas das faturas estão acompanhadas das ordens de pagamento das mesmas onde se identifica de forma inequívoca o ordenante (a Requerente).

Podemos assim considerar que a Requerente pagou os valores titulados por tais faturas.

 

Mas a questão é outra, é saber qual a razão de tais pagamentos, se estão em causa gastos de natureza empresarial, relativos à sua própria atividade e não à atividade de terceiros.

 

Ou seja, indo além dos requisitos formais das faturas, mas em razão da sua inobservância, há que concluir que a Requerente não fez prova da natureza dos gastos subjacentes aos pagamentos que efetuou.

Prova que seria relativamente fácil. Num exemplo: a Requerente afirma, relativamente aos fornecedores da África do Sul, estar em causa o fornecimento de víveres, peças, combustível ao navio ... Mar. É certo que o navio precisou de tais fornecimentos e que os mesmos aconteceram em Durban.

Mas não basta este raciocínio simplista para se poder aceitar como gastos fiscais os montantes titulados por tais faturas. Certamente que existirão documentos que seriam para tal relevantes, como notas de encomenda, orçamentos, conferências das entregas efetuadas de que a Requerente certamente disporá, mas que não juntou nem durante o processo administrativo nem nos presentes autos.

                

Em resumo: a questão que se coloca é a do ónus da prova de que os gastos em questão foram suportados pela Requerente para o exercício da sua atividade.

Ao não titular os seus gastos na forma prevista na lei, a Requerente deixou de gozar da “presunção de verdade” inerente a uma contabilidade organizada.

Cabia-lhe pois o ónus da prova da afetação empresarial dos gastos em causa. Que não logrou.

Como já afirmado, a prova que incumbia à Requerente não era a de que suportou os tipos de gastos que alega ter tido. Tal sempre resultaria, desde logo, da experiência comum (presunção judicial).

O que cabia à Requerente era a prova da afetação empresarial de cada um destes gastos em concreto.

Ou seja, o ser óbvio que a Requerente teve de suportar os gastos normalmente inerentes ao funcionamento de um navio de pesca em alto mar não basta (está muito longe de bastar) para que o tribunal possa validar os concretos gastos que a Requerente afirma ter tido pois que a documentação deles comprovativa é manifestamente insuficiente.

 

O que foi solicitado à Requerente nos “pedidos de esclarecimento” formulados pela AT é o que a lei exige a qualquer sujeito passivo obrigado a ter contabilidade organizada: que tenha documento ou documentos de suporte adequados, capazes de justificar cada lançamento contabilístico. A Requerente só pode imputar a si própria a impossibilidade de dedução fiscal, pois que não teve o cuidado mínimo no controle da regularidade da documentação capaz de sustentar a verdade dos gastos que diz ter tido, na conservação e organização dos necessários arquivos, etc.

 

Pelo que improcede na totalidade quanto a estes valores o seu pedido.

                       

                        II.2 – Seguros (C...)

 

Reproduz-se o anexo XV ao RIT:

 

 

 

 

Estão aqui em causa (apenas) os pagamentos feitos à Seguradora C..., constantes de tal listagem, nos valores totais de 35.441,33€ do ano de 2016 e de 3.868,60€ do ano de  2017.

 

Como resulta do anexo ao RIT acima transcrito, a Requerente apresentou, como meio de prova de tais gastos, os recibos aí enumerados. Recibos que, como também consta de tal quadro, identificam as apólices a que se referem.

A fundamentação da recusa da aceitação de tais gastos foi (transcrevendo da resposta da AT): Ora, no que a esta situação diz respeito, convém referir que em sede de inspeção tributária foi solicitada ao sujeito passivo através de notificação efetuada para o efeito, a apresentação dos respetivos contratos de seguros, não tendo o mesmo apresentado tais documentos. Neste sentido, foi referido que, em face da não apresentação dos contratos de seguros não era possível identificar os objetos seguros e os respetivos beneficiários ( cfr. alínea j) do Ponto 3 do RIT ). 101. Assim sendo, tornando- se imprescindível a apresentação desses documentos, e a requerente não os apresentando, mesmo agora em sede do presente pedido arbitral, tais gastos não podem ser aceites fiscalmente

 

Importa frisar o seguinte: a AT não recusou a dedutibilidade de tais gastos por estarem titulados por recibos (na realidade, as seguradoras não emitem faturas quando o pagamento é por débito direto, como é, alegadamente, o caso), mas por não lhe terem sido presentes as respetivas apólices.

 

Nas suas alegações, a Requerida:

 - afirma que as apólices relativas a Transportes (apólice nº ... (2016/2017) e nº ... (2017/2018) e a Cascos– apólice nº ...; haviam sido juntas à reclamação graciosa como Anexo 4,

- junta a apólice da Medisalud Colectivo nº....

 

Consultado tal anexo à reclamação graciosa, verifica-se foram juntos documentos, com o logótipo da C..., que evidenciam que a apólice nº ... corresponde a um seguro de Casco do navio ... MAR; as Condições Particulares do Seguro de Transporte relativas à apólice n.º 0621771515103; uma declaração desta seguradora segundo a qual a Requerente tuvo suscrita la póliza n º ... para el transporte marítimo de mercancias, modalidad  flotante. Que el período de vigencia de la pólíza nº ... corresponde al período comprendido entre el 27-10-2015 y 01-10-2017.

A Requerente juntou com as suas alegações a apólice ... que é relativa a um seguro de saúde coletivo para armadores de pesca. Juntou também exemplos de membros de declarações de pessoas abrangidas por tal seguro coletivo, que coincidem com apelidos que figuram em listas de tripulantes constantes dos autos.

 

Assim, há que concluir que a Requerente produziu a prova cuja falta era o único fundamento invocado pela AT para a desconsideração fiscal de tais gastos.

 

Pelo que procede o pedido da Requerente, sendo anuladas as correções relativas a seguros nos montantes de 35.441,33€ do ano de 2016 e de 3.868,60€ do ano de  2017.

 

 

  1. Outros gastos

 

 Nos números 92 a 103 do Requerimento inicial, a Requerente insurge-se contra a não aceitação da dedução fiscal da dedução de outros gastos, discriminados no Anexo X ao RIT.

 

Como consta de III desta decisão arbitral, na sequência dos documentos nºs 7 a 11 juntos ao pedido de pronúncia arbitral, a AT veio a reconhecer como gasto os montantes de € 83.377,21 em 2016 e de € 36.411,25, alterando, assim, a correção inicial de € 145.432,35 relativa a 2016 para € 62.055,14 e a de € 114.373,83 relativa a 2017 para € 77.962,58., conforme quadros seguintes:

 

 Relativamente ao exercício de 2016:

 

 

Relativamente ao exercício de 2017

 

 

Quanto aos demais gastos enumerados no Anexo X ao RIT, note-se, em primeiro lugar, que existe uma diferença significativa entre estas situações e as analisadas no número anterior desta decisão arbitral.

A AT não põe em causa a regularidade das faturas que titulam tais gastos. Desconsiderou-os por entender não ter sido feita prova de que os bens em causa foram expedidos para Durban, local onde é abastecido o navio propriedade da Requerente.

Ou seja, a contabilidade da Requerente está, quanto a estes gastos devidamente organizada. Pelo que a Requerente goza de uma “presunção de verdade” relativamente à existência, montante e afetação empresarial de tais gastos. Muito embora a AT, para ilidir tal “presunção”, não tenha o ónus da prova do contrário (como sucederia se estivéssemos perante uma verdadeira presunção legal), tem o ónus de alegar e provar indícios suficientes da não correspondência à verdade dos factos devidamente documentados. Logrando-o, passará a caber ao contribuinte a prova dos factos que justifiquem a dedutibilidade fiscal de tais encargos.

Vejamos agora as diferentes situações:

 

  1. Fornecimentos de gasóleo

 

Estão em causa os gastos titulados pelas faturas emitidas por “N...” e “REPSOL”, que ascendem a € 48.906,00 em 2016 e a € 23.638,28 em 2017, conforme consta das faturas integradas naquele Anexo.

 

A fundamentação da AT parte, desde logo, de um erro: pretendeu que a Requerente apresentasse documentação comprovativa da expedição do gasóleo de Espanha para a África do Sul, quando é evidente que o gasóleo usado no abastecimento do navio (i) era fornecido diretamente em Durban; (ii) podia ter qualquer origem que não Espanha.

O certo é que as faturas relativas a estes fornecimentos mencionam “Lugar suministro: Durban” ou “Suministro efetuado a: Durban” juntamente com o nome do navio “... Mar”, e fazem expressa referência ao número da fatura (...) emitida pelo fornecedor local.

Acresce resultar de tais faturas estar-se perante uma operação triangular para efeitos de IVA, uma compra e venda entre sujeitos passivos sedeados em dois diferentes países da União mas com entrega dos bens num terceiro país. Daí que as faturas mencionem a “isenção” de IVA por estarem em causa operações assimiladas a exportações.

Daí ser de concluir que não foram provados indícios capazes de colocar em causa o constante de tais faturas, pelo que procede o pedido da Requerente.

 

  1. Outros gastos

 

                 (i) Gastos aceites pela Requerida na pendência do presente processo

 

Na sua resposta a Requerida escreve o seguinte:

24. Em face do exposto anteriormente, dos documentos enviados como anexo ao pedido arbitral, os que devem ser considerados como gastos efetivamente suportados para o exercício da atividade da requerente ao largo de Durban na África do Sul, são os que seguidamente se indicam :

Exercício de 2016 – G... 1.611,44 € + 1.070,77 €  ... /R..., SL Y... 76.000,00 € + 4.695,00 €

Total 83.377,21 €

 

Exercício de 2017 - Grupos ... y ... 34.275,00 €;  G... 2.136,25 € Total 36.411,25 €.

 

A fundamentação de tal tomada de posição consta do nº 84.º e segs. da resposta da Requerida, sendo resultado da análise da documentação junta pela Requerente com o seu requerimento inicial, indo além da que já tinha dado origem à já referida revogação parcial de algumas destas correções

 

                 (ii) Gastos não aceites pela Requerida na pendência do presente processo

 

Diz a Requerida no referido ponto 23 das suas alegações (apenas se transcrevem as passagens diretamente relevantes):

 - Existem muitos documentos alfandegários e faturas emitidos em nome do fornecedor “O..., SL “ ( vide páginas 3 a 10, 27 a 34, 64 e 65, 67 a 76 ), mas nenhum deles diz respeito às duas faturas referenciadas nos mapas ( faturas nº s 170432 e 171092 ).

 

- Foram arrolados vários documentos alfandegários em nome de “ P...“, vide por exemplo páginas 24, 37, 38, 41, 49, 53, 56 e 83, contudo este fornecedor não consta do rol de faturas evidenciados nos mapas.

- O mesmo sucede com os documentos emitidos em nome de “ Q...“( páginas 63 e 80 ), e ainda com os fornecedores “ R...“ ( paginas 47, 58 ) e “ S...“ ( página 78 ), que também não constam nos mapas.

 

-Existem três documentos relativos a expedição de bens para a embarcação “... Mar “, um emitido em nome da “... Company “ ( página 1 ), e dois em nome da “Mitsui “ ( páginas 21 e 61 ), onde se faz referência à entidade “ F...“, contudo em nenhum deles é possível estabelecer uma ligação com as aquisições referenciadas no mapa em questão.

 

Apreciando:

 

O tribunal arbitral entende ser de subscrever a posição assumida pela Requerente, no tocante à aceitação de alguns dos gastos aqui em causa, atenta a sua cuidada fundamentação.

 

Relativamente às faturas da “O..., SL , nos montantes  de € 10.946,53 e de € 14.962,87 e datadas de 07/04/2017, a Requerente juntou com as suas alegações, documentação alfandegária comprovativa da saída de mercadorias destinadas ao navio ... do mar, a serem embarcadas no navio mercante  ... .

É certo que os documentos alfandegários em causa não mencionam os números das faturas em causa, o que a Requerente explica por delas constar o número das respetivas faturas  pro forma.

A coincidência de datas entre as faturas e os documentos alfandegárias tornam muito credível estarem em causa as faturas deste fornecedor “desconsideradas” pela AT. Ou seja, não ficaram provados “indícios suficientes” de que os bens em causa não terão sido exportados para Durban,

 

Pelo que, neste ponto, procede o pedido da Requerente, sendo anuladas as correções à matéria coletável, relativas aos exercícios de 2017 nos montantes de € 10.946,53 e de € 14.962,87

 

Relativamente aos restantes gastos -  indo além da tomada de posição da AT, que se circunscreveu à apreciação da documentação junta ao requerimento inicial -, temos que a análise das  demais faturas (de que constam cópias no Anexo X ao RIT) leva a concluir, em termos globais, estarem em causa, nuns casos, faturas correspondentes a vendas internas  (em que foi liquidado o IVA espanhol) e, noutros casos, vendas intracomunitárias.

Mais, nesse acervo documental, aparecem declarações, assinadas e tendo aposto o carimbo da Requerente, segundo as quais el empresario/armador recebio la mercancia y la transporto imediatamente, por mi conta, en el buque de mi propriedade denominado ... Mar hasta su destino en PORTUGAL, para su consumo en las labores de pesca del referido buque.

Declarações necessariamente falsas, uma vez que o navio, como provado, esteve no Oceano Índico, sendo abastecido em Durban.

Assim, há que considerar serem suficientemente fundamentadas as “dúvidas da AT” relativamente a estes gastos e que a Requerente não cumpriu com o ónus da prova que sobre ela passou a incidir de provar a exportação de tais bens para a África do Sul (mesmo que a partir de Portugal).

Pelo que, nesta parte, improcede o pedido da Requerente.

 

 

  1. Salários dos gerentes

 

Nos números 106 a 110 do requerimento inicial, a Requerente critica a não aceitação da dedução fiscal de salários pagos aos seus sócios gerentes nos montantes de euros 60.117,70, em 2016, e euros 30.679, 52 em 2017.

A fundamentação de tal correção, tal como dado por provado, resultou de, segundo   informações recebidas da competente autoridade tributaria espanhola, os valores declarados por tais pessoas, a título de salários recebidos da Requerente, ser inferior nesses valores.

A Requerente pretende justificar tais diferenças alegando existir na lei espanhola uma isenção para os rendimentos do trabalho auferidos no estrangeiro até 60.1000 euros anuais e considera, ainda, ser a divergência irrelevante por estarem em causa vencimentos efetivamente pagos aos sócios gerentes.

 

Apreciando:

A “explicação” aventada pela Requerente não é convincente, desde logo porquanto a alegada isenção prevista pelo direito espanhol não explica as diferenças de valores detetadas relativamente a cada um dos exercícios em causa.

Segundo, porque para IRC, não é irrelevante a natureza dos rendimentos: serão gasto dedutível se forem salários, não o serão se forem, p. ex., distribuições ocultas de rendimentos. Ora não ficou provada a natureza de tais rendimentos (pagamentos),

 

Pelo que improcede, nesta parte, o pedido da Requerente.

 

 

  1. “Nomina”

 

Nos nº 111 e 112 do seu Requerimento inicial, a Requerente insurge-se contra a não aceitação fiscal das despesas que designa por “nomina”, (ou antecipo, quando pagos em dinheiro), os quais, segundo alega, correspondem a adiantamentos por conta de salários que seriam descontados quando do pagamento final.

A AT desconsiderou estes gastos por falta de documentação comprovativa.

 

Para prova do que afirma a Requerente remete para a documentação que constitui o anexo 10 à reclamação graciosa.

Compulsado tal anexo, verificamos que é constituído por 3 documentos.

 Dois deles são meros “documentos internos” da Requerente onde surgem calculados os vencimentos de T... ( antecipo de euros 6.835,00) e de U... (antecipo de 10.000 euros)

O único documento que se afigura estar formalmente correto é um recibo relativo aos salários de J..., relativo ao período de março de 2017, onde consta uma dedução por “antecipo Durban” no valor de 282,00 euros.

Assim sendo, há que concluir que a requerente só neste último caso fez prova documental suficiente do que afirma.

 

 

Pelo que, neste ponto, procede o pedido no montante de 282,00 euros , relativos a 2017, improcedendo no restante.

 

 

  1. Viagens

 

Nos pontos 114 a 116 do seu requerimento inicial, a Requerente insurge-se contra a não aceitação da dedução de gastos com viagens nos montantes de 9.336,00 euros, em 2016 e 10.966,59 euros em 2017.

Estão em causa passagens aéreas, discriminados nos anexos XIX e XX do RIT.

Como dado por provado, o contrato celebrado entre a Requerente e a  agência de tripulação “B...” previa que as viagens de Jacarta para Durban e de volta para Jacarta destes tripulantes eram da responsabilidade da Requerente.

Indo mais além, é perfeitamente compreensível o interesse empresarial da Requerente, dado o tipo de atividade em questão, em suportar os custos das viagens dos tripulantes do seu navio entre o porto de Durban e os locais de residência destes.

 

A Requerida não aceitou a dedutibilidade de tais gastos por considerar que os passageiros  são “pessoas, não afetas à empresa”.

 

Analisando as faturas em questão, verificamos que, na quase totalidade, se referem a viagens entre Durban e cidades espanholas da Galiza, Jacarta e Dakar. As exceções, irrelevantes, referem-se a voos internos em Espanha, que, razoavelmente, se poderá assumir serem voos de ligação.

Considerando os percursos em causa, é razoável assumir que se trate de deslocações de tripulantes do navio ... Mar, residentes em Espanha (o caso, desde logo, dos mestres do navio), na Indonésia e no Senegal.

Asserção que surge apoiada pelo facto de o nome dos passageiros (ou. pelo menos, da uma grande parte ) ter sido comunicado pela Requerente à C... para inclusão no seguro “Medisalud Colectivo – apólice nº...”, e constar das listas anexas aos recibos trimestrais emitidos pela C...– juntos como Anexo 4 à reclamação graciosa e, também, das Listas de Tripulação apresentadas pela Requerente à AT e que integram o Anexo XVIII do RIT[7].

 

Estamos colocados, de novo, perante uma questão do ónus da prova. A Requerente prova a existência de tais gastos por faturas em boa ordem. Por seu lado, a AT não alegou a existência de quaisquer razões não empresariais para a realização de tais viagens (razões difíceis de descortinar, independentemente da identificação dos viajantes).

Mais, os elementos constantes dos autos apontam no sentido de estarem em causa viagens de tripulantes do navio ... Mar entre os seus domicílios e a cidade (Durban) onde o navio fundeia.

Assim sendo, eventuais dúvidas desaproveitam à AT que não logrou cumprir com o ónus da prova que sobre ela recaía.

 

Pelo que procede, neste ponto, o pedido da Requerente,  sendo anuladas estas correções nos montantes de 9.336,00 euros, em 2016 e 10.966,59 euros em 2017.

 

 

                 III - Tributações autónomas

Nos pontos 129 a 148 do seu requerimento inicial, a Requerente insurge-se contra as tributações autónomas, decorrentes de despesas não documentadas, liquidadas pela Requerida.

Estão em causa os seguintes factos, dados por provados que, para maior facilidade, aqui se reproduzem:

  1. Relativamente aos débitos-saída de bancos, a Requerente alegou que os movimentos designados por "nomina” são relativos a pagamento ao pessoal espanhol, feitos por transferência bancária em tranches, e que os pagamentos designados “reintegro de efetivo" ou "gastos durban" são também para pagamento de ordenados ao pessoal estrangeiro, que, normalmente, recebe em dinheiro.

32)Notificada para tal, a Requerente apresentou alguns documentos de suporte, parcialmente aceites pela AT.

  1. Pelo que a AT considerou que as saídas de bancos, relacionadas no "Anexo II” de tal notificação, para as quais não foram apresentados documentos justificativos, deveriam ser qualificadas como despesas não documentadas, sendo, no ano de 2016. no montante de €199.899,30, e no ano de 2017 o montante de €371.482,77( "Anexo XIV" ao RIT), e, por tal, tributadas autonomamente, nos termos do n° 1 do artigo 88° do CIRC, à taxa de 50%. resultando imposto em falta no montante de €99.949,65, no ano de 2016 e €185.741,39 no ano de 2017.

 

Relendo a fundamentação da decisão de sujeição a tributação autónoma, temos que a mesma é linear: não existe suporte documental para essas despesas, nem foi apresentado após notificação para o efeito.

 

A Requerente sustenta que o descritivo (das transferências bancárias) é, na maioria dos casos, elucidativo sobre a natureza da operação e o respetivo beneficiário do pagamento, como sucede com os pagamentos à C... ou à MM..., os adiantamentos a trabalhadores cujo nome é identificado (Antecipo) e o pagamento a fornecedores cujo nome é indicado e o pagamento de salário (nomina).

 

Este tribunal partilha a opinião da jurisprudência dos tribunais superiores, nomeadamente a citada pela Requerente, que distingue entre despesas não documentadas e despesas insuficientemente documentadas, sendo que só as primeiras deverão estar sujeitas a tributação autónoma

 

Está em causa o princípio, contabilístico e fiscal, da documentação: cada movimento registado na contabilidade deve ter um documento justificativo. Documento que, em regra, deve ser emitido por outra entidade, sob pena de carecer de valor probatório (veja-se o artº 376 do Código Civil relativamente à força probatória dos documentos particulares).

 

Não preenchem tais requisitos os “descritivos” que a própria Requerente listou como sendo razão de ser dos débitos-saídas” de bancos.

 

Acresce;

A tributação autónoma das despesas não documentadas, para além de ser instrumento de prevenção de práticas ilícitas (inclusivamente de natureza criminal, o que não será o caso), visa também “compensar” a perda de imposto a que o beneficiário de tais despesas estaria obrigado, sendo irrelevante o facto de os beneficiários estarem ou não sujeitos a Portugal.

A própria Requerente tem consciência desta realidade quando, nas suas alegações, afirma que os bens transmitidos foram considerados pelos respetivos beneficiários como rendimentos, atenta a sua identificação e natureza, bem como os documentos emitidos.

 Além de resultar algo incompreensível a referência a documentos emitidos (a questão decorre precisamente da sua não apresentação), não existe qualquer indício, e muito menos prova, de que tais valores tenham sido considerados rendimento pelos pretensos beneficiários.

 

Estamos pois perante despesas não documentadas e não perante despesas insuficientemente documentadas.

 

Por último,

- Entre estas despesas encontram-se algumas referidas como sendo pagamentos à C..., mas não aquelas relativamente às quais foi apresentado recibo e que, pela presente decisão arbitral, foram aceites como sendo fiscalmente dedutíveis. Há, pois, situações diferentes relativamente aos pagamentos feitos à C..., ao contrário do que pretende a Requerente

 

Pelo que, quanto a este ponto, improcede totalmente o pedido.

 

 

  1. IRS – retenções na fonte

 

Nos números 149 a 175 do requerimento inicial, a Requerente insurge-se contra as correções operadas em sede de IRS (retenções na fonte).

Como decidido acima (a) de questões prévias), a impugnação das liquidações de IRS encontra-se prejudicada por intempestividade da reclamação graciosa, pelo que o tribunal arbitral não pode conhecer deste pedido.

 

  1. IVA

Nos números 176 a 184 do requerimento inicial, a Requerente insurge-se contra as correções operadas em sede de IVA.

Como decidido acima (a) de questões prévias) a impugnação das liquidações de IVA encontra-se prejudicada por intempestividade da reclamação graciosa, pelo que o tribunal arbitral não pode conhecer deste pedido[8].

 

  1. Indemnização por prestação de garantia indevida

 

 Na parte final do seu requerimento, a Requerente formula este pedido, invocando o artº 53º da LGT.

Ora, no seu articulado, a Requerente nada alega sobre tal prestação de garantia, desde logo não alega (e prova) que a prestou e quando.

Assim sendo, não é possível conhecer deste pedido por inexistência de causa de pedir.

O que não prejudica a Requerente pois, como é jurisprudência consolidada, poderá, sendo o caso, fazer valer posteriormente esse direito relativamente à parte em que logrou vencimento na presente ação, demonstrados que sejam os respetivos pressupostos.

                

 

                 VII – DECISÃO ARBITRAL

 

Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral Coletivo:

 

  1. Indeferir liminarmente, por falta de pressuposto processual necessário, o pedido no tocante às liquidações de IVA e IRS (retenções na fonte);

 

  1. Concluir pela inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido de anulação correspondente a gastos do montante de 83.777,21€, (faturas de  G..., .../ R... e SL Y...), do ano de 2016 e de 36.411,25€, (faturas de Grupos ..., G...), do ano de 2017 à matéria tributável, por revogação expressa, nessa parte, pela Requerida.

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao seguinte:
  1. Periodização do lucro tributável

     - Aceitação dos gastos registados na contabilidade em 2016 no montante de € 4.824,04 e dos gastos registados na contabilidade em 2017, no montante de € 20.506,32 anulando-se tais correções.

 

  1. Faturas de gastos sem denominação social, sem NIF, denominação incorreta, e documento inválido          

- Aceitação como gasto fiscal do exercício de 2016) do valor de € 48.906,00 e € do exercício de 2017 do valor de € 23.638,28  (faturas de N... a e de Repsol), anulando-se tais correções.

 

- Aceitação como gasto fiscal do exercício de 2016 do valor de € 10.946,53 e do exercício do 2017 o valor de € 14.962,87 (faturas de O..., SL), anulando-se tais correções.

 

- Aceitação como gasto fiscal do exercício de 2016 do valor de 35.441,33€ e do exercício do 2017 do valor de 3.868,60€  (pagamentos a C...), anulando-se tais correções.

 

  1. Nomina

- Aceitação como gasto fiscal do exercício de 2017 do valor de 282,00  (antecipio), anulando-se tal correção.

 

  1. Viagens

 - Aceitação como gasto do exercício de 2016 o montante de € 9.336,00 euros e do exercício de 2017 do montante de € 10.966,59 euros.

 

  1. Julgar improcedentes os restantes pedidos, no relativo a IRC.

 

  1. Deverá a Requerida, em execução da decisão arbitral, reformular parcialmente as liquidações de IRC impugnadas, incluindo no relativo a juros compensatórios,   de acordo com o decidido por este tribunal arbitral;

 

  1. Não conhecer do pedido relativo a indemnização por prestação indevida de garantia bancária.

 

 

Valor do Processo: € 1.007.284,50 (indicado pela Requerente e não contestado)

 

 

Custas arbitrais, no valor de € 14.076,00, a serem suportadas pela requerente na percentagem de 80%  e pela Requerida na percentagem de 20% , correspondentes aos respetivos decaimentos.

 

Lisboa, 2 de Outubro de 2023

 

Os Árbitros

 

Consigna-se e atesta-se que não assina por não estar presente, mas que foi o Relator

 

Rui Duarte Morais

 

António Pragal Colaço                                                  

 

 

Álvaro José da Silva

 

 

 



[1] O alegado sob os nº 25 a 45 refere-se essencialmente às liquidações de IRS. A questão das tributações autónomas será adiante apreciada.

[2]  Como exemplo recente o Acórdão da CAAD, Processo nº 203/2022-T, de 5/12/2022;

[3] Como exemplo recente, o Acórdão da CAAD, Processo n.º 874/2019-T, de 11/9/2020.

[4] No art.º 86.º do requerimento inicial a Requerente indica que são, • 2016 382.394,10 (Anexo III ao RIT) e • 2017 580.355,04 (Anexo VI ao RIT)

[5] Obviamente que não considerámos as alterações a esta Diretiva posteriores à data dos factos em análise.

[6] Cfr. parecer da Ordem dos Contabilistas Certificados, PT23455 - IRC / Gastos fiscais, de 01 de Outubro, 2019.

[7] A AT alega que os passageiros não estão inscritos na segurança social como trabalhadores da Requerente, Porém tal é irrelevante, pois sendo o ... Mar um navio registado na Madeira, poderá não ser obrigatório o registo dos seus tripulantes na segurança social quando – como é o caso – não sejam nem nacionais nem residentes em Portugal,

[8]  O constante dos nº 186 a 210 são alegações de direito.