Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 509/2023-T
Data da decisão: 2023-11-27  IRS  
Valor do pedido: € 1.747,82
Tema: IRS — Residência fiscal — Tributação de rendimentos auferidos no estrangeiro.
Versão em PDF

 

DECISÃO ARBITRAL

 

— I —

            A..., contribuinte n.º ..., residente em ..., ..., na Chéquia (doravante “o requerente”) veio deduzir pedido de pronúncia arbitral tributária contra a AUTO­RI­DADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “a AT” ou “a requerida”) peticionando a declaração de ilegalidade e anulação da liquidação de IRS n.º 2022-... relativa ao exercício de 2018 (doravante “a Liquidação Impugnada”).

            Para tanto alegou, em síntese, que tem a nacionalidade portuguesa mas desde 2017 que vem exercendo funções profissionais na Chéquia, país onde reside de forma regular e permanente desde aquele ano, situação que persiste sem qualquer interrupção, pelo menos, até à data da propositura da presente arbitragem; que desde aquela data trabalha por conta de outrem no referido país, aí pagando os impostos devidos pelos rendimentos de trabalho dependente que aufere, bem como efetua os descontos para o sistema de saúde e de segurança social; que desde 2016, último ano em que foi tributado em Portugal, não aufere quaisquer rendimentos com origem em Portugal, não residindo neste país desde a referida data de 2017; que no ano de 2018 auferiu, na Chéquia, rendimentos de trabalho dependente no montante de EUR 13.612,52, tendo sido tributado naquele país quanto à totalidade destes rendimentos; que não permaneceu em Portugal por mais de 183 dias consecutivos ou interpolados em 2018, nem cá tem qualquer habitação própria em condições que façam presumir a intenção de a manter ou ocupar como residência habitual; que, isso não obstante, a Liquidação Impugnada tributou o rendimento por si obtido na Chéquia como se fosse residente fiscal em Portugal, imposto que se encontra a pagar de acordo com plano de pagamentos estabelecido com a AT; finalmente, que, por esses motivos, a Liquidação Impugnada padece de ilegalidade.

Concluiu peticionando a anulação da Liquidação Impugnada, assim como a condenação da requerida na restituição dos montantes por si colocados a pagamento ao abrigo daquele ato tributário bem como no pagamento de juros indemnizatórios.

Juntou documentos e procuração forense e declarou não pretender proceder à designação de árbitro. Procedeu ao pagamento da taxa de arbitragem inicial.

*

            Constituído o Tribunal Arbitral Singular, nos termos legais e regulamentares aplicá­veis, foi determinada a notificação da administração tributária requerida para os efeitos previstos no art. 17.º do RJAT.

            Depois de devidamente notificada, a requerida não apresentou qualquer articulado de resposta, tendo procedido à junção de um despacho de nomeação de mandatários forenses e, depois de a isso instada pelo Tribunal Arbitral, à junção de um processo administrativo.

*

Ouvidas as partes, foi dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18.º do RJAT e determinada a sua notificação para, querendo, produzirem alegações escritas quanto à matéria de facto e de direito. Apenas o requerente procedeu à apresentação de alegações, tendo nestas reiterado no essencial as posições já vertidas no seu articulado de propositura da instância. Procedeu igualmente à junção do comprovativo de pagamento do remanescente da taxa de arbitragem.

 

 

— II —

As partes gozam de personalidade judiciária e capacidade judiciária, têm legitimidade ad causam e estão devidamente patrocinadas nos autos.

*

            Nos termos do art. 97.º-A do CPPT, o valor atendível, para efeitos de custas, quando se impugne um ato de liquidação será o da importância cuja anulação se pretende.

Ora, o valor que o requerente atribuiu à presente arbitragem, tendo presente o regime legal aplicável, foi de EUR 1.747,82, montante que não foi objeto de impugnação por parte da requerida e que, de resto, corresponde ao imposto liquidado pelo ato tributário impugnado. Na ausência de quaisquer outros elementos factuais que permitissem fixar à causa um valor diferente daquele que resulta do acordo tácito das partes, não se antevê motivo para corrigir o montante indicado pelo requerente e aceite pela requerida.

Fixo assim à presente arbitragem o valor de EUR 1.747,82.

*

Fixado que está o valor da causa e uma vez que o requerente optou por não proceder à designação de árbitro, dispõe o presente Tribunal Arbitral Singular de competência funcional e de competência em razão do valor para conhecer do objeto da presente arbitragem (art. 5.º, n.º 2, do RJAT).

Há também que concluir pela competência do presente Tribunal em razão da matéria por força do art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT e da vinculação à arbitragem tributária instituciona­lizada do CAAD por parte da administração tributária requerida, tal como resulta da Portaria n.º 112-A/2011

*

Inexistem quaisquer questões prévias ou outras questões prejudiciais que obstem ao conhecimento do objeto da causa. Não se verificam igualmente nulidades processuais de que importe conhecer, quer por terem sido invocadas pelas partes, quer ainda por serem do conhecimento oficioso.

*

Devidamente saneados os presentes autos, resulta assim que a única questão de que importa nestes conhecer é então:

— a ilegalidade do ato tributário impugnado decorrente de erro nos pressupostos de facto e de direito em virtude de o requerente não ser fiscalmente residente em Portugal e os rendimentos objeto de tributação terem sido auferidos de fonte estrangeira.

Acessoriamente, importa ainda decidir duas outras questões: (i) a restituição ao requerente dos montantes por si indevidamente pagos ao abrigo do ato impugnado e (ii) a condenação da requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

— III —

FACTOS PROVADOS:

            Com relevância para a decisão da presente causa considero provados os seguintes factos:

  1. O requerente, de nacionalidade portuguesa, foi em 2018 residente fiscal na Chéquia [doc. n.º 2 junto com o p.p.a.].
  2. Nesse ano de 2018 residiu de forma habitual e permanente em ... 1994/9, na cidade de Praga [doc. n.º 2 junto com o p.p.a.]
  3. Entre 01-03-2017 e 31-02-2022 exerceu profissionalmente as funções de consultor, em regime de trabalho dependente por conta de outrem, sendo sua entidade empregadora a sociedade de direito checo B... s.r.o. [doc. n.º 4 junto com o p.p.a.]
  4. No ano de 2018 auferiu rendimentos de trabalho dependente, colocados a pagamento na Chéquia pela entidade empregadora referida em C., no montante total de CZK 350.061,00 [doc. n.º 3 junto com o p.p.a.].
  5. Dos rendimentos referidos em D. a entidade empregadora reteve, por conta do imposto sobre os rendimentos devido na Chéquia, o montante de CZK 45.630,00 [doc. n.º 3 junto com o p.p.a.].
  6. O requerente não auferiu, em 2018, quaisquer rendimentos com origem em Portugal.
  7. Nem teve, nesse mesmo ano, qualquer habitação própria em Portugal nem aqui permaneceu por mais de 183 dias seguidos ou interpolados num período de 12 meses com início ou fim nesse ano de 2018.
  8. Em 28-10-2022 a AT emitiu, no confronto do requerente e com referência ao exercício de 2018, a Liquidação n.º 2022-..., da qual resultava a fixação de um rendimento global de EUR 13.602,52 (campo 1), de um rendimento coletável de EUR 9.498,52 (campo 6), de uma coleta líquida de EUR 1.543,96 (campo 22), de juros compensatórios no valor de EUR 203,88 (campo 28) e de um montante total de imposto a pagar no valor de EUR 1.747,84 [doc. n.º 1 junto com o p.p.a.]
  9. A Liquidação Impugnada foi notificada ao requerente por via postal registada mediante carta remetida para a Chéquia em data não anterior a 03-11-2022 sob o registo postal n.º RY...PT [doc. n.º 1 junto com o p.p.a.].
  10. Em 10-03-2023 requerente deduziu reclamação graciosa contra a Liquidação Impugnada, a qual foi autuada sob n.º ...2023... [informação prestada pelo Serviço de Finanças de Lisboa-... e constante do Processo Administrativo].
  11. À data da propositura da presente arbitragem a reclamação referida em J. não tinha ainda sido objeto de decisão expressa [informação prestada pelo Serviço de Finanças de Lisboa-... em 05-09-2023 e constante do Processo Administrativo].
  12. O requerente encontra-se a pagar a dívida de imposto referida H. em prestações por intermédio do plano de pagamentos em cobrança voluntária n.º 2022-... [informação prestada pelo Serviço de Finanças de Lisboa-... em 05-09-2023 e constante do Processo Administrativo].

 

FACTOS NÃO PROVADOS:

Da factualidade alegada relevante para a decisão da causa, de acordo com as diversas solu­ções plausíveis da questão de direito, inexistem quaisquer outros factos, alegados pelas par­tes ou do conhecimento oficioso do Tribunal, que se devam considerar como não provados.

 

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO:

Na decisão da matéria de facto relevante para o conhecimento da causa o Tribunal teve em consideração a prova documental junta aos autos pelas partes, em particular os documentos especificados em cada um dos pontos do probatório.

Os factos dados como provados em F. e G. do probatório resultam da ausência de demonstração positiva, por parte da requerida, da realidade a que os mesmos se referem, apreciada livremente pelo Tribunal Arbitral à luz do disposto no art. 110.º, n.º 7, do CPPT e tendo presente o regime constante do art. 74.º, n.º 1, da LGT. Com efeito, tendo o requerente alegado não ter auferido em Portugal quaisquer rendimentos no ano de 2018 nem aqui ter residência ou ter permanecido, a circunstância dessas alegações de facto não terem sido especificadamente impugnadas pela requerida, aliada à omissão de apresentação de qualquer articulado de resposta por parte desta, e tendo também em conta o conjunto dos demais factos constantes do probatório, conduziu a que o Tribunal formasse a convicção firme e certa da realidade da factualidade descrita naqueles dois pontos do probatório.

Finalmente, a data indicada no facto I. do probatório resulta da menção, constante do texto da Liquidação Impugnada (doc. n.º 1 junto com o p.p.a.), relativa à data da emissão da demonstração de acerto de contas correspondente àquele ato tributário, sendo do conhecimento geral que a emissão destas demonstrações precede sempre a envio postal das notificações dos atos de liquidação aos sujeitos passivos, pelo que nunca poderia a notificação da Liquidação Impugnada ter sido expedida antes do referido dia 03-11-2022.

 

 

— IV —

DA QUESTÃO DECIDENDA,

            Conforme resulta do saneamento dos autos, a única questão principal relevante para a decisão da presente causa é a da ilegalidade da Liquidação Impugnada decorrente de erro nos pressupostos de facto e de direito em virtude de o requerente não ser fiscalmente residente em Portugal e os rendimentos objeto de tributação terem sido auferidos de fonte estrangeira.

*

A resposta à questão decidenda afigura-se extraordinariamente simples e imediata.

Com efeito, a propósito do âmbito de incidência subjetiva do Imposto sobre o Rendi­mento das Pessoas Singulares dispõe-se no art. 15.º, n.º 2, do CIRS que, quanto às pessoas não residentes em território nacional, “o IRS incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português.”

Estando provados factos que permitem concluir com segurança que em 2018 o requerente não era residente fiscal em Portugal (factos A., B. e G. do probatório) nem obteve neste território quaisquer rendimentos durante o referido exercício (factos C., D. e F. do probatório), a conclusão evidente e palmar é a de que não poderia ter sido tributado em sede de IRS pelas autoridades fiscais portugueses.

Tanto basta para concluir que a Liquidação Impugnada se encontra ferida de um vício de violação de lei decorrente de erro nos pressupostos de facto e de direito, na medida em que fez incidir a tributação sobre rendimentos que o requerente — que é um sujeito passivo não residente — auferiu de fonte estrangeira e no estrangeiro.

Consequentemente, a presente impugnação terá de proceder, vindo a final a determi­nar-se assim a anulação do ato de liquidação que forma o objeto desta arbitragem.

 

DOS PEDIDOS ACESSÓRIOS,

Não obstante o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação, caracterizado por pronúncias constitutivas (arts. 99.º e 124.º do CPPT), nele podem ainda extrair-se efeitos condenatórios no confronto da administração tributária, como resulta patente do facto de nesse meio processual poder haver lugar à condenação no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida. Acresce que de harmonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão,” preceitos legais aplicáveis à arbitragem tributária por força da expressa remissão, a título de direito subsidiário, do artigo 29.º, n.º 1, als. a) e c), do RJAT.

Por outro lado, face ao disposto no art. 24.º, n.º 1, al. b), do RJAT, fica a administração tributária requerida vinculada a, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito.”

Donde, nada obsta a que, no processo arbitral tributário, possa haver lugar à condenação da administração tributária requerida na restituição aos requerentes das quantias por eles pagas na decorrência de atos tributários que venham, nessa sede arbitral, a ser anulados ou declarados nulos. De resto, tal constitui uma prática jurisdicional difusa nos tribunais arbitrais tributários constituídos sob a égide do CAAD.

Pelo que, estando provado que o requerente pagou, pelo menos, parte da obrigação tributária liquidada pela Liquidação Impugnada (facto L. do probatório), na procedência da impugnação deste ato tributário, terá também de proceder a pretensão de condenação da AT a restituir ao requerente a quantia de imposto por ele indevidamente paga ao abrigo do ato de liquidação agora anulado.

*

            Decorre do art. 24.º, n.º 1, al. b), do RJAT que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão da qual não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária, devendo esta — nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais tributários estaduais — restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando todos os atos e operações necessários para o efeito, norma esta que não pode ser desligada do que se dispõe no art. 100.º da LGT, nos termos do qual a plena reconstituição da situação atual hipotética compreende “o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.” Especificamente no que concerne à obrigação de juros indemnizatórios dispõe-se no art. 43.º, n.º 1, da LGT que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

Dúvidas não podem existir de que a pretensão relativa a juros indemnizatórios tem também cabimento no meio processual arbitral. Na realidade, dispõe-se no art. 24.º, n.º 5, do RJAT que é “devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.” Tal norma­tivo, conjugado com a circunstância de o processo arbitral ser uma alternativa à impug­na­ção judicial, deve ser entendido como permitindo a condenação da administração fiscal no paga­mento de juros indemnizatórios no quadro do processo arbitral. Conclusão que apenas sai reforçada pela leitura do art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010 que autorizou o Governo a legislar “no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária” com o deliberado fito de que o processo arbitral tributário funcionasse como um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial.

Aplicando este enquadramento jurídico ao caso sub judice, e tendo ficado provado que o requerente procedeu ao pagamento da obrigação tributária correspondente à liquidação anulada nos presentes autos e que esta, por seu turno, está ferida de vício de violação de lei decorrente de erro nos pressupostos de facto e de direito — circunstância que permite imputar a ilegalidade de que o ato padece diretamente à conduta da AT —, tanto basta para que se possa concluir pelo preenchimento dos pressupostos do direito a juros indemnizatórios.

Tem assim também de proceder o pedido acessório de condenação no pagamento de juros indemnizatórios.

 

DA RESPONSABILIDADE PELAS CUSTAS DA ARBITRAGEM,

            Vencida na presente arbitragem, é a requerida AT responsável pelas custas — art. 12.º, n.º 2, do RJAT e arts. 4.º, n.º 5, e 6.º, al. a), do Regulamento.

*

Tendo em conta o valor já atribuído à causa em sede de saneamento, por aplicação da l. 1 da Tabela I ane­xa ao Regulamento de Custas da Arbitragem Tributária do CAAD (doravante “o Regulamento”) há que fixar a taxa de arbitragem do presente processo em EUR 306,00, em cujo pagamento se condenará a final a requerida.

 

 

— V —

            Assim, pelos fundamentos expostos, julgo a presente arbitragem totalmente proce­den­te e em consequência:

  1. Declaro ilegal e anulo a Liquidação de IRS n.º 2022-...;
  2. Condeno a requerida Autoridade Tributária e Aduaneira a restituir ao requerente o montante de imposto por este indevidamente pago ao abrigo do ato de liquidação referido em a);
  3. Condeno a requerida Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros in­demni­zatórios calculados, à taxa legal, sobre a quantia de imposto que o requerente pa­gou inde­vidamente ao abrigo do ato de liquidação referido em a), contados desde a data do pagamento até ao processa­men­to integral da correspon­den­te nota de crédito;
  4. Condeno a requerida Autoridade Tributária e Aduaneira nas custas do presente processo arbitral tributário, cuja taxa de arbitragem fixo em EUR 306,00.

 

Notifiquem-se as partes.

Registe-se e deposite-se.

 

CAAD, 27/11/2023

O Árbitro,

 

 

(Gustavo Gramaxo Rozeira)