Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 63/2014-T
Data da decisão: 2014-09-15  IUC  
Valor do pedido: € 558.829,62
Tema: Incidência subjetiva contrato de locação financeira, presunções legai
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Proc. 63/2014-T

Decisão arbitral

 

Requerentes: APortugal S.A.

Requerida: AT - Autoridade Tributária e Aduaneira

I - RELATÓRIO

A… Portugal S.A., contribuinte n.º …, com sede na …, doravante designada por Requerente, tendo sido notificada dos actos de liquidação referentes ao Imposto Único de Circulação (“IUC”) dos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012 correspondentes aos documentos 1 a 3158 juntos à petição inicial, apresentou, em 28.01.2014, ao abrigo do disposto no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária” – RJAMT), e dos artigos 132.º e 99.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e dos n.os 1 e 2 alínea d) do art. 95.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), um pedido de pronúncia arbitral em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, na qualidade de sucessora da Direcção-Geral dos Impostos, com vista a:

  • A anulação dos actos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) identificados a folhas 4 a 49 da petição inicial;
  • Reembolso à Requerente do montante de € 558.829,62 relativo ao imposto respeitante a essas liquidações;
  • O pagamento à Requerente de juros indemnizatórios, pela privação do referido montante, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

A Requerente alega, no essencial, o seguinte:

  • A Requerente foi notificada, durante o ano de 2013, para proceder ao pagamento das liquidações de IUC referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, e cujas cópias se encontram juntas aos autos (documentos 1 a 3158 juntos à petição inicial);
  • A Requerente não se conforma com as impugnações ora impugnadas por considerar não ser sujeito passivo do imposto no período a que as liquidações dizem respeito;
  • Nos termos do artigo 6.º, n.º 1 do CIUC, o facto gerador do imposto é “(…) constituído pela propriedade do veículo”.
  • De acordo com o artigo 3.º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC): “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas (…) em nome das quais os mesmos se encontrem registados”. Embora nesta disposição se utilize o termo “considerando-se”, enquanto no anterior regime de tributação automóvel (Decreto-Lei n.º 599/72, de 30 de Dezembro), se utilizava a expressão “presumindo-se”, as duas expressões são equivalentes, do que deve concluir-se que o n.º 1 do art.º 3º, ao dizer que se consideram como proprietários dos veículos as pessoas singulares ou colectivas em nome das quais os mesmos se encontrem registados, contém uma presunção legal em matéria de incidência tributária;
  • Existem inúmeros exemplos de normas que, utilizando os termos “considera-se” ou “consideram-se”, consagram inequivocamente presunções, como o art.º 45º, n.º 6 da Lei Geral Tributária (LGT), o art.º 89º-A , n.º 4 da LGT, o art.º 243º, n.º 3 do Código Civil ou o art.º 59º, n.º 5 do Código da Propriedade Industrial (CPI), pelo que o termo em causa no art.º 3º, n.º 1 do CIUC não implica que não se trate de uma presunção;
  • Nesse sentido se pronunciaram já diversas decisões de tribunais arbitrais, como as proferidas nos processos n.º 26/2013-T e n.º 27/2013-T;
  • O artigo 73.º da LGT proíbe a existência de presunções inilidíveis no domínio das normas de incidência tributária;
  • Sendo o art.º 3º, n.º1 do CIUC uma norma de incidência, não poderá a presunção aí estabelecida não se considerar ilidível;
  • Ora, os veículos sobre os quais a Autoridade Tributária efectuou as liquidações de IUC impugnadas foram alienados anteriormente aos períodos a que dizem respeito as liquidações de imposto, pelo que a Requerente já não preenchia os pressupostos da incidência subjectiva a essas datas, por não ser já a proprietária dos veículos;
  • O facto de o registo não se encontrar actualizado não releva para se considerar a Requerente como proprietária e, consequentemente, como sujeito passivo do IUC em relação aos veículos em questão;
  • Nos termos do art.º 408º do Código Civil (CC) a transferência da propriedade dá-se por mero efeito do contrato. E nos casos em apreço, com o pagamento do preço e a entrega da viatura (na data da factura) ocorre a transmissão da propriedade;
  • O registo da aquisição junto da competente Conservatória do Registo Automóvel não é condição para a transmissão da propriedade, nem afecta a sua validade;
  • A Requerente considera que a alienação dos veículos se encontra provada através das facturas relativas à venda e dos extractos dos saldos de conta, através dos quais se verifica que foram efectuados os respectivos pagamentos pelos adquirentes;
  • Efectuada prova da alienação dos veículos, há que considerar ilidida a presunção do art.º3º, n.º 1 do CIUC quanto à titularidade da propriedade dos veículos;
  • Além do mais, importa ter presente que a ratio da tributação automóvel, que é, no essencial, motivada por uma preocupação ambiental, não pode ser tributar quem conste do registo como proprietário, mas, sim, os utilizadores dos veículos que, por força da respectiva utilização, provocam um custo ambiental;
  • A Requerente não poderá nunca ser o sujeito passivo do IUC, dado que não provocou qualquer custo ambiental;
  • Na interpretação da norma de incidência do artigo 3º, n.º 1 do CIUC deve ainda ter-se em conta o princípio de que “o julgador deve ter em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”, de acordo com o artigo 8º n.º 3 do Código Civil (CC);
  • Por força deste princípio, dever-se-ão acompanhar e seguir as conclusões e entendimentos confirmados pelas decisões arbitrais nos processos n.os 26/2013-T e 27/2013-T, pelas quais a Requerente alinha a sua argumentação.

 

Na sua resposta ao pedido de pronúncia apresentado pela Requerente, a Requerida AT-Autoridade Tributária e Aduaneira pugna pela improcedência do pedido, alegando, em síntese, o seguinte:

  • O legislador tributário, ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos (veículos) se encontrem registados;
  • O legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter usado;
  • Por outro lado, o normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, de residência, de localização, entre muitos outros;
  • A título exemplificativo, a Requerida aponta os artigos 2.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2.º, 3.º e 4.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) e 4.º, 17.º, 18.º e 20.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), em que se utiliza a expressão “considera-se” para se qualificar uma situação para efeitos fiscais, sem que tal expressão possa ser vista como uma presunção;
  • No caso do n.º 1 do artigo 2.º do CIMT, por exemplo, o legislador tributário, não presume que “há lugar a transmissão onerosa para efeitos do n.º 1 do artigo 2.º do CIMT, na outorga do contrato-promessa de aquisição e alienação de bens imóveis em que seja clausulado no contrato ou posteriormente que o promitente adquirente pode ceder a sua posição contratual” a terceiro. O legislador fiscal expressa e intencionalmente assimila este contrato a uma transmissão onerosa de bens para efeitos de IMT;
  • Do mesmo modo, no caso do artigo 17.º do CIRC, o legislador também não estabelece que os excedentes líquidos das cooperativas se presumem como resultado líquido do período, mas sim que estes se consideram como tal;
  • Aliás, grande parte das normas de incidência em sede de IRC têm como ratio subjacente determinar o que deve ser considerado como rendimento, para efeitos deste imposto, por contraposição com o que de acordo com as normas contabilísticas é rendimento do período, pelo que, caso se entendesse que ao usar a expressão “considera-se”, o legislador fiscal teria consagrado uma presunção, praticamente todas as normas de incidência em sede de IRC seriam afastadas, precisamente porque a contabilidade prescreve soluções diferentes das do CIRC, sendo exactamente o fim do legislador afastar tais regras contabilísticas. A ser assim, frustrar-se-ia todo o efeito útil das referidas normas;
  • Nestes termos, é imperativo concluir que, no art.~3º do CIUC, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como proprietários (ou, nas situações previstas no n.º 2, os titulares aí enunciados) as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal;
  • Entender que o legislador consagrou no art.º 3º do CIUC uma presunção, seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem;
  • Em face da redacção do preceito, não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, conforme defende a Requerente. Trata-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel;
  • O referido entendimento corresponde ao adoptado na jurisprudência dos nossos tribunais, tendo sido sufragado pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, no Processo n.º …/13.0BEPNF;
  • A interpretação que a Requerente faz do art.º 3º é violadora do princípio da confiança e da segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.
  • A Requerente não consegue fazer prova de que os factos que resultam da presunção registal não são verdadeiros, porque os documentos apresentados como prova não têm força probatória suficiente para ilidir a presunção registal.

No dia 17 de Maio de 2014 realizou-se, nas instalações do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), a reunião prevista no artigo 18º do RJAT.

As partes apresentaram alegações escritas.

Nas suas alegações, a Requerente:

  • Reitera e reforça toda a argumentação vertida na petição inicial.
  • Suscita a questão da violação do princípio constitucional da igualdade tributária e do princípio da coerência do sistema fiscal com o argumento de que, enquanto sociedade que se dedica à importação e subsequente comercialização de veículos automóveis, a Requerente não pode ser sujeito passivo de IUC dado que, na fase da circulação do veículo, não origina qualquer custo ambiental;
  • Suscita a questão da violação da proibição constitucional de dupla tributação, ao ser considerada sujeito passivo simultaneamente de Imposto sobre Veículos ISV) e de IUC.

Por seu turno, nas suas alegações, a Requerida:

  • Reitera e reforça toda a argumentação expendida na sua resposta;
  • Alega (parágrafos 59º e ss. da referida peça processual) que “o momento da exigibilidade do imposto é o momento da atribuição da matrícula”; pelo que, “ainda que a Requerente, por hipótese, provasse a alienação dos veículos com os documentos juntos, se considerados suficientes para esse efeito, ainda assim tal facto não permitiria contrariar as disposições legais de que o momento da exigibilidade do imposto é o da data da matrícula por si requerida”.

 

II – SANEAMENTO

Este Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído em 28.03.2014, tendo sido os árbitros designados pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as respectivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11º, n-º 1, als. a) e b) do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD), e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas.

A cumulação de pedidos é legal, por se verificarem os pressupostos do artigo 3º, n.º 1 do RJAT.

Não foram identificadas nulidades no processo.

Não existem excepções nem questões prévias de que cumpra conhecer, pelo que nada obsta ao conhecimento do mérito da causa.

 

III – QUESTÕES A DECIDIR

São as seguintes as questões a decidir pelo Tribunal:

  • Se a sujeição da Requerente a Imposto Único de Circulação, na condição de proprietária dos veículos em causa, constitui violação do princípio da igualdade e do princípio da coerência do sistema fiscal;
  • Se a sujeição da Requerente a Imposto Único de Circulação, na condição de proprietária dos veículos em causa, constitui violação de uma alegada proibição constitucional de dupla tributação;
  • A interpretação do artigo 3º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação Automóvel (CIUC) como consagrando ou não uma presunção respeitante à qualificação, como proprietário de um veículo, da entidade em nome da qual a propriedade do mesmo se encontra registada;
  • A concluir-se pela qualificação dessa norma como uma presunção, a sua efectiva ilisão no caso dos autos.

IV – FUNDAMENTAÇÃO

  1. FACTOS PROVADOS CONSIDERADOS RELEVANTES PARA A DECISÃO

São os seguintes os factos provados considerados relevantes para a decisão:

1º: A Requerente foi notificada, ao longo do ano de 2013, para proceder ao pagamento das liquidações de IUC referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, referentes a 3158 veículos, cujo registo de propriedade constava em seu nome;

2º: A Requerente procedeu ao pagamento do total do valor do respectivo imposto anteriormente à apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral;

3º: A Requerente emitiu facturas relativas à venda dos 3158 veículos a que dizem respeitos as liquidações de IUC impugnadas;

4º: A Requerente registou na sua contabilidade o recebimento do preço relativo às facturas emitidas.

 

Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.

 

  1. QUANTO AO MÉRITO DA CAUSA

 

  1. Sobre a alegada violação do princípio da igualdade e da coerência do sistema fiscal

Argumenta a Requerente, nas suas alegações finais, que, limitando-se ela a importar e a vender os veículos, sem qualquer utilização, não provoca qualquer custo ambiental e, consequentemente, não poderá suportar um custo (ambiental) que não provocou, sob pena de violação do princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da Constituição da República Portuguesa.

Isto porque, sendo o IUC um imposto baseado no princípio da equivalência e que visa tributar os utilizadores dos veículos em função da poluição que causam, o mesmo encontra-se desenhado de modo a onerar aqueles que utilizam os veículos. Tendo a Requerente como actividade comercial a importação e revenda de veículos automóveis, daí decorreria não poder ser ela a utilizadora dos veículos.

A administração tributária estaria, então, a pretender tributar, através de um imposto que onera a utilização de veículos automóveis, um sujeito que não utiliza os mesmos veículos automóveis, e aqui residiria a violação do princípio da igualdade.

É certo que o IUC é um imposto que visa onerar aqueles que utilizam os veículos.

Quando o legislador, no artigo 3º do CIUC, define a incidência subjectiva do imposto, tem a preocupação, precisamente, de fazer recair o imposto sobre os seus possuidores que serão, também, em princípio, os seus utilizadores.

Porém, a fim de onerar a utilização dos veículos, o legislador vincula a sujeição passiva do imposto a situações jurídicas – a propriedade, a qualidade de locatário num contrato de locação financeira, etc. – que estão, em condições normais, associadas à posse e, consequentemente, à possibilidade de utilização do veículo.

A tributação da Requerente, através das liquidações impugnadas, tem por base a sua condição de proprietária dos veículos, de acordo com o que consta do registo automóvel. Se a Requerente é a proprietária dos veículos – e não ocorrendo nenhuma das situações previstas no n.º 2 do art.º 3º do CIUC – é ela quem tem a possibilidade de os utilizar, pelo que a sua inclusão no âmbito de incidência do imposto não importará qualquer violação do princípio da igualdade. Pelo contrário, a sua não tributação consistiria numa violação do princípio da igualdade.

Já se, por outro lado, se concluir que a Requerente não é a proprietária dos veículos, a sua tributação importaria uma violação do princípio da igualdade, mas que seria desnecessário invocar, pois os actos de liquidação estariam feridos de ilegalidade por inexistência dos pressupostos de direito dessas liquidações.

Da mesma forma e pelas mesmas razões, a tributação da Requerente, se esta for proprietária dos veículos, não constituirá qualquer violação do princípio da coerência sistemática.

Seria uma violação da coerência sistemática sujeitar a um imposto sobre a circulação automóvel alguém que não se encontra na situação jurídica que lhe possibilite a utilização do veículo. Mas não o poderá ser a sujeição a tal imposto de alguém que, por ser proprietário, tem a possibilidade de utilizar o veículo.

 

  1. Sobre a violação de uma alegada proibição constitucional de dupla tributação

Nas suas alegações finais, argumenta a Requerente que “a proibição constitucional de dupla tributação decorre, desde logo, do princípio do Estado de Direito (art.º 2º da CRP), do princípio da igualdade (art.º 13º da CRP), do princípio da proporcionalidade (art.º 18º da CRP) e do princípio da justiça (art.º 266º da CRP)”.

E que a sua tributação em IUC, na qualidade de titular do registo de propriedade dos veículos, implicaria uma violação de tal proibição constitucional, pois a Requerente, na sua actividade comercial de importação e revenda de veículos automóveis, estaria já sujeita a Imposto sobre Veículos.

Não especifica a Requerente se a alegada dupla tributação seria de natureza jurídica ou económica.

Sem cuidarmos aqui da questão da existência actual de um princípio constitucional de proibição de dupla tributação[1], cremos, com o devido respeito, que a Requerente não tem razão porque simplesmente não existe qualquer dupla tributação.

Não existe dupla tributação jurídica, uma vez que não está em causa o mesmo imposto (cfr. Casalta Nabais, J., “O Dever Fundamental de Pagar Impostos,” Almedina, Coimbra, 1998, p. 601, para quem a dupla tributação jurídica “se concretiza em um mesmo facto tributário – quanto ao objecto, ao sujeito, ao período tributário e ao imposto – cair sob a previsão de duas ou mais normas diferentes de incidência fiscal”).

E não existe também dupla tributação económica, pois não existe identidade do objecto. O ISV incide sobre “a introdução no consumo dos veículos tributáveis” (art.º 3º, n.os 1 e 2 do Código do ISV), enquanto o IUC incide sobre a propriedade ou a detenção da posse a título de locatário financeiro, de adquirente com reserva de propriedade, ou de titular de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.

 

  1. Quanto à interpretação do artigo 3º, n.º 1 do CIUC, no sentido de determinar se o mesmo estabelece ou não uma presunção de propriedade do veículo

Dispõe o artigo 3º do CIUC:

 

Artigo 3.º

Incidência subjectiva

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.

Os sujeitos passivos do IUC são, em primeiro lugar, os proprietários dos veículos, podendo ser ainda equiparados a proprietários os “locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”

A propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório (artigo 5º n.ºs 1 e 2 do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).

A obrigação de proceder ao registo recai sobre o comprador – sujeito activo do facto sujeito a registo, que é, no caso, a propriedade do veículo (artigo 8º-B, n.º 1 do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do artigo 29º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e conjugado com a al. a) do n.º 1 do art.º 5º do DL N.º 54/75)

Mas o Regulamento do Registo Automóvel[2] contém um regime especial, em vigor desde 2008, para entidades que se dediquem à actividade comercial de venda de veículos automóveis. Segundo esse regime, que se encontra estabelecido no art.º 25º, n.º 1, alíneas c) e d), o registo pode ser promovido pelo vendedor, mediante um requerimento subscrito apenas por si próprio.

Desde 2001, a obrigação de declarar a venda por parte do vendedor “à autoridade competente para a matrícula” encontra-se também expressamente estabelecida no Código da Estrada (hoje no seu artigo 118º, n.º 4).

O registo deve ser efectuado no prazo de 30 dias a contar da data da aquisição do veículo (artigo 42º do Regulamento do Registo Automóvel (Decreto-Lei n.º 55/75, de 12 de Fevereiro).

O actual IUC está desenhado para funcionar em integração com o registo automóvel, o que se infere do próprio art.º 3º do CIUC. A alternativa a esta articulação seria a obrigação de comunicar à AT – Autoridade Tributária e Aduaneira todas as transmissões de veículos, à semelhança do que acontece com o Código do IMT, solução altamente burocrática que o legislador rejeitou.

Numa situação de total conformidade com a lei, verificando-se a alienação da propriedade do veículo automóvel, esta alteração da propriedade será registada em tempo devido.

A AT- Administração Tributária e Aduaneira poderá, assim, em qualquer momento, saber que veículos estão matriculados em território português e quais os respectivos proprietários para efeitos de liquidação do imposto.

Existe, pois, uma articulação estreita entre o Registo Automóvel e o Imposto Único de Circulação, de modo que, não podendo a Administração Tributária valer-se dos dados constantes do Registo Automóvel, isso repercutir-se-á numa inevitável perda de eficiência, para não dizer paralisação, na administração do imposto.

Por essa razão, o n.º 1 do art.º 3º do CIUC, depois de estabelecer que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos” acrescenta que se consideram como tais “as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

No caso dos autos, em que a Requerente alega ter transmitido a propriedade de todos os veículos a que respeitam as liquidações impugnadas, anteriormente às datas a que dizem respeito as liquidações, a mesma Requerente conservava-se, à data dos factos tributários, como titular do registo de propriedade dos veículos alegadamente vendidos.

Mas uma vez que tais transmissões não foram comunicadas ao Registo Automóvel, a Administração Tributária adoptou o único procedimento que podia adoptar: aplicou o art.º 3º, nº 1 do CIUC, considerando a Requerente como proprietária dos veículos, por ser ela a entidade em nome da qual os veículos se encontravam registados. Note-se que, ainda que o art. 3º do CIUC não contivesse a expressão “considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a Administração Fiscal sempre beneficiaria dessa presunção de propriedade pois esta resulta do próprio Registo Automóvel.

Com efeito, o art.º 7º do Código do Registo Predial (CRPred), aplicável ao registo de automóveis, por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel, estipula que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”

A Requerente reconhece que, no período a que se referem as liquidações, era a titular do registo de propriedade dos veículos, mas alega que não era já a efectiva proprietária dos mesmos por, entretanto, os ter alienado.

A questão que se coloca nesta situação é a do valor da segunda parte do preceito, ao determinar que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

Ao dizer que “se consideram como proprietários dos veículos as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a lei está a estabelecer uma presunção legal?

 Ou, pelo contrário, a lei está a dizer que as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados são “proprietários” para efeitos fiscais, i.e, são sujeitos passivos?

A Requerente sustenta que a lei contém uma presunção legal, baseando-se para tal no exemplo de várias disposições legais vigentes no ordenamento jurídico que, empregando o verbo “considerar”, contêm indubitavelmente presunções.

A tese da Requerente socorre-se igualmente do valor meramente declarativo do registo automóvel.

Se a tese da Requerente estiver correta, então, de acordo com o disposto no artigo 73º da Lei Geral Tributária, e porque se trata de uma norma de incidência, a presunção é necessariamente ilidível, o que significa que admite prova em contrário. O que no caso significa que a Impugnante poderá provar que não era proprietária dos veículos no período a que as liquidações dizem respeito e, logo, não era sujeito passivo do imposto liquidado.

Em sentido contrário, a Requerida sustenta que na norma em causa não se estabelece presunção alguma, e que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (“como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas”) as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal. 

A Requerida apoia-se, tal como a Requerente, no exemplo de várias normas legais tributárias, que, utilizando o verbo “considerar”, não contêm presunções, mas qualificações não presuntivas. Seriam exemplos os artigos 2º do Código do Imposto sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2º, 3º e 4º, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, e 4º, 17º, 18º e 20º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC).

Pelos exemplos fornecidos por ambas as partes, resulta evidente, desde logo, que é possível encontrar no ordenamento jurídico tantos exemplos de preceitos que utilizam o verbo “considerar” no sentido de “presumir” como exemplos de preceitos legais que utilizam o verbo “considerar” para estabelecer qualificações jurídicas não presuntivas, pelo que estes argumentos não são concludentes.

A existir uma presunção no artigo 3º, n.º 1 do CIUC, ela consiste na presunção sobre a qualidade de proprietário: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

Por outro lado, se se entender que a norma não estabelece uma presunção legal, então haverá que considerar que a lei qualifica não presuntivamente como proprietários dos veículos, as pessoas em nome das quais os veículos estão registados.

Teremos, nesse caso, uma ficção legal, desligada do conceito do direito civil, e que consiste num expediente jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir determinadas consequências jurídicas

O art. 11º, n.º 2 da Lei Geral Tributária constitui o ponto de partida quanto a esta questão, dizendo que “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei”.

Há pois que averiguar se resulta inequivocamente do disposto no art.º 3º do CIUC que o legislador pretendeu aí estabelecer um conceito de “proprietário de veículo” próprio do direito fiscal, que englobe pessoas que não sejam titulares de tal direito segundo as regras do direito civil.

Ora, será que a “liberdade de conformação legislativa” de que goza o legislador, que a Requerida refere no parágrafo 17º da sua Resposta, pode ir tão longe, ao ponto de determinar taxativamente quem é proprietário de um veículo, ainda que para efeitos meramente fiscais, dissociando radicalmente essa qualificação fiscal da qualificação do direito civil?

E, na sequência da questão anterior, outra pergunta se impõe: por que razão o legislador não teria então estipulado simplesmente - pois obteria exactamente o mesmo efeito útil mas eliminando toda e qualquer margem de insegurança ou incerteza jurídicas - que “são sujeitos passivos do imposto as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados, seja como proprietários, seja como locatários financeiros, como adquirentes com reserva de propriedade, ou como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”? Questão tanto mais pertinente, e hipótese tanto mais atractiva, quanto o legislador conhecia a experiência, negativa, e que volta repetir-se, do anterior Imposto de Circulação?

A resposta parece evidente: porque, nesta última hipótese, que o legislador não seguiu, a incidência subjectiva do imposto poderia ficar totalmente desligada de qualquer substância económica e ficaria dependente exclusivamente de uma aparência jurídica.

Ora, se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjectiva do imposto numa ficção legal, em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjectiva.

É certo que a eficiência da tributação determina a necessidade de o IUC assentar no registo automóvel e, por conseguinte, exige que a administração fiscal possa confiar no mesmo registo automóvel.

Mas o princípio da eficiência da tributação não pode sobrepor-se em absoluto ao princípio da capacidade contributiva, ao ponto de o eliminar como critério de incidência subjectiva. E também é certo que o legislador fiscal teria ao seu dispor outros meios de responsabilizar o vendedor do veículo, faltoso quanto ao seu dever de comunicar a venda do veículo, pelo pagamento do imposto, sem ser como contribuinte directo (configurando, v.g., um caso de responsabilidade tributária por dívida de terceiro).

E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3º, n.º 1 só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto.

 

  1. Quanto à ilisão da presunção de titularidade do direito de propriedade que recai sobre a Requerente

Concluído que o n.º 1 do art.º 3º do CIUC consagra uma presunção de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, daí decorre que tal presunção é ilidível, por força do artigo 73º da LGT.

O Código Civil (CC) trata as presunções a propósito das “provas”. As presunções constituem, portanto, meio de prova.

São definidas no art.º 349º do CC como as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.

O CC distingue entre presunções legais, às quais se refere o art.º 350º, e presunções judiciais, tratadas por sua vez no art.º 351º.

A presunção judicial (comum ou de homem) consiste no raciocínio, originado por uma regra de experiência, através do qual, com base num facto conhecido, o julgador deduz um facto desconhecido.

As duas espécies de presunções mencionadas têm força probatória distinta. E por terem força probatória distinta, a sua ilisão obedece também a regras diferentes, sendo a ilisão da presunção legal mais exigente.

Com efeito, estipula o art.º 342º, n.º 1 do CC que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”. É a regra geral sobre o ónus da prova.

O art.º 346º do CC, sob a epígrafe “contraprova”, determina que “à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.”

Ou seja, recaindo sobre uma das partes ónus probatório, à parte contrária basta opor “contraprova”, sendo esta uma prova destinada a tornar duvidosos os factos alegados pela primeira. E basta a formação desta dúvida, para que a questão seja decida contra a parte onerada com a prova. Como afirma Anselmo de Castro, A., “Direito Processual Civil Declaratório”, III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 163, a consequência do ónus probatório é que a parte sobre quem o mesmo recai deve suportar as desvantagens da incerteza que permaneça sobre os factos que tenta provar.

Ora, de acordo com o art.º 350 do CC, a parte a favor da qual exista uma presunção legal, a qual constitui prova plena, não tem de provar o facto a que ela conduz. Não tem, portanto, quanto a esse facto, qualquer ónus probatório.

Nesta situação, a ilisão da presunção obedecerá já não à regra do art. 346º, mas à regra do art.º 347º do CC: “a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto”.

O que significa que não basta à parte contrária opor “contraprova” – a qual se destina a lançar dúvida sobre os factos – que torne os factos presumidos duvidosos. Ela tem de mostrar que não é verdadeiro o facto presumido, de forma que não reste qualquer incerteza de que os factos resultantes da presunção não são verdadeiros .

Voltando à contraposição entre presunção judicial e presunção legal, enquanto a primeira é uma prova simples, não definitiva, baseada nos dados da experiência e cuja apreciação se deixa à prudência do julgador, as presunções legais são provas legais ou vinculadas, que não dependem da livre apreciação do tribunal. Pelo contrário, a sua força probatória, legalmente tabelada, proporciona ao juiz uma verdade formal (cf. Domingos de Andrade, M, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra, 1976, p. 280).

Assim, no caso dos autos, o que a Requerente tem de provar, a fim de ilidir a presunção que decorre, quer do artigo 3º, n.º 1 do CIUC quer do próprio Registo Automóvel, é que ela, Requerente, não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas.

 

Vejamos então:

 

  1. Prova da transmissão da propriedade dos veículos

O que a impugnante se propõe provar, segundo resulta dos autos, é que transmitiu a propriedade dos veículos, através de contratos de compra e venda, anteriormente aos períodos a que as liquidações dizem respeito.

Para provar que ocorreram tais transmissões de propriedade através de contratos de compra e venda, a Impugnante apresenta:

  • Facturas relativas à venda dos veículos em causa;
  • Extractos contabilísticos dos lançamentos relativos ao recebimento do preço da venda dos mesmos veículos.

Torna-se, assim, necessário analisar que valor deve ser reconhecido a estes elementos para provar a transmissão da propriedade dos veículos por parte da Requerente.

Para isso deverá começar por se aflorar a questão da força probatória do registo automóvel.

O registo automóvel é um registo público, que tem a finalidade de “dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico” (art.º 1º do Cód. do Registo Automóvel (CRA)). Na noção de segurança do comércio jurídico cabe, evidentemente, o exercício de direitos por parte de terceiros com base nos factos registados.

Como se afirma no acórdão do TRL de 24-3-2011 (processo n.º 195/09.8TBPTS.L1-2), “o registo predial prossegue, a um tempo, fins de natureza privada e fins de natureza caracteristicamente pública. Prossegue fins de natureza privada, dado que garante a segurança no domínio dos direitos privados, especificamente no plano dos direitos com eficácia real – segurança do comércio jurídico (…), globalmente considerado – facilita o tráfico e o intercâmbio de bens, e assegura o cumprimento da função social dos direitos reais; prossegue finalidades de interesse público, enquanto instrumento da certeza do direito, da tutela de terceiros e da segurança do comércio jurídico, e de garante da actualização do registo face ao facto publicitado”.

Ora, o que a Requerente pretende nestes autos não é meramente ilidir uma presunção fiscal. É ilidir a presunção de veracidade dos factos que se encontram registados publicamente, e que se encontram registados para finalidades de interesse público, presunção esta da qual qualquer pessoa deve poder valer-se, sob pena de inutilidade do registo.

Em condições de cumprimento da lei, a ilisão da presunção de veracidade do registo é muito simples. Quando ocorre a compra e venda de um veículo, é preenchido um documento destinado ao registo automóvel – preenchimento que não constitui formalidade essencial do negócio – e que contém uma declaração de ambas as partes quanto à celebração do contrato (conforme o artigo 25º, n.º 1, alíneas a) e b) do DL n.º 55/75).

Este documento é um instrumento particular bilateral, porque assinado por ambas as partes do contrato. E precisamente porque a compra e venda de uma coisa móvel é um negócio não formal, aos serviços do Registo Automóvel basta este instrumento particular como prova para se proceder à alteração do registo. O vendedor pode então promover o registo em nome do adquirente, munido de uma simples cópia dessa declaração.

Mas já referimos também que, se o vendedor é uma entidade que se dedica ao comércio de veículos automóveis, este pode promover o registo, em nome do adquirente, através de um simples requerimento, conforme previsto no art.º 25, n.º 1, alíneas c) e d) do Regulamento do Registo Automóvel.

O que a Requerente apresenta como prova, porém – facturas não assinadas pelo comprador[3] e cópias de extractos contabilísticos de conta de cliente – são unicamente documentos particulares, de carácter comercial, e unilaterais, i.e., para emissão dos quais não se verificou qualquer intervenção do comprador. O que significa que o comprador pode negar que a factura corresponda a qualquer negócio efectivamente celebrado, invalidando com isso qualquer valor probatório da factura e não lhe sendo exigido, sequer, produzir qualquer contraprova nesse sentido (TRL, Acórdão de 4-2-2010, Proc. n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8).

A estes documentos particulares, por serem unilaterais, não pode reconhecer-se senão um valor probatório muito limitado[4].

Mesmo no âmbito das relações entre comerciantes quanto a factos do seu comércio – campo que é, como se sabe, aquele em que os documentos comerciais e a escrita comercial têm maior valor probatório – a facturação comercial e a escrita comercial não fazem prova plena, podendo até mesmo o comerciante proprietário dos livros produzir prova em contrário dos seus próprios lançamentos (STJ, Acórdão de 18-10-2007, Proc. n.º 06B3818).

Se um comerciante A – continuando a colocar-nos no âmbito das relações comerciais – pretendendo fazer prova de que vendeu a B, apesenta facturas por si emitidas, B, que sustenta a inexistência do negócio jurídico, apenas precisa de negar a materialidade dos factos vertidos nessas facturas, para que reverta sobre o vendedor o ónus de provar por outros meios a existência do contrato (TRL, Acórdão de 4-2-2010, Proc. n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8, no qual se afirma: “Os documentos juntos limitam-se à existência das declarações nele contidas, ou seja, que foram emitidas facturas referentes a mercadoria fornecida à ré/apelada com a correspondente nota de entrega (alegação da apelante); dos documentos não resulta que a apelada tenha encomendado à apelante a mercadoria constante das facturas juntas (…)”)

Se é assim no plano das relações entre comerciantes quanto a factos do seu comércio, que valor pode ser atribuído a este tipo de documentos no âmbito de relações com terceiros não comerciantes?

Sobre esta matéria, também se têm pronunciado os tribunais superiores. Assim, num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-11-2009 (TRL, Acórdão de 26-11-2009, Proc. n.º 29158/03.5YXLSB.L1-2), afirma-se que “a força probatória do documento particular se limita às declarações do respectivo subscritor”.

 E num outro acórdão do mesmo Tribunal, com maior acuidade para a questão decidenda, pois que se refere exactamente ao valor da factura comercial como prova da existência de um contrato com determinada pessoa, diz-se que “a exigência de um pagamento por factura não basta para se provar que o contrato a que respeita o pagamento foi celebrado com a entidade facturada” (TRL, Acórdão de 5-6 -2008, Proc. 1586/2008-8).

Tudo o que foi dito para a factura vale, por sua vez, para os extractos contabilísticos. Um extracto contabilístico é, também ele, um documento particular (não autêntico) e unilateral, cuja emissão não supõe a intervenção da contraparte no alegado contrato.

Resumindo, a Requerente apresenta, apenas, documentos unilaterais e internos, aos quais a jurisprudência tem reconhecido um muito reduzido valor para provar a existência de um contrato sinalagmático.

Em face do exposto, é forçoso concluir que Requerente não logrou provar a transmissão da propriedade dos veículos sobre cuja propriedade recaíram as liquidações de IUC impugnadas.

 

  1. Prova da não titularidade da propriedade dos veículos

Mas entende este Tribunal que, neste caso, como já ficou dito acima, o que a Requerente teria de provar, a fim de ilidir a presunção que decorre, quer do artigo 3º, n.º 1 do CIUC quer do próprio Registo Automóvel, é que ela, Requerente, não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas, pois é este o facto que resulta da presunção registal. 

Para isso não bastaria provar que, um dia, há vários anos, havia celebrado um contrato de compra e venda de um veículo, pois ainda que esse contrato tivesse sido celebrado, a propriedade de algum veículo poderia ter retornado à titularidade da Requerente. Ou seja, provar que A, no ano 2001, alienou o bem X, não implica deixar provado que A, no ano 2011, não é proprietário do bem X.

Assim, a Requerente teria de provar que não era proprietária dos veículos à data a que dizem respeito as liquidações, o que implicaria, no caso concreto, provar quem era o actual proprietário.

Não se diga que se trata, neste caso, de uma diabolica probatio. Esta prova seria fácil de fazer, bastando à Requerente actualizar o registo, para o que tem a legitimidade como vendedor – e não só a legitimidade como a obrigação, desde 2001, à luz do Código da Estrada – promovendo o registo dos veículos em nome do comprador, através de um simples requerimento, nos termos do artigo 25º, n.º 1, alíneas c) e d) do Regulamento do Registo Automóvel (preceitos que estabelecem um regime especial de promoção do registo para entidades que comercializam veículos automóveis).

Diabolica probatio seria, neste caso, em nosso entender e discordando neste ponto de anteriores pronúncias arbitrais, a exigida à Administração Fiscal, se esta, para se valer da presunção que decorre quer do art.º 7º do Código do Registo Predial, quer do art.º 3º, n.º 1 do CIUC, tivesse de apresentar contraprova que pusesse em causa a verdade material das facturas apresentadas, quando a administração não tem qualquer meio para o fazer.

A tese da Requerente, no que diz respeito à parte probatória, pretendendo neutralizar a prova legal que constitui o registo mediante a apresentação de documentos unilaterais, que têm valor probatório diminuto no âmbito do direito probatório material, implicaria tornar impossível à administração fiscal administrar o Imposto Único de Circulação.

E o certo é que, da valência em contencioso tributário dos princípios do inquisitório ou da investigação e da livre apreciação das provas, e ainda do princípio da aquisição processual, decorre que, inexistindo embora um ónus da prova formal, a cargo, especial ou exclusivamente, de algum dos participantes processuais, releva sobremodo neste campo um ónus da prova substancial, objectivo, ou material, no sentido de que a decisão tem de desfavorecer naturalmente quem não consiga ver materialmente provados os factos em que assenta a sua posição (cf. a este respeito Vieira de Andrade, J. C., “Direito Administrativo e Fiscal, Lições ao 3.º ano do Curso de 1995/96”, Coimbra, 1996, p. 186; e Saldanha Sanches, J. L., “O Ónus da Prova no Processo Fiscal”, Cadernos de Ciência Técnica e Fiscal n.º 151, pp. 122 e ss.).

Resumindo, a prova apresentada pela Requerente é constituída, exclusivamente, por documentos particulares, unilaterais e internos, com um valor insuficiente para, à luz do direito probatório material, negar a validade de factos – a propriedade de veículos – sobre os quais existe uma prova legal – uma presunção legal – que isenta a Requerida de qualquer ónus probatório, e que não é contrariável através de mera contraprova, que lance dúvida sobre os factos provados pela presunção.

 

  1. Conclusão quanto à ilisão da presunção de titularidade do direito de propriedade que recai sobre a Requerente

De todo o exposto resulta que a Requerente não ilide a presunção que sobre si recai quanto à titularidade da propriedade dos veículos sobre os quais incidem as liquidações de IUC impugnadas e que, por conseguinte, as liquidações impugnadas não enfermam de qualquer ilegalidade.

Improcede portanto, a pretensão da Requerente quanto à ilegalidade das liquidações impugnadas com base em erro nos pressupostos de Direito, por falta dos pressupostos da incidência subjectiva do Imposto quanto à Requerente.

O entendimento sufragado na presente decisão é, no entender do Tribunal, o que melhor concilia a legalidade da tributação, os direitos dos contribuintes, os deveres dos contribuintes e o princípio da eficiência na tributação.

Tal entendimento, baseado, por um lado, na aceitação da tese de que o artigo 3º, n.º 1 do CIUC contém uma presunção ilidível, e, por outro, na convicção de que a presunção de propriedade derivada do registo automóvel não pode ser ilidida com o mero recurso a documentos unilaterais, não deixa sem defesa o titular do registo que, eventualmente, não tivesse a efectiva posse dos veículos à data dos factos tributários, uma vez que sempre lhe assistirá o direito de deduzir oposição à execução, nos termos da al. b) do n.º1 do art.º 204º do CPPT, alegando e provando não ter sido, durante o período a que diz respeito a dívida exequenda, o possuidor dos veículos.

 

  1. Quanto ao momento da exigibilidade do imposto

Referiu-se anteriormente que a Requerida, nas suas alegações finais, levantou também uma nova questão, relacionada com o momento da exigibilidade do imposto.

Embora o Tribunal não tenha de se pronunciar sobre questões novas suscitadas nas alegações finais (cfr. Acórdão do STA de 14.5.2014, processo n.º 195/13) que não sejam de conhecimento oficioso, dir-se-á apenas, sobre esta questão, que o momento da exigibilidade do IUC não é “o momento da atribuição da matrícula”, mas sim, o primeiro dia do ano que se inicia a cada aniversário cumprido sobre a data da matrícula, tal como resulta do disposto no art.º 6º, n.º3 conjugado com o art.º 4º, n.º 2, ambos do CIUC.

 

V. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, este Tribunal decide julgar totalmente improcedente o presente pedido arbitral.

 

Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em: € 558.829,62 euros.

Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 8 568.00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

Registe-se e notifique-se.

 

Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 15 de Setembro de 2014.

 

 

 

O Tribunal arbitral

 

Jorge Lino Alves de Sousa (presidente)

 

 

Nina Aguiar

 

 

José Nunes Barata

(vencido)

 

 

 

 

Declaração de voto de vencido

 

           Voto vencido o Acórdão supra, porquanto entendo, salvo o devido respeito pela opinião contrária, que a Requerente fez prova bastante da alienação das viaturas e que, consequentemente, não era proprietária das viaturas sub judice nos períodos a que dizem respeito as liquidações que impugnou, tendo em conta o que adiante, sumariamente, se aduz:

             No meu entendimento, a documentação carreada para os autos pela Requerente (facturas relativas à venda dos veículos em causa e extractos contabilísticos dos lançamentos relativos ao recebimento do preço da venda dos mesmos veículos) constitui meio de prova com força bastante para titular as alienações dos veículos.

          Com efeito, na situação dos autos, estamos perante contratos de compra e venda de coisas móveis, os quais, por aplicação do disposto no art. 219º do CC, não estão sujeitos a nenhum formalismo especial.

         Embora se reconheça que estes contratos, por terem por objecto veículos automóveis, em que o registo é obrigatório, pressupõem a emissão de declaração de venda, que é necessária para a inscrição no registo, isso não habilita a julgar-se que esta declaração constitui o único e exclusivo meio de prova da venda.

         Com efeito, há que considerar que, uma vez que a Requerente tem natureza empresarial, os mencionados documentos, que foram juntos aos autos pela Requerente, estão subordinados a rigorosas regras legais de ordem contabilística e fiscal, com implicações, também, na cobrança de outros tributos.

           Designadamente, no que concerne à facturação, a legislação tributária atribui-lhe uma relevância muito especial, que lhe confere credibilidade probatória, e que se encontra bem expressa no disposto nos seguintes normativos legais que, a título de exemplo, se citam: arts. 29º, nº 1, alínea  b) e 19º, nº 2 do CIVA e arts. 23º, nº 6 e 123º, nº 2 do CIRC.

          Ora, desde que essa documentação tenha sido emitida de acordo com a legislação comercial e fiscal, questão que a Requerida não suscita, e o que não põe em causa, a mesma goza da presunção de veracidade, que lhe é atribuída pelo art. 75º, nº 1 da LGT.

        Caberia à Requerida apresentar e demonstrar indícios concretos e fundamentados de que as operações tituladas pela mencionada documentação não correspondiam à realidade, face ao disposto no nº 2 do art. 75º da LGT, o que não ocorreu.

           Nesta conformidade, atenta a relevância muito especial que a legislação tributária atribui à facturação na situação vertente e a circunstância da Requerente completar a apresentação dessa facturação relativa à venda com extractos contabilísticos que comprovam terem sido recebidos os valores das vendas dos veículos, documentação esta que goza da presunção de veracidade, que lhe é concedida pelo disposto no art. 75º, nº 1 da LGT, concluímos que essa documentação associada constitui meio de prova suficiente para ilidir a presunção que decorre do art. 3º, nº 1 do CIUC, que o Acórdão acolhe, e que subscrevemos, uma vez que comprova que a Requerente não era proprietária dos veículos ao tempo a que dizem respeito as liquidações de IUC.

        Em face do exposto, julgaria procedente o pedido de anulação de todos os actos de liquidação de Imposto Único de Circulação impugnados pela Requerente.

 

 

          Lisboa, 15 de Setembro de 2014

        

 

                                                                O Árbitro

 

                         

 

                                                         (José Nunes Barata)

 

 

 



[1] Afirma a este respeito, Casalta Nabais, J., “O Dever Fundamental de Pagar Impostos,” Almedina, Coimbra, 1998, p. 602, que “a dupla tributação qua tale não está constitucionalmente proibida”.

[2] Decreto n.º 55/75, de 12 de Fevereiro.

[3] A assinatura da factura não é requerida pelo Direito Comercial e não constitui prática entre os comerciantes. Mas o que está a ser discutido não é a validade da factura e sim o seu valor probatório quanto a um negócio jurídico., no âmbito de uma relação jurídica tributaria.

[4] Quanto ao facto de as facturas serem usadas pela Administração Fiscal como base para a liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) e de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), convém recordar aqui que, nos termos do artigo 376º, n.º 2 do Código Civil (CCiv.), no caso de documentos particulares, “os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante”, mas não, obviamente, na medida em que forem favoráveis aos interesses do declarante.