Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 231/2014-T
Data da decisão: 2014-11-04  IUC  
Valor do pedido: € 23.721,41
Tema: IUC – Incidência subjectiva
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DECISÃO ARBITRAL[1]

 

 

I RELATÓRIO

 

 

A)    As Partes e a Constituição do tribunal Arbitral

 

 

1.Banco A sa, pessoa colectiva nº …, com sede … em Lisboa, doravante designado por “Requerente”, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral singular, ao abrigo do disposto no artigo 10º, e na alínea a), do nº 1, do artigo 2º, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante designado por “RJAT” e dos artigos 1º e 2º da Portaria nº 112 – A/2011, de 22 de Março, para apreciar a demanda que a opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante designada por “Requerida” ou “AT”, tendo em vista a anulação, com fundamento em ilegalidade, de um conjunto de 553 liquidações oficiosas de Imposto Único de Circulação (IUC), referentes aos anos de 2009 a 2012, no valor global de €23.721,41, relativas a 210 viaturas automóveis, todos identificados pelo respectivo número de matrícula nas respectivas liquidações discriminados na tabela junta como Anexo A ao pedido de pronúncia arbitral, que aqui se dá por integralmente reproduzida.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, apresentado em 6 de Março de 2014, foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 7 de Março de 2014 e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira. A Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no nº 1, do artigo 6º do RJAT, foi designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, em 23 de Abril de 2014, a ora signatária como árbitro do Tribunal Arbitral singular. A nomeação foi aceite e as partes, notificadas da aceitação, não recusaram a designação, nos termos previstos nas alíneas a) e b), do nº1, do artigo 11º, do RJAT, conjugado com o disposto nos artigos 6º e 7º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c), do nº 1, do artigo 11º, do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redacção introduzida pelo artigo 228º, da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 12 de Maio de 2014.

No dia 13 de Maio de 2014, foi proferido despacho arbitral para apresentação de Resposta no prazo legal, do qual foi a Requerida “AT” notificada a 16 de Maio de 2014, nos termos do disposto nos nºs 1 e 2, artigo 17º, do RJAT. A 11 de Junho de 2014 a AT juntou aos autos a sua Resposta e os documentos anexos. Por despacho arbitral de 13 de Junho de 2014 foram as partes ouvidas sobre a possibilidade de dispensa de realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT, tendo a AT manifestado a sua concordância com a dispensa e a Requerente manifestado o interesse na realização da mesma, a qual foi agendada para o dia 10 de Julho de 2014. A 8 de Julho de 2014 a AT requereu a junção aos autos do Processo Administrativo (PA).

No dia 10 de Julho de 2014, pelas 14 horas, realizou-se a reunião prevista no artigo 18º do RJAT, da qual foi lavrada acta que se encontra junta aos autos e aqui se dá por integralmente reproduzida. Na reunião efectuada a Requerente requereu a junção aos autos de um conjunto de documentos para reforço da prova apresentada com as facturas já juntas aos autos com a apresentação do pedido arbitral, a saber: cópias dos extractos contabilísticos comprovativos dos pagamentos de algumas facturas juntas aos autos, de forma aleatória, estando ainda disponível para juntar todos os demais se o Tribunal considerar necessário. A AT não se opôs à junção de documentos, sem prescindir do prazo de vista. O tribunal fixou o prazo de 10 dias, a contar a pós a notificação da junção, para a AT examinar os documentos e se pronunciar, querendo, sobre os mesmos. As partes prescindiram da apresentação de alegações por entenderem que as suas posições estavam já devidamente esclarecidas nos articulados juntos aos autos. Foi, ainda, fixada data para prolação da decisão arbitral até ao dia 7 de Novembro de 2014.

Decorrido o prazo de vista fixado para análise e pronúncia sobre os documentos juntos aos autos pela Requerente, a Requerida AT não se pronunciou sobre os documentos juntos aos autos pela Requerente.

Em 23 de Setembro de 2014 a AT requereu a junção aos autos de duas decisões arbitrais proferidas nos processos nºs 150/2014-T e 220/2014-T, alegando tratar-se de processos sobre matéria idêntica à dos presentes autos, na qual as decisões foram desfavoráveis às requerentes assuntes numa determinada interpretação do valor probatório das facturas. O tribunal despachou no sentido da junção aos autos das ditas decisões arbitrais e, em obediência ao princípio do contraditório, notificou a Requerente e fixou prazo que esta se pronunciar querendo sobre a junção. A Requerente pronunciou-se por requerimento junto aos autos em 6/10/2014, que se dá por integralmente reproduzido.

 

B)    Dos Pressupostos Processuais

 

 

3. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos do artigo 2º, nº1, alínea a) do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (Cfr. Artigos 4º e 10º, nº 2, do DL nº 10/2011 e artigo 1º, da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março). A legitimidade da Requerente Banco A SA, para apresentar o presente pedido de pronúncia arbitral na qualidade de liquidatária da sociedade B, SA, resulta demonstrada pelo teor da acta junta ao pedido arbitral e informação da inscrição do acto de dissolução da sociedade, juntos como ANEXO B ao pedido arbitral e que se dão por integralmente reproduzidas.

 

Quanto à cumulação de pedidos, pretendendo-se a apreciação conjunta da legalidade das 249 liquidações de IUC, relativas aos anos de 2009 a 2012, apesar de constituírem actos autónomos, verificando-se os pressupostos exigidos pelo disposto no nº 1, do artigo 3º, do RJAT e artigo 104º do CPPT, é de admitir a cumulação. Assim, aceita-se no mesmo pedido arbitral a cumulação de pedidos de declaração de ilegalidade de todos os actos tributários de liquidação de IUC e respectivos juros compensatórios que lhes estão associados, dada a identidade do imposto e a apreciação dos actos tributários em causa depender da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da aplicação das mesmas regras de direito.

O processo não enferma de nulidades que o invalidem e não foram suscitadas excepções que obstem ao julgamento do mérito da causa, pelo que o Tribunal está em condições de proferir a decisão arbitral.

 

 

C) DO PEDIDO FORMULADO PELA REQUERENTE

 

4. A Requerente formula o presente pedido de pronúncia arbitral pugnando pela ilegalidade e consequente anulação, dos actos de liquidação de Imposto Único de Circulação e respectivos Juros Compensatórios, referentes aos anos de 2009 a 2012, no montante global de €23.721,41, com referência a duzentos e dez veículos, identificados pelo respectivo número de matrícula na lista constante do pedido de pronúncia arbitral (Anexo A), que aqui se dá por reproduzida, bem assim como nas notas de demonstração de liquidação de imposto e dos respectivos juros compensatórios, todas juntas aos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

Fundamenta o seu pedido na ilegalidade das liquidações de imposto e respectivos juros, alegando em síntese o seguinte:

a)      A Requerente (e antes desta a «B») é uma instituição de crédito com forte presença no mercado nacional, consistindo o financiamento ao sector automóvel numa das áreas de actividade com especial relevância;

b)       Uma parte substancial da sua actividade reconduz-se à celebração, entre outros, de contratos de locação financeira e de aluguer de longa duração (ALD), destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis;

c)      Estes contratos obedecem, como resulta da sua própria configuração legal, a um guião comum, próprio deste tipo de financiamentos: a Requerente, depois de contactada pelo cliente – que, nessa fase, escolheu já o tipo de veículo que pretende adquirir, as suas características (marca, modelo, acessórios, etc.), e inclusive o seu preço – adquire o veículo ao fornecedor que lhe for indicado pelo cliente, e procede, de seguida, à sua entrega ao referido cliente – que assume, pois, a qualidade de locatário;

d)     Durante o período que vier a ser estipulado no contrato, este locatário mantém o gozo temporário do veículo – que permanece propriedade da Requerente –, mediante remuneração a entregar à Requerente sob a forma de rendas;

e)      Estando legalmente obrigado a, no termo do contrato, adquirir o veículo mediante o pagamento de um valor residual;

f)       Os veículos automóveis identificados na listagem junta à PI como ANEXO A (cuja matrícula consta da coluna C) foram dados em ALD pela Requerente (em rigor, pela B, tendo posteriormente transitado para a Requerente) aos clientes ali também identificados (coluna K);

g)      Todos estes clientes adquiriram, no termo do respectivo contrato, o veículo automóvel sobre o qual o mesmo incidia, mediante o pagamento do correspondente valor residual, conforme resulta das facturas de venda juntas como documentos n.ºs 211 a 420 identificados na tabela (coluna N), junta como ANEXO A ao pedido arbitral;

h)      No caso dos veículos automóveis identificados com as matrículas … e …, os seus adquirentes não foram os anteriores locatários, mas terceiros a quem aqueles indicaram que fossem transmitidas as viaturas e facturados os correspondentes valores residuais;

i)        O que em nada altera a posição de facto da Requerente, dado que, na vigência dos contratos, era mera locadora; uma vez atingido o seu termo, deixou de ser proprietária destes veículos;

j)        Recentemente a Requerente foi notificada para proceder ao pagamento das liquidações de IUC constantes do presente pedido arbitral (Anexo A), tendo efectuado o pagamento conforme comprovativos juntos aos autos como documentos nºs 1 a 210 (identificados na coluna O);

k)       A exigência do pagamento do IUC em causa, referente aos anos de 2009 a 2012, sucedeu mesmo sabendo a AT – ou devendo saber – que os veículos automóveis em apreço já não eram propriedade da Requerente no momento (no ano) em que o imposto deveria ter sido pago;

l)        Isto porque, nas datas a que se reportam os factos tributários que originaram aas liquidações de IUC em causa, a Requerente já não era proprietária dos veículos a que as mesmas se referem;

m)    Exemplifica com o caso do veículo automóvel com a matrícula … e com duas das liquidações que lhe são referentes, com os nºs 2010… e 2011…, referentes aos anos 2010 e 2011, sendo que a sua anterior locatária C se tornou proprietária desta viatura em 04.01.2006; cenário fáctico que, alega, se repete em relação a todos os outros actos tributários identificados na tabela anexa à PI;

n)      Pagou todas as liquidações agora impugnadas ao abrigo do Decreto-Lei 151-A/2013 (Regime Excepcional de Regularização de Dívidas Tributárias e à Segurança Social) pelo que pode beneficiar do pagamento do valor de imposto, no montante de €23.721,41, com dispensa do pagamento do correspondente pagamento de juros compensatórios.

 

5.      A fundamentação de direito do pedido de pronúncia arbitral assenta, sumariamente, no seguinte:

a.       A Requerente não pode ser considerada sujeito passivo de IUC, ainda que, no ano a que se reportam os IUC em causa, a transmissão dos referidos veículos não estivesse devidamente registada junto da Conservatória do Registo Automóvel;

b.      Apesar dos actos tributários não mencionarem expressamente os motivos que conduziram à emissão das liquidações o que consubstancia vício de falta de fundamentação, que expressamente invoca, a Requerente subentende que a razão subjacente às liquidações seja o facto da transmissão da propriedade pelos locatários, nos termos previstos nos respectivos contratos, não ter sido registada na Conservatória de registo Automóvel;

c.       O registo, ou a sua falta não podem ser considerados elemento determinante da responsabilização tributária da Requerente;

d.      Cabe decidir, essencialmente, uma única questão: a de saber se a circunstância de a transmissão dos veículos identificados na tabela junta como ANEXO A, aos seus anteriores locatários (ou, nos casos pontuais acima identificados, a terceiros por aqueles indicados), findo o contrato de ALD, não ter sido registada junto da Conservatória do Registo Automóvel, torna essa transmissão inoponível à AT, para os efeitos de proceder à cobrança do imposto junto do seu anterior proprietário;

e.       A responsabilidade por proceder ao pagamento do IUC cuja liquidação se contesta não cabe, nem coube jamais à Requerente, sendo, por isso, intrinsecamente ilegal – por falta de legitimidade substantiva da Requerente – a liquidação realizada pela AT.

f.       Conforme a jurisprudência arbitral (invocou as decisões arbitrais nºs 14/2013-T, 26/2013-T e 27/2013-T)) tem destacado, nem mesmo durante a vigência de um contrato de locação financeira deve a entidade locadora ser considerada sujeito passivo do IUC; por maioria de razão, menos ainda o será após ter ocorrido o termo do contrato de locação e o exercício, pela entidade locatária, do seu direito a adquirir o bem pelo valor residual; o locatário torna-se também proprietário do veículo em questão, passado a aplicar-se-lhe o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC;

g.      Invoca, ainda, em síntese, o disposto nos artigos 408º, nº1 e 874º do Código Civil, o regime resultante do Decreto-Lei nº 54/75 de 12 de Fevereiro, bem assim como a jurisprudência resultante de diversas decisões arbitrais já proferidas sobre casos idênticos e, por fim, junta Parecer do Prof. Doutor Agostinho Cardoso Guedes.

 

Termina peticionando a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos actos de liquidação, relativos ao IUC respeitante aos 210 veículos identificados pelo respectivo número de matrícula na listagem junta como ANEXO A, referentes aos anos de 2009 a 2012, com o consequente reembolso do montante de € 23.721,41, respeitante ao imposto pago pela Requerente, acrescido de juros indemnizatórios pela privação do referido montante, nos termos do artigo 43º da Lei Geral Tributária.

 

D) – A RESPOSTA DA REQUERIDA

 

6.A Requerida alega na sua resposta, em síntese, que não assiste razão à Requerente cujo entendimento incorre numa enviesada leitura da letra da lei, numa interpretação que não atende ao elemento sistemático, que viola a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico fiscal que ignora a ratio legis do regime consagrado no CIUC. Assenta a sua alegação no disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 3.º do CIUC, que determinam, respetivamente, que São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados” e que são sujeitos passivos do IUC “os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

Alega a Requerida, no artigo 16º da sua Resposta, «que existe uma responsabilidade exclusiva de apenas um dos sujeitos passivos, em regra o proprietário por força do nº1, salvo nos casos em que tenha sido celebrado (e registado) contrato de locação financeira, venda com reserva de propriedade ou aluguer de longa duração do veículo, em que, por força do nº 2, o sujeito passivo de IUC passa a ser um dos sujeitos neste indicados, e só este.» Alega ainda que o legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, aliás à semelhança do que sucede em outros normativos legais, exemplificando algumas situações previstas na lei; entende a Requerente que nos casos em que o legislador fiscal utiliza a expressão “considera-se”, não está a estabelecer uma presunção; enuncia, a título meramente exemplificativo, diversas normas constantes de diferentes códigos fiscais que utilizam a expressão “considera-se”. Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, assenta numa interpretação contra a lei, porquanto “a opção clara do legislador foi a de considerar que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários aqueles que como tal constem do registo automóvel;” invoca, em defesa deste entendimento, a decisão proferida no âmbito do Processo nº 210/13.0BEPNF, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.

Conclui que é esta a interpretação que atende ao elemento sistemático e preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal, além do que, outra interpretação seria ignorar o elemento teleológico de interpretação da lei, a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.

Acresce que a não actualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42º, do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IEC e não na do Estado, enquanto sujeito activo deste imposto; outro entendimento lançaria a AT na mais absoluta incerteza. Reforça este entendimento invocando os debates parlamentares em torno da aprovação do DL nº 20/2008, de 31 de Janeiro, dos quais transcreve excertos, para concluir que o legislador quis intencionalmente consagrar uma solução da qual resulte que o IUC é devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietários dos veículos. Invoca, também, a Recomendação nº 6-B/2012, do Sr. Provedor de Justiça, que juntou como documento nº 2 em anexo à resposta, dirigida ao Sr. Secretário de Estado das Obras Públicas, dos Transportes e das Comunicações.

A acrescentar a tudo isto, alega a Requerida que a interpretação veiculada pela Requerente se mostra contrária à Constituição, porquanto o principio da capacidade contributiva não é o único nem o principal princípio que enforma o sistema fiscal; do lado deste, encontramos outros com a mesma dignidade constitucional, como sejam, o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade. Na óptica da Requerida, “a interpretação proposta pela Requerente, a qual desvaloriza a realidade registral em detrimento de uma “realidade informal” e insusceptível de um controlo mínimo por parte da Requerida, é ofensiva do basilar princípio da confiança e segurança jurídica que deve enformar qualquer relação jurídica, aqui se incluindo a relação tributária.

Por último, atendendo às regras do ónus da prova, alega ainda a falta de prova da transmissão da propriedade do veículo, dado que as facturas não são, na óptica da AT, por si só, documentos aptos a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda. A Requerente não juntou cópia dos contratos de locação financeira. Alega ainda a falta de cumprimento do disposto no artigo 19º do CIUC, por parte da requerente.

Para reforço desta posição quanto à falta de valor probatório das facturas juntas aos autos para demonstração da transmissão da propriedade dos veículos em causa nos autos, veio a AT requerer a junção aos autos das decisões arbitrais nºs 115/2014-T e 220/2014-T.

 

7.Conclui que os actos de liquidação de IUC não padecem de ilegalidade nem estão reunidos os pressupostos legais para a condenação em juros indemnizatórios. E, também no que toca à responsabilidade pelas custas arbitrais a Requerida entende que não estando no seu controlo a transmissão da propriedade de veículos automóveis, o IUC é liquidado de acordo com a informação registral oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado; ou seja o IUC não é liquidado de acordo com a informação gerada pela própria Requerida. Assim, não foi a Requerida que deu azo à dedução do pedido de pronúncia arbitral, mas sim a própria Requerente que, aliás, só agora subministrou prova documental relativa à transmissão da propriedade, o que não ocorreu em sede de prévio procedimento administrativo, pelo que deverá ser a Requerente condenada ao pagamento das custas arbitrais decorrentes do presente pedido, nos termos do artigo 527º/1 do Novo Código de Processo Civil, ex vi artigo 29º/1 – e) do RJAT, em linha, aliás, com questão similar decidida no âmbito do processo nº 72/2013-T, que correu termos neste centro de arbitragem.

Conclui, pela improcedência do pedido arbitral, pugnando pela legalidade dos actos tributários impugnados e pela absolvição da Requerida no pedido.

 

 

II. QUESTÕES A DECIDIR

 

8.Atendendo às posições das Partes assumidas nos argumentos apresentados, ao Tribunal cumpre decidir as seguintes questões:

1ª) Do vício de falta de fundamentação;

2ª) Da incidência subjectiva do IUC, dos efeitos do registo automóvel e da eventual existência ou não de uma presunção ilidível nesta matéria;

3ª) Da prova de transmissão da propriedade dos veículos e da ilisão da presunção;

4ª) Do direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

5ª) Da responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais.

 

 

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

 

A)    Factos Provados

 

9.Como matéria de facto relevante para a decisão a proferir, o Tribunal dá por assente os seguintes factos:

1º) A Requerente BANCO A SA, sucedeu na posição da sociedade B, SA, como resulta demonstrada pelo teor da acta junta ao pedido arbitral e informação da inscrição do acto de dissolução da sociedade, por força de ser accionista única da sociedade dissolvida em 31 de Dezembro de 2008;

2º) A Requerente é uma instituição de crédito cuja actividade substancial consiste no financiamento ao sector, através da celebração, entre outros, de contratos de locação financeira e de aluguer de longa duração (ALD), destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis;

3º) A Requerente foi notificada para proceder ao pagamento de 553 liquidações de imposto único de circulação, relativamente aos anos de 2009 a 2012, referentes a 210 veículos com as matrículas devidamente identificadas nas liquidações de IUC juntas aos autos como documentos nºs 1 a 210 em anexo ao pedido arbitral, todos devidamente discriminados na tabela junta à PI como anexo A, que aqui se dão por integralmente reproduzidas;

) Todos os veículos automóveis referenciados nas liquidações de IUC foram adquiridos pelos respectivos locatários (clientes da Requerente) do termo do contrato, em data anterior à dos factos tributários, conforme resulta do teor das facturas mencionadas na listagem supra mencionada, com excepção dos veículos automóveis identificados com as matrículas … e …, como resulta dos documentos juntos aos autos com os documentos nºs 211 a 420;

5º) Estas últimas viaturas, foram adquiridas, não pelos anteriores locatários, mas por terceiros a quem aqueles indicaram que fossem transmitidas as viaturas e facturados os correspondentes valores residuais;

6º) As liquidações de imposto foram emitidas e notificadas para pagamento à Requerente, as quais totalizam o valor global de €23.721,41.

7º) A Requerente efectuou o pagamento de todas as liquidações de imposto impugnadas nos autos, o que se comprova pelos documentos juntos com os nºs 1 a 210 em anexo ao pedido arbitral;

8º) À data dos factos tributários, as viaturas automóveis referenciadas nas liquidações de IUC aqui impugnadas encontravam-se inscritas no registo automóvel na titularidade da B, na qualidade de proprietária;

9º) À data dos factos tributários as viaturas identificadas nas liquidações impugnadas encontravam-se registadas no registo automóvel na titularidade da «B» na qualidade de proprietária;

10º) Os adquirentes das viaturas em causa nos autos não procederam ao oportuno registo, pelo que nas bases de dados da Conservatória do Registo Automóvel, a Requerente constava ainda como proprietária dos mesmos;

11º) Para prova dos factos supra descritos a Requerente juntou aos autos cópias facturas respeitantes ao pagamento do valor residual previsto nos contratos de locação financeira como condição de aquisição da propriedade das viaturas identificadas em cada uma das liquidações de imposto impugnadas nos autos, constantes dos documentos juntos à PI – Cfr. Docs. 1 a 211 e 212 a 420; e ainda os extractos contabilísticos juntos aos autos 8/07/2014 e que se dão por integralmente reproduzidos;

12º) À data dos actos tributários de liquidação a AT dispunha de elementos de informação suficientes sobre a situação contratual das viaturas em causa nos presentes autos, nomeadamente, a existência dos contratos de locação de financeira e a identificação dos respectivos locatários, como resulta inequivocamente do conteúdo da informação constante da página 13 do PA junto aos autos pela AT, onde consta: “não podendo este SF explicar qual o critério que causou a emissão das liquidações em nome do proprietário mesmo quando se encontrava averbado o locatário no sistema…”- Cfr. PA junto aos autos;

13º) À data dos factos tributários a AT dispunha de informação suficiente sobre a existência dos contratos de locação financeira bem assim como dos constantes da contabilidade da Requerente que a AT não podia desconhecer, bem assim como de todos os que lhe foram comunicados já no âmbito do presente pedido de pronúncia arbitral.

 

 

B)    FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

 

10. A decisão sobre a matéria de facto nos termos supra descritos tem por base a prova documental que as Partes juntaram ao presente processo, mormente a Requerente, em anexo ao pedido formulado e no Processo Administrativo, junto aos autos pela Autoridade Tributária. O Tribunal considerou em especial, que a realidade factual subjacente às situações negociais respeitantes aos diversos veículos, comprovados pelos documentos juntos em anexo ao pedido arbitral, bem assim como pelos documentos posteriormente juntos aos autos, conforme deliberado na reunião de 10 de Julho de 2014 (extractos contabilísticos comprovativos dos pagamentos das facturas juntas em anexo à PI), respeitantes às viaturas objecto das liquidações impugnadas e ainda na informação constante do processo administrativo.

 

C) FACTOS NÃO PROVADOS

 

11.Não existem outros factos dados como não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação do pedido foram dados como provados.

 

 

IV – FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

12. Fixada a matéria de facto, importa conhecer das questões de direito supra indicadas, correspondendo, em síntese, às questões de ilegalidade suscitadas pela Requerente no presente pedido arbitral. Vejamos pois a primeira questão a decidir.

 

1ª- Do Alegado vício de falta de fundamentação

 

13.A Requerente alega violação do dever de fundamentação, dado que “os actos tributários não mencionarem expressamente os motivos que conduziram à emissão das liquidações o que consubstancia vício de falta de fundamentação”.

Logo a seguir, porém, a Requerente afirma que subentende que a razão subjacente às liquidações seja o facto da transmissão da propriedade pelos locatários, nos termos previstos nos respectivos contratos, não ter sido registada na Conservatória de Registo Automóvel. A isto se resume a alegação do vício de falta de fundamentação por parte da Requerente.

 Não resta dúvida que a fundamentação é uma exigência dos actos tributários em geral, sendo uma imposição constitucional (268º da CRP) e legal (art.º 77º da LGT). Pode dizer-se, sucintamente, que é entendimento pacífico entre nós, quer na doutrina, quer na jurisprudência, que a fundamentação legalmente exigível deve reunir um conjunto mínimo de características.

A fundamentação é da estrita iniciativa e obrigação da administração (poder/dever), entendendo-se como oficiosa, não sendo admissíveis fundamentações a pedido e deve acompanhar a prática do acto, não fazendo sentido fundamentações a posteriori. A fundamentação deve, ainda, ser clara, ou seja, compreensível por um destinatário médio, evitando conceitos polissémicos ou profundamente técnicos e deve conter todos os elementos essenciais que foram determinantes na decisão tomada, indicando as normas legais e a motivação do acto.

Apesar do supra exposto, é sabido que a fundamentação pode ser também expressa ou tácita, por remissão para anteriores pareceres, informações ou propostas, como aliás resulta expressamente do disposto no nº1, do artigo 77º da LGT.

            Dito isto, há que salientar, que sendo o acto tributário um acto de assinalável onerosidade na esfera jurídica do seu destinatário, o mesmo deve ser cuidadosamente fundamentado de modo a convencer o contribuinte da legalidade subjacente e dos critérios que presidiram à sua quantificação.

            Porém, é também hoje pacífico, para a doutrina e para a jurisprudência que a fundamentação deve ser expressa através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito, equivalendo à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, por contradição ou insuficiência não esclareçam concretamente a motivação do acto. [2]

 

            14. No caso dos presentes autos, em cada um dos actos tributários impugnados encontra-se devidamente identificado, com indicação do tributo em causa (IUC), dos períodos a que respeita o imposto, bem assim como do montante apurado na respectiva liquidação e data limite para pagamento.       

Precisamente, por isso, a Requerente entendeu perfeitamente (ou subentendeu), enquanto destinatária dos actos tributários, toda a situação de facto e de direito subjacente, compreendeu o seu conteúdo. Ao que acresce que a fundamentação se há-de aferir de acordo com “as circunstâncias concretas, entre as quais avultam as do tipo de acto, as da participação do contribuinte no procedimento e a sua extensão (…)”[3].

Nos presentes autos a Requerente (enquanto sucessora da B) enquanto proprietária que foi das viaturas em causa, parte contratual nos contratos de locação financeira referenciados nos autos e devidamente documentados, estava em condições de identificar as circunstâncias concretas subjacentes ao procedimento que terá conduzido às liquidações impugnadas, em termos suficientes para as compreender esclarecidamente.

            A este respeito, não pode deixar de se referir que, a qualidade da Requerente, enquanto instituição financeira de referência no mercado, naturalmente reforça a sua aptidão para compreender a sucessão de factos que revelam a fundamentação do ato que lhe foi notificado, como de facto compreendeu, o que sobejamente revelou no pedido arbitral que apresentou. [4]

           

15. A Requerente revela, pois, uma total compreensão dos fundamentos subjacentes aos actos tributários, com os quais, está em desacordo, mas plenamente ciente do seu alcance. Da confrontação de todos os elementos constantes do próprio pedido arbitral, assente no conteúdo dos actos tributários notificados à Requerente, enquanto destinatária, é possível concluir que esta compreendeu devidamente os fundamentos dos mesmos, como resulta evidenciado na argumentação aduzida.

Entendendo-se, pois, que resulta suficientemente percetível para um destinatário médio, colocado na posição do destinatário concreto, qual a fundamentação dos atos tributários impugnados nos presentes autos, deverá a alegação do vício de falta de fundamentação improceder.

 

16. Posto isto, deparamo-nos com a segunda questão a decidir nos presentes autos e que é a de saber se a Requerente deve ser ou não considerada como sujeito passivo de IUC à luz do quadro jurídico aplicável. Importa, pois, decidir se a Requerente deve ser qualificada como sujeito passivo do Imposto Único de Circulação, liquidado em relação aos anos de 2009 a 2012, quanto aos veículos identificados no pedido de pronúncia arbitral.

Como a própria Requerente refere no pedido arbitral a questão de fundo a decidir é a de saber se a circunstância de a transmissão dos veículos identificados na tabela junta como ANEXO A, aos seus anteriores locatários (ou, nos casos pontuais acima identificados, a terceiros por aqueles indicados), findo o contrato de ALD, não ter sido registada junto da Conservatória do Registo Automóvel, torna essa transmissão inoponível à AT, para os efeitos de proceder à cobrança do imposto junto do seu anterior proprietário.

 

A decisão desta questão implica apreciar os termos da configuração da incidência subjetiva do IUC à luz do disposto no art. 3.º, do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), nomeadamente, a questão de saber se a incidência subjetiva assenta estritamente na inscrição da titularidade do veículo no Registo Automóvel, ou se, o registo opera apenas como uma presunção de incidência tributária, ilidível, em conformidade com o disposto no art. 73.º, da Lei Geral Tributária. Sobre esta matéria é já abundante e bastante definida a jurisprudência arbitral vertida em diversas decisões mencionadas pelas partes e em algumas outras proferidas posteriormente à apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral, que serão referidas oportunamente.

           

 

 

2ª - Da incidência subjectiva do IUC, dos efeitos do registo automóvel e da eventual existência ou não de uma presunção ilidível

 

17.O quadro jurídico fundamental aplicável nesta matéria é o previsto nos artigos 1º a 6º, do CIUC, aprovado pela Lei nº 22-A/2007, de 29 de Junho.

 O artigo 1º do CIUC define a incidência objectiva do imposto, distinguindo os veículos por categorias especificadas, norma que se afigura clara e sem dificuldades de aplicação. Porém, o mesmo já não sucede com a norma de incidência subjectiva contida no nº1, do artigo 3º do CIUC, a qual está na origem do presente litígio e constitui, assim, questão a decidir no caso em apreciação.

A análise de ambos os preceitos (artigos 1º e 3º) permitem concluir que no funcionamento do IUC o registo automóvel tem um papel fundamental. O que importa, pois, é determinar qual o sentido e alcance da norma de incidência subjectiva constante do artigo 3º, nº 1, do CIUC e da eventual existência ou não de uma presunção ilidível, conexionada com a questão dos efeitos jurídicos do registo automóvel, suscitada pela Requerente.

Sobre esta questão, as posições das partes resumem-se do seguinte modo:

- para a Requerente esta não pode ser considerada sujeito passivo de IUC, ainda que, no ano a que se reportam os IUC em causa, a transmissão dos referidos veículos não estivesse devidamente registada junto da Conservatória do Registo Automóvel já que o registo, ou a sua falta não podem ser considerados elemento determinante da responsabilização tributária da Requerente;

- para a Requerida o artigo 3º, nº1, do CIUC consagra uma norma de incidência tributária e não mera presunção ilidível.

Vejamos pois o que resulta do regime legal em vigor e a sua aplicação ao caso concreto dos autos.

 

Dispõe o artigo 3º do CIUC que:

 

“ARTIGO 3º

 

INCIDÊNCIA SUBJECTIVA

 

1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

 

2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

 

 

Estabelece o nº1, do artigo 11º, da LGT que:

 

 “Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis”.

 

 

A interpretação e aplicação da norma jurídica, pressupõe a realização de uma actividade interpretativa, a qual deve ser objectiva, equilibrada, e conforme com a letra e o espírito da lei. Qualquer texto, e a lei não é excepção, comporta múltiplos sentidos e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Por essa razão, embora a letra da lei seja “o fio condutor” do intérprete, ela há-de ser interpretada tendo em conta os objectivos subjacentes, “a ratio” ou a motivação do legislador ao estabelecer a norma em análise.[5]

 

A estes elementos acresce um outro segundo o qual a interpretação da norma jurídica há-de respeitar a “unidade do sistema jurídico”, a sua coerência e lógica intrínseca. O artigo 9º, do Código Civil (CC), fornece as regras e os elementos fundamentais para a interpretação da norma jurídica, ao qual também obedece a interpretação da lei fiscal deve obedecer ao disposto naquele normativo, o qual começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”.[6]

A estes princípios gerais acrescem, ainda, os princípios constantes da LGT, nomeadamente no artigo 73º, que estabelece que as presunções contidas em normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.

No que se refere à questão em análise, há que salientar o contributo das decisões arbitrais já proferidas nos processos nºs 14/2013-T, de 15 de Outubro, 26/2013-T de 19 de Julho, 27/2013-T, de 10 de Setembro, 217/2013-T de 28 de Fevereiro e, mais recentemente, nas decisões proferidas nos processos 286/2013-T, de 2 de Maio de 2014, 293/2013-T, de 9 de Junho de 2014, 46/2014-T de 5 de Setembro entre outros, revelando uma apurada reflexão sobre a questão fundamental em apreciação. É, pois, neste quadro de fundo, utilizando os princípios hermenêuticos fundamentais acabados de referir, acolhidos pela Jurisprudência dos nossos tribunais superiores, que devemos procurar encontrar a interpretação adequada aos normativos em presença.

 

 

18. Assim, quanto à questão de saber, face ao teor literal do disposto no nº1, do artigo 3º, do CIUC, qual o alcance da expressão “considerando-se como tais”, dado que na actual versão o legislador não usou o termo “presumem-se” (o qual constava do extinto Regulamento do Imposto Sobre Veículos), entende o Tribunal que só pode ser o seguinte: o legislador presume (considera) que os proprietários são as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados. Significa isto que, tal presunção, implícita, é naturalmente ilidível nos termos previstos no artigo 73º da LGT.

A presunção estabelecida no artigo 3º, nº1, do actual CIUC, já estava consagrada nas versões anteriores dos códigos abolidos com a entrada em vigor do CIUC. Já o artigo 3.º do Regulamento do Imposto Sobre Veículos (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78) estabelecia que: “o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados”. Do mesmo modo, o art. 2.º, do Regulamento dos Impostos de Circulação e de Camionagem (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 116/94) estabelecia que: “são sujeitos passivos do imposto de circulação e do imposto de camionagem os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou colectivas em nome das quais os mesmos se encontram registados”.

 

Na verdade, na versão actual do Código apenas mudou o verbo, optando agora o legislador pela expressão “considerando-se”. Certo é que, entre as versões legislativas anteriores e a actual entrou em vigor a LGT, que consagrou expressamente o princípio contido no artigo 73º, do qual resulta que em matéria de incidência tributária qualquer presunção admite sempre prova em contrário. Logo, torna-se indiferente a adopção de uma presunção expressa ou implícita, porquanto, uma como a outra são igualmente ilidíveis.

Assim, entende-se que o facto de o legislador, na actual versão do CIUC, ter optado por uma presunção implícita (usando a expressão “considerando-se”) em vez de uma presunção expressa (com recurso à expressão “presumindo-se”), como acontecia anteriormente, não traduz uma alteração substancial no que respeita à incidência subjectiva do imposto. Não é, pois, a titularidade constante do registo automóvel condição, por si só determinante de incidência tributária em sede de IUC, mera presunção ilidível.

 

19. Acresce que, contrariamente ao que vem alegado pela Requerida, podemos facilmente apontar diversos exemplos, extraídos do ordenamento jurídico tributário, em que o legislador optou pela utilização do verbo “considerar”, com um sentido presuntivo.     Além do que, como já se disse supra, tratando-se de norma de incidência tributária, nunca seria admissível a consagração de uma presunção inilidível. Como afirmam, Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação ao nº 3, do artigo 73º, da LGT, “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”. E, são muitos os exemplos de normas em que é utilizado o verbo “considerar” para estabelecer presunções ilidíveis, como sucede com o disposto nº 2 do artigo 21º do CIRC, no artigo 89-A da LGT ou no artigo 40º, nº1 do CIRS entre outros. Alega, porém, a Requerida na resposta apresentada, que este mesmo vocábulo “considerando-se” também é normalmente utilizado, pelo ordenamento jurídico fiscal, para definir situações distintas de presunções. Ora, tal afigura-se normal, nomeadamente, no caso de outras normas fiscais em que o legislador utilizou a fórmula “considera-se” ou “consideram-se”, mas atribuindo-lhe outro sentido, já que se trata de expressões que, dependendo do contexto, podem assumir uma pluralidade de sentidos, sem que daí possa extrair-se a conclusão que pretende a Requerida.

 

20.Tendo em conta que o sistema jurídico deve formar um todo coerente, os exemplos acima referidos, bem como a doutrina e jurisprudência indicadas, permitem concluir que não é só quando é usado o verbo “presumir” que estamos perante uma presunção, mas também o uso de outros termos ou expressões, como o termo “considera-se” podem servir de base a presunções. E, como se referiu supra, sendo o elemento literal o primeiro instrumento de interpretação da norma jurídica, em busca do pensamento legislativo, importa confrontá-lo com os demais elementos de interpretação, nomeadamente o elemento racional ou teleológico, o elemento histórico e o sistemático.

E, também, nesta linha de reflexão o Tribunal não pode acompanhar a argumentação aduzida pela Autoridade Tributária. No que toca ao elemento histórico, há que referir, que desde a origem do imposto de circulação, com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 599/72 de 30 de Dezembro, foi, explicitamente, consagrada uma presunção, relativamente aos sujeitos passivos do imposto como sendo aqueles em nome de quem os veículos se encontravam matriculados ou registados. Essa versão da lei usava a expressão literal “presumindo-se como tais”.

Porém, atendendo aos fins do imposto em presença, há que reconhecer que o uso da expressão “considera-se”, na atual versão, contempla uma expressão com um efeito semelhante àquela, consubstanciando, igualmente, uma presunção. Isso mesmo sucede na formulação contida no nº 1, do art.º 3º, do CIUC, em que se consagrou uma presunção, revelada por via do uso da expressão “considerando-se”, de significado semelhante e de valor equivalente à expressão “presumindo-se”, em uso desde a criação do imposto em questão. O uso da expressão “considerando-se” justifica-se, tão somente, por se afigurar mais em sintonia com o reforço conferido à propriedade do veículo, que passou a constituir o facto gerador do imposto, nos termos constantes do artigo 6º do CIUC.

Pelo que, à luz do elemento literal da interpretação, nada obsta ao entendimento de que, o disposto no nº1, do art. 3.º, do CIUC, consagra uma presunção ilidível.

Assim, quanto à incidência subjetiva do imposto, é de concluir que não se verificam alterações relativamente à situação anteriormente em vigor no âmbito do Imposto Municipal sobre Veículos, Imposto de circulação e Imposto de Camionagem, como aliás é amplamente reconhecido pela doutrina, continuando a valer uma presunção ilidível nesta matéria.[7]

Este entendimento é, ainda, o único que se afigura adequado e conforme ao princípio da verdade material e da justiça, subjacentes às relações fiscais, com o objetivo de tributar o real e efectivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário, por constar do registo automóvel.

E, neste sentido, também as decisões arbitrais proferidas nos processos nºs 150/2014-T e 220/2014 T confirmam o mesmo entendimento já plasmado em decisões arbitrais anteriores, entre as quais, a que é invocada nos autos pela Requerente. Ainda a este propósito, e no mesmo sentido, refere o Acórdão arbitral nº 63-2014-T, de 15 de Setembro, que: “(…) se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjectiva do imposto numa ficção legal, em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjectiva. (…) E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3º, n.º 1, só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto.”

 

21.Por ser assim, tem de se permitir ao titular inscrito no registo automóvel a possibilidade de apresentar elementos probatórios bastantes para a demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo, e que inicialmente, e em princípio, se supunha ser o verdadeiro proprietário. Caso contrário, aceitar-se-ia a supremacia da verdade formal do registo sobre a verdade material, e seria admitir a violação grosseira dos princípios fundamentais fiscais enunciados e, ainda, do princípio contido no artigo 73º, da LGT segundo o qual não existem presunções inilidíveis em matéria de incidência fiscal.

A tudo o que se deixa supra exposto acresceria a violação dos princípios da legalidade, da proporcionalidade e da justiça, bem como o do inquisitório, consagrados, respectivamente, nos artigos 55º e 58º da LGT.

De resto, é possível extrair, ainda, um outro argumento do disposto no artigo 7º do Código de Registo Predial (o qual constitui a base jurídica fundamental em matéria de registo de propriedade) o qual dispõe que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”. À luz do princípio da uniformidade e coerência intrínseca do sistema jurídico, nenhum fundamento se afigura aceitável para que o princípio vigente no registo de propriedade em geral, sofresse uma inflexão ou mesmo “atropelo” injustificado em matéria de registo automóvel.

 

22. Mas, se alguma dúvida persistisse, sempre se diria que, quanto aos elementos de interpretação de pendor racional ou teleológico, a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei nº 22-A/2007, de 29/06, é bastante expressiva ao esclarecer que a reforma da tributação automóvel é concretizada por via da deslocação de parte da carga fiscal do momento da aquisição dos veículos para a fase de circulação e visa “formar um todo coerente” que, embora destinado à angariação de receita pública, pretende que a mesma seja angariada na medida dos custos ambientais que cada indivíduo provoca à comunidade”, acrescentando-se, a propósito do imposto em causa e dos diferentes tipos e categorias de veículos, que como elemento estruturante e unificador (…) consagra-se o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”, referindo, ainda, ser (…) este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate (…)”.

 

Assim, a lógica e racionalidade do novo sistema de tributação automóvel pressupõe e almeja um sujeito passivo coincidente com o proprietário do veículo, no pressuposto de ser esse, e não outro, o real e efetivo sujeito causador dos danos ambientais, tal como decorre do princípio da equivalência inscrito no art.º 1º, do CIUC. Este princípio da equivalência, que informa o actual imposto único de circulação, tem subjacente o princípio do poluidor - pagador, e concretiza a ideia, nele inscrita, de que quem polui deve, por isso, pagar. Trata-se, afinal, de alcançar as externalidades ambientais negativas que advêm da utilização dos veículos automóveis, sejam assumidos pelos seus proprietários e/ou pelos utilizadores, como custos que só eles deverão suportar.

 

A este propósito, a posição vertida na recente Decisão Arbitral nº 286/2013-T de 2 de Maio de 2014, é bastante esclarecedora ao afirmar que:

 

“É este princípio (da equivalência) que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate, o emprego comum de uma base tributável específica, a revisão do quadro de benefícios fiscais vigente e a afectação de uma parcela da receita aos municípios da respectiva utilização.

Ora, pretender, como o faz a Requerida, que o legislador, no art. 3.º, n.º 1 do CIUC, fixou, seja qual for o meio técnico subjacente, a incidência subjetiva do imposto nas pessoas em nome de quem os veículos se encontram registados, com total independência de serem ou não, no período tributário relevante, titulares do direito de utilização do veículo, maxime da sua propriedade, implicaria desprezar aquela finalidade que preside à normatividade tributária, bem manifestada na incidência objectiva e na base tributável associada às diversas categorias de veículos (cfr. arts 2.º e 7.º do CIUC). É que uma inscrição registal, sem correspondência com a titularidade subjacente, nenhuma valia possui para dar satisfação e cumprimento a tal finalidade, pois não são as pessoas em nome de quem os veículos se encontrem inscritos quando não sejam titulares de direitos sobre a sua utilização que provocam custos ambientais e viários, mas antes tais custos ambientais e viários são causados pelos efetivos utilizadores dos veículos, nos termos das situações jurídicas substantivas pertinentes, mesmo que não constem, como deviam, do registo automóvel. O registo, na verdade, em nada depõe ou serve quanto ao princípio da equivalência estabelecido no art. 1.º do CIUC. Aliás, assumir que o elemento determinativo da incidência tributária subjetiva é simples e exclusivamente o registo automóvel também não permite afirmar uma ligação com uma qualquer manifestação de capacidade contributiva relevante, o que, via de regra, nos tributos não estritamente comutativos, é imprescindível, já que deve existir, sem prejuízo de exigências de praticabilidade, uma qualquer ligação efetiva entre o imposto e um pressuposto económico materialmente relevante capaz de fundamentar o tributo. A razão de ser da figura tributária afasta, pois, a ideia de que a incidência respectiva se prende estrita e exclusivamente com a própria inscrição registal da titularidade dos veículos tributários e não com as situações substantivas atributivas do direito de utilização dos veículos (art. 3.º, nºs 1 e 2 do CIUC) a que o registo se destina a dar publicidade (cfr. art. 1.º e art. 5.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro, com as alterações posteriores, que regula o registo automóvel).”[8]

 

Esta é, também, a posição do tribunal arbitral nos presentes autos, sufragando as posições já anteriormente plasmadas nas diversas decisões arbitrais supra mencionadas, pelo que, se entende que a presunção ilidível, inscrita no nº1, do art.º 3º, do CIUC, corresponde à interpretação mais ajustada à prossecução dos objectivos almejados pelo legislador.

 

 Outro entendimento implicaria aceitar a possibilidade de tributar pessoas colectivas ou físicas sem responsabilidade na produção de quaisquer danos ambientais, enquanto os reais causadores desses mesmos danos não estariam sujeitos ao imposto, frustrando em absoluto os propósitos reguladores da própria lei, ou seja, a sua verdadeira ratio legis.

Por tudo o que fica exposto, também não se pode sufragar o entendimento contido na sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, no âmbito do processo nº 210/13.0BEPNF, invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira nos presentes autos, nomeadamente, quando afirma que “a propriedade e a posse efectiva do veículo é irrelevante para a verificação da incidência subjectiva e objectiva e do facto gerador do imposto”.   Sentença, que, como bem refere a Requerente está longe de representar um entendimento pacífico sobre esta questão,

 

23. Em síntese, percorridos todos os elementos de interpretação relevantes, todos apontam no sentido de que a expressão “considerando-se” tem um sentido equivalente à expressão “presumindo-se”. Em consequência, resulta do disposto no nº 1, do art.º 3º, do CIUC, a consagração de uma presunção legal, que, face ao disposto no art.º 73º, da LGT, só pode entender-se como ilidível. Esta presunção poderá ser afastada ou ilidida caso, no âmbito do procedimento de liquidação em curso, se vier a demonstrar não ser aquele o verdadeiro proprietário do veículo, sujeito passivo do imposto em causa. Dir-se-á que o legislador, no novo CIUC, não sentiu a necessidade de manter na nova norma de incidência uma presunção expressa e ilidível, uma vez que após a entrada em vigor da Lei Geral Tributária (1999) “as presunções consagradas nas normas de incidência admitem sempre prova em contrário”. Logo, face ao teor do artigo 73º, da LGT, seria tecnicamente incorrecto usar a expressão “presumindo-se como tais, até prova em contrário”, constante da anterior versão em vigor.

À luz da nova norma de incidência o sujeito passivo do IUC é o proprietário ou o locatário financeiro ou, ainda, o adquirente com reserva de propriedade, ainda que não figurem no registo automóvel, desde que seja feita prova bastante para ilidir a presunção legal proveniente do registo, por força do princípio da equivalência consagrado legalmente.

 

           

Chegados aqui resta agora analisar a questão de saber se, nos presentes autos, a Requerente, apresentou prova bastante para ilidir a presunção, comprovando a transferência da propriedade, dado que, a Requerida alega que as facturas não são, por si só, documentos aptos a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda.

 

 

3ª) Da prova de transmissão da propriedade dos veículos e da ilisão da presunção

 

24. Alega a Requerida a falta de prova da transmissão da propriedade dos veículos”, já que os documentos juntos pela requerente para fazer a prova da transmissão da propriedade são facturas, as quais são documentos unilaterais, dos quais não se pode extrair a existência efectiva da transação subjacente, nos termos em que vem alegada pela Requerente.

A Requerida alega a falta de prova bastante apresentada pela Requerente, por considerar que as facturas não são, por si só, documentos aptos a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda. Agora reforça a sua tese nas decisões arbitrais nºs 150 e 220/2014 T, bem assim como no Acórdão arbitral nº 63/2014-T. Todavia, este tribunal não acompanha, com o devido respeito, o entendimento aí vertido quanto ao valor probatório das facturas nem quanto ao rigor das exigências probatórias para afastamento da presunção, pelas razões a seguir enunciadas.

A este propósito esclareça-se que a junção aos autos das referidas decisões foi admitida, apesar do momento em que a mesma ocorreu, no absoluto cumprimento do princípio do contraditório e atendendo ao interesse da questão suscitada pela AT. Foi dada oportunidade à Requerente para se pronunciar, o que fez por requerimento junto aos autos em 6 de Outubro de 2014.

Vejamos, pois, a questão do valor probatório dos documentos juntos para os efeitos pretendidos pela Requerente, ou seja, para a ilisão da presunção resultante do registo automóvel.

 

Importa referir que as viaturas em causa nos autos foram alvo de contratos de locação financeira, no âmbito da actividade económica exercida pela Requerente, ou seja, as transações ocorreram no âmbito da realização do seu objecto social. Não resta dúvida que as viaturas em causa foram adquiridas pela Requerente apenas com o fim de as ceder aos locatários no âmbito dos contratos de locação financeira ou ALD contratualizados. Isso mesmo é, aliás, reconhecido pela própria AT na informação contida no PA junto aos autos, da qual se extrai que os respectivos locatários estavam averbados na informação disponível no Serviço de Finanças.

A este propósito não podemos ignorar as especificidades contidas no CIUC no que se refere à regra da incidência subjectiva do IUC na vigência do contrato de locação financeira ou ALD. Esta questão foi já tratada pormenorizadamente na Decisão Arbitral nº 14-2013 T, de 15 de Outubro, da qual destacamos em síntese a seguintes conclusões, às quais este tribunal adere, a saber:

“(…) na vigência de um contrato de locação financeira, embora o locador continue proprietário do bem em causa, só o locatário tem o gozo exclusivo do bem locado, usando-o como se fosse ele o verdadeiro proprietário. (…) É certo que o locatário financeiro é equiparado a proprietário para efeitos do nº 1 do artigo 3º do CIUC, o mesmo é dizer para ser sujeito passivo do IUC (Cfr. nº 2 do artº 3º). (…) Assim sendo, como é, não dispondo o locador por imposição legal e contratual do potencial de utilização do veículo e tendo o locatário o gozo exclusivo do automóvel, reafirmamos a conclusão a que já tínhamos chegado de que, em nosso entender, manda a ratio legis do CIUC que nos termos do referido nº 2 do artigo 3º deste Código seja o locatário o responsável pelo pagamento do imposto, uma vez que é ele que tem o potencial de utilização do veículo e provoca os custos viários e ambientais a ele inerentes.  À mesma conclusão se chega quando se verifica a importância dada aos utilizadores dos veículos locados no artigo 19º do CIUC. Com efeito, nos termos do disposto neste artigo, as entidades que procedam, designadamente, à locação financeira de veículos ficam obrigadas a fornecer à AT (ex-DGCI), a identidade fiscal dos utilizadores dos veículos locados para efeitos do disposto no artigo 3º do CIUC (incidência subjectiva), bem como do nº1 do artigo 3º da Lei da respectiva aprovação, uma vez que nos termos desta norma da Lei nº 22-A/2007, se a receita gerada pelo IUC for incidente sobre veículos objecto de aluguer de longa duração ou de locação operacional, deve ser afecta ao município de residência do respectivo utilizador (sublinhados nossos).

(…)

Aqui chegados, somos de opinião que se na data da ocorrência do facto gerador do imposto vigorar um contrato de locação financeira que tem como objecto um automóvel, sujeito passivo do imposto não é o locador mas sim, à luz do nº 2 do artigo 3º do CIUC, o locatário, o que, a nosso ver, faz todo o sentido, dado ser este que tem o gozo do veículo e, como tal, o inerente potencial poluidor, independentemente do registo do direito de propriedade permanecer em nome do locador, como seguidamente melhor se explica.”


            E conclui:

(…)Uma das obrigações do locador é vender o bem ao locatário, caso este queira. É patente que com a celebração do contrato de compra e venda o até então locatário passa a proprietário de pleno direito passando a estar abrangido directamente pelo nº 1 do artigo 3º do CIUC.”

 

25. No caso dos presentes autos, considerando a matéria de facto considerada como provada e tudo o que vem exposto supra, é de concluir que a Requerente não pode ser considerada sujeito passivo do imposto em nenhum dos actos tributários impugnados, porquanto à data dos factos tributários já não era proprietária das viaturas por as ter alienado a favor dos respectivos locatários ou de terceiros por aqueles indicados. Na verdade nunca foi sujeito passivo de imposto, nem durante a vigência do contrato de locação financeira, por força do disposto no nº 2, do artigo 3º do CIUC, nem depois do locatário (ou terceiro) o adquirir, agora por força do disposto no nº1 do mesmo artigo.

Aliás, é a própria AT que na informação contida a páginas 13 do PA, refere que não tem explicação para o facto das liquidações oficiosas não terem sido emitidas em nome dos locatários já que estes se encontravam averbados no sistema de informação das finanças.

 Certo é que, as duzentas e dez viaturas referenciadas nas liquidações de imposto aqui impugnadas, com referência aos períodos em causa (anos de 2009 a 2012), foram adquiridas nos termos contratualmente previstos pelos respectivos locatários (das quais duas foram adquiridas por terceiros indicados por estes) em datas anteriores à da ocorrência dos factos tributários.

Assim, constata-se que a Requerente à data dos factos não era, sujeito passivo de IUC, com referência às viaturas mencionadas nas liquidações de imposto impugnadas, à luz dos princípios legalmente contidos no nº 1, do artigo 3º do CIUC, nem antes o foi, por força do disposto no nº2 do mesmo normativo legal.

Mas, para que não reste dúvida, registe-se o teor da informação interna, emitida pelo Serviço de Finanças, constante do PA, a páginas 13:

“ (…) não podendo este SF explicar qual o critério que causou a emissão das liquidações em nome do proprietário mesmo quando se encontrava averbado o locatário no sistema, salvo melhor opinião, deve ser tido em conta o seguinte:

(…) Estamos perante liquidações oficiosas precedidas de notificação de audição prévia (…)

Após as audições foi decidido pela anulação das LO e consequente notificação ao locatário quando reuniam condições para tal. Ora, grande parte destas liquidações pagas pelo Banco respeitam ao ano de 2009, o qual já se encontra caduco…”

 

Ou seja, é a própria AT que reconhece não ter explicação para a emissão das liquidações oficiosas em nome do proprietário quando se encontravam averbados no sistema os respectivos locatários. Reconhece ainda que, neste tipo de casos, após as audições prévias, é prática anular as liquidações oficiosas com a consequente notificação ao locatário. No caso em apreço o procedimento não foi esse apenas por uma razão de conveniência fiscal, a saber: a de grande parte das liquidações oficiosas respeitavam ao ano de 2009, já caduco.

Assim, o próprio entendimento da AT não coincide com o que veio a invocar na sua resposta.

 

Entende pois este tribunal, em sintonia com o já decidido em decisões arbitrais anteriores, que enquanto vigoraram os contratos de locação financeira a Requerente não era sujeito passivo de imposto, mas sim os respectivos locatários, por força do disposto no nº 2 do artigo 3º do CIUC; após ter alienado as viaturas, quer essa alienação tenha ocorrido a favor dos anteriores locatários, quer tenha ocorrido a favor de terceiros por estes indicados, também não o podia ser por força do disposto no nº1, do artigo 3º do CIUC.

 

A Requerente juntou aos autos cópias das facturas e, posteriormente, dos extratos contabilísticos identificativos da entidade e contrato, referentes aos pagamentos de algumas das viaturas mencionadas nos autos. A Requerida não suscitou incidente de falsidade dos documentos juntos aos autos. Não se pronunciou sobre os documentos juntos na dita reunião, apesar do prazo de vista que lhe foi concedido. Não impugnou o valor contabilístico nem o consequente valor fiscal das facturas juntas aos autos, o que questiona apenas é, tão só, o seu valor probatório para revelarem a existência do contrato de compra e venda subjacente à transmissão da propriedade alegada pela Requerente.

Do próprio Processo Administrativo resulta comprovadamente a existência dos ditos contratos de locação financeira, reconhecidos pela AT no teor da informação que antecedeu o parecer da Direcção sobre a não revogação dos actos de liquidação oficiosa impugnados nos presentes autos. Resta, pois, saber se as facturas são documentos probatórios bastante para comprovarem a concretização da transmissão da propriedade que ocorre neste tipo de contratos após o pagamento do valor residual, já que para a presente decisão o tribunal baseia-se fundamentalmente nestes documentos dos quais se extrai a existência da transacção facturada.

 

26. A transmissão da propriedade de um bem móvel, ainda que sujeito a registo, como sucede com um veículo automóvel, opera por mero efeito do contrato, nos termos previstos no artigo 408.º, n.º 1, do Código Civil. O contrato de compra e venda tem natureza real, isto é, a transmissão da propriedade da coisa vendida, ou a transmissão do direito alienado, tem como causa o próprio contrato. As viaturas automóveis são bens móveis, cuja transmissão de propriedade não obedece a formalismo especial.

No direito português o facto que determina a transmissão da propriedade de um bem móvel (ainda que sujeito a registo) é o contrato expresso pela vontade das partes. Tanto assim é que o comprador torna-se proprietário do veículo vendido mediante a celebração do contrato de compra e venda, independentemente do registo o qual se assume como condição de eficácia e oponibilidade face a terceiros adquirentes.

Assim, a prova da existência deste contrato de compra e venda, pode ser efectuada por qualquer meio, sendo a factura um documento contabilístico idóneo para este efeito, como para muitos outros, nomeadamente fiscais, já que a partir deste documento se processam os principais impostos a que esta entidade está sujeita, como sucede com o IRC ou com o apuramento do IVA. Neste sentido, não se aceita que se questione a sua força probatória apenas para o fim da prova da transmissão da propriedade do veículo, sob pena de cairmos num absurdo jurídico de, a partir do mesmo documento, se reconhecer que a transacção existiu para efeitos de incidência de imposto sobre o rendimento mas não existiu para efeitos de comprovar a compra e venda (precisamente a mesma que gerou o dito imposto sobre o rendimento).

De resto os documentos em causa, as facturas apresentadas pela Requerente beneficiam, também, da presunção de veracidade contida no artigo 75º da LGT, a qual corresponde a um desígnio consciente do legislador nesta matéria, que não pode ser esquecido ou devolvido a um segundo plano por razões de mera conveniência fiscal.

A Requerente juntou, ainda, cópia dos documentos comprovativos, em número significativo, dos pagamentos dos valores residuais efectuados com referência aos respectivos contratos de locação financeira subjacentes às transacções das viaturas em causa nos autos, todos devidamente averbados junto do Serviço de Finanças competente, como é reconhecido no PA, pelo que nenhuma dúvida subsiste sobre a demonstração dos verdadeiros titulares dos respectivos contratos e adquirentes dos mesmos, após o pagamento do correspondente valor residual. Por isso mesmo, são os adquirentes das viaturas, os sujeitos à incidência do imposto.

Posto isto, assente que a prova da existência deste contrato de compra e venda, pode ser efectuada por qualquer meio, e que a factura é um documento contabilístico idóneo para este efeito, tal como é para todos os efeitos fiscais, nomeadamente, para determinação de matéria colectável em sede de IRC e/ ou IVA, não se aceita que, como documento possa ser idóneo para este fim (o qual pressupõe a aceitação da transacção subjacente) e não o seja para a prova da própria transacção. Por outro lado, a sua unilateralidade não impede a AT de extrair deste tipo de documento, aliás base essencial de toda a arquitectura fiscal, todas as consequências, como se disse, para efeitos geradores de imposto. Assim, as facturas constituem documentos de prova bastante para este efeito desde que em tempo próprio tenham, também, produzido todos os seus efeitos, nomeadamente fiscais, beneficiando da presunção de veracidade prevista no artigo 75º da LGT.

Dito de outro modo, os documentos (facturas) que serviram para a AT, em tempo, para arrecadar os impostos devidos, precisamente por titularem a existência de transacções comerciais entre os sujeitos nelas identificados, não podem perder a sua validade, apenas e só para os efeitos agora pretendidos pela AT, como meios de prova da venda dos bens em causa. Tal argumentação afigura-se inaceitável à luz dos mais elementares princípios gerais de direito dos quais se extrai, sem dificuldade, a proibição do abuso de direito.

Com efeito, na situação dos autos, estamos perante contratos de compra e venda de coisas móveis, os quais, por aplicação do disposto no artigo 219º do CC, não estão sujeitos a nenhum formalismo especial. A transmissão da propriedade ocorre por mero efeito do contrato e embora estes (veículos automóveis) estejam sujeitos a registo obrigatório, este não tem efeitos constitutivos mas meramente presuntivos quanto à existência do direito de propriedade.

 

27. Por tudo o que se deixa ecposto, nada impede que a prova da transmissão da propriedade possa fazer-se por qualquer meio, desde que se prove que a transmissão ocorreu.

Não se acompanha, pois, neste ponto o entendimento plasmado nas decisões arbitrais juntas aos autos pela AT, de que só a apresentação da declaração de venda, necessária para a inscrição no registo, faz prova da transmissão. Tal entendimento é redutor e tornaria a prova necessária à ilisão da presunção desproporcional e excessivamente onerosa para o vendedor, senão mesmo “diabólica”, tanto mais que não podemos olvidar que a declaração de venda é um documento destinado a ser entregue ao comprador por ser este o interessado e obrigado legal a efectuar o registo.

Exigir como único e exclusivo meio de prova a apresentação da declaração de venda por parte do vendedor corresponderia, na prática, a deixar totalmente desprotegido o vendedor, exigindo-lhe como único meio de prova aquele documento que, é praticamente certo, ele não poder apresentar por não o ter na sua posse.

Acresce que, o ónus da prova exigida ao vendedor para a ilisão da presunção resultante do registo consiste em exigir-lhe que prove que já não era proprietário à data do facto tributário. Estamos, pois, perante a necessidade de fazer a prova de um facto negativo, a tal “prova diabólica”, que não sendo de todo inadmissível, pois que se pode recorrer à prova de factos positivos que a demonstrem, não pode ser dificultada ao ponto de ser inacessível ou impossível de realizar. A acrescida dificuldade da prova de factos negativos deve ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, “uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina “iis quae difficilitoris sunt probationis leviores probationes admittuntur”. [9] 

 

Com efeito, há que considerar que, uma vez que a Requerente tem natureza empresarial e parte substancial da actividade integrante do seu objecto social consiste na celebração de contratos de locação financeira e ALD destinados à aquisição de veículos automóveis, os documentos (facturas/recibo) que foram juntas aos autos pela Requerente, estão subordinados a rigorosas exigências legais de ordem contabilística e fiscal, com implicações, como já se disse, na cobrança de outros tributos.

Assim, e para além de tudo o que se deixa exposto supra, acresce que é a própria legislação tributária que atribui às facturas um valor legal do qual decorre a credibilidade e o valor probatório suficientes para prova da existência da transmissão da propriedade dos bens constantes dos mesmos. Assim, refira-se a título meramente exemplificativo, os normativos legais constantes dos arts. 29º, nº 1, alínea b) e 19º, nº 2 do CIVA ou dos arts. 23º, nº 6 e 123º, nº 2 do CIRC. Ora, desde que essas facturas tenham sido aceites pela AT como credíveis para determinação dos respectivos impostos sobre o valor acrescentado e sobre o rendimento, questão que não está em discussão nos autos, estas gozam da presunção de veracidade, que lhe é atribuída pelo art. 75º, nº 1 da LGT.

 

Caberia à Requerida apresentar e demonstrar indícios concretos e fundamentados de que os documentos contabilísticos apresentados não correspondiam à realidade ou que esta tinha sido alvo de inspecção que conduzisse à sua correcção ou declaração de falsidade. Se tal não sucedeu e esses mesmos documentos serviram de base à liquidação de outros tributos, eles gozam de presunção de veracidade (a qual a AT não afastou) conforme o disposto no nº 2 do art. 75º da LGT, pelo que, são meios idóneos de prova bastante para a ilisão da presunção contida no artigo 3º, nº1 do CIUC, nos termos já supra referidos.

 

 

Nesta conformidade, atenta a relevância muito especial que a legislação tributária atribui à facturação, a circunstância da Requerente completar a apresentação dessa facturação relativa à venda com extractos contabilísticos e listagem minuciosa de clientes que comprovam a existência dos contratos de compra e venda dos veículos, este tribunal entende que a facturação é idónea e goza da presunção de veracidade, que lhe é conferida pelo disposto no art. 75º, nº 1 da LGT.

 

Nestes termos se conclui que estes meios de prova são suficientes para ilidir a presunção assente no registo automóvel e que decorre do art. 3º, nº 1 do CIUC, pelo que à data dos factos tributários a Requerente já não era proprietária dos referidos veículos automóveis.

 

 

28. Por último, quanto à questão dos efeitos do registo, por economia de meios na já longa exposição de motivos da presente decisão, mais uma vez se adere à posição segundo a qual o registo tem efeitos constitutivos decorrendo do mesmo uma presunção ilidível, sendo ainda que a AT não pode ser vista como um terceiro para efeitos de registo. A este propósito destaca-se do Parecer junto aos autos pela Requerente, emitido pelo Senhor Prof. Doutor Agostinho Cardoso Guedes, os seguintes excertos:

 

Uma vez vendido o veículo ao locatário, esta passa a ser proprietário do mesmo, e, nesse caso, passa a ser aplicável o art. 3.º, n.º 1, do CIUC.

Com efeito, o art. 874.º do Código Civil define o contrato de compra e venda como “o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”. Do mesmo modo, o art. 879.º do mesmo diploma prevê como efeito essencial do contrato de compra e venda a “transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito”.

Estamos no domínio dos contratos com eficácia real, ou seja, contratos cuja celebração desencadeia um efeito real, a transmissão, constituição, modificação ou extinção de um direito real, e que, de acordo com o art. 408.º, n.º 1, do Código Civil, se produz “por mero efeito do contrato”

 (…)

Está em causa saber se, e em que medida, a sujeição dos veículos automóveis a registo público altera a regra fundamental do nosso direito privado, constante do art. 408.º, n.º 1, do Código Civil, segundo a qual a propriedade se transmite por mero efeito do contrato, sem necessidade de qualquer outro ato ou formalidade, anterior, contemporânea ou posterior.

Sobre esta questão, o art. 1.º do CRP fixa os objetivos deste registo nos seguintes termos: “O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”.

O art. 7.º do CRP vem completar esta função, estatuindo que o “registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

Ou seja, a função primordial do registo é dar publicidade à situação jurídica dos bens e, além disso, a inscrição no registo de certo bem constitui uma dupla presunção: por um lado, presume-se que o direito existe nos precisos termos em que o registo o define, por outro, presume-se que aquele direito pertence ao titular a favor de quem o mesmo está registado, mais uma vez, nos precisos termos em que o registo o define.

Estas presunções são ilidíveis mediante prova em contrário, como resulta expressamente do art. 350.º, n.º 2, do Código Civil.

Não há, com efeito, qualquer norma no CRP que sugira que o registo é condição de validade dos negócios a ele sujeitos, ou, nos casos de compra e venda, que o mesmo seja condição de produção do respetivo efeito translativo.

(…)

Numa alteração recente ao CRP, o legislador veio esclarecer o que se deve entender por terceiro neste contexto. Assim, segundo o art. 4.º, n.º 4, do CRP “Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”

Porém, a Administração Fiscal não preenche os requisitos legais do conceito de terceiro para efeitos de registo (previsto no art. 5.º, n.º 4, do CRP), razão pela qual não pode exigir ao vendedor o pagamento do imposto devido pelo comprador (proprietário) a partir do momento em que a presunção do art. 7.º seja afastada mediante a prova da respectiva venda.

(…)

Prova a fazer por qualquer meio, uma vez que a lei não exige para este contrato forma escrita.

Assim, e designadamente, a prova pode ser feita por confissão, verbal ou escrita, por testemunhas ou por documento. Neste último caso, por exemplo, a prova pode ser feita por apresentação de uma declaração de venda (incluindo a declaração preparada para efeito de registo) ou de uma factura/recibo da venda do veículo.” (sublinhados nossos)

 

 

     29. Verifica-se, assim, que esta jurisprudência arbitral se concilia com a melhor doutrina produzida entre nós, em conformidade com os princípios vigentes no direito português e em ordem à coerência e uniformidade do sistema jurídico do qual o direito fiscal é parte integrante e deve obediência.

Face, pois, à noção legal e jurisprudencial de “terceiro” para efeitos de registo, julgamos pacífico o entendimento de que a AT não preenche os requisitos daquela noção, não podendo, desta forma, invocar a ausência de registo para justificar a ineficácia dos contratos de compra e venda de veículos automóveis. Assim, se o novo proprietário do veículo não providenciar o registo do seu direito de propriedade, presume-se que este direito continua a ser do vendedor (anterior proprietário) podendo, todavia, esta presunção ser ilidida mediante prova em contrário. Dito de outro modo, desde que se faça prova, por qualquer meio, da respectiva venda. (Cfr. arts. 1º do DL nº 54/75, 7º do CRP e 350º, nº 2, do CC).

As facturas constituem documentos de prova bastante para este efeito, bem assim como outros documentos contabilísticos, tais como os extractos comprovativos dos pagamentos dos valores residuais juntos aos autos. Mas, claramente, o valor probatório da factura de pagamento do valor residual, associado ao contrato de locação financeira em causa, é suficiente para a prova que à Requerente cabia para ilidir a presunção.

Nestes termos, a AT não pode prevalecer-se da não actualização do registo de propriedade, para exigir o pagamento do imposto ao anterior proprietário em nome do qual o veículo se encontra registado se, por qualquer meio, lhe for apresentada prova bastante da respectiva venda.[10]

Segundo o nº 1, do art.º 1, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro (Código de Registo Automóvel na última versão introduzida pela Lei nº 38/2008, de 11 de Agosto), o registo tem por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico. Assim, o registo é também condição de oponibilidade em relação a terceiros adquirentes, o mesmo será dizer que, o adquirente que não proceda ao registo, fica sujeito a uma condição de ineficácia relativa face a terceiros. Isto porque, no direito português, a opção do legislador não foi a de adoptar como regra o registo obrigatório. Por isso mesmo, dispõe o art.º 7º do Código do Registo Predial (CRP), aplicável supletivamente ao registo de automóveis, por força do art.º 29º do CRA, que: “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”

 

Mais uma vez, é forçoso concluir que o registo definitivo mais não constitui do que uma presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos exactos termos do registo, a qual é ilidível, admitindo, por isso, prova em contrário.

E, sobre este ponto, atendendo à função legalmente reservada ao registo de publicitar a situação jurídica dos bens, forçoso é concluir, no caso dos veículos automóveis, que apenas nos permite presumir que existe o direito sobre esses veículos e que o mesmo pertence ao titular inscrito no registo. O registo não tem, pois, natureza constitutiva do direito de propriedade, mas apenas declarativa, daí que o registo não constitua condição de validade da transmissão do veículo do vendedor para o comprador. Pelo que, os adquirentes dos veículos tornam-se, assim, proprietários desses mesmos veículos por via da celebração dos correspondentes contratos de compra e venda, por mero efeito do contrato, com registo ou sem ele.

Esta interpretação é a única que garante perfeita sintonia entre este regime e o que resulta do disposto no nº 1, do art.º 408º, do Código Civil, segundo o qual a transferência de direitos reais sobre as coisas é determinada por mero efeito do contrato, sendo um desses efeitos a transmissão da coisa ou a titularidade do direito (cfr. alínea a), do art.º 879º do referido Código Civil).

Por tudo o que se deixa supra exposto, ilidida a presunção prevista no nº1, do artigo 3º do CIUC forçoso é concluir que a Requerente não assume a qualidade de sujeito passivo de IUC, com referência a nenhuma das viaturas em análise, nos períodos de tributação em referência (anos de 2009 a 2012).

 

Em consequência, a decisão da AT que a conduziu à emissão e cobrança das liquidações de imposto agora impugnadas partiu de um pressuposto errado, segundo o qual, nos termos do disposto no nº1, do artigo 3º, do CIUC, o imposto era devido pelo titular inscrito no registo automóvel, independentemente da posterior demonstração de que a propriedade pertence a terceiro.

Por tudo o que vem exposto supra, entende-se que o disposto no nº 1, do art.º 3º, consagra uma presunção, ilidível perante a apresentação de prova em contrário, prova essa que a Requerente efectuou.

Ao contrário do que alega a Requerida, entende o Tribunal que os documentos apresentados pela Requerente são meios de prova bastante para demonstrar que a propriedade dos veículos em causa, à data dos factos tributários (com referência aos anos de 2009 a 2012), já não pertencia à Requerente, a qual os havia alienada no termo dos respectivos contratos de locação aos respectivos locatários ou a terceiros por estes indicados, o que sucedeu no caso das viaturas com as matrículas … e….

 

 

30. Pelo que se conclui que, no caso dos autos, se os referidos locatários, adquirentes dos veículos (bem assim como os terceiros por eles indicados quanto às duas viaturas supra indicadas), enquanto seus “novos” proprietários, não promoveram o registo a seu favor, presume-se (presunção ilidível), para efeitos do nº 1,do art.º 3º, do CIUC, que o veículo continua a ser propriedade da pessoa que o vendeu e que no registo se mantém seu proprietário, sendo, certo que tal presunção é ilidível, seja por força do estabelecido no nº 2, do art.º 350º, do Código Civil, seja à luz do disposto no art.º 73º, da LGT.

Daí que, a partir do momento em que se afaste a referida presunção, mediante prova em contrário, a AT não poderá persistir em considerar como sujeito passivo do IUC o vendedor do veículo, que, no registo, continua a constar como seu proprietário.

Acresce que o disposto no art.º 19º do CIUC, justamente, para efeitos do disposto no art.º 3º, nºs 1 e 2 do referido CIUC (ou seja, para efeitos da incidência subjectiva), vem impor, às entidades que procedem à locação financeira, a obrigação de fornecer à AT os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados. Pelo que, mais uma vez, o legislador foi claro quanto ao valor jurídico do registo, exigindo conhecer, para além disso, os reais utilizadores dos veículos locados, o que, aliás, está em perfeita sintonia com o entendimento de que o nº 1, do art.º 3º, do CIUC pretende, tão só, consagrar uma presunção legal.

            E, como se disse supra, da análise do PA conclui-se que a obrigação de comunicação prevista neste artigo 19º quanto à identificação dos contratos e respectivos locatários foi cumprida pela Requerente. Conclui-se também que os documentos apresentados são meios de prova com força bastante para ilidir a presunção fundada no registo, tal como consagrada no nº 1, do art.º 3º, do CIUC, porquanto gozam da presunção de veracidade prevista no nº 1, do art.º 75º, da LGT. Em conformidade, encontra-se ilidida a presunção.

O entendimento preconizado pela AT na resposta apresentada nos presentes autos e parcialmente sufragada pelas decisões arbitrais nºs 150/2014-T e 220/2014-T quanto ao valor probatório das facturas, resultaria numa impossibilidade prática de provar a transmissão da propriedade do veículo por outra via que não fosse, apenas, a da apresentação do modelo próprio destinado à formalização do registo. Tal entendimento seria equivalente a considerar que apesar de se reconhecer no nº1 do artigo 3º do CIUC a consagração de uma presunção ilidível esta só poderia ser ilidida pelo registo a favor do novo proprietário, o que se afigura inaceitável.

Quanto aos efeitos do registo, resulta claro do disposto nos artigos 1.º e 7º do Código de Registo Predial (CRP), que o registo tem uma dupla finalidade: dar publicidade à situação jurídica dos bens e constituir presunção de que o direito existe e pertence ao titular nele inscrito. Estas presunções são, porém, ilidíveis mediante prova em contrário, como resulta expressamente do disposto artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil (CC) e, em matéria tributária, reforçado pelo artigo 73º da LGT.

 É pacífico para a doutrina e para a jurisprudência dos nossos tribunais superiores que o registo não é condição de validade dos negócios a ele sujeitos ou subjacentes, dele não depende a transmissão da propriedade e não pertence ao transmitente o ónus de promover o registo, pelo que nenhuma sanção lhe pode ser imposta pelo não cumprimento dessa obrigação por parte do adquirente (este sim obrigado a promover o registo).[11]

 

Acresce ainda que a Autoridade Tributária não pode ser considerada “terceiro” para efeitos de registo, dado que, resulta do nº 4, do artigo 4º, do Código de registo Predial que “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”. Ora, a AT não preenche os requisitos legais do conceito, pelo que não pode exigir ao vendedor o pagamento do imposto devido pelo comprador (proprietário) a partir do momento em que a presunção do registo seja afastada mediante a prova da transmissão.

Nestes termos, a AT não pode prevalecer-se da não actualização do registo de propriedade, para exigir o pagamento do imposto ao anterior proprietário em nome do qual o veículo se encontra registado se, por qualquer meio, lhe for apresentada prova bastante da respectiva venda.

Assim, o entendimento subjacente às liquidações impugnadas nos presentes autos, segundo o qual os sujeitos passivos do IUC são, em definitivo e sem admissão de prova em contrário, as pessoas em nome de quem os veículos automóveis se encontram registados, sem considerar os elementos probatórios para identificação dos efectivos e verdadeiros utilizadores e actuais proprietários dos veículos, conduziu à liquidação ilegal do IUC, assente na errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjectiva do Imposto Único de Circulação. Tais liquidações afiguram-se, pois, ilegais o que impõe a anulação dos correspondentes actos tributários.

 

31. Mas alega, ainda, a Requerida que a interpretação defendida pela Requerente nesta matéria, além de traduzir um leitura enviesada da lei e assentar numa interpretação contra legem, se mostra contrária à Constituição.

Ora, por tudo o que se deixa exposto supra, resulta também que o tribunal arbitral não acompanha a Requerida nesta alegação. Importará, ainda assim, acrescentar a todos os argumentos já expostos, um último extraído da própria jurisprudência do Tribunal Constitucional (TC). Assim, refira-se que, contrariamente ao alegado pela Requerida, a consideração de que o disposto no art. 3.º, n.º 1, do CIUC consagra uma presunção ilidível representa a melhor interpretação e a mais conforme à Constituição, conforme resulta do acórdão do TC com o n.º 348/97, de 29.4.1997, posição reiterada no acórdão n.º 311/2003, de 28.4.2003, os quais declaram a inconstitucionalidade do “estabelecimento pelo legislador fiscal de uma presunção “juris et de jure já que “veda por completo aos contribuintes a possibilidade de contrariarem o facto presumido, sujeitando-os a uma tributação que pode fundar-se numa matéria colectável fixada à revelia do princípio da igualdade tributária”.

Nesta conformidade, não se vislumbra a alegação da Requerente possa ter acolhimento.

 

32. Quanto à recomendação Nº 6-B/2012 do Senhor Provedor de Justiça, invocada pela Requerida AT, cabe dizer, de forma muito sucinta, que o seu conteúdo demonstra tão só que a interpretação e aplicação que a Autoridade Tributária veio a prosseguir quanto à solução legislativa em apreço nos autos, gerou uma situação caótica, injusta e desproporcional, para a qual a Provedoria apresenta algumas recomendações. Como já se reconheceu em decisão arbitral proferida no processo nº 89-2014-T, de 27 de Agosto de 2014, esta recomendação vem, isso sim, pôr em evidência uma falha de previsão legislativa quanto às insuficiências do próprio sistema registral, quanto à articulação de competências entre os diferentes serviços envolvidos (IMTT, Registo Automóvel e Autoridade Tributária), sendo certo que, no que tange à solução concreta do caso em apreço, ou seja, às questões de direito que nos submeteram para decisão, nada se infere da dita recomendação que contrarie ou ponha em causa a solução preconizada por este tribunal arbitral e adoptada em diversas decisões arbitrais antecedentes, já supra mencionadas.

Recomenda o Senhor Provedor de Justiça que se adoptem medidas no sentido de: “adequar o regime de cancelamento de matrículas ao actual regime de tributação automóvel; ponderar alteração legislativa no sentido de agilizar o processo de registo de transmissão da propriedade, por forma a permitir ao vendedor particular o registo da transmissão de propriedade do veículo e a adopção de um regime transitório que salvaguarde os interesses dos largos milhares de proprietários de veículos já destruídos sem recurso a um operador autorizado (…)”

Não se alcança desta recomendação outro sentido que não seja a chamada de atenção, oportuna e necessária, para os serviços ou, se necessário, o próprio legislador, colmatar as inúmeras insuficiências que a prática, na forma como a actual versão da lei veio a ser aplicada pelos diferentes serviços envolvidos, veio revelar.

 

 

33. Nestes termos, atendendo ao disposto no art. 3.º, n.ºs 1 e 2, do CIUC, conclui-se que se mostra ilidida a presunção contida no nº1 e que, por isso, a Requerente não constitui sujeito passivo do IUC, liquidado em relação aos anos de 2009 a 2012, quanto aos 249 veículos identificados nos autos conforme tabela junta como Anexo A anexo à PI, que se dá por integralmente reproduzida.

 

Em consequência de todo o supra exposto, resulta que todas liquidações impugnadas são ilegais, padecem do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, pelo que, devem ser objecto de anulação, procedendo-se, consequentemente, ao reembolso à Requerente do montante indevidamente pago.

 

 

4ª) do pedido e do direito a pagamento de juros indemnizatórios.

 

34. Dispõe a alínea b), do nº 1, do art.º 24º, do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.

Tal dispositivo está em sintonia com o disposto no art.º 100º, da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a), do nº 1, do art.º 29º, do RJAT, no qual se estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”

 Dispõe, por sua vez, o artigo 43º, nº1, da Lei Geral Tributária que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

 

35. Da análise dos elementos probatórios constantes dos presentes autos, nomeadamente do Processo Administrativo, é possível inferir que, por força do disposto no artigo 19º do CIUC, que obriga as locadoras a comunicarem à AT (justamente, para efeitos do disposto no art.º 3º do referido CIUC em sede de incidência subjectiva de imposto) os dados relativos à identificação fiscal das entidades que procedem à locação financeira, dos utilizadores dos veículos locados, conclui-se que a AT tinha conhecimento dos elementos factuais, no essencial, relevantes para proceder à correcta liquidação do imposto. Isso mesmo resulta da informação constante do PA junto aos autos.

Mesmo admitindo que, do seu ponto de vista, fosse necessária a junção de alguns documentos para maior esclarecimento dos factos alegados pela Requerente, devia tê-la notificado para o efeito e usado de todas as prerrogativas que o princípio do inquisitório lhe atribui e impõe para averiguar todos os factos que entendesse relevantes. E, por último, teve ainda a possibilidade de revogação dos actos tributários ilegalmente praticados, que poderia ter efectuado no prazo para resposta ao presente pedido de pronúncia arbitral, à semelhança do que fez, em casos idênticos, no âmbito de outros processos arbitrais, e só não o fez nos presentes autos por razões de oportunidade dado que um elevado número de liquidações oficiosas se reportavam ao ano de 2009, já caduco.

 

Não resta dúvida que a AT se encontrava na disponibilidade dos elementos informativos suficientes sobre a situação concreta das viaturas constantes dos autos, de modo que teve a possibilidade de emendar o erro e de evitar a prática dos actos tributários lesivos e ilegais. Nisso mesmo consiste o erro pelo qual está obrigada a indemnizar.

 

Logo, o Tribunal não pode sufragar a alegação da Requerida segundo a qual esta se limitou a aplicar a lei pelo que, na óptica da AT, daí não resultaria qualquer erro imputável aos serviços. Se assim fosse nunca a administração seria responsabilizada pela aplicação ilegal das normas em vigor nem pelos prejuízos causados.

 

Assim sendo, atento o disposto no artigo 61º, do CPPT e considerando que se encontram preenchidos os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no nº 1 do art.º 43º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre a quantia de €23.721,41, a contar da data em que foi efectuado o pagamento até ao seu integral reembolso.

 

No caso dos presentes autos, há que aplicar os supra mencionados princípios e, na sequência da ilegalidade dos actos de liquidação, referenciados neste processo, terá, por força dessas normas, de haver lugar ao reembolso dos montantes pagos, acrescidos dos correspondentes juros indemnizatórios, como forma de se alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade.

 

 

5ª) Responsabilidade pelo pagamento das custas do processo

 

36. A Requerida, na sua resposta vem suscitar a questão da responsabilidade pelo pagamento das custas na eventualidade do Tribunal vir a considerar o pedido arbitral procedente, pretendendo nesse caso que seja aplicado o disposto no artigo 527º, nº1 do novo Código de Processo Civil, ex vi artigo 29º, nº1 alínea e) do RJAT, em linha, com questão similar decidida no âmbito do processo nº 72/2013 – T.

O argumento da Requerida baseia-se no mesmo argumento invocado para tentar afastar a sua responsabilidade quanto ao pagamento dos juros indemnizatórios, o qual improcede pelas mesmas razões. Tudo o que se deixa exposto supra quanto à questão da condenação em sede de pagamento de juros indemnizatórios colhe também como fundamento para a decisão de condenação em matéria de custas arbitrais.

A requerida teve oportunidade, como já referimos supra, de revogar os actos tributários ilegais. Logo, o processo só prosseguiu porque a AT assim entendeu. Os argumentos que invoca nesta matéria são totalmente improcedentes.

Acresce que, em matéria de fixação de custas devidas pelo processo arbitral aplicam-se as regras especialmente previstas no RJAT e no respectivo Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), sendo de recorrer, eventualmente, à aplicação das regras de direito subsidiário, se e quando existir algum caso omisso que o justifique. Resulta do artigo 29º, nº1, alínea e), do RJAT, a possibilidade de aplicação subsidiária do CPC ao processo arbitral tributário, de acordo com a natureza dos casos omissos. Não se vislumbra a existência de um caso omisso a resolver, nos presentes autos, quanto à determinação das custas do processo que justifique a aplicação do princípio contido no artigo 527º, nº1 do CPC.

Dispõe o artigo 527º, nº1 do CPC que “a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção quem do processo tirou proveito.”

A Requerida pretende demonstrar que quem deu origem ao presente pedido arbitral foi a própria Requerente, com o seu comportamento negligente. Mas não tem razão.

.Mais uma vez, colhe a este propósito tudo o que se invocou para fundamentação da decisão quanto aos juros indemnizatórios. O prosseguimento do processo foi, isso sim, da sua inteira responsabilidade pelo que, considerando-se os pedidos procedentes é de sua exclusiva responsabilidade o pagamento das custas arbitrais.

 

37. Não se afigura existirem outras questões relevantes suscitadas pelas partes.

 

 

V - DECISÃO

 

Face ao exposto, este Tribunal Arbitral decide:

 

A) - Julgar procedente o pedido de declaração da ilegalidade das liquidações de IUC impugnadas nos presentes autos, por padecerem do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, anulando-se, consequentemente, os correspondentes actos tributários;

 

B)- Julgar procedente o pedido de condenação da Administração Tributária no reembolso da quantia indevidamente paga, no montante de €23.721,41, acrescida de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde o dia do pagamento efectuado até ao integral reembolso do mencionado montante, condenando a Autoridade Tributária e Aduaneira a efectuar estes pagamentos.

 

Valor do processo: Em conformidade com o disposto nos artigos 306º, nºs 1 e 2 do CPC, artigo 97º - A, nº 1, alínea a), do CPPT e artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €23.721,41.

 

Custas: Nos termos do disposto no nº 4, do art.º 22º, do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 1.224,00, a cargo da Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

Registe-se e notifique-se. 

 

Lisboa, 4 de Novembro de 2014

 

A Árbitro singular,

 

 

 

(Maria do Rosário Anjos)



[1] A presente decisão é redigida de acordo com a ortografia antiga.

[2] A este propósito, afigura-se oportuno mencionar a decisão vertida no Acórdão Arbitral proferido no processo nº 76/2013- T de 25 de Novembro, na qual se afirma que “a fundamentação é, nos termos legalmente exigidos, necessária e obrigatória, mas tal não pode nem deve ser entendido de uma forma abstracta e/ou absoluta, ou seja, “a fundamentação exigível a um acto tributário concreto, deve ser a necessária para que aquele não se apresente perante o contribuinte como uma pura demonstração de arbítrio.”

 

[3] Neste sentido, vd. Ac. STA de 19.09.2012, in proc. 0659/12, in www.dgsi.pt.

[4] Neste sentido, vd. ainda, Acórdão arbitral 76/2013-T. Corroboram jurisprudência firme sobre esta matéria, entre outros, os seguintes Acórdãos do STA: Ac. STA de 20/02/2008, in proc. 0765/07; Ac. STA de 11/02/2009, in proc. 0767/07, disponíveis in www.dgsi.pt.

 

[5] Neste sentido, cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Discurso Legitimador, p. 175 e seguintes.

[6] Neste sentido, vd., entre outros, os Acórdãos do STA de 05/09/2012 e 06/02/2013, respectivamente, proferidos nos processos nºs 0314/12 e 01000/12, disponíveis em www.dgsi.pt.

[7] Neste sentido, cfr. Afonso, A. Brigas e Fernandes, M. (2009) Imposto Sobre Veículos e Imposto Único de Circulação, Coimbra Editora, p. 187.

[8] No mesmo sentido, cfr. Decisões Arbitrais nºs 14/2013-T, 26/2013-T de 19 de Julho de 2013, nº 27/2013 –T, nº 217-2013-T de 28 de Fevereiro e, mais recentemente, as decisões nºs 46/2014-T, de 4 de Setembro de 2014 e 125/2914-T de 14 de Outubro de 2014, entre outras.

[9] Neste sentido, vd. Manuel de Andrade - «Noções Elementares de Processo Civil», 1979, pág. 203; Assento do STJ nº 4/83 de 11-7-1983, in DR, I série, de 27-08-1983; Ac. STA de 17/10/2012, in proc. nº 0414/12, in www.dgsi.pt,  entre outros.

[10] Neste sentido, vd. ainda, decisões arbitrais nºs 14-2013-T de 15 de Outubro e 217/2013 de 28 de Fevereiro de 2014.

 

[11] Neste sentido, vd, entre outros, os seguintes Acórdãos do STJ: Ac. STJ de 31.05.1966, in Proc. nº 060727 (Relator: Conselheiro Lopes Cardoso), decisão especificamente referente ao registo automóvel; Ac. STJ de 5.05.2005 (Relator: Conselheiro Araújo Barros) e Ac. STJ de 14.11.2013, in Proc. nº 74/07.3TCGMR.G1.S1(Relator: Conselheiro Serra Baptista) exímios na afirmação do predomínio do princípio da substancia sobre a forma, valendo a prova, por qualquer meio idóneo, de quem é substantivamente titular do direito de propriedade, a qual faz ilidir a presunção do registo.