Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 379/2014-T
Data da decisão: 2014-11-24  IRS  
Valor do pedido: € 2.960.989,23
Tema: IRS – Cláusula geral antiabuso
Versão em PDF

 

Decisão Arbitral

 

 

                Os árbitros Dr. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. Sérgio de Matos e Dr.ª Mariana Vargas designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 18-07-2014, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

 

A…, SGPS, S.A., pessoa colectiva n.º …, com sede na … (doravante "Requerente"), veio, ao abrigo do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), requerer a constituição de tribunal arbitral tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares ("IRS") n.º 2014 …, de 13-01-2014, relativa ao ano de 2011, no valor de € 2.756.762,25 e, bem assim, da correspondente liquidação de juros compensatórios n.º 2014 …, no valor de € 204.226,98.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

                A Requerente optou pela não designação de árbitro.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

                As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 18-07-2014.

                A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho de 28-10-2014, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e determinado que o processo prosseguisse com alegações escritas sucessivas.

                As Partes apresentaram alegações.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

                As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas e estão devidamente representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

                Não se vislumbra qualquer nulidade.

 

                2. Matéria de facto

 

                2.1. Factos provados

 

                Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)      A Requerente A…, SGPS, SA, é uma e sociedade gestora participações sociais não financeiras, Código de Actividade Económica (CAE) 064 202;

b)      A Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu a uma inspecção de âmbito parcial à Requerente na sequência da emissão das Ordens de Serviço Internas, OI2013…, OI2013… e OI2013…, de 16-10-2013, visando apurar retenções na fonte nos anos de 2010, 2011 e 2012, para além de controlo de esquemas de planeamento fiscal abusivo;

c)        Os detentores do capital da sociedade e o número de acções detidas são os seguintes:

d)      O Conselho de Administração da Requerente, designado para os triénios de 2009 a 2011 e de 2012 a 2014, foi o seguinte:

e)      No ano de 2009, a sociedade A…, SGPS procedeu à aquisição de acções da sociedade A…, S.A., NIPC …, doravante designada por A…, S.A.

f)        Em 01-01-2009, data anterior à compra e venda das acções, o capital social da sociedade A…, S.A. era composto, por 500 000 acções com o valor nominal de 5,00 euros, detido pelos seguintes accionistas:

g)      O Conselho de Administração da A…, SA, designado para o triénio de 2008 a 2010 e para o triénio de 2011 a 2013, é composto pelos mesmos elementos do Conselho de Administração da A…, SGPS;

h)      Em ambas as sociedades foi designado o acionista A…, para exercer o cargo de Presidente do Conselho de Administração;

i)        O valor unitário para a venda de cada acção foi determinado considerando o valor do capital próprio, ã data de 31-12-2008, da sociedade A…, SA, no montante de € 96 978 785,23 e o total de 450 000 acções disponíveis, tendo aquele valor sido depois arredondado para unidade de euro inferior;

j)        No mês de Junho de 2009, a sociedade A…, SGPS procedeu à aquisição de 404 910 acções da A…, SA, tendo em Setembro de 2009 adquirido mais 22 495 acções, cujos alienantes e valores envolvidos constam do quadro apresentado de seguida:

 

.

 

k)      A A…, SGPS … assumiu ser devedora da importância correspondente à venda das acções ficando, correspectivamente, os vendedores daquelas acções na posição de credores da sociedade A…, SGPS;

l)        No ano de 2009, não foi efectuado qualquer pagamento aos vendedores das acções;

m)    Em 10-12-2010 (acta n.° 16), a Assembleia Geral da sociedade A…, SGPS deliberou aumentar o capital social de 60 000,00 euros para 4 334 050,00 euros, sendo o reforço de capital efectuado por conta da dívida que a sociedade tinha para com os accionistas, resultante da compra e venda de acções da sociedade A…, SA;

n)      Foram realizados os movimentos contabilísticos respetivos, sendo que relativamente ao aumento de capital foi debitada a conta 27821 – Outras contas a receber e a pagar/credores diversos, designadamente na subconta 2782102 – A…,, pelo valor de € 3 374 250,00 e nas subcontas 2782103 – B…, 2782104 – C…, 2782105 – D… e 2782106 – E…, no valor de 224 950,00, cada e, em contrapartida, foi creditada a conta 51101 – Capital, pelo valor de €4274050,00;

o)      Na Assembleia Geral da Requerente de 10-12-2010, foi ainda deliberada a realização de prestações suplementares de capital, por parte dos accionistas, no montante de 44 877 525,00 euros, igualmente por conta da divida referida na parte final do parágrafo anterior;

p)      Em 20-12-2010 (ata n.° 18), a sociedade A…, a SGPS procedeu a um novo aumento do capital de 4 334 050,00 euros para 4 562 000,00 euros (€ 4 562 000,00 – € 4 334 050,00 = € 227 950,00), por entradas em espécie de 22 495 acções com o valor nominal de 5,00 euros da sociedade A…, SA, pertencentes à accionista E…, NIF …, mediante a emissão de 45 590 novas acções da sociedade A…, SGPS que esta acionista passou a deter;

q)      Ainda, em 20-12-2010 o accionista A… efectuou uma cessão de créditos de que era titular na sociedade A…, SGPS, à accionista E…, no valor de 2 246 500,00 euros e a cessão de um crédito relativo a prestações suplementares, de que é titular na mesma sociedade, no valor de 2 361 975,00 euros, o que perfaz 4 608 475,00 euros, valor este que corresponde exactamente ao ganho potencial obtido pela sociedade A…, SGPS com a compra das acções abaixo do seu valor contabilístico, bem como ao valor que estaria sujeito a tributação em sede de IRS (Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares) na esfera da accionista E…, se tivesse recebido aquela importância em contrapartida da venda das acções;

r)       As prestações suplementares contabilizadas em 31-12-2010, na sequência da deliberação tomada em 20 de Dezembro do mesmo ano, no valor global de € 44 877 525,00, pertencem aos accionistas nas seguintes percentagens:

 

s)      No Relatório da Inspecção Tributária, cujo teor se dá como reproduzido, refere-se. além do mais, o seguinte:

III – 2. Análise Contabilística e Financeira da Sociedade A…, SGPS

A 31 de Dezembro de 2008, o capital social da sociedade A…, SGPS era de 60 000 euros, representado por 12 000 ações de valor nominal de 5 euros, repartido pelos diversos acionistas nas percentagens referidas no Quadro l (vide supra).

Naquela data, a sociedade detinha participações sociais no capital da sociedade F…, Lda., NIPC … e no capital da sociedade G…, SA. NIPC ….

A demonstração de resultados por natureza apresentada para os anos de 2007 e 2008 foi a seguinte:

 

Nos anos de 2007 e 2008, os proveitos da sociedade A…, SGPS resultaram de prestações de serviços de consultadoria, ganhos financeiros referentes a juros de depósitos bancários e ganhos em empresas do grupo relativos à contabilização dos investimentos financeiros pelo método de equivalência patrimonial, o qual consiste num método de consolidação previsto no Decreto-lei n.º 238/91 de 2/07, sendo utilizado sempre que uma empresa incluída naquela consolidação exerça influência significativa sobre a gestão e a política financeira de uma empresa associada, sobre a qual detenha uma participação financeira.

Nos termos do n°. 8 do art°. 18° do CIRC, os rendimentos e gastos, assim como quaisquer outras variações patrimoniais, relevados na contabilidade em consequência da utilização do método da equivalência patrimonial não concorrem para a determinação do lucro tributável.

De acordo com os registos contabilísticos, a 01/01/2009 e 31/12/2009 a sociedade A…, SGPS possuía as seguintes disponibilidades financeiras:

Após a aquisição das ações da sociedade A…, SA, no decurso de 2009, a sociedade A…, SGPS, ficou com uma divida para com os acionistas identificados no quadro V, no valor global de € 91 892 075,00 (vide linha 2 dos quadros XI, XII, XIII, XIV e XV, infra), verificando-se, face aos valores evidenciados na contabilidade, que a A…, SGPS, não teria disponibilidades que lhe permitissem liquidar a divida contraída.

(...)

De acordo com os elementos recolhidos no decurso dos atos de inspeção, verifica-se que, em termos operacionais, encontram-se registadas prestações de serviços efetuadas a uma empresa participada, designadamente a sociedade F…, Lda., NIPC …, citando-se, a título meramente exemplificativo, a fatura n° 13 de 15.12.2009, no valor de € 200 000,00, acrescidos de IVA à taxa legal.

Não foram recolhidos elementos que concretizassem eventuais prestações de serviços da A…, SGPS à sociedade A…, SA, nem outros dados ou elementos que permitam concluir no sentido de qualquer alteração ao nível da administração da sociedade A…, SA, em resultado dos negócios envolvendo a compra e venda de ações da primeira daquelas sociedades.

Nos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012 a A…, SGPS não teve quaisquer pessoas ao serviço da empresa, conforme consta da declaração de Informação Empresarial Simplificada (IES) apresentada com referência àqueles anos, não tendo, por isso, incorrido em gastos com pessoal.

A sociedade não dispõe igualmente de instalações próprias ou equipamento administrativo e não paga renda pelas instalações. Os gastos administrativos referem-se essencialmente a serviços especializados prestados por assessores (ROC e TOC) e a encargos bancários.

A A…, SGPS não dispõe, portanto, de qualquer estrutura física e humana.

Por outro lado, a TOC responsável pela contabilidade da A…, SGPS é igualmente a TOC responsável pela contabilidade da A…, SA, tendo sido remunerada, pelo exercício das suas funções, em sede de IRS – categoria A (trabalho dependente) pela empresa A H…,SA, NIPC …, cujo Conselho de Administração integra os administradores das sociedades A…, SA e A…, SGPS, cfr. print que se segue e anexo VII:

 

Os membros do conselho de administração do A…, SGPS auferem rendimentos da categoria A que são pagos pela A…, SA, não auferindo quaisquer rendimentos pagos ou colocados à disposição pela SGPS.

Em suma, a ausência de indicadores objetivos, como sejam gastos com pessoal, imobilizado ou outro equipamento, demonstram a inexistência de meios humanos e técnicos, com que a sociedade A…, SGPS possa prosseguir o seu restrito objeto social pelo que, não possuindo qualquer estrutura física e humana, os serviços administrativos e financeiros necessários à prestação de serviços a outras entidades (designadamente à sociedade F…, Lda.) foram, necessariamente, prestados por outras entidades.

III – 3. Enquadramento Fiscal

No decurso do procedimento inspetivo credenciado pelo DI2013…, aberto em nome da sociedade A…, SA, foi recolhida cópia das atas de aprovação de contas dos exercícios de 2000 a 2012 daquela empresa.

Analisando as referidas atas, verifica-se que naquele lapso temporal não foram distribuídos dividendos aos acionistas, à exceção do resultado liquido do exercício de 2008, relativamente ao qual foi deliberado proceder à distribuição de lucros no valor de € 1 750 000,00, cfr ata n°. 89 de 28.05.2009 (aprovação de contas do ano de 2008), os quais foram objeto de retenção na fonte à taxa liberatória prevista no art°. 71° do CIRS (Código do IRS), ao tempo 20%, tendo o imposto respetivo, no valor de € 350 000,00, sido pago através da guia n°. 80227914759 respeitante ao período 2009-10.

 

Compulsando as referidas atas e conjugando a Informação nelas contida relativamente ao resultado liquido de cada exercício e respetiva aplicação em reservas ou resultados transitados, com os valores evidenciados nas /ES apresentadas relativamente aos exercícios abaixo identificados, obtém-se o seguinte quadro:

 

Do quadro anterior resulta que a empresa A…, SA obteve, sustentadamente, resultados líquidos positivos os quais foram sendo aplicados em reservas e em resultados transitados, pelo que, no final de 2009, a empresa dispunha de reservas no valor de € 93 621 066,18.

Tenha-se em atenção que aquelas importâncias, a serem distribuídas aos acionistas, preencheriam, na perspetiva daqueles, a norma de incidência prevista no artº. 5° – n.º 2, alínea h) do CIRS, a qual abrange «os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respetivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o art. 20º», os quais seriam objeto de tributação através da aplicação das taxas liberatórias previstas atualmente no art°. 71° do CIRS, sem prejuízo da opção pelo englobamento nos termos nela previstos.

No entanto, como já houve oportunidade de referir, tomando por referência o lapso temporal compreendido entre os anos de 2000 a 2009, ano em que foram alienadas ações representativas de 85,481 % (percentagem apurada tendo em conta as ações próprias da sociedade) do capital social da sociedade A…, SA em beneficio da SGPS, apenas naquele último ano foram pagos dividendos no valor de € 1 750 000,00, relativos ao resultado liquido apurado em 2008.

A exceção da distribuição de dividendos atrás referida, verifica-se, em face das atas da sociedade A…, SA, que as alterações aos capitais próprios da sociedade ocorreram unicamente pelo pagamento de gratificações aos trabalhadores e aos administradores, bem como pela aquisição de ações próprias no ano de 2000, no valor de € 12 469 947,43.

Relativamente às gratificações referidas no parágrafo anterior, os respetivos valores constam do quadro seguinte:

 

Quanto à aquisição de ações próprias, verifica-se que já tinha sido atingido o limite de 10% imposto pelo art°. 317° – n°. 2 do Código das Sociedades Comerciais, que impõe restrições à aquisição de ações próprias.

Com efeito, sendo o capital social da empresa representado por 500 000 ações, com o valor nominal de € 5,00 cada, verifica-se, em face do saldo de € 250 000,00 registado na conta 52107 – Ações Próprias / Valor Nominal/ A…, SA, que o limite de 10% referido no parágrafo anterior já tinha sido atingido, porquanto aquele valor de € 250 000,00 corresponde precisamente a 50 000 ações, ao valor nominal de € 5,00.

Logo, sendo a sociedade A…, SA titular de 10% do próprio capital social, não poderia adquirir mais ações próprias, as quais foram adquiridas por € 12 469 947,00, notoriamente acima do respetivo valor nominal, sem que, por parte dos acionistas alienantes houvesse lugar a qualquer tributação relativamente à venda daquelas ações, seja por via da exclusão de tributação na alienação de ações detidas há mais de um ano prevista, ao tempo, no n° 2 do artigo 10° do CIRS, seja por via do regime transitório previsto no art. 5° do Decreto-lei n°. 442-A/88 de 30 de Novembro, que aprovou o Código do IRS.

A compra de ações próprias teve como reflexo na contabilidade, a diminuição dos capitais próprios, pelo valor equivalente.

Encontrando-se legalmente vedada a possibilidade de adquirir mais ações próprias, eventuais fluxos financeiros com origem na sociedade A…, SA e dirigidos aos acionistas, teria de ser efetuado através da distribuição de dividendos, com a inerente tributação em sede de IRS.

Ora, em contraste (claro, diríamos nós) com a política de distribuição de dividendos adoptada até 2009,

em Dezembro de 2010 a sociedade A…, SA distribuiu dividendos à sociedade A…, SGPS no valor de 33 742 500,00 euros.

Tal deliberação encontra-se externada na ata n.º 94 de 27.12.2010 da sociedade A…, SA (Anexo VIII), tendo sido decidido distribuir € 75,00 por açâo, perfazendo um total de € 33 750 000,00, dos quais € 33 742 500,00 foram distribuídos à A…, SGPS, na proporção da respetiva participação social.

Aquele valor foi pago através de transferência bancária efectuada pela sociedade A…, SA para a conta correspondente ao NIB …, cujo titular é a A…, SGPS (anexo IX), Na perspetiva da SGPS, o valor referido no parágrafo anterior não foi objeto de tributação face ao disposto no art°. 51° do CIRC, atenta a verificação dos pressupostos definidos no n°. 1 deste preceito, não havendo igualmente lugar a retenção na fonte face ao disposto na alínea c) do n°. 1 do artº. 97º do CIRC

Ao invés, se aqueles dividendos tivessem sido distribuídos anteriormente à transmissão das ações em favor da SGPS, os mesmos seriam objeto de tributação às taxas liberatórias na esfera dos respetivos acionistas e na proporção das participações detidas, nos termos anteriormente referidos.

Como ficou demonstrado no subcapítulo III-2, a sociedade A…, SGPS não dispunha de meios financeiros que lhe permitissem solver a divida decorrente da aquisição das ações da sociedade A…, SA, pelo que a importância recebida em 2010, a título de dividendos – € 33 742 500,00 – foi parcial mas principalmente aplicada no pagamento a credores, por sinal, aos anteriores acionistas da A…, SA e simultaneamente acionistas da A…, SGPS.

No ano de 2010, e tendo por base os documentos recolhidos no âmbito do DI2013…, constatou-se que foram pagos aos acionistas A…,, B…, C…, D… e E…, um total de € 21 370 250,00, distribuídos entre eles de acordo com os valores evidenciados na linha 5 dos quadros XI, XII, XIII, XIV e XV, apresentados de seguida, encontrando-se os movimentos contabilísticos respetivos refletidos na parte final do extraio de conta seguinte, extraído do ficheiro SAF-T enviado pela sociedade inspecionada na sequência de notificação para o efeito:

(...)

Ainda em Dezembro de 2011, a sociedade A…, SA voltou a efetuar o pagamento de dividendos à sociedade A…, SGPS no valor de 8 098 200,00 euros (último movimento do extrato atrás reproduzido), cuja distribuição foi aprovada na ata n.º 97, de 04 de Junho de 2011 (Anexo X), justificando que "As disponibilidades financeiras da empresa são muito elevadas e não necessárias ao funcionamento normal da empresa e muito superiores a qualquer empresa do sector”.

(...)

Em Março de 2012, a sociedade A…, SGPS utilizou o valor de 8 098 200,00 euros, referente aos dividendos distribuídos pela A…, SA, para efetuar mais um pagamento da divida contraída com a aquisição das ações aos seus acionistas, (vide linha 8 dos quadros XI, XII, XIII, XIV e XV, apresentados de seguida).

(...)

Em 31 de Março de 2012, a divida resultante da aquisição das ações da sociedade A…, SA ficou, na ótica da sociedade A…, SGPS, contabilisticamente saldada, em parte através de pagamentos efetuados aos acionistas, utilizando os valores provenientes de dividendos previamente distribuídos pela sociedade A…, SA à sociedade A…, SGPS, noutra parte com a conversão de créditos em aumento de capital e prestações suplementares.

Na parte respeitante aos pagamentos efetuados e bem assim quanto ao aumento de capital da sociedade A…, SGPS (quadro l), cfr Anexo IV, verificou-se assim, uma distribuição indirecta de dividendos aos acionistas, com a obtenção de uma clara vantagem fiscal, uma vez que a distribuição de dividendos da A…, SA à A…, SGPS se encontra excluída de tributação nos termos do artigo 51.° do CIRC e dispensada de retenção na fonte de acordo com o artigo 97.° do CIRC ao contrário da distribuição de dividendos aos acionistas, os quais estariam sujeitos a tributação e a retenção na fonte, nos termos do artigo 71.° do CIRS.

No que concerne à conversão de parte do crédito resultante da compra e venda de ações da sociedade A…, SA em prestações suplementares, não se propõe qualquer correção, em virtude de, a nosso ver, as mesmas não consubstanciarem o pagamento ou colocação à disposição dos sócios de quaisquer rendimentos, o que apenas se verificará se e quando tais prestações suplementares vierem a ser restituídas em cumprimento de eventual deliberação dos sócios nesse sentido.

No caso concreto da acionista E…, será de ter em conta que, se o negócio tivesse sido efetuado nos exatos moldes em que foi feito em relação aos demais acionistas, a mesma estaria a alienar onerosamente partes sociais, sendo tal situação suscetível de preencher a norma de incidência prevista na alínea b) do n.º 1 do art°. 10° do CIRS.

O valor de realização ser-nos-ia definido pela alínea f) do n°. 1 do art°. 44° do CIRS, correspondendo ao valor da contraprestação. Recorde-se que, em relação aos demais acionistas e para uma participação exatamente igual – 5% – foi fixado o valor de € 4 836 425,00, diferente do atribuído à entrada em espécie efectuada em Dezembro de 2010 pela acionista E…, nomeadamente € 227 950,00.

A participação na sociedade A…, SA foi adquirida por E…, através de sucessão aberta por óbito de sua mãe B…, falecida em 11.06.2009, sendo a sua única herdeira.

A participação social consta da verba n°. 8 da relação de bens correspondente à participação n°. 768269, na qual constam 22500 ações da sociedade A…, SA, valorizadas pelo respetivo valor nominal de € 5,00, perfazendo, portanto, um total de € 112 500,00, o qual, face ao disposto no art. 45º – n.º 1 do CIRS, deveria ser considerado como valor de aquisição, para efeitos de apuramento de eventuais rendimentos da categoria G (mais valias), mediante a respetiva subtração ao valor de realização anteriormente referido.

No caso da acionista E…, o produto da alienação das ações não foi directamente levado à conta 27821 – Outras contas a receber e a pagar/credores diversos (ao Invés dos demais acionistas), na qual se encontra registada, isso sim, uma outra importância – € 2 246 500,00 – cujo documento de suporte terá sido a notificação de cessão de créditos enviada pelo acionista A…, à sociedade A…, SGPS (anexo XI) nos termos do qual o acionista atrás identificado cedeu a E… parte dos créditos de que era titular com referência à sociedade A…, SGPS, designadamente € 2 246 500,00 n...relativos à segunda prestação de pagamento do preço previsto no contrato de compra B venda de ações, celebrado entre A…, e a Sociedade, mediante c qual esta adquiriu ao primeiro 337.425 acções representativas de 67,485% do capital social da A…,, SA...».

A cessão de créditos foi relevada contabilisticamente, por débito da conta 27821 – Outras contas a receber e a pagar/credores diversos, designadamente nas subcontas 2782102 (Sr. A…,) e por crédito da subconta 2782107 (E…), pelo valor de € 2 246 500.00.

Esta última conta viria posteriormente a ser saldada, mediante um movimento a débito pelo valor atrás referido, por contrapartida da conta 120007 – Depósitos à Ordem/ Banco …, que foi movimentada a crédito pelo pagamento da Importância de € 2 246 500,00 à acionista E… (Anexo XII).

No documento referido no parágrafo anterior, consta ainda que o acionista A…, cede igualmente à sua neta E…, um crédito de € 2 361 975,00, correspondente a parte do crédito de que o primeiro dos acionistas atrás referidos era originariamente titular, referente às prestações suplementares deliberadas na ata n°. 16.

Não obstante as diferenças assinaladas, parece-nos haver um ponto de contacto entre o procedimento adotado relativamente à acionista E… e os demais acionistas: o de «não abrir» a sociedade A…, SA a terceiros, mantendo o controlo da mesma no universo familiar, ainda que c forma Indirecta, através da sociedade A…, SGPS.

Porém, enquanto que em relação aos demais acionistas a transmissão das ações em beneficio da SGP não determinou o pagamento de qualquer tributo, seja por via da exclusão de tributação consignada n n.º 2 do art°. 10° do CIRS ou ainda pelo regime transitório estabelecido para os rendimentos da categoria G de IRS no art°. 5° do Decreto-lei n°. 442-A/88 de 30.11 que aprovou o Código do IRS, à acionista E… não poderia aproveitar qualquer das disposições anteriormente citadas.

De facto, na data em que foi tomada a deliberação consubstanciada na ata n°. 18, já o art°. 10° – n.º 2 d CIRS se encontrava revogado (art°. 2° da Lei n°. 15/2010 de 26/07), não podendo as mais valia resultantes da transmissão das ações detidas por E… ser excluídas de tributação.

Quanto ao art°. 5° do Decreto-lei n°. 442-A/S8 de 30.11 o mesmo seria inaplicável, atenta a data da aquisição das ações.

III – 4. – Aplicação da Cláusula Geral de Anti-Abuso

Tendo em conta a fatualidade atrás descrita e demonstrados, segundo se nos afigura, os procedimentos adotados para a efectivação do resultado pretendido – vantagens patrimoniais por meio de subtração ao pagamento dos impostos devidos – cumpre á Administração Fiscal recorrer à cláusula antiabuso, nos termos do disposto no artigo 38° – n° 2 da LGT (Lei Geral Tributária), uma vez que estamos perante um sucessivo e meticuloso encadeamento de atos configurando negócios jurídicos abusivos dirigidos por meios artificiosos à eliminação de impostos que seriam devidos em resultado de atos de idêntico fim económico.

De acordo com a jurisprudência recente do Tribunal Central Administrativo do Sul (proc. 5104/11 de 31-01-2012) "Esta legislação [art 38» da LGT e art 63° do CPPT – Código do Procedimento e Processo Tributário] tem aplicabilidade sempre que as empresas praticam uma série de atos anómalos, desadequados face ao fim económico pretendido, mas que em si mesmo são legais e produzem o mesmo resultado económico (mas não fiscal) dos atos usuais e adequados que estão definidos nas normas de incidência de IRC,"

De notar que no caso em apreço as normas de incidência referem-se a IRS, parecendo-nos, ainda assim, que será aqui aplicável a orientação jurisprudencial decorrente daquele acórdão.

E continua o aresto atrás identificado, clarificando que "Os atos que a Administração Tributária classifica corno inseridos no n° 2 do art. 38° da LGT, não têm como propósito a poupança fiscal, mas sim uma atuação contra os fins essenciais do ordenamento jurídico tributário. O que se pretende neste caso é combater a elisão fiscal, concretizada em atos jurídicos formalmente lícitos."

Transpondo para o caso em apreço as diretrizes traçadas por aquele acórdão, parece-nos que a venda das ações da sociedade A…, SA em favor da A…, SGPS, cujos acionistas e administradores, relembre-se, são exatamente os mesmos, constitui a prática de um ato que, apesar de formalmente licito, tem subjacente a intenção de obter rendimentos, mais concretamente dividendos, que de outra forma estariam sujeitos a efectiva tributação.

A intenção não terá sido alienar as ações em benefícios de terceiros, mas aliená-las por forma a manter o controlo da sociedade A…, SA, ainda que indiretamente, conseguindo, por outra via, ainda que, igualmente, de forma indirecta, receber os dividendos da sociedade A…, SA, sem a inerente tributação em IRS, designadamente na respetiva categoria E (rendimentos de capitais).

Na perspetiva da sociedade A…, SGPS, os dividendos distribuídos pela sociedade A…, SA não foram objeto de tributação, face ao disposto no art°. 51° do CIRC, atenta a verificação dos pressupostos definidos no n.º 1 deste preceito, não havendo igualmente lugar a retenção na fonte face ao disposto na alínea c) do n°. 1 do art°. 97° do CIRC.

Se tais dividendos tivessem sido distribuídos anteriormente à transmissão das ações em favor da SGPS, os mesmos seriam objeto de tributação através de taxas liberatórias previstas no art°. 71° do CIRS.

Face ao exposto, parece-nos haver fundamentos para aplicação da cláusula geral antiabuso, a qual dever-se-á reger pelo disposto no artigo 63° do CPPT.

Atendendo à jurisprudência recentemente fixada pelo Tribunal Central Administrativo do Sul (proc. 04255/10, de 15-02-2011, www.dgsi.pt), cumpre preencher os requisitos ai enumerados, que são:

i. Elemento melo utilizado para a concretização da operação económica conducente à vantagem fiscal, que se relaciona com as formas utilizadas pelo contribuinte, por via dos atos e negócios jurídicos lícitos celebrados com que se propõe obter a redução ou eliminação do tributo;

ii. Elemento resultado obtido, respeitante à vantagem propriamente dita, à ilicitude do fim, à consequência fiscal pretendida pelo contribuinte, indissociável quer dos meios lícitos de que se socorreu, quer da motivação fiscal sobre que assenta a sua conduta;

iii. Elemento intelectual, respeitante à motivação fiscal que serviu de base à conduta do contribuinte para efeitos de redução ou eliminação da tributação, não obstante a sua atuação poder ter natureza exclusivamente fiscal ou não;

iv. Elemento normativo, respeitante à proibição legal de evasão fiscal, vertido nas normas de antiabuso, de que a Administração Tributária lança mão para neutralizar potenciais planeamentos fiscais agressivos e que merecem reprovação sob o ponto de vista normativo sistemático, uma vez que para a obtenção de vantagens fiscais o contribuinte recorre a formas jurídicas manifestamente abusivas, cujo efeito fiscal tem que ser desconsiderado.

Elemento Meio

A sociedade A…, SA obteve, de forma reiterada, resultados líquidos positivos os quais foram sendo aplicados em reservas e em resultados transitados, pelo que, no final de 2009, a empresa dispunha de reservas no valor de € 93 621 066,18, cfr. Quadro IX.

No lapso temporal compreendido entre os anos de 2000 a 2009, ano em que ocorreu a transmissão de 85,481% (percentagem apurada tendo em conta as ações próprias da sociedade) do capital social da sociedade A…, SA em beneficio da SGPS, apenas houve lugar à distribuição de lucros, no valor de € 1 750 000,00, relativos ao resultado liquido apurado com referência ao exercício de 2008.

A exceção daquela distribuição de dividendos, deliberada em 28.05.2009, verifica-se, em face das atas da sociedade A…, SA, que as alterações aos capitais próprios da sociedade ocorreram unicamente pelo pagamento de gratificações aos trabalhadores e aos administradores (cfr. quadro X supra), bem como pela aquisição de ações próprias no ano de 2000, no valor de € 12 469 947,43.

Quanto à aquisição de ações próprias por parte da sociedade A…, SA, refira-se que já tinha sido atingido o limite de 10% imposto pelo art°. 317° – n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais, que impõe restrições à aquisição de ações próprias, não sendo legalmente admissível a aquisição de ações próprias para além daquele limite, ressalvando as circunstâncias previstas no n.º 3 daquele preceito.

Logo, sendo a sociedade A…, SA titular de 10% do próprio capital social, não poderia adquirir mais ações próprias, as quais foram adquiridas por € 12 469 947,00, notoriamente acima do respetivo valor nominal.

Atingido o teto máximo da aquisição de ações próprias na razão de 10%, a A…, SA ficou Impossibilitada de continuar a participar no seu próprio capital. E os acionistas, de continuarem a alienar as participações sociais a uma sociedade cuja maioria do capital lhes pertence.

A compra de ações próprias teve como reflexo na contabilidade, a diminuição dos capitais próprios, pelo valor equivalente.

Também a distribuição de dividendos da sociedade A…, SA a favor da sociedade A…, SGPS teve como reflexo na contabilidade a diminuição dos capitais próprios da primeira das sociedades atrás referidas.

Os valores acumulados ao longo de vários anos na conta de reservas, a serem distribuídos aos acionistas, seriam suscetíveis de tributação em sede de IRS, designadamente no âmbito da Categoria E, de acordo com a norma de incidência prevista no art°. 5a – n.º 2, alínea h) do CIRS (Código do IRS), a qual abrange «os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respetivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daquelas a que se refere o artº. 200º.

A tributação de tais rendimentos na ótica dos acionistas, deveria efetivar-se através da aplicação das taxas liberatórias previstas atualmente no art. 71° do CIRS, sem prejuízo da opção pelo englobamento nos termos nela previstos.

A opção tomada pelos acionistas de transmitir as ações da sociedade A…, SA à sociedade A…, SGPS (relembrando-se que a estrutura acionista e o Conselho de Administração de ambas as sociedades é exatamente igual) permitiu-lhes constituir um crédito sobre a SGPS, o qual foi parcialmente pago através de dividendos distribuídos pela primeira à segunda das sociedades atrás identificadas.

Tal crédito foi pago através de valores provenientes das reservas acumuladas ao longo de sucessivos exercícios económicos pela sociedade A…, SA, os quais, se tivessem sido directamente distribuídos aos seus acionistas, ficariam sujeitos a tributação através de taxas liberatórias, nos termos anteriormente referidos

Com a «interposição» da sociedade A…, SGPS entre a sociedade A…, SA e os titulares do capital social desta última empresa (na data anterior às sucessivas compras e vendas de ações da sociedade A…, SA em beneficio da SGPS) nos termos descritos no subcapítulo UM deste documento que se dá aqui por integralmente reproduzido, os acionistas da sociedade A…, SA lograram receber valores que estavam inscritos nas contas de reservas da SA e que, sendo-lhes directamente distribuídos, seriam sujeitos a tributação na Categoria E de IRS.

Ou seja, pela venda de ações da A…, SA à A…, SGPS conseguiu-se transfigurar o que seria uma regular distribuição de dividendos aos acionistas, num conjunto de alienações de ações sobre as quais acabou por não incidir qualquer tributação efectiva na esfera pessoal dos Intervenientes.

Por restituir ficaram ainda as prestações suplementares efetuadas em contrapartida da divida resultante da venda das ações, no valor de € 44 677 525,00, as quais terão sido até efetuadas ao arrepio do disposto no n°. 3 do art°. 210° do Código das Sociedades Comerciais, segundo o qual «As prestações suplementares têm sempre dinheiro por objecto».

No caso da contribuinte E…, não obstante o procedimento seguido não ser igual ao dos demais acionistas, a verdade é que o mesmo também visou evitar o pagamento de Impostos decorrentes da transmissão de ações efectuada à A…, SGPS, procurando contornar, desde logo, a tributação da operação no âmbito da categoria G de IRS, sob o artificio de uma cessão de créditos efectuada pelo seu avô, sendo que, por sua vez aqueles créditos, resultaram da venda da quase totalidade das ações de que A…, era titular na sociedade A…, SA.

Na perspetiva da sociedade A…, SGPS, registou-se uma diferença, para mais, entre o valor atribuído às ações da sociedade A…, SA, em que se consubstanciou a entrada em espécie da acionista E… no capital daquela sociedade, e o valor nominal daquelas ações.

Aquele ágio encontra-se refletido na contabilidade da sociedade sendo que, uma eventual mais valia decorrente da alienação daquele ativo encontrar-se-á abrangida pelo benefício fiscal previsto no n.º 2 do art°. 32° do EBF (Estatuto dos Benefícios Fiscais), pelo que, na perspetiva daquela empresa, o valor de aquisição atribuído às ações seria relativamente indiferente.

Não já assim quanto à acionista E…, uma vez que, relativamente a ela, a venda das ações nos exatos termos em que foi efectuada pelos demais acionistas (por um valor superior ao valor nominal), determinaria a respetiva tributação em sede de IRS (categoria G).

Será, por Isso, de assinalar o facto de, em relação aos acionistas A…,, B…, C…, D… e E…, ter sido estipulado um valor por ação notoriamente superior ao respetivo valor nominal, uma vez que, para eles, o mesmo seria irrelevante, por não determinar qualquer tributação efectiva em sede de IRS (cfr. arf. 5° – n°. 2 do Decreto-Lei 442-A/88 de 30.11 e art°. 10" – n.º 2 do CIRS, em vigor ao tempo), o mesmo não sucedendo em relação à contribuinte E…, relativamente à qual a estipulação de um valor por ação idêntico ao fixado para os demais acionistas, determinaria a sua tributação em sede de IRS, por não lhe serem aplicáveis as disposições atrás citadas.

Mas, parece-nos pertinente insistir em que o objetivo pretendido com os negócios jurídicos celebrados não era uma efectiva transmissão das ações em beneficio de terceiros mas tão somente, obter a distribuição de dividendos por parte da sociedade A…, SA, uma vez que esta continuou a ser controlada pelos seus anteriores acionistas, ainda que de forma indirecta, através da sociedade A…, SGPS.

Elemento resultado

Encontrando-se legalmente vedada a possibilidade de adquirir ações próprias, eventuais fluxos financeiros da sociedade A…, SA para os acionistas teria de ser efetuado através da distribuição de dividendos, com a Inerente tributação em sede de IRS.

Ora, ao arrepio da política de distribuição de dividendos adoptada entre os exercícios de 2000 e 2009, em Dezembro de 2010 a sociedade A…, SA procedeu à distribuiu de dividendos à sociedade A…, SGPS no valor de 33 742 500,00 euros.

Tal distribuição consta da ata n.º 94 de 27.12.2010 da sociedade A…, SA, tendo sido deliberado distribuir € 75.00 por ação, perfazendo um total de € 33 750 000,00, dos quais € 33 742 500,00 foram distribuídos à A…, SGPS, na proporção da respetiva participação social.

Aquele valor foi pago através de transferência bancária efectuada pela sociedade A…, SA para a conta correspondente ao NIB …, cujo titular é a A…, SGPS (anexo IX).

Posteriormente, em Dezembro de 2011, a sociedade A…, SA voltou a efetuar o pagamento de dividendos ã sociedade A…, SGPS no valor de 8 098 200,00 euros, cuja distribuição foi aprovada na ata n ° 97, de 04 de Junho de 2011.

Na perspetiva da SGPS, os valores referidos nos parágrafos anteriores não foram objeto de tributação face ao disposto no art°. 51° do CIRC, atenta a verificação dos pressupostos definidos no n°. 1 deste preceito, não havendo igualmente lugar a retenção na fonte face ao disposto na alínea c) do n.º 1 do art° 97° do CIRC.

Ao invés, se aqueles dividendos tivessem sido distribuídos anteriormente à transmissão das ações em favor da SGPS, os mesmos seriam objeto de tributação às taxas liberatórias na esfera dos respetivos acionistas e na proporção das participações detidas, às taxas liberatórias previstas no art°. 71° do CIRS

Elemento Inteletual

Como se referiu no subcapítulo III-2, a sociedade A…, SGPS não dispunha de meios financeiros que lhe permitissem solver a divida decorrente da aquisição das ações da sociedade A…, SA, pelo que a importância recebida em 2010, a titulo de dividendos – € 33 742 500,00 -acabou por ser aplicada no pagamento aos respetivos credores, por sinal, anteriores acionistas da A…, SA e simultaneamente acionistas da A…, SGPS.

Relativamente ao valor referido no parágrafo anterior, e tendo por base os documentos recolhidos no âmbito do DI2013…, constatou-se que, no ano de 2010, o mesmo foi utilizado para efetuar pagamentos aos acionistas A…,, B…, C…, D… e E…, num total de € 21 370 250,00, distribuídos entre eles de acordo com os valores evidenciados na linha 5 dos quadros XI, XII, XIII, XIV e XV, apresentados anteriormente.

O remanescente – € 12 372 250,00 foi utilizado para constituir uma outra aplicação financeira no Banco ….

Esta aplicação financeira viria depois a ser liquidada em Dezembro de 2011, tendo a sociedade A…, SGPS procedido ao pagamento de mais uma parte da divida contraída com a aquisição das ações aos acionistas, no valor de 10 575 650,00 euros, (vide linha 6 dos quadros XI, XII, XIII, XIV e XV, cfr. supra).

Ainda em Dezembro de 2011, a sociedade A…, SA voltou a efetuar o pagamento de dividendos à sociedade A…, SGPS no valor de 8 098 200,00 euros, cuja distribuição foi aprovada na ata n.º 97, de 04 de Junho de 2011, pela Assembleia Geral, justificando que "As disponibilidades financeiras da empresa são muito elevadas e não necessárias ao funcionamento normal da empresa e muito superiores a qualquer empresa do sector”.

Refira-se que a justificação atrás apresentada consta, ipsis verbis, na ata n°. 94 na qual foi deliberada a distribuição de € 33 742 500,00 de dividendos à A…, SGPS, nos termos anteriormente referidos.

Em Março de 2012, a sociedade A…, SGPS utilizou o valor de 8 098 200,00 euros, referente aos dividendos distribuídos pela A…, SA, para efetuar mais um pagamento da divida contraída com a aquisição das ações aos acionistas, (vide linha 8 dos quadros XI, XII, XIII, XIV e XV apresentados anteriormente).

Neste contexto, será pertinente notar que, em anos anteriores, a sociedade A…, SA já apresentava disponibilidades financeiras relativamente elevadas, cujos valores constam das IES apresentadas e a seguir reproduzidos:

2005-€36 265 198,34; 2006-€43 356 063,91; 2007-€35 383 253,32; 2008-€42 840 951,52; 2009-€45 757 083,55.

Não obstante nos exercícios atrás referidos, a empresa já dispor de liquidez que lhe permitia distribuir dividendos, tal não foi deliberado na proporção em que o viria a serem 2010 e 2011.

Recorde-se que apenas no ano de 2009, foi distribuída uma parte do resultado líquido de 2008, no valor de € 1 750 000,00, Implicando o pagamento de € 350 000,00 a titulo de retenção na fonte, nos termos anteriormente expostos.

Atenta a situação contabilística e financeira da SGPS, descrita no subcapítulo III-2 e não obstante a celebração do negócio Jurídico consubstanciado na alienação das ações da A…, SA em beneficio da sociedade A…, SGPS, não estará em causa uma efectiva alienação das participações sociais, atenta a manutenção dos direitos de voto que os anteriores acionistas da SA ficaram a deter na SGPS e indirectamente naquela.

Dada a limitação decorrente do art°. 317° do Código das Sociedades Comerciais, os acionistas da sociedade A…, SA procuraram uma solução que lhes permitisse, a um só tempo, a alienação das suas ações para uma sociedade sobre a qual detivessem total controlo e proceder à alienação das suas participações sociais na sociedade A…, SA em favor desta nova sociedade, com isso removendo a limitação da aquisição de capital próprio de 10% de ações.

Neste contexto, será pertinente trazer novamente à colação o facto de haver total coincidência entre os sócios de ambas as sociedades envolvidas no negócio, quer no que diz respeito aos direitos de voto, quer quanto às percentagens no capital social.

O conselho de administração de ambas as empresas é também o mesmo, sendo os seus membros remunerados apenas pela A…, SA.

Elemento Normativo

Dado estarmos perante dividendos, os mesmos encontram-se sujeitos a tributação, nos termos do CIRS desde logo, de acordo com a norma genérica prevista no n° 1 do artigo 1° do CIRS, segundo o qual

«O Imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) incide sobre o valor anual dos rendimentos das categorias seguintes, mesmo quando provenientes de atos ilícitos, depois de efectuadas as correspondentes deduções e abatimentos:

(...) Categoria E – Rendimentos de capitais; (...)»

Especificamente no que concerne àquela categoria e rendimentos, dispõe o n° 2 do artigo 5° do CIRS que «Os frutos e vantagens económicas referidas no número anterior compreendem, designadamente:

(...)

h) Os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou

titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20";(...)

Sobre os cidadãos impende o dever de pagar impostos, sendo tal dever aferido em função da respetiva capacidade contributiva, em conformidade com o disposto no artº. 4° da LGT, segundo o qual «Os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património.», assim se concretizando alguns dos princípios constitucionalmente consagrados, quais sejam os da igualdade e da justa repartição de rendimento e de encargos tributários.

Tal dever não se coaduna com esquemas de planeamento fiscal que defraudem a lei.

Deste modo, as operações que sejam levadas a cabo, a fim de evitar a tributação, são sancionadas com a respetiva ineficácia no âmbito tributário, nos termos do artigo 38° da LGT.

Analisada a operação financeira em causa, a sua factualidade e os elementos documentais, conclui-se que se está perante uma situação de planeamento fiscal, atendendo às vantagens fiscais obtidas por via da alienação das ações da A…, SA à sociedade A…, SGPS.

Repare-se inclusivamente que, entre todos os contribuintes (singulares e coletivos) envolvidos, existem relações especiais, nos termos do disposto nas alíneas a), b), c) e d) do n.º 1 do artigo 63" do C IRC.

Nos termos do disposto no n° 2 do artigo 38" da LGT "São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas (...) à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios...”.

Não pretende a Administração Tributária colocar em causa a alienação da ações, a qual é um negócio lícito.

Considera-se preenchido o teor do artigo 38° n°2 da LGT visto estar-se perante um negócio jurídico, que de forma artificiosa, visava somente a finalidade já supra descrita: a manifesta intenção de eliminação de tributação dos dividendos gerados pela sociedade A…, SA ao longo de vários anos.

Atenta a factualidade que envolveu toda a operação em causa, atrevemo-nos inclusivamente a transcrever um excerto do Acórdão do TCA Sul (proc. 04255/10, de 15-02-2011, www.dgsi.pt), onde consta que: "Estamos aqui perante as denominadas step by step transactions nas quais se encontra uma facti species complexa, envolvendo uma sucessão de atos/negócios coordenados entre s), embora possam ocorrer em momento temporais diversos e com o objectivo comum de conseguir uma vantagem fiscal. Face a esta espécie de operações, deve o aplicador da lei operar um tratamento integrado visualizando-as como uma única transacção, propendendo para um único e final resultado."

Ill – 5. Elemento Sancionatório

Ao longo deste documento, pretendeu demonstrar-se que o objetivo e consequência da realização dos sucessivos negócios jurídicos, foi a distribuição dos dividendos gerados pela sociedade A…, SA através da sociedade A…, SGPS, excluída de tributação em sede de IRS, sob a forma de pagamento de uma divida previamente constituída e proveniente da venda das ações efectuada pelos acionistas da A…, SA à A…, SGPS, sendo pertinente registar que a estrutura acionista de ambas as empresas é, ao cabo e ao resto, exatamente igual, ainda que em momentos temporais diferentes, cfr. quadros I III.

Além disso, a contratualização de prestações suplementares pelos sócios em favor da A…, SGPS no valor de € 44 877 525,00, permitirá o reembolso diferido no tempo da referida quantia, assumindo, materialmente, a natureza de verdadeiros dividendos que, por tranches, poderão vir a ser distribuídos pelos acionistas, integrando a sua esfera patrimonial, sem sofrerem qualquer tipo de tributação.

Todavia, segundo se nos afigura, tal questão colocar-se-á se e quando vier a ser deliberada a restituição das prestações suplementares aos sócios, nos termos do art. 213° – n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais, porquanto será nesse momento que ocorrerá o facto tributário relevante para efeitos de IRS, mediante o pagamento ou colocação à disposição do respetivo valor aos acionistas.

Não já assim quanto aos valores já pagos aos acionistas pela sociedade A…, SGPS, cujos valores e datas de pagamento constam dos quadros XI. XII, XIII, XIV e XV, bem como ao aumento de capital por entradas em espécie, os quais se propõe sejam qualificados como verdadeira natureza de distribuição de dividendos, uma vez que proporcionaram a disponibilidade do dinheiro aos sócios sem sofrer qualquer tributação em sede de IRS.

No entendimento de Gustavo Lopes Courinha CA Cláusula Geral Antiabuso no Direito Tributário – Contributos para a sua compreensão, página 15) "Estudar a cláusula geral antiabuso, equivale a estudar a única resposta dinâmica e existente no Sistema Fiscal Português, de combate à elisão fiscal. Ora o conceito de elisão fiscal, tal como o entendemos, correspondente ao de planeamento fiscal abusivo, ou seja a atuação planeada do contribuinte que se traduz num comportamento aparentemente lícito, geradora de uma vantagem fiscal não admitida no ordenamento tributário. Embora a conduta não seja contrária à lei, o resultado obtido não é admitido.»

Mais à frente, na página 88, conclui o mesmo autor que esta figura da cláusula geral anti-abuso “...é composta pelos negócios reais estruturados, por pleno acordo entre as partes, com vista a atingir um negócio fiscalmente menos oneroso, obtendo simultaneamente um efeito económico próximo do que seria atingido por via do negócio fiscalmente mais oneroso."

Atendendo aos factos expostos e, a nosso ver, demonstrados neste documento, propõe-se, em síntese, a desconsideração para efeitos fiscais destas operações e a consequente tributação em sede de IRS, a título de dividendos, dos valores recebidos pelos acionistas.

De acordo com o artigo 101° – n° 2, alínea a) do CIRS, a obrigação de proceder à retenção na fonte competiria à sociedade A…, SGPS, uma vez que foi esta entidade que colocou estes rendimentos à disposição dos acionistas.

A taxa de retenção encontra-se prevista na alínea c) do n° 3 do art. 71° do CIRS, sendo de aplicar a redação em vigor na data da colocação à disposição dos rendimentos, designadamente:

- 26,50% – de 30.10.2012 a 31.12.2012 – Lei 55-A/2012 de 29/10

- 25,00% – de 01.01.2012 a 29.10.2012 – Lei n" 64-B/2011 de 30/12

- 21,50% – de 01-07-2010 a 31/12/2011 – Lei n° 12-A/2010 de 30/06

- 20,00% – de 01-01-2006 a 30-06-2010 – Decreto Lei n° 192/2005 de 7/11

A tributação dos dividendos distribuídos a sujeitos passivos residentes através da retenção na fonte à taxa liberatória prevista no art. 71° do CIRS tem a natureza de pagamento liberatório, sem prejuízo da opção pelo englobamento, nos termos do art. 71° n° 6 do CIRS.

O artigo 103° do CIRS tipifica a responsabilidade em caso de substituição, indicando a entidade à qual é exigível o imposto em falta, bem como os juros compensatórios, atendendo à qualidade de residente, ou não, em território português dos beneficiários destes rendimentos, sendo que, no caso em apreço, seria de aplicar o n°. 4 do art. 103° do CIRS

Face a tudo quanto fica exposto propõe-se que seja tributada a sociedade A…, SGPS, pela falta de retenção na fonte de IRS, de acordo com os valores e com referência aos períodos evidenciados nos quadros seguintes:

 

(...)

t)       Por despacho de 18-12-2013, o Senhor Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira autorizou a aplicação da cláusula geral antiabuso (1.ª página do Relatório da Inspecção Tributária);

u)       Na sequência das correcções efectuadas, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu a liquidação de IRS n.º 2014 …, referente ao ano de 2011 e relativa a retenções na fonte, e a liquidação de juros compensatórios n.º € 2014 …, ambas datadas de 13-01-2014, no valor total de 2.960.989,23, sendo € 2.756.762,25 de IRS e € 204.226,98 de juros compensatórios, cm data limite de pagamento de 13-03-2014 8doc n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

v)      Em 13-03-2014, a Requerente pagou a quantia de € 2.960.989,23, relativa às liquidações de IRS e juros compensatórios referidas neste autos (documento n.º 14, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

w)     Em 15-05-2014, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

2.3. Fundamentação da matéria de facto

 

                A fundamentação da decisão da matéria de facto baseia-se no Relatório da Inspecção Tributária e nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral.

 

                3. Matéria de direito

 

                3.1. Questões a decidir

 

3.1.1. Vícios imputados aos actos de liquidação de IRS e juros compensatórios

 

Está em causa no presente processo apreciar a legalidade da liquidação de IRS n.° 2014 …, de 13-01-2014, relativa ao ano de 2011, no valor de € 2.756.226,98, e da correspondente liquidação de juros compensatórios n.º 2014 …, no valor de € 204.226,98, decorrentes da aplicação da cláusula geral antiabuso à aquisição pela Requerente de 85,5% do capital social da sociedade A…, S.A. e ao aumento do capital social da Requerente por entrada em espécie de uma participação adicional de 4,5% naquela mesma sociedade.

A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que se verificam os requisitos da aplicação da cláusula geral antiabuso, que consta do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, pelo que deve ocorrer «desconsideração para efeitos fiscais destas operações e a consequente tributação em sede de IRS, a título de dividendos, dos valores recebidos pelos acionistas» e que «de acordo com o artigo 101º - n° 2, alínea a) do CIRS, a obrigação de proceder à retenção na fonte competiria à sociedade A…, SGPS, uma vez que foi esta entidade que colocou estes rendimentos â disposição dos acionistas» (página 29 do Relatório da Inspecção Tributária).

A Requerente imputou à liquidação de IRS em causa os seguintes vícios:

a) Preterição do dever de inquirir, por falta de diligências concretas encetadas pela Administração Tributária no procedimento inspectivo para determinação da base factual relevante para aferição dos pressupostos de aplicação da cláusula geral antiabuso, em violação do artigo 58.° da LGT;

b) Falta de preenchimento dos pressupostos de aplicação da cláusula geral antiabuso, em violação do disposto no artigo 38.°, n.° 2, da LGT, nomeadamente por:

i. Inexistência de motivação essencial ou principal de natureza fiscal para a compra e venda de acções da A…, S.A. e, bem assim, para o aumento de capital da Requerente por entrada em espécie de acções da referida sociedade;

ii. Inexistência de recurso a meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas;

iii. Inexistência de vantagem fiscal obtida como resultado da compra e venda de acções e, bem assim, do aumento de capital por entrada em espécie;

iv. Inexistência de desconformidade do resultado obtido com a ratio legis das normas aplicadas;

c) Inoponibilidade à Requerente, como substituta tributária, da desconsideração de efeitos fiscais resultante da aplicação da cláusula geral antiabuso aos actos em questão, em concomitante violação do artigo 38.°, n.° 2, da LGT ou, caso assim se não entenda, por inconstitucionalidade dessa norma em face dos princípios da certeza e inadmissível do direito à propriedade privada garantido pelo Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem ("CEDH").

 

No que concerne à liquidação de juros compensatórios, para além da sua nulidade como acto consequente se for declarada a ilegalidade da liquidação de IRS, a Requerente defende que não estão em qualquer caso preenchidos os pressupostos legais necessários para qualquer liquidação de juros compensatórios.

No caso de vir a ser declarada a ilegalidade de qualquer dos actos de liquidação, haverá que apreciar a pretensão de pagamento de juros indemnizatórios formulada pela Requerente.

 

3.1.2. Ordem de conhecimento de vícios

 

De harmonia com o disposto no artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, não sendo imputados à declaração de IRS vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade, nem indicada uma relação de subsidiariedade, a ordem de apreciação dos vícios deve ser a que segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.

                No caso em apreço, o vício imputado pela Requerente que fornece mais estável e eficaz tutela dos interesses da Requerente é o referido na alínea c) referida, já que lhe está subjacente a inconstitucionalidade da cláusula geral antiabuso se interpretada como podendo os efeitos da sua aplicação atingir os substitutos tributários.

                Este vício, a verificar-se, afastará definitivamente a possibilidade de impor à Requerente qualquer tributação a nível de IRS na qualidade de substituta tributária, única possível relativamente a uma pessoa colectiva, independentemente da verificação ou não dos pressupostos da aplicação da cláusula geral antiabuso, nos termos em que foi feita a sua aplicação à situação em apreço ou em quaisquer outros.

                De qualquer modo, no máximo, a alegada não verificação dos pressupostos da aplicação da cláusula geral antiabuso fornecerá tutela equivalente àquele vício de inconstitucionalidade, pelo que é inequívoco que será indiferente começar a apreciar as questões de legalidade suscitadas pela Requerente por um ou outro destes vícios das alíneas b) ou c) referidas.

                Por isso, sendo as questões de inconstitucionalidade logicamente prioritárias, pois «nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados» (artigo 204.º da CRP), justifica-se que se opte pela apreciação prioritária da questão suscitada pela Requerente referida naquela alínea c).

No que concerne ao vício indicado pela alínea a), tendo natureza meramente procedimental, é manifesto que fornece uma tutela não estável dos interesses da Requerente, pois a sua eventual verificação não afasta a possibilidade de vir a ser renovada uma liquidação de IRS com o mesmo sentido da que é objecto do presente processo, após sanação da hipotética deficiência instrutória.

Como é corolário do estabelecimento pelo referido artigo 124.º do CPPT de uma ordem de conhecimento de vícios, se for julgado procedente um vício que assegura a eficaz tutela dos direitos dos impugnantes, não será necessário conhecer dos restantes, pois, se fosse sempre necessário apreciar todos os vícios imputados ao acto impugnado, seria indiferente a ordem do seu conhecimento.

 

3.1.3. Irrelevância de fundamentação a posteriori

 

A Requerente, nos §§ 29 e 30 das suas alegações coloca a questão da irrelevância de fundamentação a posteriori, entendida como não constante dos actos cuja declaração é pedida,

O processo arbitral tributário sido criado pelo RJAT como alternativa ao processo de impugnação judicial ( [1] ), é, como este, um meio contencioso de mera anulação ( [2] ).

Num contencioso de mera legalidade, como é o previsto no RJAT para os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, em que se visa apenas a declaração de ilegalidade de actos dos tipos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do seu artigo 2.º, tem de se aferir da legalidade do acto impugnado tal como ocorreu, com a fundamentação que nele foi utilizada, não sendo relevantes outras possíveis fundamentações que poderiam servir de suporte a outros actos, de conteúdo decisório total ou parcialmente coincidente com o acto praticado. São, assim, irrelevantes fundamentações invocadas a posteriori, após o termo do procedimento tributário em que foi praticado o acto cuja declaração de ilegalidade é pedida, inclusivamente as aventadas no processo jurisdicional.

Assim, não pode o Tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos, invocados apenas no processo contencioso, e deixar de declarar a ilegalidade do concreto acto praticado por, eventualmente, existir a possibilidade abstracta um hipotético acto com conteúdo decisório total ou parcialmente idêntico, com outra fundamentação, que seria legal, mas não foi praticado. ( [3] )

Por isso, é, à face apenas do teor do acto impugnado que é apreciada a sua legalidade.

 

 

                3.2. Questão da inoponibilidade ao substituto tributário da desconsideração de efeitos fiscais resultante da aplicação da cláusula geral antiabuso

 

 

3.2.1. Posição da Requerente

 

A Requerente alega sobre esta questão, nos artigos 147.º e seguintes do pedido de pronúncia arbitral, o seguinte, em suma:

 

– A Administração Tributária não imputa à Requerente qualquer actuação subsumível à previsão normativa do artigo 38.°, n.° 2, da LGT, fundamentando a liquidação de IRS impugnada apenas na alegada responsabilidade por não retenção na fonte de imposto aquando do pagamento de parte do preço devido pela aquisição das acções da A…, S.A. – considerando a Administração Tributária que essa retenção deveria ter ocorrido em face da ineficácia fiscal da aquisição de acções e consideração do preço pago como distribuição de dividendos;

– O artigo 38.°, n.° 2, da LGT não tem aptidão para junto de terceiros despoletar o nascimento de obrigações fiscais acessórias – mormente de retenção na fonte – existentes apenas em face da reconfiguração jurídico-fiscal operada no contexto da aplicação da cláusula geral antiabuso, sob pena de inconstitucionalidade da norma em face dos princípios da certeza e segurança jurídicas, ínsitos ao Estado de Direito democrático consagrado no artigo 2.° da CRP, e, bem assim, de violação inadmissível do direito à propriedade privada garantido pelo artigo 1.° do Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, face ao conceito de lei aí ínsito;

– Como resulta do Relatório de Inspecção Tributária, a Administração Tributária considera que os alienantes das acções da A…,, S.A. auferiram rendimentos, pagos pela Requerente, que, caso não tivessem sido praticados actos por aquela tidos como artificiosos ou fraudulentas e com abuso das formas jurídicas (para contorno das normas de incidência tributária), teriam correspondido a pagamentos de dividendos procedentes da referida A…,, S.A.;

– Sucede que a elevação da Requerente à condição de obrigada tributária no caso em apreço traduz uma errada interpretação pela Administração Tributária do alcance da aplicação do artigo 38.°, n.° 2, da LGT – nessa medida inquinando de ilegalidade a liquidação impugnada –, já que a cláusula geral antiabuso não opera para fazer nascer obrigações fiscais acessórias – ou seja, para impor a terceiros obrigações instrumentais como a de reter e entregar imposto nos Cofres da Fazenda Pública;

– Efectivamente, perante uma situação de abuso, o escopo e propósito do artigo 38.°, n.° 2, da LGT é permitir o nascimento da obrigação tributária principal, possibilitando à Administração Tributária a liquidação do imposto abusivamente evitado pelo contribuinte (neutralizando os efeitos fiscais da conduta abusiva);

– Mesmo no específico contexto da tributação de rendimentos mediante retenção na fonte do imposto com natureza liberatória – e porventura até aí com mais premência – é importante distinguir entre a obrigação tributária acessória que impende sobre um substituto tributário, de reter uma parte da quantia de que é devedor perante o contribuinte aquando do cumprimento da obrigação de pagamento – para a entregar, não ao credor, mas à Administração Tributária –, e a obrigação tributária principal, de suportar o encargo do imposto, que impende sobre o respectivo contribuinte;

– É certo que mediante a entrega da quantia retida pelo substituto tributário, em particular quando a retenção tem natureza liberatória, a dívida tributária se extingue sem que o contribuinte tenha afinal qualquer contacto directo com o sujeito activo da relação tributária, mas tal não altera o facto de o substituto obrigado à retenção ser sujeito passivo de uma obrigação diversa da obrigação tributária do contribuinte, e que portanto não tem o condão de excluir este último, sujeito passivo do imposto, do âmbito da relação jurídica tributária;

– Neste contexto, como é bom de ver, não se pode razoavelmente pretender que o imposto tivesse sido arrecadado por terceiro, em observância de um dever acessório de retenção existente apenas à luz da aplicação, promovida a posteriori pela Administração Tributária, do artigo 38.°, n.° 2, da LGT;

– De facto, como a própria Administração Tributária reconhece, em relação à Requerente não se pode dar por preenchido qualquer dos requisitos de aplicação da cláusula geral antiabuso (elementos intelectual, meio, resultado e normativo);

– Mesmo admitindo que no caso em apreço estariam verificados os pressupostos para a aplicação da cláusula geral antiabuso relativamente aos alienantes das acções da A…,, S.A. – o que de modo algum se concede –, é evidente que aquando do pagamento do preço pela aquisição daquela participação social – e relativamente a esse acto jurídico – não impendia sobre a Requerente qualquer obrigação de retenção na fonte, não podendo por isso esta ser responsabilizada pelo incumprimento de semelhante obrigação;

– Com efeito, sobre o pagamento do preço devido pela aquisição de acções – que constitui na verdade o único negócio jurídico praticado pela Requerente – não há qualquer norma que determine para o adquirente uma obrigação acessória de retenção na fonte de imposto;

– A Administração Tributária não pode pretender, com base na aplicação da cláusula geral antiabuso, operar uma reconstituição da realidade hipotética e alternativa que existiria se tivessem sido de facto distribuídos dividendos em vez de rendimentos de mais-valias, ao ponto de responsabilizar um contribuinte que não denotou qualquer comportamento abusivo – no caso, a Requerente – por haver incumprido uma obrigação de retenção na fonte existente apenas na realidade imaginada para aferição da vantagem fiscal cuja produção, porque abusivamente obtida, o artigo 38.°, n.º 2, da LGT impede.

– Aliás, diga-se, se a Administração Tributária pudesse de facto redefinir juridicamente a realidade em função da situação que assume teria ocorrido na ausência dos negócios jurídicos reputados abusivos – e não apenas ter estes por ineficazes para efeitos fiscais para subtracção da vantagem abusivamente obtida –, o terceiro que estaria obrigado à retenção do imposto em causa seria a A…,, S.A. e não a Requerente;

– De todo o modo, através da aplicação da cláusula geral antiabuso a Administração Tributária só pode exigir (dos respectivos contribuintes) a obrigação tributária principal que abusivamente foi evitada, invocando para o efeito a ineficácia fiscal dos actos e negócios jurídicos que materializaram esse abuso, sem todavia alterar os efeitos e qualificação jurídica de tais actos perante terceiros;

– Com efeito, decorre claramente da própria letra do artigo 38.°, n.° 2, da LGT que a consequência da aplicação da cláusula geral antiabuso se limita à ineficácia dos actos e negócios jurídicos considerados abusivos apenas e somente para efeitos fiscais, resultando a contrario sensu que se mantêm todos os demais efeitos produzidos por aqueles actos e negócios, permanecendo incólume, designadamente, a respectiva qualificação jurídica;

– Ora, conforme decorre da factualidade descrita, a Requerente não procedeu a qualquer pagamento de dividendos mas sim ao pagamento de um preço pelas acções por si adquiridas, facto que se não altera com a hipotética aplicação da cláusula geral antiabuso;

– Dito de outro modo, a ineficácia para efeitos fiscais dos negócios abusivos permite à Administração Tributária proceder à tributação que existiria na ausência desses negócios in casu, tributar os dividendos que considera que teriam sido distribuídos –, mas o artigo 38.°, n.º 2, da LGT não determina nem permite que se ficcionem deveres acessórios de terceiros, os quais só existiriam se os negócios jurídicos praticados tivessem sido, de facto, outros;

– Fazendo uma vez mais apelo à própria letra do artigo 38.°, n.º 2, da LGT, constata-se que a estatuição da referida norma impõe multo claramente que se elimine a vantagem fiscal obtida, o que só ocorrerá naturalmente se os efeitos da respectiva aplicação se repercutirem directamente na esfera do contribuinte que abusivamente se eximiu da obrigação tributária;

– Em face do exposto, facilmente se conclui que, no caso em apreço, não se constituiu qualquer obrigação de retenção na fonte sobre a Requerente nos termos dos artigos 71.°, n.° 1, alínea c), e 101.°, n.º 2, alínea a), do CIRS, não decorrendo da aplicação da cláusula geral antiabuso a ficção do nascimento de semelhante obrigação na esfera da Requerente, motivo pelo qual é ilegal a responsabilização da Requerente com base no artigo 103.° CIRS;

– Diferente entendimento, interpretando a cláusula geral antiabuso no sentido de produzir efeitos fiscais sobre terceiros que não o contribuinte que agiu motivado para a obtenção de vantagem fiscal, atentará claramente contra os valores constitucionalmente consagrados da certeza e segurança jurídicas, decorrentes do conceito de Estado de Direito democrático postulado no artigo 2.° da CRP, bem como contra o princípio da proporcionalidade na restrição do direito de propriedade privada da Requerente, decorrente dos artigos 18.°, n.° 2, e 62.°, n.º 1, da CRP;

– Admitir que um terceiro possa ser responsabilizado por falta de retenção na fonte em situações em que essa obrigação não existe face aos actos jurídicos concretos em que o terceiro teve intervenção, mas decorre apenas atendendo a uma conduta da respectiva contraparte reputada de abusiva pela Administração Tributária, equivaleria a impor ao substituto tributário um desproporcionado e inadmissível ónus de fiscalização daquele abuso;

– A natureza desproporcionada de semelhante ónus é evidente: qualquer potencial substituto tributário, relativamente a todos os actos jurídicos em que tivesse intervenção, teria que proceder à determinação, não apenas do respectivo (e normal) enquadramento jurídico-fiscal, mas também apurar se, e em que medida, as respectivas contrapartes estariam a tomar parte em tais actos motivadas essencial ou principalmente por preocupações de natureza fiscal e, bem assim, se na perspectiva dessas contrapartes os actos jurídicos em causa poderiam ser considerados como abusivos – na acepção do artigo 38.°, n.° 2, da LGT –, caso em que incumbiria ao substituto proceder à retenção que eventualmente se mostrasse devida em face, não do acto jurídico praticado, mas daquele que previsivelmente teria lugar caso a actuação abusiva não existisse;

– Admitir-se que à Administração Tributária, apurada a posteriori a existência de uma conduta abusiva, competiria apenas exigir do substituto o imposto abusivamente evitado pelo contribuinte com o argumento de que foi incumprido um dever de retenção na fonte, corresponderia a transferir integralmente para a esfera do substituto, não apenas o dever de fiscalização tributária de condutas fiscalmente abusivas – obrigação da Administração Tributária –, mas também o próprio encargo do imposto – obrigação do contribuinte –, porquanto apurada a posteriori uma conduta abusiva o substituto ver-se-á invariavelmente numa situação em que não disporá já das quantias sobre as quais a retenção haveria de ocorrer, suportando assim directamente na sua esfera o Imposto como consequência da aplicação do artigo 103.° do CIRS;

– Perante tal interpretação normativa do artigo 38.°, n.° 2, da LGT, os substitutos tributários se veriam permanentemente perante uma tarefa altamente complexa (ou mesmo impossível) de perscrutar e determinar as motivações intelectuais das suas contrapartes no contexto do normal desenrolar do tráfego jurídico, correndo o risco da natureza abusiva da actuação daquelas e vivendo na contingência da respectiva responsabilização por incumprimento de um dever de retenção existente apenas em face desse eventual abuso;

– O princípio da protecção da certeza e da segurança jurídica encontra-se consagrado no artigo 2.° da CRP, decorrendo do conceito de Estado de Direito;

– Em matéria fiscal, o princípio da certeza e da segurança jurídica implica claramente que seja garantida aos sujeitos passivos – entre os quais os substitutos tributários – uma medida de segurança no que respeita ao correcto cumprimento das regras fiscais, impondo ao legislador que enuncie expressa e pormenorizadamente os pressupostos jurídicos e factuais das obrigações tributárias, para que estas possam ser adequadamente cumpridas.;

– Não é minimamente compaginável com essa segurança a conclusão de que a existência ou não de uma obrigação de retenção na fonte de imposto – que, se incumprida, determinará a responsabilidade tributária do substituto – depende, não do acto ou negócio jurídico praticado pelo substituto tributário, mas da motivação subjectiva da sua contraparte;

– Por outro lado, do artigo 18.°, n.° 2, da CRP decorre também um princípio geral de proporcionalidade – ou de proibição do excesso – na restrição de direitos, liberdades e garantias;

– Se é certo que a limitação ínsita no artigo 18.°, n.° 2, da CRP resulta inaplicável à obrigação de imposto stricu sensu, o mesmo não sucede relativamente a obrigações fiscais acessórias – como sucede com a obrigação de retenção na fonte que a Administração Tributária entende impender sobre a Requerente –, não se reconduzindo tais obrigações acessórias já a um limite imanente a direitos, liberdades e garantias, mas apenas a um dever de cooperação, determinado legalmente;

– Deste modo, ainda que se não questione a existência e necessidade desses deveres de cooperação, é inequívoco que a extensão e intensidade da concretização legal dos mesmos não pode deixar de se encontrar sujeita ao princípio da proporcionalidade;

– Constitui entendimento da Requerente, atendendo à já referida impassibilidade de apurar com a necessária certeza as motivações subjectivas das suas contrapartes no referido negócio, que semelhante interpretação do artigo 38.°, n.° 2, da LGT colide frontalmente com o princípio da proporcionalidade das normas restritivas dos direitos, liberdades e garantias – consagrado no artigo 18.°, n.° 2, da CRP e cujo escopo protector abrange, atento o disposto no artigo 17.° da CRP, o seu direito à propriedade privada, consagrado no artigo 62.°, n.° 1, da CRP;

– A norma do artigo 38.°, n.° 2, da LGT, se interpretada como fazendo despoletar junto de terceiros obrigações fiscais acessórias -mormente de retenção na fonte – existentes apenas em face da reconfiguração jurídico-fiscal operada por tal cláusula geral antiabuso é materialmente inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais acima referidos, não podendo por isso ser aplicada, o que se invoca para os devidos efeitos legais e determinará a ilegalidade da liquidação de IRS impugnada;

– Sempre se deverá entender que a referida tributação consubstancia em todo o caso uma violação do artigo 1.° do Protocolo Adicional è Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que consagra um direito subjectivo a favor dos particulares: o direito à não ingerência, ilegal, do Estado, na sua propriedade privada;

– Quanto ao conceito de lei para efeitos de aplicação da excepção prevista na parte final do artigo 1.° do Protocolo Adicional à CEDH, a Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é pacífica no sentido de ser necessário que o suporte normativo através do qual é instituído o imposto tenha a qualidade de "lei", não apenas do ponto de vista formal, mas também, substantivamente, à luz dos princípios comuns do Estado de Direito;

– O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem afirmou que legislação Fiscal pouco clara, atenta a respectiva falta de capacidade ordenadora, não pode servir de base para justificar uma afectação do património individual dos particulares através da tributação, traduzindo-se na violação do artigo 1.° do Protocolo Adicional à CEDH por não revestir a qualidade de "lei" no sentido da parte final desse normativo;

– O mesmo Tribunal entendeu é necessário desde logo que a "lei" seja suficientemente acessível: o cidadão deve poder dispor de informação suficiente, de acordo com as circunstâncias do caso, sobre as normas jurídicas aplicáveis a uma dada situação e que apenas se pode considerar como "lei" uma norma enunciada com exactidão suficiente que permita ao cidadão regular a sua conduta: se necessário aconselhando-se adequadamente, ele deve ser capaz de prever, com um grau de certeza razoável dentro das circunstâncias do caso, as consequências práticas decorrentes de uma determinada actuação;

– A preocupação de assegurar um "justo equilíbrio" entre as exigências de interesse geral da comunidade e os imperativos da salvaguarda dos direitos Fundamentais do indivíduo reflecte-se na estrutura do artigo 1.° como um todo e traduz-se na necessidade de uma relação razoável de proporcionalidade entre os meios empregues e o objectivo visado»;

– No caso concreto dos presentes autos, e tal como amplamente demonstrado supra, é manifesta a Incerteza decorrente do artigo 38.o, n." 2, da LGT no que diz respeito à existência de uma obrigação acessória de retenção na fonte de imposto na esfera da Requerente, motivo pelo qual tal norma – que conjugada com o artigo 103.° do CIRS determina a responsabilidade patrimonial da Requerente pelo incumprimento dessa obrigação – não pode ser tida como revestindo a qualidade de "lei" necessária à compatibilidade da tributação por ela determinada com a protecção da propriedade privada consagrada no artigo 1.º do Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem;

– Tudo ponderado, é inequívoco que a aplicação do artigo 38.°, n.° 2, da LGT para fazer nascer na esfera da Requerente uma obrigação fiscal acessória de retenção na fonte se reconduz a uma ingerência no direito de propriedade da Requerente contrária ao artigo 1.° do Protocolo Adicional à CEDH, o que se traduz na ilegalidade e consequente anulabilidade da liquidação de IRS em referência, nos termos do artigo 135.° do CPA.

 

3.2.2. Posição da Autoridade Tributária e Aduaneira

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende, sobre esta questão, nos artigos 352.º e seguintes da sua Resposta, o seguinte, em suma:

 

– No caso em apreço, não poderá desde logo considerar-se que a Requerente seja um “terceiro”, porquanto, os intervenientes nas operações em causa são exactamente os mesmos, não podendo por esta via a Requerente alegar desconhecimento quanto às motivações dos envolvidos;

– Tal facto resulta igualmente do RIT, onde se refere que a venda das acções da sociedade A…, SA em favor da A…, SGPS, constituiu a prática de um ato que, apesar de formalmente lícito, teve subjacente a intenção de obter rendimentos, mais concretamente dividendos, que de outra forma estariam sujeitos a efectiva tributação, sendo que os “accionistas e administradores, relembre-se, são exactamente os mesmos”;

– Sendo a própria Requerente quem assume que não dispõe de outros colaboradores além dos seus administradores, que, sendo os mesmos administradores da A…,, S.A, não poderiam desconhecer as motivações que estiveram por detrás das operações;

– Do artigo 31.º, n.º 2, da LGT decorre que a obrigação da Requerente reter IRS na fonte não é mera obrigação acessória;

– A Requerente é sujeito passivo e parte activa desta relação tributária e responsável pela retenção na fonte de IRS;

– a lei não invalida ou anula os actos ou negócios praticados com intuito fraudatório, apenas torna ineficazes para efeitos tributários o ultimo ato da cadeia, estatuindo a reposição daquela que seria a tributação típica que pesaria sobre a verdadeira substância dos actos ou negócios;

– só no fim do “esquema” montado, o incremento patrimonial se revelou, pelo que não se compreende, por isso, a pretensão da Requerente de fazer radicar o elemento relevante antes desse resultado final, pois que o direito à liquidação ainda não se preenchera então;

– Os pagamentos/entregas que a ora Requerente efectuou aos seus accionistas como estorno de (supostos) créditos resultantes da venda de acções não liquidadas, são o culminar da operação/estrutura que foi montada e da qual a ora Requerente constituiu um “veículo”;

– Esses pagamentos/entregas foram desconsiderados pela Administração Tributária enquanto reembolsos de crédito (isentos de tributação) e havidos como a concretização, na esfera jurídica dos accionistas, do direito desta à percepção dos dividendos de que eram “credores” na A…, S.A.;

– Como tal, por se mostrar preenchida a previsão de um tipo legal de imposto (cf. artigo 5º, n.º 2, alínea h) do Código do IRS) e, ainda, a existência, por imposição da lei, de uma situação de substituição tributária (cf. artigo 20º da LGT) a obrigação de retenção de imposto não pode deixar de estar “ligada” à ora Requerente, pois foi a entidade que procedeu ao pagamento das quantias em causa;

– Desta forma, a Requerente encontrava-se, então, obrigada à retenção na fonte daqueles rendimentos, nos termos do artigo 101.º, n.º 2, alínea a) do Código do IRS, à taxa liberatória prevista no artigo 71.º do mesmo Código, enquanto entidade que colocou os rendimentos à disposição dos accionistas;

– Como tal, a Requerente é – como bem se referiu no Relatório inspectivo, de acordo com o disposto no artigo 103.º do Código do IRS – responsável pela entrega nos cofres do Estado das importâncias devidas a título de imposto, bem como dos respectivos juros compensatórios;

– O que a constitui, nos termos do n.º 3 do artigo 18.º da LGT, como sujeito passivo da relação jurídica tributária que teve concretização nas liquidações de imposto e juros ora impugnadas;

– no caso em apreço, não poderá considerar-se que a AT impôs sobre a Requerente um qualquer ónus de fiscalização de terceiros, porquanto, repete-se, os intervenientes nas operações em causa são exactamente os mesmos, não podendo por esta via a Requerente alegar desconhecimento quanto às motivações dos envolvidos;

– As obrigações acessórias, visam estas últimas apenas «possibilitar o apuramento da obrigação de imposto, nomeadamente a apresentação de declarações, a exibição de documentos fiscalmente relevantes, incluindo a contabilidade ou escrita, e a prestação de informações» (artigo 31.º da LGT);

– Não pode a requerente, para forçar a sua tese de ser um terceiro estranho aos negócios em causa e da alegada inconstitucionalidade sub judice, pretender que elementos essenciais da relação jurídica tributária (cf. artigo 36.º, n.º 2 da LGT), como os sujeitos (cf. artigos 18.º e 20.º da LGT) e o objecto da mesma (cf. artigo 30.º, n.º 1, alínea a) da LGT) sejam meras obrigações acessórias;

– Não pode igualmente aceitar-se a alegação de inconstitucionalidade material do artigo 38º, nº 2 da LGT sufragada na ideia de que se está a transferir para a Requerente o encargo do imposto, enquanto entidade alheia à relação jurídica tributária (como se não fosse, como se viu, sujeito passivo da mesma nos termos do artigo 18.º, n.º 3 da LGT), quando a mesma foi interveniente nas operações em apreço, não podendo desconhecer que a distribuição de dividendos – que se pretendeu evitar com a transmissão das acções – estaria sujeita a retenção da fonte;

– É seguro afirmar que não tinha o legislador em mente permitir a prática de um conjunto de actos que resultaram numa requalificação de dividendos em reembolso de créditos;

– A obrigação de proceder à retenção na fonte recai sobre a sociedade A…, SGPS, uma vez que foi esta entidade que colocou estes rendimentos à disposição dos accionistas, motivo pelo qual as correcções propostas se efectivaram na esfera da sociedade A…, SGPS;

– Tal entendimento não viola qualquer dos princípios constitucionais enunciados pela Requerente, nem mesmo quanto ao suposto ónus do imposto estar a ser transferido para a sua esfera, porquanto a aplicação da CGAA no caso presente implica que se analisem as operações como um todo, sendo que, nessa perspectiva, sendo a Requerente parte intrínseca das mesmas, não é plausível que venha alegar ser o seu direito de propriedade que está a ser afectado com a tributação;

– Pelo que, também por esta via, esmorecem as pretensões da Requerente, sendo de confirmar a legalidade das liquidações impugnadas no presente processo, por as mesmas se encontrarem igualmente conformes com a Constituição da República Portuguesa;

– A imposição à Requerente da obrigação de pagamento do imposto não é contrária ao artigo 1º do Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem;

– A singrar tal interpretação, conexa com a aceitação de uma tipicidade taxativa e fechada por forma a proteger a segurança e a certeza dos contribuintes face à Administração, seria inadmissível uma cláusula geral antiabuso porquanto esta violaria as características a que as normas de incidência fiscal devem obediência;

– Ora, ainda que a tipicidade fechada corresponda a um dos aspectos em que se subdivide o princípio da legalidade, certo é que a dita tipicidade não pode ser tomada, nos dias de hoje, em termos absolutos, devendo antes ser moderada ou temperada, atentas as exigências de operacionalidade e flexibilidade do sistema fiscal e dos impostos singularmente considerados;

– Caso não se criassem os mecanismos de combate à elisão fiscal, estar-se-ia a promover o arbítrio fiscal, negligenciando-se o princípio constitucional da igualdade fiscal;

– O princípio da legalidade fiscal constitui um princípio estruturante do Estado de Direito, assegurando o princípio da tipicidade e da segurança jurídica, mas não pode suceder que, com base naquele, se exija que a lei tudo preveja, sob pena de na maior virtude do princípio da legalidade residir, simultaneamente, a sua maior fraqueza;

– A interpretação vertida no RIT e de que resultaram as liquidações em crise, possa levar a que a norma ínsita no artigo 38º, nº 2 da LGT deixe de revestir a qualidade de lei necessária à tributação nos moldes em que foi efectuada, ou que tenha ocorrido qualquer ingerência no direito de propriedade da Requerente contrário do artigo 1º do Protocolo Adicional à CEDH.

 

 

3.2.3. Apreciação da questão da inoponibilidade ao substituto tributário da desconsideração de efeitos fiscais resultante da aplicação da cláusula geral antiabuso

 

As questões de inconstitucionalidade do artigo 38.º, n.º 2, da LGT e da sua incompatibilidade com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e Protocolo Adicional, dependem da interpretação que se faça desta norma, no que concerne à sua aplicabilidade a substitutos tributários.

No caso em apreço, a Requerente defende que a própria letra do artigo 38.º, n.º 2, da LGT impõe que «se elimine a vantagem fiscal obtida, o que só ocorrerá naturalmente se os  efeitos da respectiva aplicação se repercutirem directamente na esfera do contribuinte que abusivamente se eximiu da obrigação tributária» (artigo 171.º do pedido de pronúncia arbitral).

Na interpretação das normas legais, na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exacto) de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento. ( [4] ).

O artigo 38.º, n.º 2, da LGT foi introduzido pela Lei n.º 100/99, de 26 de Julho, reproduzindo a norma que constava do artigo 32.º-A do Código de Processo Tributário de 1991, aditado pela Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro, com a seguinte redacção

 

2. São ineficazes os actos ou negócios jurídicos quando se demonstre que foram realizados com o único ou principal objectivo de redução ou eliminação dos impostos que seriam devidos em virtude de actos ou negócios jurídicos de resultado económico equivalente, caso em que a tributação recai sobre estes últimos.

 

A Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, deu a este artigo 38.º, n.º 2, a seguinte redacção:

 

2. São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.

 

Realçou-se a negrito, nesta última redacção, a referência a um aditamento de texto em relação à versão inicial que tem particular relevo para interpretação da norma, no ponto que aqui está em causa de saber se, na sequência de planeamento fiscal abusivo, uma sociedade que tem o papel de substituto na relação jurídica tributária de IRS pode ser responsável pelo pagamento das quantias que se entenda serem devidas, por ter sido omitido a retenção na fonte do imposto.

Na verdade, a parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT (redacção da Lei n.º pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro), ao estabelecer as consequências da aplicação da cláusula geral antiabuso «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» aponta decisivamente no sentido de a aplicação ter de ser efectuada em moldes que permitam afastar a produção das vantagens fiscais.

Não era idêntica, neste aspecto, a redacção inicial desta norma, em que se estatuía que, como consequência da aplicação da cláusula geral antiabuso, a tributação recairia sobre os actos ou negócios jurídicos de resultado económico equivalente, sem qualquer alusão à eliminação das vantagens fiscais, mas a referência expressa que se faz na nova redacção à não produção dessas vantagens como efeito da aplicação da cláusula geral antiabuso veio tornar indispensável que as consequências da sua aplicação atinjam quem as obteve.

Por outro lado, sendo esta eliminação das vantagens fiscais o objectivo expresso da cláusula geral antiabuso, o destinatário da aplicação desta cláusula, aquele em cujo património se irão produzir os efeitos da aplicação, não pode deixar de ser quem usufruiu dessas vantagens fiscais.

No caso em apreço, as vantagens fiscais referidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira consistem nos «valores já pagos aos acionistas pela sociedade A…, SGPS, cujos valores e datas de pagamento constam dos quadros XI, XII, XIII, XIV e XV, bem como ao aumento de capital por entradas em espécie, os quais se propõe sejam qualificados como verdadeira natureza de distribuição de dividendos, uma vez que proporcionaram a disponibilidade do dinheiro aos sócios sem sofrer qualquer tributação em sede de IRS» (página 29 do Relatório da Inspecção Tributária).

Constata-se assim, que a existirem vantagens fiscais indevidas na situação em apreço, designadamente por parte das quantias recebidas pelos accionistas da Requerente e as relativas a entradas de capital em espécie dever ser tributada a título de dividendos, como defende a Autoridade Tributária e Aduaneira, é manifesto que, como o se refere no Relatório da Inspecção Tributária, quem as obteve foram os accionistas, que obtiveram aumentos patrimoniais sem qualquer pagamento de imposto e não a Requerente, que foi mero veículo para que esses aumentos se concretizassem.

Sendo os accionistas os beneficiários das vantagens referidas, a aplicação da cláusula geral antiabuso nos termos em que foi efectuada não permite afastar as essas vantagens, pois, impondo à Requerente o pagamento das quantias equivalentes a essas vantagens, é apenas a ela que é imposto este ónus, permanecendo os accionistas na titularidade intacta das vantagens patrimoniais obtidas.

Poder-se-á aventar que, mais cedo ou mais tarde, o prejuízo patrimonial com a tributação que é imposta à sociedade se repercutirá sobre os accionistas, mas é também evidente que isso pode não suceder em relação aos accionistas que beneficiaram das vantagens indevidas, pois podem deixar de ser accionistas antes de o prejuízo imposto à sociedade ter uma efectiva repercussão no valor das suas acções. Apesar de, no caso em apreço, se estar perante uma sociedade com uma estrutura accionista que tem mantido considerável estabilidade, não deixaram de existir alterações, relatadas na matéria de facto fixada, e não há qualquer certeza isso não possa vir a suceder.

Mas, a particularidade deste caso que constitui esta relativa estabilidade da estrutura accionista não pode relevar para a interpretação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, pois esta norma jurídica tributária de que resulta a imposição de tributação, não pode deixar de ter em conta a característica da generalidade, indispensável nas normas de tributação por força do disposto no artigo 5.º, n.º 2, da LGT, que é corolário do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos.

Por isso, a interpretação correcta do artigo 38.º, n.º 2, terá valer generalizadamente, em relação que qualquer tipo de sociedades anónimas, inclusivamente as cotadas em bolsa em que a estrutura accionista se altera constantemente, relativamente às quais é evidente que a imposição da tributação à sociedade por, com a sua intermediação, os accionistas terem criado para si próprios vantagens fiscais indevidas não ter qualquer efeito sobre quem usufruiu dessas vantagens e deixou, depois, de ser accionista.

Ora, a esta luz, é evidente que o alcance daquele artigo 38.º, n.º 2, ao estabelecer como efeito necessário da aplicação da cláusula geral antiabuso a não produção das vantagens fiscais, pressupõe o entendimento legislativo de que a «tributação de acordo com as normas aplicáveis» incida sobre quem obteve as vantagens e não sobre quem meramente teve intervenção nos actos de que elas resultam sem beneficiar daquelas, pois só assim, é possível garantir o efeito pretendido de não se produzirem as vantagens fiscais referidas.

Na verdade, conclui-se da parte final do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redacção da Lei n. 30-G/2000, que a cláusula geral antiabuso não tem em vista meramente atribuir à Administração Tributária compensação por actos que lhe tenham provocado perda de receita fiscal, antes visa, concomitantemente, eliminar as vantagens fiscais ilegítimas que alguém obteve, o que revela que lhe estão subjacentes preocupações de igualdade e justiça tributária, que só podem satisfazer-se com a imposição da tributação omitida a quem obteve essas vantagens.   

De resto é esta a única interpretação que se compatibiliza com o princípio da tributação segundo a capacidade contributiva (artigo 104.º, n.º 2, da CRP) e o princípio da tributação com respeito pela justiça material (artigo 5.º, n.º 2, da LGT).

Com efeito, estes princípios impõem que seja tributado em impostos sobre o rendimento quem obteve os rendimentos e não quem os não obteve e o valor da justiça material é claramente quando, numa situação em que existam vantagens fiscais indevidas, vá ser exigida a quantia correspondente a quem não beneficiou dessas vantagens, deixando intocados os que indevidamente delas beneficiaram.

Tendo em mente estes princípios, é seguro que a redacção do n.º 2 do artigo 38.º da LGT introduzida pela Lei n.º 30-G/2000, exige que a aplicação da cláusula geral antiabuso tenha como efeito a não produção das vantagens fiscais indevidas, pelo que está pressuposto nesta norma que, pelo menos nos casos em que as vantagens fiscais já se tenham produzido, o destinatário da aplicação seja quem delas usufrui.

                Por isso, no caso em apreço, não tendo a Requerente usufruído qualquer vantagem fiscal, está afastada a possibilidade de ser responsabilizada pelo pagamento das quantias correspondentes às vantagens fiscais indevidas que a Autoridade Tributária e Aduaneira invoca.

                Na verdade, não existe qualquer disposição legal que assegure à Requerente a possibilidade de reaver a quantia liquidada exigindo o seu pagamento a quem beneficiou das vantagens fiscais, pois a responsabilidade dos accionistas, no caso de retenção na fonte que não tem a natureza de pagamento por conta, é meramente subsidiária, por força do disposto no n.º 3 do artigo 103.º do CIRS, e não existe qualquer disposição legal que assegure direito de regresso do responsável originário em relação ao subsidiário.

Por outro lado, nem mesmo é de aventar a possibilidade de, com fundamento na lei civil, a Requerente reaver o que pagou na medida do enriquecimento dos accionistas, com fundamento em enriquecimento sem causa, pois a aplicação da cláusula geral antiabuso apenas permite considerar ineficazes os negócios ou actos «no âmbito do direito tributário», como resulta do texto do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, pelo que os negócios celebrados mantêm a sua plena eficácia para efeitos cíveis e, em termos do direito civil, a recepção integral das quantias recebidas pelos accionistas tem causa jurídica, pois é a contrapartida da transmissão das acções destes para a Requerente, no âmbito da compra e venda.

A isto acresce, na linha do que defende a Requerente, que a norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, se interpretada como admitindo a oponibilidade dos efeitos da aplicação da cláusula geral antiabuso ao substituto tributário, designadamente a imposição dos efeitos do incumprimento de um dever de retenção na fonte que não existia à face do negócio efectivamente celebrado, associada à inviabilidade de reaver as quantias não retidas, é materialmente inconstitucional, à face dos princípios da proporcionalidade e do direito a propriedade (artigos 18.º, n.º 2, e 62.º, n.º 1, da CRP).

Com efeito, estando a existência de um dever de retenção na fonte dependente da natureza jurídica dos pagamentos efectuados e só sendo possível considerar ineficaz para efeitos fiscais o negócio celebrado depois de uma autorização casuística do dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência (artigo 63.º, n.º 7, do CPPT), o potencial substituto tributário ficaria juridicamente impossibilitado de impedir uma diminuição patrimonial provocada por dívidas fiscais de outrem, pois, no momento em que efectuou os pagamentos, não tinha fundamento legal para efectuar retenção na fonte e esse dever só surgiria, com efeito retroactivo, na sequência da aplicação da cláusula geral antiabuso que permitisse considerar fiscalmente ineficaz o negócio celebrado, sem possibilidade de reaver o que teria de pagar.

                Nestes termos, tem de se concluir pela ilegalidade dos actos impugnados por violação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, por vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, que justifica a sua anulação, nos termos do artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo, aplicável por força do disposto no artigo 2.º alínea c), da LGT.

 

                3.2.4. Questões de conhecimento prejudicado

 

                Concluindo-se que é errada a interpretação adoptada pela Autoridade Tributária e Aduaneira ao entender que os efeitos da aplicação da cláusula geral antiabuso deveriam recair sobre a Requerente e que o artigo 38.º, n.º 2, da LGT tem de ser interpretado como apenas permitindo fazer recair os efeitos da aplicação da cláusula geral antiabuso sobre quem obteve as vantagens fiscais indevidas, fica prejudicado o conhecimento das questões de inconstitucionalidade e de violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que a requerente colocou tendo como pressuposto a interpretação da Autoridade Tributária e Aduaneira subjacente à liquidação de IRS impugnada.

Como já se referiu no ponto 3., a propósito da interpretação do artigo 124.º do CPPT, tendo-se concluído que a liquidação de IRS impugnada enferma de um vício que obsta à renovação do acto em relação a Requerente, fica também prejudicado o conhecimento dos restantes vícios que a Requerente lhe imputou.

 

3.3. Vícios da liquidação de juros compensatórios

 

Sendo anulada a liquidação de IRS, a liquidação de juros compensatórios passa enfermar supervenientemente de nulidade, como decorre do artigo 133.º, n.º 2, alínea i), do Código do Procedimento Administrativo, aplicável por força do disposto no artigo 2.º alínea c), da LGT.

 

                4. Juros indemnizatórios

 

A Requerente pede ainda que seja determinado o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, relativamente à quantia de € 2.960.989,23 que pagou em 13-03-2014, como se vê pelo documento n.º 14 junto com o pedido de pronúncia arbitral.

                A Autoridade Tributária e Aduaneira refere na sua resposta que «para haver lugar ao direito a juros indemnizatórios no presente processo é necessário que se preencham os seguintes requisitos, constantes do artigo 43º da LGT: que este tribunal arbitral coletivo determine a existência de erro num ato de liquidação, que tal erro seja imputável aos serviços da Requerida, e que desse erro tenha resultado o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» (artigo 455.º da resposta).

De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.

Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

Nos termos do artigo 43.º da LGT, na parte aqui aplicável, «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».

No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de IRS e juros compensatórios, há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios pois a ilegalidade daqueles actos é imputável à Administração Tributária, que, por sua iniciativa, os praticou sem suporte legal.

Está-se perante violação de lei substantiva, consubstanciado em erro nos pressupostos de direito, imputável à Administração Tributária.

Consequentemente, a Requerente têm direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º do CPPT, calculados sobre a quantia que pagou indevidamente, à taxa dos juros legais prevista no artigo 559.º do Código Civil e, actualmente, na Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT).

 

5. Decisão

 

 

                De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)      Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)      Declarar a ilegalidade dos seguintes actos:

– n.º 2014 …, de 13-01-2014, relativa ao ano de 2011, no valor de € 2.756.762,25;

– liquidação de juros compensatórios n.º 2014 …, no valor de € 204.226,98;

c)       Anular a liquidação de IRS referida e declarar nula a liquidação dos juros compensatórios;

d)      Considerar prejudicado e não tomar conhecimento dos restantes vícios imputados aos actos cuja declaração de ilegalidade foi pedida;

e)      Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º do CPPT, calculados sobre a quantia que pagou indevidamente, à taxa dos juros legais prevista no artigo 559.º do Código Civil e, actualmente, na Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT), desde a data em que efectuou o pagamento até integral pagamento.

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC de 2013, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 2.960.989,23.

 

7. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 37.944,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

Lisboa, 24-11-2014

 

Os Árbitros

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 

 

 

(Sérgio de Matos)

 

 

 

 

(Mariana Vargas)

 

 



[1]               ( [1] )        A possibilidade de o processo arbitral ser alternativa à acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, admitida no n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril (Lei de autorização legislativa em que se baseou a aprovação do RJAT pelo Governo), não foi concretizada pelo legislador do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que se limitou a criar alternativa ao processo de impugnação judicial.

[2]              ( [2] )        Para além da fixação das consequências da anulação, designadamente a nível de juros indemnizatórios e indemnização por garantia indevida, que a jurisprudência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD tem vindo a aceitar.

[3]              ( [3] )        Essencialmente neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, a propósito de situação paralela que se coloca nos processos de recurso contencioso:

      –        de 10-11-98, do Pleno, proferido no recurso n.º 32702, publicado em Apêndice ao Diário da República de 12-4-2001, página 1207;

      –        de 19/06/2002, processo n.º 47787, publicado em Apêndice ao Diário da República de  10-2-2004, página 4289;

      –        de 09/10/2002, processo n.º 600/02;

      –        de 12/03/2003, processo n.º 1661/02.

     

                Em sentido idêntico, podem ver-se:

      –        MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, volume I, 10.ª edição, página 479 em que refere que é «irrelevante que a Administração venha, já na pendência do recurso contencioso, invocar como motivos determinantes outros motivos, não exarados no acto», e volume II, 9.ª edição, página 1329, em que escreve que «não pode (...) a autoridade recorrida, na resposta ao recurso, justificar a prática do acto recorrido por razões diferentes daquelas que constam da sua motivação expressa»;  

     –        MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Volume I, página 472, onde escreve que «as razões objectivamente existentes mas que não forem expressamente aduzidas, como fundamentos do acto, não podem ser tomadas em conta na aferição da sua legalidade».

[4]                             BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, página 182.