Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 377/2014-T
Data da decisão: 2015-05-22  IRS  
Valor do pedido: € 6.197.119,79
Tema: IRS; Dividendos; Retenção na Fonte; Cláusula Geral Anti-abuso.
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Acordam os Árbitros Jorge Lopes de Sousa (Árbitro Presidente), Carla Castelo Trindade e João Menezes Leitão, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o presente Tribunal Arbitral, na seguinte

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO[1]

 

1. Em 19 de Maio de 2014, A..., SGPS, S.A., pessoa colectiva n.º …, com sede na …- …, …-… …(doravante "Requerente"), requereu a constituição de Tribunal Arbitral e apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 10.°, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações posteriores (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, a seguir RJAT), para apreciação da legalidade dos actos tributários de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares ("IRS") n.º 2014 … e da correspondente liquidação de juros compensatórios n.º 2014 …, ambas de 13 de Janeiro de 2014, no valor total de EUR 6.197.119,79, referentes EUR 5.562.533,75 a imposto e EUR 634.586,04 a juros compensatórios.

 

2. A referida liquidação adicional de IRS (retenção na fonte) resultou da aplicação pela Administração Tributária da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.°, n.º 2, da Lei Geral Tributária ("LGT") à aquisição pela Requerente, em Junho e Setembro de 2009, de 85,5% do capital social da sociedade B..., S.A, pessoa colectiva n.º …, e ao aumento do capital social da Requerente por entrada em espécie de uma participação adicional de 4,5% na referida sociedade B..., S.A, em Dezembro de 2010, entendendo a Administração Tributária que o pagamento do preço de aquisição das acções deve assumir a natureza de dividendos e que, como tal, a Requerente incumpriu o dever de retenção na fonte de IRS sobre lucros colocados à disposição, havendo lugar à sua responsabilização enquanto substituto tributário, por força do disposto no artigo 103.° do Código do IRS.

 

3. Não se conformando com a referida liquidação de imposto e juros compensatórios - desde logo por considerar a operação realizada como traduzindo uma reorganização empresarial perfeitamente legítima e linear - a Requerente requereu a constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do artigo 10.°, n.º 1, alínea a), e 2.° do RJAT, formulando os seguintes pedidos na sua petição (a seguir PI):

i)               Declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2014 …, de 13 de Janeiro de 2014, com fundamento:

a)             Na preterição do dever de inquirir da Administração Tributária no âmbito do procedimento de inspecção tributária que determinou o referido acto tributário por aplicação da cláusula geral anti-abuso objecto do artigo 38.º, n.º 2 da LGT;

b)             Na falta de preenchimento concreto dos pressupostos materiais de aplicação da cláusula geral anti-abuso constantes do artigo 38.°, n.º 2 da LGT; e

c)             Na inoponibilidade à Requerente da desconsideração dos efeitos fiscais resultante da aplicação da cláusula geral anti-abuso aos actos em questão, por inaptidão desta cláusula para determinar o nascimento de obrigações acessórias sobre terceiros de retenção na fonte;

ii)             A anulação da mencionada liquidação de IRS por inconstitucionalidade material do artigo 38.°, n.º 2, da LGT, interpretado no sentido de ser apto a produzir efeitos fiscais sobre terceiros que não o contribuinte que agiu motivado para a obtenção da vantagem fiscal, face aos princípios da certeza e segurança jurídicas e da proporcionalidade e, bem assim, por violação inadmissível do direito à propriedade privada garantido pelo Protocolo Adicional à CEDH;

iii)           Declaração de nulidade da liquidação de juros compensatórios n.º 2014 …, de 13 de Janeiro de 2014, em face da anulação da liquidação de IRS de que é acto consequente ou, subsidiariamente, anulação dessa liquidação por falta dos pressupostos legais necessários para qualquer liquidação de juros compensatórios;

iv)           Condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.°, n.º 1, da LGT, por erro imputável aos Serviços na prolação dos actos tributários impugnados, bem como nas custas do processo arbitral.

Com a petição juntou 14 documentos, não tendo sido arroladas testemunhas.

4. Como a Requerente optou pela não designação de árbitro, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo o Conselheiro Doutor Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa, a Dra. Carla Castelo Trindade e o Dr. João Menezes Leitão, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As partes foram notificadas dessa designação, tendo a Requerente apresentado um pedido de recusa da designação como árbitro do Dr. João Menezes Leitão, que foi indeferido por despacho de 23 de Julho de 2014 do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 e no n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 24 de Julho de 2014.

5. Em 3 de Outubro de 2014, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida”) apresentou resposta (a seguir “R.”) em que defendeu a improcedência total do pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho, também de 3 de Outubro de 2014, foi decidido não realizar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.

6. A pedido das partes foram apresentadas alegações.

A Requerente concluiu a sua alegação dizendo que termina como no requerimento arbitral, devendo ocorrer a integral procedência do aí peticionado.

A Autoridade Tributária e Aduaneira contra-alegou, reiterando o pedido de total improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, por não provado, com as demais consequências legais.

As alegações apresentadas foram tidas em consideração na apreciação da matéria de facto e de direito.

7. Por despacho de 3.11.2014 do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, em atenção ao facto de o Senhor Conselheiro Doutor Jorge Lino Alves de Sousa se encontrar impossibilitado temporariamente, por motivos de saúde, para o exercício das respectivas funções, foi designado o Senhor Conselheiro Doutor Jorge Lopes de Sousa para desempenhar, em regime de substituição, as funções de árbitro-presidente, substituição que veio a cessar em 3.12.2014, conforme despacho dessa data do Senhor Presidente do Conselho Deontológico.

Posteriormente, por despacho de 4.2.2015, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico, verificando que o Conselheiro Doutor Jorge Lino Alves de Sousa se encontrava incapacitado, por motivo de doença, para o desempenho das funções de árbitro-presidente do tribunal colectivo, deu por findo o respectivo mandato e designou, em sua substituição, como árbitro-presidente o Senhor Conselheiro Doutor Jorge Manuel Lopes de Sousa.

8. Por despacho de 6.1.2015, o Tribunal, ao abrigo do disposto nos arts. 21.º, n.º 2 e 18.º, n.º 2 do RJAT, designou, por último, em atenção à complexidade do processo, o dia 24.3.2015 para a prolação da decisão arbitral. Por despacho de 23.3.2015, ao abrigo do disposto no artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, foi prorrogado por dois meses o prazo da arbitragem e fixada como nova data para a decisão o dia 22.5.2105.

 

II. SANEAMENTO

9. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas quaisquer questões que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa.

As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), e mostram-se devidamente representadas.

Tudo visto, cumpre proferir decisão final.

 

III. QUESTÕES A DECIDIR

 

10. Em face das posições assumidas e dos fundamentos alegados pelas partes nas suas peças processuais, as questões a decidir no âmbito do presente processo arbitral
prendem-se com a apreciação da legalidade da liquidação de IRS (retenção na fonte)
n.º 2014 …, relativa ao ano de 2010, no valor de EUR 5.562.533,75, e da correspondente liquidação de juros compensatórios n.º 2014 …, no valor de EUR 634.586,04, em atenção aos seguintes vícios invocados pela Requerente:

I) Quanto à liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2014 …:

a) Preterição do dever de inquirir, por falta de diligências concretas encetadas pela Administração Tributária no procedimento inspectivo para determinação da base factual relevante para aferição dos pressupostos de aplicação da cláusula geral anti-abuso, em violação do artigo 58.° da LGT;

b) Falta de preenchimento dos pressupostos de aplicação da cláusula geral anti-abuso, em violação do disposto no artigo 38.°, n.º 2, da LGT, nomeadamente por:

i. Inexistência de motivação essencial ou principal de natureza fiscal para a compra e venda de acções da sociedade B..., S.A e, bem assim, para o aumento de capital da Requerente por entrada em espécie de acções da referida sociedade;

ii. Inexistência de recurso a meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas;

iii. Inexistência de vantagem fiscal obtida como resultado da compra e venda de acções e, bem assim, do aumento de capital por entrada em espécie;

iv. Inexistência de desconformidade do resultado obtido com a ratio legis das normas aplicadas;

c) Inoponibilidade à Requerente, como (hipotética) substituta tributária, da desconsideração de efeitos fiscais resultante da aplicação da cláusula geral anti-abuso aos actos em questão, em concomitante violação do artigo 38.°, n.º 2, da LGT ou, caso assim se não entenda, por inconstitucionalidade dessa norma em face dos princípios da certeza e segurança jurídicas e da proporcionalidade e, bem assim, por violação inadmissível do direito à propriedade privada garantido pelo Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem ("CEDH");

II) Quanto à liquidação de juros compensatórios n.º 2014 …: falta dos pressupostos legais necessários para a aplicação de juros compensatórios, caso não proceda a anulação da liquidação de IRS de que é acto consequente.

 

Para além da apreciação da legalidade dos actos tributários impugnados nos termos acima indicados, cabe ainda, dado o correspondente pedido formulado pela Requerente, decidir sobre a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.°, n.º 1, da LGT.

 

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

IV.1. FACTOS PROVADOS

11. Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada. Tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do anterior CPC, correspondente ao artigo 596.º do actual CPC).

12. Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes nos respectivos articulados (PI e alegações da Requerente, R. e contra-alegações da Requerida), à prova documental e ao Processo Administrativo (a seguir, “PA”) juntos aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

A)    A REQUERENTE – A… SGPS S.A.

1.              A Requerente foi constituída no ano de 2001 como sociedade comercial anónima na modalidade de sociedade gestora de participações sociais, com o objecto social de «gestão de participações noutras sociedades como forma indirecta de exercício de actividades económicas», tendo como accionistas fundadores e membros do seu Conselho de Administração C..., a sua esposa D..., E..., F… e G..., com o capital social de EUR 60.000,00 distribuído da seguinte forma (cfr. doc. n.º 2 junto à PI):

 

Accionistas

Percentagem no capital social de EUR 60.000,00

C...

80%

D...

5%

E...

5%

F…

5%

G...

5%

Total:

100%

 

 

 

 

 

 

 

 

2.              No seu primeiro ano de actividade, em prossecução do seu objecto social, a Requerente adquiriu em empresas do sector têxtil as participações sociais seguintes:

a) 50,8% do capital social da sociedade comercial anónima H…, S.A., pessoa colectiva n.º …;

b) 97,8% do capital social da sociedade comercial por quotas I…, LIMITADA, pessoa colectiva n.º ….

(factualidade reconhecida por Requerente e Requerida respectivamente no art. 6.º da PI e nos arts. 9.º, 103.º e 104.º da R.).

 

3.              Em 31 de Dezembro de 2001, a Requerente recorreu a crédito bancário, concedido pelo BANCO J…, S.A., no montante de EUR 19.368.322,64 para aquisição das participações sociais referidas no ponto anterior (cfr. doc. n.º 3 junto à PI).

4.              Os accionistas e administradores da Requerente C..., D..., E... e G... eram sócios-gerentes da mencionada sociedade I..., LIMITADA desde 1 de Agosto de 1993 (cfr. a informação cadastral junta como doc. n.º 1 à R.).

5.              No que respeita à sociedade H…, S.A., desde 30 de Maio de 2000 que os accionistas e administradores da Requerente C..., D..., E..., G… e F… pertenciam ao respectivo Conselho de Administração (cfr. cópia da publicação a fls. 54-55 do PA).

6.              No final do ano de 2003, a Requerente vendeu a participação adquirida na sociedade H… S.A., à sociedade B..., S.A, à data já detentora de 39,8% das acções da sociedade objecto da transmissão (factualidade reconhecida pela Requerente no art. 9.º da PI e acolhida pela Requerida no art. 120.º da R. e nos n.ºs 26 e 27 das respectivas contra-alegações).

7.              Ainda em 2003, a Requerente adquiriu uma participação correspondente a 34,43% do capital social da sociedade comercial anónima K..., S.A., pessoa colectiva n.º …, que tinha como membros do Conselho de Administração desde 4.9.2000 os accionistas e administradores da Requerente D..., E... e G… (factualidade reconhecida pela Requerente no art. 10.º da PI e acolhida pela Requerida no art. 122.º da R., bem como informação cadastral junta como doc. n-º 2 à R.).

8.              No mesmo ano, a sociedade K..., S.A., adquiriu por trespasse à massa insolvente da sociedade L..., S.A., pessoa colectiva n.º …, os respectivos equipamentos e instalações fabris, desenvolvendo desde então actividade no sector têxtil (cfr. escritura junta como doc. n.º 4 à PI).

9.              A Requerente não tem instalações próprias nem trabalhadores dependentes (cfr. facto reconhecido no art. 11.º da PI e aceite nos arts. 24.º, 25.º e 124.º da R.).

10.           Nos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012 a Requerente não teve quaisquer pessoas ao serviço da empresa, conforme consta da declaração de Informação Empresarial Simplificada (IES) apresentada com referência àqueles anos, não tendo, por isso, incorrido em gastos com pessoal (cfr. Relatório de Inspecção Tributária, a seguir RIT, respectiva pág. 14, junto como doc. n.º 13 à PI e constante a fls.  do PA).

 

B)           A SOCIEDADE – B…, S.A.

11.           A B..., S.A é uma sociedade comercial constituída em 1964, com um capital social de PTE 2.000.000$00 (EUR 9.975,96), que tem como objecto a indústria e comercialização de lanifícios e correlativos (cfr. publicação junta como doc. n.º 5 à PI).

 

12.           No final de 2006, a B..., S.A registava um capital social de EUR 2.500.000,00, dividido em 500 000 acções com o valor nominal de EUR 5,00 cada uma, e tinha como accionistas: C...; D...; E...; G...; F…; M…e B..., S.A com acções próprias, nos seguintes termos (cfr. publicações juntas como doc. n.º 6 à PI e art. 15.º da PI):

 

 

Accionistas

Percentagem no capital social de EUR 2.500.000,00

C...

67,5%

D...

4,5%

E...

4,5%

G...

4,5%

F…

4,5%

M…

4,5%

B…, SA (acções próprias)

10%

Total:

100%

 

 

(cfr. publicações juntas como doc. n.º 6 à PI e art. 15.º da PI)

 

 

 

 

 

 

13.           Da comparação entre as estruturas accionistas da Requerente e da B..., S.A resulta que M… era apenas accionista desta e não da Requerente e que a respectiva participação passou a ser detida pela sua filha N…, por sucessão hereditária, ocorrida a 11 de Junho de 2009 (cfr. RIT, respectivas págs. 8 e 21).

14.           Os membros do conselho de administração da sociedade B..., S.A, designados para o triénio de 2008 a 2010 e para o triénio 2011 e 2013, são os mesmos que compõem o conselho de administração da Requerente (vd. acima n.º 1), para o triénio de 2009 a 2011 e para o triénio de 2012 a 2014 (cfr. publicações dos actos de registo respeitantes às duas sociedades juntos como anexos ao RIT constantes do PA).

15.           Entre os exercícios de 2000 e 2009, não foram distribuídos dividendos aos accionistas, com excepção do resultado líquido do exercício de 2008, relativamente ao qual foi deliberado proceder à distribuição de lucros no valor de € 1.750.000,00 (cfr. RIT, respectiva pág. 16 e acta n.º 89 junta como doc. n.º 3 à R.).

16.           No ano de 2009, momento em que ocorreu a venda de cerca de 85,481% acções representativas do capital social da sociedade B..., S.A à Requerente, aquela sociedade dispunha de reservas livres no valor de €93.621.066,18 e disponibilidades financeiras de € 45.757.083,55 (cfr. RIT, pág. 27).

17.           A sociedade B..., S.A já tinha atingido desde 2000 o limite legal de 10% de acções próprias (50.000 acções, ao valor nominal de € 5,00) – cfr. RIT, pp. 16 e 17.

 

C)           “REESTRUTURAÇÃO”

 

18.           Em Junho de 2009, a Requerente comprou aos seus accionistas C..., D..., E... e G..., um total de 404.910 acções representativas do capital social da B..., S.A, ao preço unitário de EUR 215,00 por acção (cfr. RIT, p. 8).

19.           Antes da compra pela Requerente de acções da B..., S.A foi obtido parecer favorável do conselho fiscal da Requerente quanto ao preço de EUR 215,51 por acção da sociedade B..., S.A, o qual foi determinado, conforme carta de 8.6.2009 da O… junta como doc. n.º 7 à PI, que aqui se dá por reproduzida, de acordo com o método patrimonial indicado pelo Conselho de Administração da Requerente (n.º 1), método este que, embora “seja uma das abordagens mais fáceis e simples para se avaliar empresas, em situações específicas pode ser adequado e utilizado”, mas “há que salientar que na grande maioria das vezes, o comprador de uma empresa ou de um negócio está sobretudo interessado nos resultados futuros gerados por sua aquisição e não propriamente no valor dos activos que integram o património da empresa a adquirir” (n.º 3).

20.           Segundo esta carta da O..., tendo em conta que: “De acordo com o método patrimonial, o valor de uma empresa corresponde ao valor líquido dos seus activos e passivos reavaliados, ou seja, o valor dos seus capitais próprios ajustados dos efeitos decorrentes da reavaliação, e de eventuais correcções resultante de uma auditoria às contas para que os activos e passivos estejam apresentados pelos valores de mercado” (n.º 5) e que: “a empresa a adquirir tem contas certificadas à data de 31.12.2008, consideramos o valor dos capitais próprios naquela data”, concluiu-se que “o valor de transacção para as acções da empresa A…, S.A. é de 215,51 euros por acção” (n.º 6).

21.           O valor unitário de venda de cada acção, considerando o valor do capital próprio da B..., S.A, à data de 31.12.2008, de EUR 96 978 785,23, e o total de 450 000 acções disponíveis, foi depois arredondado para unidade de euro inferior (EUR 215,00) – cfr. RIT, p. 8.

22.           Em Setembro do mesmo ano, a Requerente comprou à sua accionista F… 22.495 ações representativas do capital social da B..., S.A, ao preço unitário de EUR 215,00 por acção (cfr. RIT, p. 8).

23.           Na contabilidade da Requerente, tais operações foram registadas por débito na conta 411103 – Investimentos Financeiros de Partes de Capital de Empresas do P…S.A. no valor total de EUR 91 892 075,00, tendo como contrapartida lançamentos de valor equivalente efetuados na conta 26821 (outros devedores e credores/credores diversos), designadamente nas subcontas atribuídas a cada um dos accionistas, mais concretamente na subconta 2682102 - Sr. C..., no valor de EUR 72 546 375,00, e nas subcontas 2682103 – D. D…, 2682104 – Dr. E..., 2682105 – G…, 2682106 – Engª F…, no valor de EUR 4 836 425,00 cada (cfr. RIT, p. 9 e respectivo anexo III).

24.           A Requerente não dispunha de recursos financeiros suficientes para proceder ao pronto pagamento das acções da B..., S.A (facto reconhecido no n.º 32 das alegações da Requerente).

25.           Em resultado das referidas aquisições onerosas, a Requerente passou a deter a titularidade de 85,5% do capital social da sociedade B..., S.A, ficando em dívida para com os respectivos transmitentes, seus accionistas, num total de EUR 91.892.075,00 (cfr. RIT, pp. 8 e 9).

26.           Em 10 de Dezembro de 2010, os accionistas da Requerente, reunidos em assembleia-geral, deliberaram aumentar o respectivo capital social de EUR 60.000,00 para EUR 4.334.050,00, bem como efectuar prestações suplementares até 30.12.2010 em benefício da Requerente no valor de EUR 44.877.525,00, aplicando para o efeito parte dos créditos dos accionistas relativo ao preço da venda das acções da B..., S.A, reduzindo desse modo o valor dessa dívida para EUR 42.740.500,00 (cfr. acta n.º 16 junta como doc. n.º 8 à PI).

27.           Por deliberação de 20 de Dezembro de 2010, N…, accionista titular de 4,5% do capital social da B..., S.A que não detinha qualquer participação social na Requerente, passou a participar no capital social desta, através do respectivo aumento para EUR 4.562.000,00, por entrada em espécie das referidas acções da B..., S.A, a saber, 22.495 acções com o valor nominal de €5,00 cada, sendo que “[p]or cada 1 acção da B…, SA entregues serão atribuídas 2,0266725939097577239386530340076 acções da A…, S.G.P.S., S.A. subscritas ao respectivo valor nominal, pelo que serão emitidas 45.590 acções representativas do capital social da A… S.G.P.S., S.A.”, com um ágio de € 4.608.475 (cfr. acta n.º 18 junta como doc. n.º 9 à PI).

28.           A diferença positiva de EUR 4.608.475,00 entre o valor das acções contribuídas - valorizadas a EUR 215,00 por acção - e o valor nominal das novas acções emitidas pela Requerente e atribuídas à sua nova accionista N… foi contabilisticamente registada na conta 5512 - Reservas de capital/ágio (cfr. RIT, p. 12).

29.           Também em Dezembro de 2010, contemporaneamente à referida permuta de partes sociais, o accionista da Requerente C...cedeu a favor da nova accionista N…, sua neta, o crédito resultante de parte do preço que ainda lhe era devido pela Requerente em virtude da venda das suas acções na sociedade B..., S.A, no valor de EUR 2.246.500,00, e parte do crédito relativo a prestações suplementares realizadas de que era também titular junto da Requerente, no valor de EUR 2.361.975,00, tudo perfazendo o valor total de EUR 4.608.475,00 (cfr. doc. n.º 10 junto à PI).

30.           Em 27 de Dezembro de 2010, a sociedade B..., S.A deliberou distribuir parte dos valores das suas reservas livres, designadamente EUR 33.750.000,00, na proporção das participações sociais dos accionistas, atingindo o valor por acção de € 75,00, justificando que “As disponibilidades financeiras da empresa são muito elevadas e não necessárias ao funcionamento normal da empresa e muito superiores a qualquer empresa do sector. Esta distribuição promoverá uma maior eficiência da estrutura de capitais do grupo” (cfr. acta n.º 94 junta como anexo VIII ao RIT).

31.           À data eram sócios da sociedade B..., S.A a Requerente e os accionistas da Requerente, que detinham participações residuais (cfr. RIT, pp. 9).

32.           Daquele valor referido no n.º 30 antecedente, a sociedade B…, S.A., distribuiu dividendos à sociedade Requerente A…, SGPS no montante de EUR 33.742.500,00 (cfr. acta n.º 94 junta como anexo VIII ao RIT e anexo IX).

33.           Em 31 de Dezembro de 2010, as prestações suplementares na Requerente, no valor total de EUR 44.877.525,00, pertenciam, nas percentagens a seguir indicadas, aos seguintes accionistas (cfr. RIT., pp. 12-13):

 

NIPC

NOME

PRESTAÇÕES

SUPLEMENTARES

10/12/2010

% DE

PARTICIPAÇÃO

PRESTAÇÕES

SUPLEMENTARES

20/12/2010

% DE

PARTICIPAÇÃO

C...

35 429 625,00 €

78.95%

33 067 650,00 €

73,68%

D...

2 361 975,00 €

5.26%

2 361 975,00 €

5,26%

E...

2 361 975,00 €

5.26%

2 361 975.00 €

5.26%

G...

2 361 975.00 €

5.26%

2 361 975.00 €

5.26%

F…

2 361 975.00 €

5.26%

2 361 975.00 €

5.26%

N…

0,00 €

0.00%

2 361 975.00 €

5.26%

TOTAL

44 877 525,00 €

100,00%

44 877 525,00 €

100,00%

 

34.           Também em 31 de Dezembro de 2010, a Requerente efectuou o pagamento de parte do preço ainda em dívida pela aquisição dos 85,5% do capital social da sociedade B..., S.A, num total de EUR 21.370.250,00, discriminado pelos respectivos credores nos seguintes termos (cfr. RIT, pp. 17, 19 e 20):

Vendedores

Pagamentos (EUR)

C...

16.871.250,00

D...

1.124.750,00

E...

1.124.750,00

F…

1.124.750,00

G...

1.124.750,00

Total:

21.370.250,00

 

 

 

 

 

 

 

35.           O remanescente - EUR 12.372.250,00 - foi investido na constituição de uma aplicação financeira no Banco Q…, pelo valor total de EUR 12.384.260,15 (acrescido do saldo inicial de EUR 12.010,15) – cfr. RIT, p. 18.

36.           A dita aplicação financeira viria a ser liquidada em Dezembro de 2011, tendo a Requerente procedido ao pagamento de mais uma parte da dívida contraída com a aquisição das acções aos accionistas, no valor de EUR 10.575.650,00 (cfr. RIT, p. 18).

37.           Também em Dezembro de 2011, a sociedade B..., S.A deliberou novamente efectuar uma distribuição de dividendos à Requerente, no valor de EUR €8.098.200,00, justificando que “As disponibilidades financeiras da empresa são muito elevadas e não necessárias ao funcionamento normal da empresa e muito superiores a qualquer empresa do sector. Esta distribuição promoverá uma maior eficiência da estrutura de capitais do grupo” (cfr. acta n.º 97 junta como anexo X ao RIT).

38.           Em Março de 2012, a Requerente utilizou o valor de EUR 8.098.200,00, referente aos dividendos distribuídos pela B… S.A., para efectuar mais um pagamento da dívida contraída com a aquisição das acções aos seus accionistas (cfr. RIT, p. 19).

39.           Em 31 de Março de 2012, a dívida resultante da aquisição das acções da sociedade A, S.A., ficou, na perspectiva da Requerente, contabilisticamente saldada, em parte através de pagamentos efetuados aos accionistas - utilizando os valores provenientes de dividendos previamente distribuídos -, noutra parte com a conversão de créditos em aumento de capital e prestações suplementares (cfr. RIT, p. 20).

D)        “ACÇÃO INSPECTIVA”

40.           A Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu a uma inspecção de âmbito parcial à Requerente, na sequência do Despacho DI…, e ao abrigo das ordens de serviço internas n.os OI…, OI… e OI…, de 16.10.2013, visando apurar retenções na fonte de IRS com incidência nos anos de 2010, 2011 e 2012 e controlo de esquemas de planeamento fiscal abusivo (cfr. RIT, p. 6).

41.           Em 21 de Outubro de 2013, a Requerente foi notificada pela Direcção de Finanças de Castelo Branco para o exercício, em 30 dias, de audição prévia relativamente ao Projecto de Relatório de Inspecção nos termos do qual a Administração Tributária considerou que a aquisição pela Requerente de 85,5% do capital social da sociedade B..., S.A - em Junho e Setembro de 2009 - e, bem assim, o aumento do capital social da Requerente por entrada em espécie de mais 4,5% das acções representativas do capital social da B..., S.A - em Dezembro de 2010 - consubstanciaram negócios jurídicos fiscalmente abusivos, reconduzindo-se a «um sucessivo e meticuloso encadeamento de actos configurando negócios jurídicos abusivos dirigidos por meios artificiosos à eliminação de impostos que seriam devidos em resultado de actos de idêntico fim económico» - cfr. doc. n.º 11 junto à PI.

42.           Em 18 de Novembro de 2014, a Requerente exerceu por escrito o seu direito de audição, contestando o entendimento manifestado pela Administração Tributária, conforme doc. n.º 12 junto à PI.

43.           Ao longo do procedimento inspectivo, máxime na fase de audição prévia, não foram solicitadas pela Requerente quaisquer diligências instrutórias complementares (cfr. docs. n.ºs 12 e 13 juntos à PI).

44.           Em 2 de Janeiro de 2014, a Requerente foi notificada pela Direcção de Finanças de Castelo Branco do Relatório Final de Inspecção, nos termos do qual foi convertido em definitivo o projecto anteriormente notificado, conforme doc. n.º 13 junto à PI que aqui se dá por reproduzido, do qual importa transcrever as seguintes passagens com relevância para a decisão:

i) III – 2. Análise Contabilística e Financeira da Sociedade A…, SGPS

(...) Nos anos de 2007 e 2008, os proveitos da sociedade A…, SGPS resultaram de prestações de serviços de consultadoria, ganhos financeiros referentes a juros de depósitos bancários e ganhos em empresas do grupo relativos à contabilização dos investimentos financeiros pelo método de equivalência patrimonial, o qual consiste num método de consolidação previsto no Decreto-lei n.º 238/91 de 2/07, sendo utilizado sempre que uma empresa incluída naquela consolidação exerça influência significativa sobre a gestão e a política financeira de uma empresa associada, sobre a qual detenha uma participação financeira.

Nos termos do n°. 8 do art°. 18° do CIRC, os rendimentos e gastos, assim como quaisquer outras variações patrimoniais, relevados na contabilidade em consequência da utilização do método da equivalência patrimonial não concorrem para a determinação do lucro tributável.(...)

Após a aquisição das acções da sociedade B…, SA, no decurso de 2009, a sociedade A… SGPS, ficou com uma dívida para com os accionistas identificados no quadro V, no valor global de € 91 892 075,00 (...), verificando-se, face aos valores evidenciados na contabilidade, que a A…, SGPS, não teria disponibilidades que lhe permitissem liquidar a dívida contraída. (...)

De acordo com os elementos recolhidos no decurso dos actos de inspecção, verifica-se que, em termos operacionais, encontram-se registadas prestações de serviços efetuadas a uma empresa participada, designadamente a sociedade I..., Lda., NIPC …, citando-se, a título meramente exemplificativo, a factura n.º … de 15.12.2009, no valor de € 200 000,00, acrescidos de IVA à taxa legal.

Não foram recolhidos elementos que concretizassem eventuais prestações de serviços da A…, SGPS à sociedade B...,SA nem outros dados ou elementos que permitam concluir no sentido de qualquer alteração ao nível da administração da sociedade B..., SA em resultado dos negócios envolvendo a compra e venda de acções da primeira daquelas sociedades.

Nos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012 a A... SGPS não teve quaisquer pessoas ao serviço da empresa, conforme consta da declaração de Informação Empresarial Simplificada (IES) apresentada com referência àqueles anos, não tendo, por isso, incorrido em gastos com pessoal.

A sociedade não dispõe igualmente de instalações próprias ou equipamento administrativo e não paga renda pelas instalações. Os gastos administrativos referem-se essencialmente a serviços especializados prestados por assessores (ROC e TOC) e a encargos bancários.

A A..., SGPS não dispõe, portanto, de qualquer estrutura física e humana. (...)

Em suma, a ausência de indicadores objectivos, como sejam gastos com pessoal, imobilizado ou outro equipamento, demonstram a inexistência de meios humanos e técnicos, com que a sociedade A..., SGPS possa prosseguir o seu restrito objecto social pelo que, não possuindo qualquer estrutura física e humana, os serviços administrativos e financeiros necessários à prestação de serviços a outras entidades (designadamente à sociedade I..., Lda.) foram, necessariamente, prestados por outras entidades”.

ii) III – 3. Enquadramento Fiscal

No decurso do procedimento inspectivo credenciado pelo DI…, aberto em nome da sociedade B..., SA foi recolhida cópia das actas de aprovação de contas dos exercícios de 2000 a 2012 daquela empresa.

Analisando as referidas actas, verifica-se que naquele lapso temporal não foram distribuídos dividendos aos accionistas, à excepção do resultado líquido do exercício de 2008, relativamente ao qual foi deliberado proceder à distribuição de lucros no valor de € 1 750 000,00, cfr. acta n°. … de 28.05.2009 (aprovação de contas do ano de 2008), os quais foram objecto de retenção na fonte à taxa liberatória prevista no art°. 71° do CIRS (...), ao tempo 20%, tendo o imposto respectivo, no valor de € 350 000,00, sido pago através da guia n°. … respeitante ao período 2009-10.

(...) a empresa B... S.A. obteve, sustentadamente, resultados líquidos positivos os quais foram sendo aplicados em reservas e em resultados transitados, pelo que, no final de 2009, a empresa dispunha de reservas no valor de € 93 621 066,18.

Tenha-se em atenção que aquelas importâncias, a serem distribuídas aos accionistas, preencheriam, na perspectiva daqueles, a norma de incidência prevista no artº. 5° – n.º 2, alínea h) do CIRS, a qual abrange «os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o art. 20º», os quais seriam objecto de tributação através da aplicação das taxas liberatórias previstas actualmente no art°. 71° do CIRS, sem prejuízo da opção pelo englobamento nos termos nela previstos.

No entanto, (...) tomando por referência o lapso temporal compreendido entre os anos de 2000 a 2009, ano em que foram alienadas acções representativas de 85,481 % (percentagem apurada tendo em conta as acções próprias da sociedade) do capital social da sociedade B..., SA em benefício da SGPS, apenas naquele último ano foram pagos dividendos no valor de € 1 750 000,00, relativos ao resultado líquido apurado em 2008.

À excepção da distribuição de dividendos atrás referida, verifica-se, em face das actas da sociedade B..., SA que as alterações aos capitais próprios da sociedade ocorreram unicamente pelo pagamento de gratificações aos trabalhadores e aos administradores, bem como pela aquisição de acções próprias no ano de 2000, no valor de € 12 469 947,43. (...)

Logo, sendo a sociedade B...,SA titular de 10% do próprio capital social, não poderia adquirir mais acções próprias, as quais foram adquiridas por € 12 469 947,00, notoriamente acima do respectivo valor nominal, sem que, por parte dos accionistas alienantes houvesse lugar a qualquer tributação relativamente à venda daquelas acções, seja por via da exclusão de tributação na alienação de acções detidas há mais de um ano prevista, ao tempo, no n° 2 do artigo 10° do CIRS, seja por via do regime transitório previsto no art. 5° do Decreto-lei n°. 442-A/88 de 30 de Novembro, que aprovou o Código do IRS.

A compra de acções próprias teve como reflexo na contabilidade a diminuição dos capitais próprios, pelo valor equivalente.

Encontrando-se legalmente vedada a possibilidade de adquirir mais acções próprias, eventuais fluxos financeiros com origem na sociedade B...,SA e dirigidos aos accionistas, teria de ser efetuado através da distribuição de dividendos, com a inerente tributação em sede de IRS.

Ora, em contraste (claro, diríamos nós) com a política de distribuição de dividendos adoptada até 2009, em Dezembro de 2010 a sociedade B..., S.A distribuiu dividendos à sociedade A...,SGPS no valor de 33 742 500,00 euros. (...)

Tal deliberação encontra-se externada na acta n.º … de 27.12.2010 da sociedade B..., S.A (Anexo VIII), tendo sido decidido distribuir € 75,00 por acção, perfazendo um total de € 33 750 000,00, dos quais € 33 742 500,00 foram distribuídos à A..., SGPS na proporção da respectiva participação social.

Aquele valor foi pago através de transferência bancária efectuada pela sociedade B..., S.A para a conta correspondente ao NIB …, cujo titular é a A..., SGPS (anexo IX).

Na perspectiva da SGPS, o valor referido no parágrafo anterior não foi objecto de tributação face ao disposto no art°. 51° do CIRC, atenta a verificação dos pressupostos definidos no n°. 1 deste preceito, não havendo igualmente lugar a retenção na fonte face ao disposto na alínea c) do n°. 1 do artº. 97º do CIRC.

Ao invés, se aqueles dividendos tivessem sido distribuídos anteriormente à transmissão das acções em favor da SGPS, os mesmos seriam objecto de tributação às taxas liberatórias na esfera dos respectivos accionistas e na proporção das participações detidas, nos termos anteriormente referidos.

Como ficou demonstrado no subcapítulo III-2, a sociedade A... SGPS não dispunha de meios financeiros que lhe permitissem solver a dívida decorrente da aquisição das acções da sociedade B..., S.A, pelo que a importância recebida em 2010, a título de dividendos – € 33 742 500,00 – foi parcial mas principalmente aplicada no pagamento a credores, por sinal, aos anteriores accionistas da B..., S.A e simultaneamente accionistas da A..., SGPS.

No ano de 2010, e tendo por base os documentos recolhidos no âmbito do DI…, constatou-se que foram pagos aos accionistas C..., D..., E..., G… e F…, um total de €21 370 250,00, distribuídos entre eles de acordo com os valores evidenciados na linha 5 dos quadros XI, XII, XIII, XIV e XV, apresentados de seguida (...).

O remanescente - € 12 372 250,00 - foi investido na constituição de uma aplicação financeira no Banco Q…, pelo valor total de € 12 384 260,15 (abrangendo o valor atrás referido, acrescido do saldo inicial de € 12 010,15), conforme extracto da conta … - Banco Q… (...).

Também aquela aplicação financeira viria depois a ser liquidada em Dezembro de 2011, tendo a sociedade A…, SGPS procedido ao pagamento de mais uma parte da dívida contraída com a aquisição das acções aos accionistas, no valor de € 10 575 650,00, (vide linha 6 dos quadros XI, XII, XIII, XIV e XV, apresentados de seguida). (...)

Ainda em Dezembro de 2011, a sociedade B..., S.A voltou a efectuar o pagamento de dividendos à sociedade A..., SGPS no valor de 8 098 200,00 euros (...), cuja distribuição foi aprovada na acta n.º …, de 04 de Junho de 2011 (Anexo X), justificando que “As disponibilidades financeiras da empresa são muito elevadas e não necessárias ao funcionamento normal da empresa e muito superiores a qualquer empresa do sector”.

Em Março de 2012, a sociedade A..., SGPS utilizou o valor de 8 098 200,00 euros, referente aos dividendos distribuídos pela B..., S.A, para efectuar mais um pagamento da dívida contraída com a aquisição das acções aos seus accionistas, (vide linha 8 dos quadros XI, XII, XIII, XIV e XV, apresentados de seguida).

 

C…

D…

 

 

E…

G…

F…

 

 

Em 31 de Março de 2012, a dívida resultante da aquisição das acções da sociedade B..., S.A ficou, na óptica da sociedade A..., SGPS contabilisticamente saldada, em parte através de pagamentos efetuados aos accionistas, utilizando os valores provenientes de dividendos previamente distribuídos pela sociedade B..., S.A à sociedade A..., SGPS  noutra parte com a conversão de créditos em aumento de capital e prestações suplementares.

Na parte respeitante aos pagamentos efetuados e bem assim quanto ao aumento de capital da sociedade A..., SGPS (quadro l), cfr. Anexo IV, verificou-se assim, uma distribuição indirecta de dividendos aos accionistas, com a obtenção de uma clara vantagem fiscal, uma vez que a distribuição de dividendos da B..., S.A à A…, SGPS se encontra excluída de tributação nos termos do artigo 51.° do CIRC e dispensada de retenção na fonte de acordo com o artigo 97.° do CIRC ao contrário da distribuição de dividendos aos accionistas, os quais estariam sujeitos a tributação e a retenção na fonte, nos termos do artigo 71.° do CIRS.

No que concerne à conversão de parte do crédito resultante da compra e venda de acções da sociedade B..., S.A em prestações suplementares, não se propõe qualquer correcção, em virtude de, a nosso ver, as mesmas não consubstanciarem o pagamento ou colocação à disposição dos sócios de quaisquer rendimentos, o que apenas se verificará se e quando tais prestações suplementares vierem a ser restituídas em cumprimento de eventual deliberação dos sócios nesse sentido.

No caso concreto da accionista N…, será de ter em conta que, se o negócio tivesse sido efetuado nos exactos moldes em que foi feito em relação aos demais accionistas, a mesma estaria a alienar onerosamente partes sociais, sendo tal situação susceptível de preencher a norma de incidência prevista na alínea b) do n.º 1 do art°. 10° do CIRS.

O valor de realização ser-nos-ia definido pela alínea f) do n°. 1 do art°. 44° do CIRS, correspondendo ao valor da contraprestação. Recorde-se que, em relação aos demais accionistas e para uma participação exactamente igual – 5% – foi fixado o valor de € 4 836 425,00, diferente do atribuído à entrada em espécie efectuada em Dezembro de 2010 pela accionista N…, nomeadamente € 227 950,00.

A participação na sociedade B..., S.A foi adquirida por N…, através de sucessão aberta por óbito de sua mãe M…, falecida em 11.06.2009, sendo a sua única herdeira.

A participação social consta da verba n°. 8 da relação de bens correspondente à participação n°. …, na qual constam 22500 acções da sociedade B..., S.A, valorizadas pelo respectivo valor nominal de € 5,00, perfazendo, portanto, um total de € 112 500,00, o qual, face ao disposto no art. 45º – n.º 1 do CIRS, deveria ser considerado como valor de aquisição, para efeitos de apuramento de eventuais rendimentos da categoria G (mais valias), mediante a respectiva subtracção ao valor de realização anteriormente referido.

No caso da accionista N…, o produto da alienação das acções não foi directamente levado à conta 27821 – Outras contas a receber e a pagar/credores diversos (ao invés dos demais accionistas), na qual se encontra registada, isso sim, uma outra importância – € 2 246 500,00 – cujo documento de suporte terá sido a notificação de cessão de créditos enviada pelo accionista C...à sociedade A... SGPS (anexo XI) nos termos do qual o accionista atrás identificado cedeu a N… parte dos créditos de que era titular com referência à sociedade A...,SGPS designadamente € 2 246 500,00 “...relativos à segunda prestação de pagamento do preço previsto no contrato de compra e venda de acções, celebrado entre C...e a Sociedade, mediante a qual esta adquiriu ao primeiro 337.425 acções representativas de 67,485% do capital social da B…, SA...”.

A cessão de créditos foi relevada contabilisticamente, por débito da conta 27821 – Outras contas a receber e a pagar/credores diversos, designadamente nas subcontas 2782102 (Sr. C...) e por crédito da subconta 2782107 (N…), pelo valor de € 2 246 500.00.

Esta última conta viria posteriormente a ser saldada, mediante um movimento a débito pelo valor atrás referido, por contrapartida da conta 120007 – Depósitos à Ordem/ Banco Espírito Santo, que foi movimentada a crédito pelo pagamento da importância de € 2 246 500,00 à accionista N… (Anexo XII).

No documento referido no parágrafo anterior, consta ainda que o accionista C...cede igualmente à sua neta N…, um crédito de € 2 361 975,00, correspondente a parte do crédito de que o primeiro dos accionistas atrás referidos era originariamente titular, referente às prestações suplementares deliberadas na acta n°. ….

Não obstante as diferenças assinaladas, parece-nos haver um ponto de contacto entre o procedimento adoptado relativamente à accionista N… e os demais accionistas: o de «não abrir» a sociedade B..., S.A a terceiros, mantendo o controlo da mesma no universo familiar, ainda que de forma indirecta, através da sociedade A....

Porém, enquanto que em relação aos demais accionistas a transmissão das acções em benefício da SGPS não determinou o pagamento de qualquer tributo, seja por via da exclusão de tributação consignada no n.º 2 do art°. 10° do CIRS ou ainda pelo regime transitório estabelecido para os rendimentos da categoria G de IRS no art°. 5° do Decreto-lei n°. 442-A/88 de 30.11 que aprovou o Código do IRS, à accionista N... não poderia aproveitar qualquer das disposições anteriormente citadas.

De facto, na data em que foi tomada a deliberação consubstanciada na acta n°. …, já o art°. 10° – n.º 2 do CIRS se encontrava revogado (art°. 2° da Lei n°. 15/2010 de 26/07), não podendo as mais valias resultantes da transmissão das acções detidas por N... ser excluídas de tributação.

Quanto ao art°. 5° do Decreto-lei n°. 442-A/S8 de 30.11 o mesmo seria inaplicável, atenta a data da aquisição das acções”.

iii) “III - 4. - Aplicação da Cláusula Geral de Anti-Abuso

Tendo em conta a factualidade atrás descrita e demonstrados, segundo se nos afigura, os procedimentos adoptados para a efetivação do resultado pretendido - vantagens patrimoniais por meio de subtracção ao pagamento dos impostos devidos - cumpre à Administração Fiscal recorrer à cláusula anti-abuso, nos termos do disposto no artigo 38° - n° 2 da LGT (...), uma vez que estamos perante um sucessivo e meticuloso encadeamento de actos configurando negócios jurídicos abusivos dirigidos por meios artificiosos à eliminação de impostos que seriam devidos em resultado de actos de idêntico fim económico.

(...) parece-nos que a venda das acções da sociedade B… SA em favor da A…, SGPS, cujos accionistas e administradores (...) são exactamente os mesmos, constitui a prática de um ato que, apesar de formalmente lícito, tem subjacente a intenção de obter rendimentos, mais concretamente dividendos, que de outra forma estariam sujeitos a efectiva tributação.

A intenção não terá sido alienar as acções em benefícios de terceiros, mas aliená-las por forma a manter o controlo da sociedade B… SA, ainda que indirectamente, conseguindo, por outra via, ainda que, igualmente, de forma indirecta, receber os dividendos da sociedade B…, SA, sem a inerente tributação em IRS, designadamente na respectiva categoria E (rendimentos de capitais).

Na perspectiva da sociedade A…, SGPS, os dividendos distribuídos pela sociedade B…, SA não foram objecto de tributação, face ao disposto no art. 51° do CIRC, atenta a verificação dos pressupostos definidos no n°. 1 deste preceito, não havendo igualmente lugar a retenção na fonte face ao disposto na alínea c) do n°. 1 do art. 97° do CIRC.

Se tais dividendos tivessem sido distribuídos anteriormente à transmissão das acções em favor da SGPS, os mesmos seriam objecto de tributação através de taxas liberatórias previstas no art. 71° do CIRS.

Face ao exposto, parece-nos haver fundamentos para aplicação da cláusula geral anti-abuso, a qual dever-se-á reger pelo disposto no artigo 63° do CPPT. (...)

 

Elemento Meio

A sociedade B…, SA obteve, de forma reiterada, resultados líquidos positivos os quais foram sendo aplicados em reservas e em resultados transitados, pelo que, no final de 2009, a empresa dispunha de reservas no valor de € 93 621 066,18, (...).

No lapso temporal compreendido entre os anos de 2000 a 2009, ano em que ocorreu a transmissão de 85,481% (percentagem apurada tendo em conta as acções próprias da sociedade) do capital social da sociedade B…, SA em benefício da SGPS, apenas houve lugar à distribuição de lucros, no valor de € 1 750 000,00, relativos ao resultado líquido apurado com referência ao exercício de 2008.

À excepção daquela distribuição de dividendos, deliberada em 28.05.2009, verifica-se, em face das actas da sociedade B…, SA, que as alterações aos capitais próprios da sociedade ocorreram unicamente pelo pagamento de gratificações aos trabalhadores e aos administradores (...), bem como pela aquisição de acções próprias no ano de 2000, no valor de € 12 469 947,43.

Quanto à aquisição de acções próprias por parte da sociedade B…., SA, refira-se que já tinha sido atingido o limite de 10% imposto pelo art. 317° - n°. 2 do Código das Sociedades Comerciais, que impõe restrições à aquisição de acções próprias, não sendo legalmente admissível a aquisição de acções próprias para além daquele limite, ressalvando as circunstâncias previstas no n°. 3 daquele preceito.

Logo, sendo a sociedade B…, SA titular de 10% do próprio capital social, não poderia adquirir mais acções próprias, as quais foram adquiridas por € 12 469 947,00, notoriamente acima do respectivo valor nominal.

Atingido o tecto máximo da aquisição de acções próprias na razão de 10%, a B…, SA ficou impossibilitada de continuar a participar no seu próprio capital. E os accionistas de continuarem a alienar as participações sociais a uma sociedade cuja maioria do capital lhes pertence.

A compra de acções próprias teve como reflexo na contabilidade, a diminuição dos capitais próprios, pelo valor equivalente.

Também a distribuição de dividendos da sociedade B…, SA a favor da sociedade A…, SGPS teve como reflexo na contabilidade a diminuição dos capitais próprios da primeira das sociedades atrás referidas.

Os valores acumulados ao longo de vários anos na conta de reservas, a serem distribuídos aos accionistas, seriam susceptíveis de tributação em sede de IRS, designadamente no âmbito da Categoria E, de acordo com a norma de incidência prevista no art. 5.º - n°. 2, alínea h) do CIRS (Código do IRS), a qual abrange «os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o art. 20.º».

A tributação de tais rendimentos na óptica dos accionistas, deveria efectivar-se através da aplicação das taxas liberatórias previstas actualmente no art. 71° do CIRS, sem prejuízo da opção pelo englobamento nos termos nela previstos.

A opção tomada pelos accionistas de transmitir as acções da sociedade B…, SA à sociedade A…, SGPS (relembrando-se que a estrutura accionista e o Conselho de Administração de ambas as sociedades é exactamente igual) permitiu-lhes constituir um crédito sobre a SGPS, o qual foi parcialmente pago através de dividendos distribuídos pela primeira à segunda das sociedades atrás identificadas.

Tal crédito foi pago através de valores provenientes das reservas acumuladas ao longo de sucessivos exercícios económicos pela sociedade B…, SA, os quais, se tivessem sido directamente distribuídos aos seus accionistas, ficariam sujeitos a tributação através de taxas liberatórias, nos termos anteriormente referidos.

Com a «interposição» da sociedade A…, SGPS entre a sociedade B…, SA e os titulares do capital social desta última empresa (na data anterior às sucessivas compras e vendas de acções da sociedade B…, SA em benefício da SGPS) (...), os accionistas da sociedade B…, SA lograram receber valores que estavam inscritos nas contas de reservas da SA e que, sendo-lhes directamente distribuídos, seriam sujeitos a tributação na Categoria E de IRS.

Ou seja, pela venda de acções da B…, SA à A…, SGPS conseguiu-se transfigurar o que seria uma regular distribuição de dividendos aos accionistas, num conjunto de alienações de acções sobre as quais acabou por não incidir qualquer tributação efectiva na esfera pessoal dos intervenientes.(...)

No caso da contribuinte N..., não obstante o procedimento seguido não ser igual ao dos demais accionistas, a verdade é que o mesmo também visou evitar o pagamento de impostos decorrentes da transmissão de acções efectuada à A…, SGPS, procurando contornar, desde logo, a tributação da operação no âmbito da categoria G de IRS, sob o artifício de uma cessão de créditos efectuada pelo seu avô, sendo que, por sua vez aqueles créditos, resultaram da venda da quase totalidade das acções de que C...era titular na sociedade B…, SA.

Na perspectiva da sociedade A…, SGPS, registou-se uma diferença, para mais, entre o valor atribuído às acções da sociedade B…, SA, em que se consubstanciou a entrada em espécie da accionista N... no capital daquela sociedade, e o valor nominal daquelas acções.

Aquele ágio encontra-se reflectido na contabilidade da sociedade sendo que, uma eventual mais valia decorrente da alienação daquele activo encontrar-se-á abrangida pelo benefício fiscal previsto no n°. 2 do art. 32° do EBF (Estatuto dos Benefícios Fiscais), pelo que, na perspectiva daquela empresa, o valor de aquisição atribuído às acções seria relativamente indiferente.

Não já assim quanto à accionista N..., uma vez que, relativamente a ela, a venda das acções nos exactos termos em que foi efectuada pelos demais accionistas (por um valor superior ao valor nominal), determinaria a respectiva tributação em sede de IRS (categoria G).

Será, por isso, de assinalar o facto de, em relação aos accionistas C..., D…, E..., G… e F…, ter sido estipulado um valor por acção notoriamente superior ao respectivo valor nominal, uma vez que, para eles, o mesmo seria irrelevante, por não determinar qualquer tributação efectiva em sede de IRS (cfr. art. 5° - n°. 2 do Decreto-Lei 442-A/88 de 30.11 e art. 10° - n°. 2 do CIRS, em vigor ao tempo), o mesmo não sucedendo em relação à contribuinte N..., relativamente à qual a estipulação de um valor por acção idêntico ao fixado para os demais accionistas, determinaria a sua tributação em sede de IRS, por não lhe serem aplicáveis as disposições atrás citadas.

Mas, parece-nos pertinente insistir em que o objectivo pretendido com os negócios jurídicos celebrados não era uma efectiva transmissão das acções em benefício de terceiros mas tão somente, obter a distribuição de dividendos por parte da sociedade B…, SA, uma vez que esta continuou a ser controlada pelos seus anteriores accionistas, ainda que de forma indirecta, através da sociedade A…, SGPS.

Elemento resultado

Encontrando-se legalmente vedada a possibilidade de adquirir acções próprias, eventuais fluxos financeiros da sociedade B…, SA para os accionistas teria de ser efetuado através da distribuição de dividendos, com a inerente tributação em sede de IRS.

Ora, ao arrepio da política de distribuição de dividendos adoptada entre os exercícios de 2000 e 2009, em Dezembro de 2010 a sociedade B…, SA procedeu à distribuição de dividendos à sociedade A… SGPS no valor de 33 742 500,00 euros.

Posteriormente, em Dezembro de 2011, a sociedade B…, SA voltou a efectuar o pagamento de dividendos à sociedade A…, SGPS no valor de 8 098 200,00 euros (...).

Na perspectiva da SGPS, os valores referidos nos parágrafos anteriores não foram objecto de tributação face ao disposto no art. 51° do CIRC, atenta a verificação dos pressupostos definidos no n°. 1 deste preceito, não havendo igualmente lugar a retenção na fonte face ao disposto na alínea c) do n°. 1 do art. 97° do CIRC.

Ao invés, se aqueles dividendos tivessem sido distribuídos anteriormente à transmissão das acções em favor da SGPS, os mesmos seriam objecto de tributação às taxas liberatórias na esfera dos respectivos accionistas e na proporção das participações detidas, às taxas liberatórias previstas no art. 71° do CIRS.

Elemento intelectual

(...) a sociedade A… SGPS não dispunha de meios financeiros que lhe permitissem solver a dívida decorrente da aquisição das acções da sociedade B… SA, pelo que a importância recebida em 2010, a título de dividendos - € 33 742 500,00 - acabou por ser aplicada no pagamento aos respectivos credores, por sinal, anteriores accionistas da B…, SA e simultaneamente accionistas da A..., SGPS (...).

Ainda em Dezembro de 2011, a sociedade B…, SA voltou a efectuar o pagamento de dividendos à sociedade A..., SGPS no valor de 8 098 200,00 euros (...).

Em Março de 2012, a sociedade A..., SGPS utilizou o valor de 8 098 200,00 euros, referente aos dividendos distribuídos pela B…, SA, para efectuar mais um pagamento da dívida contraída com a aquisição das acções aos accionistas (...).

Atenta a situação contabilística e financeira da SGPS (...) e não obstante a celebração do negócio jurídico consubstanciado na alienação das acções da B…, SA em benefício da sociedade A..., SGPS, não estará em causa uma efectiva alienação das participações sociais, atenta a manutenção dos direitos de voto que os anteriores accionistas da SA ficaram a deter na SGPS e indirectamente naquela.

Dada a limitação decorrente do art. 317° do Código das Sociedades Comerciais, os accionistas da sociedade B…, SA procuraram uma solução que lhes permitisse, a um só tempo, a alienação das suas acções para uma sociedade sobre a qual detivessem total controlo e proceder à alienação das suas participações sociais na sociedade B…, SA em favor desta nova sociedade, com isso removendo a limitação da aquisição de capital próprio de 10% de acções.

Neste contexto, será pertinente trazer novamente à colação o facto de haver total coincidência entre os sócios de ambas as sociedades envolvidas no negócio, quer no que diz respeito aos direitos de voto, quer quanto às percentagens no capital social.

O conselho de administração de ambas as empresas é também o mesmo, sendo os seus membros remunerados apenas pela B…, SA.

Elemento Normativo

(...) Analisada a operação financeira em causa, a sua factualidade e os elementos documentais, conclui-se que se está perante uma situação de planeamento fiscal, atendendo às vantagens fiscais obtidas por via da alienação das acções da B…, SA à sociedade A..., SGPS.

Repare-se inclusivamente que, entre todos os contribuintes (singulares e colectivos) envolvidos, existem relações especiais, nos termos do disposto nas alíneas a), b), c) e d) do n°. 1 do artigo 63° do CIRC. (...)

Não pretende a Administração Tributária colocar em causa a alienação da acções, a qual é um negócio lícito.

Considera-se preenchido o teor do artigo 38° n° 2 da LGT visto estar-se perante um negócio jurídico, que de forma artificiosa, visava somente a finalidade já supra descrita: a manifesta intenção de eliminação de tributação dos dividendos gerados pela sociedade B…, SA ao longo de vários anos.

Atenta a factualidade que envolveu toda a operação em causa, atrevemo-nos inclusivamente a transcrever um excerto do Acórdão do TCA Sul (proc. 04255/10, de 15-02-2011, www.dgsi.pt), onde consta que: “Estamos aqui perante as denominadas step by step transactions nas quais se encontra uma facti species complexa, envolvendo uma sucessão de actos/negócios coordenados entre si, embora possam ocorrer em momentos temporais diversos e com o objectivo comum de conseguir uma vantagem fiscal. Face a esta espécie de operações, deve o aplicador da lei operar um tratamento integrado visualizando-as como uma única transacção, propendendo para um único e final resultado".

III - 5. Elemento Sancionatório

Ao longo deste documento, pretendeu demonstrar-se que o objectivo e consequência da realização dos sucessivos negócios jurídicos, foi a distribuição dos dividendos gerados pela sociedade B…, SA através da sociedade A..., SGPS, excluída de tributação em sede de IRS, sob a forma de pagamento de uma dívida previamente constituída e proveniente da venda das acções efectuada pelos accionistas da B…, SA à A..., SGPS, sendo pertinente registar que a estrutura accionista de ambas as empresas é, ao cabo e ao resto, exactamente igual, ainda que em momentos temporais diferentes (...).

Além disso, a contratualização de prestações suplementares pelos sócios em favor da A..., SGPS no valor de € 44 877 525,00, permitirá o reembolso diferido no tempo da referida quantia, assumindo, materialmente, a natureza de verdadeiros dividendos que, por tranches, poderão vir a ser distribuídos pelos accionistas, integrando a sua esfera patrimonial, sem sofrerem qualquer tipo de tributação.

Todavia, segundo se nos afigura, tal questão colocar-se-á se e quando vier a ser deliberada a restituição das prestações suplementares aos sócios, nos termos do art. 213° - n°. 2 do Código das Sociedades Comerciais, porquanto será nesse momento que ocorrerá o facto tributário relevante para efeitos de IRS, mediante o pagamento ou colocação à disposição do respectivo valor aos accionistas.

Não já assim quanto aos valores já pagos aos accionistas pela sociedade A..., SGPS, cujos valores e datas de pagamento constam dos quadros XI, XII, XIII, XIV e XV, bem como ao aumento de capital por entradas em espécie, os quais se propõe sejam qualificados como verdadeira natureza de distribuição de dividendos, uma vez que proporcionaram a disponibilidade do dinheiro aos sócios sem sofrer qualquer tributação em sede de IRS. (...)

Atendendo aos factos expostos (...), propõe-se, em síntese, a desconsideração para efeitos fiscais destas operações e a consequente tributação em sede de IRS, a título de dividendos, dos valores recebidos pelos accionistas.

De acordo com o artigo 101° - n° 2, alínea a) do CIRS, a obrigação de proceder à retenção na fonte competiria à sociedade A..., SGPS, uma vez que foi esta entidade que colocou estes rendimentos à disposição dos accionistas.

A taxa de retenção encontra-se prevista na alínea c) do n° 3 do art. 71° do CIRS, sendo de aplicar a redacção em vigor na data da colocação à disposição dos rendimentos, designadamente:

- 26,50% - de 30.10.2012 a 31.12.2012 - Lei 55-A/2012 de 29/10

- 25,00% - de 01.01.2012 a 29.10.2012 - Lei n° 64-B/2011 de 30/12

- 21,50% - de 01-07-2010 a 31/12/2011 - Lei n° 12-A/2010 de 30/06

- 20,00% - de 01-01-2006 a 30-06-2010 - Decreto Lei n° 192/2005 de 7/11

A tributação dos dividendos distribuídos a sujeitos passivos residentes através da retenção na fonte à taxa liberatória prevista no art. 71° do CIRS tem a natureza de pagamento liberatório, sem prejuízo da opção pelo englobamento, nos termos do art. 71° n° 6 do CIRS.

O artigo 103° do CIRS tipifica a responsabilidade em caso de substituição, indicando a entidade à qual é exigível o imposto em falta, bem como os juros compensatórios, atendendo à qualidade de residente, ou não, em território português dos beneficiários destes rendimentos, sendo que, no caso em apreço, seria de aplicar o n°. 4 do art. 103° do CIRS.

Face a tudo quanto fica exposto propõe-se que seja tributada a sociedade A..., SGPS, pela falta de retenção na fonte de IRS, de acordo com os valores e com referência aos períodos evidenciados:

 (...)”.

iv) “Direito de Audição – Fundamentação

(...)

Dentro do prazo concedido para o direito de audição, a sociedade A..., SGPS SA., veio exercer o direito de audição, através de documento recebido nesta Direcção de Finanças em 18.11.2013, correspondendo-lhe a entrada n°. … (Anexo XIII).

Nos pontos 1 a 3 do documento enviado, limita-se a sociedade inspeccionada a reproduzir excertos do Projecto de Correcções enviado na fase de audição prévia.

No ponto 4, a contribuinte rejeita o entendimento preconizado pela Administração Tributária, invocando que a aquisição de participações sociais se traduz numa operação perfeitamente normal e transparente, devidamente enquadrada na prossecução do seu objecto social, concretizando depois as razões em que se consubstancia a sua discordância relativamente às correcções propostas.

Nos pontos 5 a 14, a sociedade A..., SGPS faz uma resenha histórica desde a sua constituição, que se verificou em 2000, até à presente data, concluindo que «...a Exponente é, desde a sua constituição, há mais de 10 anos, uma sociedade gestora de participações sociais com existência efectiva e que desenvolve inequivocamente a sua actividade social.»

No ponto 15, complementa as informações prestadas, informando que «...dispõe dos meios humanos e técnicos adequados ao desenvolvimento do seu objecto social, através da actividade dos seus administradores e do recurso a prestadores de serviços externos quando necessário, não tendo nunca a falta de instalações próprias representado qualquer óbice à competente prossecução daquele.»

Em relação à síntese histórica efetuada, parece-nos que, salvo melhor opinião, a mesma não contende com as correcções propostas, porquanto são reportados factos anteriores à aquisição das participações sociais na sociedade B…, SA.

Aliás, analisando os argumentos invocados pela sociedade inspeccionada neste contexto, designadamente no ponto 10 do documento em que se consubstancia o respectivo direito de audição, torna-se possível identificar mais uma diferença entre os procedimentos adoptados relativamente à aquisição de participações sociais nas sociedades H…, SA e I..., Limitada, por um lado, e relativamente à aquisição de participações sociais na sociedade B…, SA, por outro lado.

Com efeito, enquanto que relativamente às duas primeiras foram contraídos empréstimos bancários, já em relação à aquisição das participações sociais na B…, SA verificou-se que a mesma foi parcialmente paga com meios financeiros provenientes desta última sociedade, através da distribuição de dividendos à SGPS, ao arrepio daquilo que era, até então, a política de distribuição de dividendos anteriormente seguida naquela sociedade, quer quanto à frequência da distribuição de dividendos quer quanto aos valores distribuídos, nos termos referidos no Capítulo III do presente Relatório.

Na prática, os accionistas da sociedade B…, SA, Srs. C..., D…, E..., G… e F…, acabaram por receber, de forma indirecta, importâncias provenientes da SA, as quais, a ser-lhes distribuídas directamente, estariam sujeitas a retenção na fonte, nos termos anteriormente expostos (...).

No que concerne ao ponto 15 do direito de audição, afigura-se-nos que o mesmo decorre das considerações tecidas no subcapítulo III-2 do presente Relatório, cujo título é Análise Contabilística e Financeira da Sociedade A..., SGPS.

Como o título atrás reproduzido imediatamente sugere, as considerações nele tecidas têm estritamente por base a contabilidade da empresa, na qual, relativamente aos exercícios analisados, não foi detectado o registo de quaisquer custos subjacentes a pessoal, imobilizado ou outro equipamento.

Mesmo admitindo o recurso a prestadores de serviços externos, como vem preconizado no direito de audição, também neste item não foi detectado o registo de quaisquer valores decorrentes de eventuais gastos com aqueles prestadores.

Nos pontos 16 a 19 do documento enviado no âmbito da audição prévia, invoca a sociedade

inspeccionada que «...a aquisição de uma posição dominante no capital da sociedade B..., S.A, foi vista como uma clara oportunidade de negócio, permitindo-lhe ganhar uma escala muito maior enquanto sociedade gestora de participações sociais (...)», acrescentando mais adiante que «...A motivação subjacente à decisão de aquisição da participação em referência foi pois totalmente alheia a qualquer tratamento fiscal...» (...).

Analisando a actividade da sociedade A..., SGPS posteriormente à aquisição das participações sociais na sociedade B…, SA, tendo por base, designadamente a informação contida nas IES's - Informação Empresarial Simplificada apresentadas, bem como nos próprios registos contabilísticos, verifica-se não haver diferenças entre os serviços prestados pela SGPS antes e depois daquela aquisição.

De facto, e tomando por referência o ano de 2009, constatou-se que, neste ano, o volume de negócios resultou de prestações de serviços efetuados à sociedade I... Lda., no valor de € 200 000,00, o qual é replicado nos anos seguintes (2010, 2011 e 2012), pelo que não se vislumbram quaisquer factos que suportem as asserções formuladas pela sociedade inspeccionada, nos termos atrás reproduzidos.

Dito de outra forma, nada vem argumentado que permita estabelecer qualquer diferença significativa entre aquilo que seria a actividade da sociedade A..., SGPS anteriormente à aquisição das participações na sociedade B…, SA e a actividade da SGPS posteriormente àquela aquisição.

Seguidamente, nos pontos 20 a 22, são tecidas considerações sobre o cálculo do preço unitário fixado para as acções, as quais se dão aqui por reproduzidas.

Neste contexto, apenas nos cumprirá esclarecer que, quer no Projecto de Correcções já enviado, quer no presente Relatório de Inspecção, não é feita qualquer valoração relativamente àquele cálculo, tendo-nos limitado a constatar esse facto.

Sinal disso mesmo, será o facto de a sociedade inspeccionada “...manifestar a sua total incompreensão pelo aparente entendimento da Administração Tributária...».

Tais palavras deixam entrever que a própria entidade inspeccionada não conseguiu identificar qualquer entendimento da AT relativamente a esta matéria, pela simples razão de não ter sido formulada qualquer conclusão ou firmado qualquer entendimento sobre a mesma, tendo sido nossa intenção referir, pura e simplesmente, o método de cálculo.

Nos pontos seguintes (23 e 24), a entidade inspeccionada refere-se ao aumento do seu capital social e à realização de prestações suplementares.

Sobre esta matéria, parece-nos ser de trazer novamente à colação os argumentos já anteriormente aduzidos (subcapítulo III-1), insistindo-se no facto de o aumento do capital social ter sido suportado por parte do crédito constituído em resultado da compra e venda das acções da sociedade B..., S.A, bem como o facto de as prestações suplementares resultarem de uma outra parte do mesmo crédito, podendo até ser restituídas se tal vier a ser deliberado pelos sócios.

Avançando agora para os pontos 25 a 29, a entidade inspeccionada refere que «...a única accionista individual da B…, S.A, que não era accionista da Exponente manifestou a sua vontade de passar a participar no capital da Exponente, para o que se dispunha a contribuir em espécie a sua participação na B..., S.A, S.A mantendo apenas, tal como os demais accionistas individuais, uma participação residual que lhe permitisse participar nas assembleias-gerais de accionistas.»

Ao invés dos demais accionistas, o procedimento adoptado no que concerne à accionista N… Rosa, foi qualificado como uma permuta de partes sociais, enquadrada, em termos fiscais, nos art°.s 73° e 77° do CIRC. (...)

Como já houve oportunidade de referir, no caso concreto da accionista N…, será de ter em conta que, se o negócio tivesse sido efetuado nos exactos moldes em que foi feito em relação aos demais accionistas, a mesma estaria a alienar onerosamente partes sociais, sendo tal situação susceptível de preencher a norma de incidência prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 10.º do CIRS.

Contudo, nada obstaria que em relação aos accionistas C..., D…, E..., G… e F…, fosse aplicado este mesmo regime que, no ano de 2009, se encontrava previsto nos art°.s 67° n°. 5 e 71° do CIRC, os quais, após a renumeração daquele código, operada pelo Decreto-lei n°. 159/2009 de 13/07, transitaram, sem alterações, para os art°.s 73° - n°. 5 e 77° do CIRC.

A participação da accionista N... foi, portanto, valorizada em 4 836 425,00 euros, importância que foi depois desdobrada em duas parcelas:

- uma parcela correspondente ao valor nominal das novas acções emitidas na sequência do aumento de capital deliberado na ata n°. 18 de 20.12.2010, relativo à sociedade A..., SGPS (€ 227 950,00);

- o remanescente foi qualificado contabilisticamente como ágio, no valor de € 4 608 475,00.

Ora, como já consta do presente Relatório de Inspecção, em 20 de Dezembro de 2010 o accionista C... efectuou uma cessão de créditos de que era titular na sociedade A..., SGPS, à accionista N…, no valor de 2 246 500,00 euros, os quais foram pagos através de transferência bancária efectivada em 27.10.2011 (Anexo XII).

Em benefício da accionista N..., foi ainda cedido pelo seu avô, um crédito relativo a prestações suplementares, no valor de 2 361 975,00 euros, o que perfaz 4 608 475,00 euros, valor este que corresponde exactamente ao ganho potencial obtido pela sociedade A..., SGPS com a compra das acções abaixo do seu valor contabilístico.

A nosso ver, os factos atrás descritos, configuram, na óptica da accionista N..., o recebimento de contrapartidas que extravasam o regime fiscal da permuta de partes sociais, uma vez que, ainda que de forma indirecta, recebeu importâncias que, notoriamente, excedem o limite de 10% do valor nominal da parte social permutada, em conformidade com o disposto na parte final do n°. 5 do art. 73° do CIRC, com as consequências daí resultantes, designadamente a inaplicabilidade do benefício previsto no art. 77° do mesmo código.

Relativamente à argumentação expendida no ponto 30, apenas referir que, como é mencionado pela própria entidade inspeccionada, apenas analisamos e descrevemos os movimentos contabilísticos efetuados em resultado das operações de compra e venda das participações sociais da sociedade B... SA, nada tendo sido referido sobre a sua correcção ou incorreção.

Por fim, nos pontos 31 a 34, a sociedade A…, SGPS refere que «...a hipotética aplicação à situação em apreço da Cláusula Geral Anti-abuso em caso algum poderia, ao contrário do pretendido pela Administração Tributária, constituir a exponente em responsabilidade tributária por falta de retenção na fonte a título de IRS aquando do pagamento das acções adquiridas», concluindo que «...não tendo a Exponente visado, como amplamente demonstrado, a obtenção de quaisquer vantagens fiscais, a sua responsabilização por falta de retenção na fonte de IRS não tem qualquer cabimento.»

Quanto aos argumentos atrás reproduzidos, parece-nos que será, desde logo, de esclarecer o facto de no presente Relatório de Inspecção não se pretender imputar à sociedade A..., SGPS a obtenção de qualquer vantagem fiscal.

Como ficou vincado ao longo do presente Relatório de Inspecção, o que se pretende tributar são os rendimentos obtidos pelos accionistas da sociedade B…, SA, enquadráveis na categoria E de IRS, em virtude de, em nosso entendimento, a factualidade descrita ser subsumível na norma de incidência prevista na alínea h) do n° 2 do artigo 5º do CIRS.

A tributação de tais rendimentos é feita através da retenção na fonte à taxa liberatória prevista no art. 71° n°. 1, alínea c) do CIRS, a qual tem natureza de pagamento liberatório, sem prejuízo da opção pelo englobamento, nos termos do art. 71° n° 6 do CIRS.

Vale por dizer que estes rendimentos não estão sujeitos a englobamento obrigatório, nos termos do art. 22° - n°. 3, alínea a) do CIRS.

De acordo com o artigo 101° - n° 2, alínea a) do CIRS, a obrigação de proceder à retenção na fonte recai sobre a sociedade A..., SGPS, uma vez que foi esta entidade que colocou estes rendimentos à disposição dos accionistas.

É essa a razão pela qual as correcções propostas, caso mereçam o necessário sancionamento superior, deverão efectivar-se na esfera da sociedade A..., SGPS.

Face a tudo quanto fica exposto e não tendo sido apresentados quaisquer argumentos susceptíveis de pôr em causa as correcções propostas no Projecto de Relatório de Inspecção, propõe-se que as mesmas se mantenham, propondo-se ainda que, previamente à conclusão do procedimento inspectivo, o presente Relatório seja enviado ao Sr. Director Geral da AT, nos termos e para efeitos do disposto no n°. 7 do art. 63° do CPPT”.

45.           Em 20 de Janeiro de 2014, em concretização das conclusões do Relatório de Inspecção, a Requerente foi notificada das liquidações de IRS (retenção na fonte) e juros compensatórios n.os 2014 … e 2014 …, no montante total de EUR 6.197.119,79, relativas ao ano de 2010 (cfr. doc. n.º 1 junto à PI) .

46.           Em 13 de Março de 2014 a Requerente procedeu ao pagamento do montante de EUR 6.197.119,79 objecto das liquidações referidas no número anterior (cfr. doc. n.º 14 junto à PI).

47.           Em 15 de Maio de 2014, a Requerente requereu a constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do artigo 10.°, n.°s 1, alínea a), e 2.° do RJAT visando a anulação da liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2014 … e da correspondente liquidação de juros compensatórios n.º 2014 …, ambas de 13 de Janeiro de 2014, e, bem assim, a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, o que deu origem ao presente processo.

13. A convicção do Tribunal sobre a factualidade dada como provada resultou do exame dos documentos que constam dos autos e do PA junto, incluindo o RIT relativamente aos elementos fácticos que não se mostram contrariados ou impugnados pela Requerente (cfr. art. 76.º, n.º 1 da LGT e 115.º, n.º 2 do CPPT), bem como do reconhecimento de factos resultante de alegações da PI que foram acolhidas pela Requerida, tudo conforme se especifica em cada um dos pontos do probatório acima enunciados.

 

IV.2. FACTOS NÃO PROVADOS

14. Quanto aos factos não provados com relevância para a matéria dos autos, consideram-se como tal as alegações, a seguir indicadas, constantes da PI (arts. 8.º, 12.º, 16.º, 17.º, 22.º e 23.º), que foram impugnadas pela Requerida (arts. 113.º, 114.º, 115.º, 116.º, 126.º a 137.º, 142.º a 163.º da R.), e relativamente às quais não foi solicitada e/ou produzida pela Requerente qualquer prova atendível, documental ou outra:

1.              A partir do ano de 2001, a Requerente iniciou com ambas as sociedades suas participadas uma relação de prestação de serviços de consultadoria nas áreas comercial, administrativa e produtiva, assente no know-how acumulado pelos seus administradores no sector têxtil.

2.              No ano de 2009, em face do bom funcionamento da Requerente demonstrado até então, os accionistas da B..., S.A que também eram accionistas da Requerente, mostraram-se disponíveis para a alienação à Requerente das participações dessa sociedade como forma de aí concentrarem a gestão de toda a actividade do sector têxtil da família S… - mantendo apenas participações residuais na sociedade B..., S.A assegurando-lhes a possibilidade de estar presentes a título individual nas respectivas assembleias-gerais de accionistas – apresentando como justificações para essa alienação, designadamente: (i.) o desejo de dinamizar a actividade têxtil do Grupo P… através da integração da actividade das diversas sociedades que o compõem sob a direcção da Requerente; e (ii.) o reforço do cunho profissional na gestão da B..., S.A, para progressiva demarcação da imagem redutora de negócio familiar, identificado com a pessoa do seu fundador e principal accionista C..., destacado empresário, agraciado em … pelo Presidente da República com o grau de comendador da Ordem de Mérito Empresarial, mas contando já à data com a respeitável idade de 71 anos.

3.              Na perspectiva da Requerente, a aquisição de uma posição dominante no capital da sociedade B..., S.A foi vista como uma clara oportunidade de negócio, permitindo-lhe ganhar uma escala muito maior enquanto sociedade gestora de participações sociais, posicionando-se inequivocamente como a líder empresarial de toda a actividade têxtil do Grupo P, o que desde logo permitiria uma apresentação fortalecida do grupo perante terceiros - clientes, credores, trabalhadores, etc. - através, por exemplo, de demonstrações financeiras consolidadas, reforçando a imagem de uma gestão de cariz profissional, a salvo de eventuais disputas ou desavenças familiares que são comummente reconhecidas como uma das maiores ameaças para a solidez das empresas de matriz familiar.

4.              Adicionalmente, a entrada da Requerente no capital da sociedade B..., S.A e consequente formação de jure de um grupo de sociedades com a Requerente como sociedade directora, permitiria estabelecer novas e mais profundas sinergias na administração e funcionamento das diversas sociedades do grupo, seja ao nível da complementaridade de actuação das diferentes sociedades, seja ao nível da gestão integrada de tesouraria do Grupo.

5.              N…, única accionista individual da B..., S.A que não era accionista da Requerente, manifestou a sua vontade de passar a participar no capital da Requerente, para o que se dispunha a contribuir em espécie a sua participação na B..., S.A pelo que, pelos mesmos motivos que haviam presidido à decisão de aquisição de participações sociais em 2009, a Requerente teve naturalmente interesse em reforçar a sua participação na sociedade B..., S.A, através de emissão de novas acções e correspondente aumento do seu capital social.

 

15. A convicção do Tribunal quanto aos factos não provados deveu-se à manifesta ausência de prova apresentada a seu respeito. Com efeito, os documentos juntos pela Requerente à sua PI, únicos meios probatórios que aduziu, não permitem fundamentar a demonstração das alegações impugnadas que acima se indicaram, não tendo sido especificamente produzido qualquer elemento de prova a propósito de cada uma das indicadas alegações (cfr. os arts. 8.º[2], 12.º[3], 16.º[4], 17.º, 22.º e 23.º[5] da PI). Evidentemente, é insuficiente, para efeitos da respectiva comprovação material e formação da convicção do Tribunal, a mera apresentação no articulado da parte de alegações sobre factos sem suporte probatório adequado.

 

V. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

V.1. CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS SOBRE A ORDEM DE CONHECIMENTO DOS VÍCIOS ALEGADOS

 

16. Atenta a matéria de facto provada, cabe agora enfrentar as questões concretas controvertidas que constituem o objecto do litígio, as quais, conforme acima se enunciou (vd. supra n.º 10), são as seguintes:

a) Preterição do dever de inquirir, por falta de diligências concretas encetadas pela Administração Tributária no procedimento inspectivo para determinação da base factual relevante para aferição dos pressupostos de aplicação da cláusula geral anti-abuso, em violação do artigo 58.° da LGT;

b) Falta de preenchimento dos pressupostos de aplicação da cláusula geral anti-abuso, em violação do disposto no artigo 38.°, n.º 2, da LGT;

c) Inoponibilidade à Requerente, como (hipotética) substituta tributária, da desconsideração de efeitos fiscais resultante da aplicação da cláusula geral anti-abuso aos actos em questão, em concomitante violação do artigo 38.°, n.º 2, da LGT ou, caso assim se não entenda, por inconstitucionalidade dessa norma, interpretada no sentido de ser apta a produzir efeitos fiscais sobre terceiros que não o contribuinte que agiu motivado para a obtenção da vantagem fiscal, em face dos princípios da certeza e segurança jurídicas e da proporcionalidade e, bem assim, por violação inadmissível do direito à propriedade privada garantido pelo Protocolo Adicional à CEDH;

d) Falta dos pressupostos legais necessários para a liquidação de juros compensatórios, caso não proceda a anulação da liquidação de IRS de que é acto consequente;

e) Condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.°, n.º 1, da LGT.

 

17. Sobre a ordem do conhecimento dos vícios, determina o art. 124.º do CPPT, aqui subsidiariamente aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, als. a) e c) do RJAT, que, “[n]a sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação” (n.º 1 do art. 124.º), sendo que, em cada um dos grupos, a apreciação é feita pela seguinte ordem: “no primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos”; “no segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público, ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior” (cfr. als. a) e b) do n.º 2 do art. 124.º).

 

Muito embora na sua PI, a Requerente invoque, a respeito do acto impugnado de liquidação de juros compensatórios n.º 2014 …, a respectiva nulidade (vd. supra n.º 3), é manifesto que, por estar na base dessa invocação o seu carácter consequente em face da pretendida anulação do acto de liquidação de IRS n.º 2014 …, conforme disposto no art. 133.º, n.º 2, al. i) do Código do Procedimento Administrativo (CPA) de 1991 (desvalor este que, sempre se refira, foi afastado no art. 161.º, n.º 2 do novo CPA 2015), não cabe dar prioridade a essa matéria, pese embora o estatuído pelo n.º 1 do mencionado art. 124.º do CPPT, pois o conhecimento dos vícios do acto de liquidação do imposto precede, lógica e ontologicamente, o conhecimento dos vícios do acto de liquidação de juros compensatórios (n.º 1 do art. 35.º da LGT).

 

Cumprindo então aplicar o disposto quanto ao “segundo grupo” (dos vícios conducentes à anulação do acto controvertido) na al. b) do n.º 2 do art. 124.º do CPPT, é sabido que, segundo jurisprudência constante (vd., por exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24.1.2007, proc. n.º 0939/06), salvo nos casos em que não se possa apreender o conteúdo do acto, nomeadamente no caso de falta de fundamentação, deve começar-se por conhecer dos vícios de violação de lei (stricto sensu) em relação aos vícios de forma ou procedimentais, porquanto a eventual procedência de uma violação de lei (stricto sensu) faculta ao interessado uma tutela mais estável e eficaz, uma vez que, em geral, impede a prática de novo acto com o mesmo conteúdo jurídico.

 

Porém, atento o que dispõe a primeira parte da al. a) do n.º 2 do art. 124.º do CPPT, isto só é assim se não tiver sido indicada pelo impugnante uma ordem de conhecimento dos vícios, estabelecendo entre eles uma relação de subsidiariedade (vd. o art. 101.º do CPPT que prevê que: “O impugnante pode arguir os vícios do ato impugnado segundo uma relação de subsidiariedade”; cfr. ainda o n.º 1 do art. 554.º do Código de Processo Civil, segundo o qual: “Diz-se subsidiário o pedido que é apresentado ao tribunal para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior”). Com efeito, como se escreve no acórdão do STA de 18.6.2014, proc. n.º 01942/13, “sempre que o impugnante estabeleça uma ordem de precedência do conhecimento dos vícios geradores de anulabilidade é essa ordem que deve ser seguida pelo juiz, não lhe sendo permitido alterá-la, assim como não lhe é permitido alterar a ordem do conhecimento dos vícios geradores de nulidade ou de inexistência, que se encontra legalmente estabelecida”.

 

Ora, perscrutada devidamente a PI, verifica-se que a Requerente estabeleceu uma relação de subsidiariedade no conhecimento dos vícios invocados (cfr. art. 101.° do CPPT), como o evidenciam o artigo 56.º (“Caso assim não se entenda, o que por dever de patrocínio se admite, embora sem conceder, sempre se dirá que a liquidação n.° 2014 …, de 13 de Janeiro de 2014, consubstancia em todo o caso um acto tributário ilegal por falta de verificação no caso concreto dos pressupostos de aplicação da cláusula geral anti-abuso”), o artigo 151.º (“sem prejuízo do anteriormente exposto quanto ao não preenchimento dos pressupostos de aplicação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, entende a Requerente que, mesmo que tais pressupostos se verificassem – o que apenas por dever de patrocínio se admite, embora sem conceder – se impõe a anulação do acto tributário impugnado, por violação de lei, na medida em que o artigo 38.º, n.º 2, da LGT não tem aptidão para junto de terceiros despoletar o nascimento de obrigações fiscais acessórias – mormente de retenção na fonte”) e o artigo 194.º (“Caso se não considere que a liquidação impugnada traduz uma errada aplicação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT ou se não conclua pela inconstitucionalidade desta norma – hipótese que sem conceder se admite por mero dever de patrocínio – sempre se deverá entender que a referida tributação consubstancia em todo o caso uma violação do artigo 1.º do Protocolo Adicional à CEDH”) desse articulado.

 

Deve, assim, este Tribunal apreciar os vícios pela ordem estabelecida pela Requerente (ordem essa que já acima se reproduziu nos n.ºs 3, 10 e 16), pelo que se começará pelo conhecimento do alegado vício de preterição do dever de inquirir da Administração Tributária no âmbito do procedimento de inspecção tributária.

 

V.2. PRETERIÇÃO DO DEVER DE INQUIRIR DA ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA

 

18. Principie-se, então, por força do que acima se expôs sobre a relação de subsidiariedade que foi estabelecida pela Requerente sobre os vícios invocados (n.º 17), pela matéria da alegada preterição, em violação do artigo 58.° da LGT, do dever de inquirir, por falta de diligências concretas encetadas pela Administração Tributária no procedimento inspectivo para determinação da base factual relevante para aferição dos pressupostos de aplicação da cláusula geral anti-abuso.

 

A este respeito, sustenta a Requerente que “a Administração Tributária violou de forma manifesta os princípios e deveres funcionais que devem presidir à condução das inspecções tributárias, muito mais no particular contexto da cláusula geral anti-abuso, cuja aplicação quis o legislador que se revestisse de particulares cuidados” (art. 43.º da PI; cfr. igualmente § 11 das alegações), porquanto constata-se “logo do teor do projecto de relatório de inspecção, que a Administração Tributária considera suficiente para fundar uma conclusão positiva sobre o preenchimento dos pressupostos de aplicação da cláusula geral anti-abuso o mero exame” de documentos, como sejam certidões do registo comercial, actas da assembleia geral, notificações de cessões de crédito (art. 44.º da PI), não tendo dirigido “qualquer diligência instrutória no sentido de apurar a verificação de factos concretos tendentes a confirmar (ou infirmar) o preenchimento” dos pressupostos de aplicação da cláusula anti-abuso que se relacionam “com a intenção subjacente aos actos jurídicos praticados, com a linearidade das soluções jurídicas escolhidas pelos contribuintes e, bem assim, com a conformidade substantiva do comportamento manifestado com o espírito legislativo que justifica o enquadramento legal de tais soluções” (arts. 46.º e 47.º da PI; cfr. igualmente §§ 12 e 13 das alegações), nem encetou quaisquer diligências concretas, “nomeadamente junto dos demais intervenientes nos negócios e actos jurídicos postos em causa” (art. 48.º da PI), no sentido de confirmar os factos invocados pela Requerente na sua audição prévia onde “apontou motivos económicos concretos, de natureza não fiscal, para os actos e negócios jurídicos cuja motivação foi questionada pela Administração Tributária, relacionando-os muito claramente com a normal prossecução do seu objecto social e, por outro lado, com o intuito de se posicionar como sociedade de controlo de toda a actividade têxtil do Grupo P, assim se consolidando a imagem do grupo perante terceiros e se reforçando o cunho profissional da respectiva gestão, mitigando-se ao mesmo tempo o risco de eventuais vicissitudes ou divergências familiares entre accionistas perturbarem o curso normal da actividade das sociedades operativas detidas pela Requerente” (art. 49.º da PI).

 

Pelo seu lado, na sua R., sustenta a Requerida que: “foram recolhidos os elementos tidos por suficientes relativamente à aferição da verificação dos requisitos da aplicação de cláusula geral de anti-abuso e à ulterior fundamentação do Relatório de Inspecção Tributária” (art. 176.º da R.; cfr. igualmente n.º 29 das contra-alegações); em relação aos documentos recolhidos que foram juntos como anexos ao RIT verifica-se que “alguns deles também foram juntos pela Requerente como anexos ao pedido arbitral o que, desde logo, atesta a relevância da documentação recolhida pelos Serviços de Inspecção Tributária com vista à fundamentação do RIT e das correcções em apreço” (art. 179.º da R); “ao longo do procedimento inspectivo, maxime na fase de audição prévia, não foram pela Requerente solicitadas quaisquer diligências complementares, as quais, como decorre do art°. 104° do CPA (Código de Procedimento Administrativo, aplicável ex vi artigo 2.º - alínea c) da LGT) poderiam igualmente ter lugar por iniciativa dos interessados” (art. 180.º da R.; cfr. igualmente n.º 30 das contra-alegações); ao contrário do que a Requerente afirma “não foram por si concretizados, em sede de audição prévia, motivos económicos de natureza não fiscal, nem tão pouco os mesmos foram por si claramente relacionados com a normal prossecução do seu objecto social, já que a Requerente se limita a dar nota desses factos sem, contudo, demonstrar em que é que os mesmos se consubstanciaram, sendo que (...) não houve qualquer alteração significativa da actividade da requerente decorrente da compra e venda daquelas participações sociais” (art. 181.º da R.; cfr. igualmente n.º 31 das contra-alegações).

 

Expostos os argumentos das partes, proceda-se, agora, à resolução da questão em apreço.

 

19. Determina o art. 58.º da LGT, subordinado à epígrafe “Princípio do inquisitório”, o seguinte: “A administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”. Pelo seu lado, no art. 6.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária (RCPIT) estabelece-se que: “O procedimento de inspecção visa a descoberta da verdade material, devendo a administração tributária adoptar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objectivo”.

 

Sobre o princípio do inquisitório, consagrado nos preceitos citados, vale a pena citar (como já se faz, aliás, no art. 39.º da PI) a bem conhecida análise de DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA[6]: “O princípio do inquisitório justifica-se pela obrigação de prossecução do interesse público imposta à actividade da administração tributária (arts. 266.º nº 2, da CRP e 55.º da LGT) e é corolário do dever de imparcialidade que deve nortear a sua actividade (art. 266.º, nº 2, da CRP c 55.º da LGT)”, o que “impõe que a administração tributária não aguarde pela iniciativa do interessado que formulou o pedido que deu origem ao procedimento, devendo ela própria tomar a iniciativa de realizar as diligências que se afigurem como relevantes para correcta averiguação da realidade factual em que deve assentar a sua decisão”, sendo ainda que “aquele dever de imparcialidade reclama que a administração tributária procure trazer ao procedimento todas as provas relativas à situação fáctica em que vai assentar a decisão, mesmo que elas tenham em vista demonstrar factos cuja prova seja contrária aos interesses patrimoniais da Administração”. Continuam ainda estes Autores: “Este dever imposto à administração tributária de averiguar a verdade material não dispensa os interessados particulares da obrigação de colaborarem na produção das provas, como se prevê no art. 59.º da LGT”. Por fim, elucidam estes Autores que: “a falta de realização pela administração tributária de diligências que lhe seja possível levar a cabo ou a falta de solicitação aos interessados de elementos probatórios necessários à instrução do procedimento, constitui vício deste, susceptível de implicar a anulação da decisão nele tomada”.

 

Exposto este enquadramento, destaque-se, pois, que o princípio do inquisitório implica que a Administração Tributária desenvolva as diligências instrutórias que sirvam para averiguar os factos que são relevantes para a decisão administrativa em atenção às determinações legais e ao interesse público que lhe cumpre dar concretização. O princípio do inquisitório e a busca da verdade material exige, assim, que a AT realize, sem subordinação à iniciativa do sujeito passivo, todas as diligências relevantes para a averiguação da realidade factual que é pertinente para a aplicação das normas tributárias que estejam em causa. Como tal, deve considerar-se excluída qualquer posição de inércia instrutória da Administração Tributária em face dos elementos pertinentes para a decisão, impondo-se antes uma actuação procedimental de recolha dos meios probatórios necessários à averiguação da verdade material. 

 

Em decorrência do princípio do inquisitório, deve, em particular, a Administração Tributária recolher e considerar as provas que lhe sejam apresentadas ou solicitadas pelos interessados quando as mesmas apresentem um mínimo de pertinência em atenção à factualidade invocada.

 

Todavia, está, evidentemente, fora de causa, em atenção ao princípio do inquisitório, cogitar que a AT proceda oficiosamente a diligências instrutórias não requeridas que não assumem, em termos conjecturáveis, relevância para a decisão procedimental.

 

20. Tendo presente estas directrizes, segue-se agora, em ordem à verificação do cumprimento – ou falta dele – do princípio do inquisitório, proceder a uma análise em termos casuísticos da situação sub judice, ponderando, em especial, os elementos que foram invocados pela Requerente e os meios de prova que foram oferecidos ou solicitados no âmbito do procedimento de inspecção tributária.

 

A este respeito, começa-se por assinalar que as diligências instrutórias exigíveis em nome do princípio do inquisitório previsto no art. 58.º da LGT respeitam unicamente a factos concretos e individualizados (rectius a enunciados factuais, a afirmações sobre a realidade fáctica), não abrangendo, pois, conceitos, proposições normativas ou juízos de feição valorativa ou conclusiva.

 

Facto é “um acontecimento ou circunstância do mundo exterior ou da vida íntima do homem, pertencente ao passado ou ao presente, concretamente definido no tempo e no espaço e como tal apresentando as características de objecto[7]. Assim, são alheias  à matéria de facto as apreciações de direito, as valorações segundo a interpretação ou aplicação da lei, os juízos, as afirmações genéricas, as conclusões. Objecto de instrução e prova são apenas dados factuais específicos e circunstanciados, ocorrências da vida real, em suma, acontecimentos concretos.

 

Em face disto, há que observar imediatamente que “a linearidade das soluções jurídicas escolhidas pelos contribuintes” e “a conformidade substantiva do comportamento manifestado com o espírito legislativo que justifica o enquadramento legal de tais soluções” (cfr. art. 46.º da PI), matérias cuja não indagação a Requerente aponta como objecto da omissão de diligências instrutórias (art. 47.º da PI), não constituem afirmações factuais, mas reconduzem-se, simplesmente, a enunciados valorativos e conclusivos, que envolvem, aliás, em si mesmos, a própria solução de direito da questão axial da aplicação da cláusula anti-abuso.

 

21. Mas, além do objecto da indagação, o que é decisivo para verificar a violação do princípio do inquisitório é ponderar as diligências probatórias alegadamente omitidas.

 

A Requerente, como se viu (n.º 18), considera que foi infringido o princípio do inquisitório por a AT ter baseado a decisão de aplicação da cláusula anti-abuso apenas no exame de documentos sem ter encetado outras diligências instrutórias, designadamente para confirmar os “factos” invocados na audição prévia (vd. n.º 42 do probatório).

 

Porém, em relação à indicação das diligências específicas que, para tanto, deveriam ter sido realizadas, apenas se encontram na PI referências a que a AT “não encetou quaisquer diligências concretas no sentido de confirmar os factos invocados, nomeadamente junto dos demais intervenientes nos negócios e actos jurídicos postos em causa” (art. 48.º da PI) e a que não indagou “junto dos intervenientes em tais actos quais os motivos subjacentes à respectiva actuação” (art. 52.º da PI; cfr. igualmente § 19 das alegações).

 

Ora, tem que se dizer, em primeiro lugar, que estas referências são demasiado genéricas para se poder alcançar e apreciar qual foi a espécie de actuação procedimental instrutória que a Requerente entende ter sido indevidamente omitida. Desde logo, não é explicitado o que se pretende designar com a expressão “intervenientes nos negócios e actos” (v. g., se respeita apenas às próprias partes nos contratos celebrados, compreendendo os membros dos órgãos de administração das pessoas colectivas envolvidas, se respeita antes aos assessores ou consultores profissionais que eventualmente acompanharam o delineamento e concretização desses negócios e actos, enfim se se tratam de quaisquer outras entidades com intervenção formal ou material nos actos em causa[8]). Exigia-se, pois, a específica identificação pela Requerente das pessoas junto das quais se deveriam realizar as “diligências concretas” ou “indagações”. Depois, também não se indicam quais as específicas diligências probatórias a concretizar junto desses “intervenientes”. Deste modo, a alegação pela Requerente da omissão de diligências concretas em violação do inquisitório padece paradoxalmente de omissão da especificação das diligências instrutórias alegadamente omitidas.

 

De qualquer modo, configurando a hipótese de que, com aquelas referências na PI a “diligências concretas” ou “indagações” “junto dos intervenientes em tais actos”, a Requerente esteja a invocar que se deveria, no âmbito do procedimento de inspecção, ter tomado declarações às partes dos negócios em apreço (cfr. o art. 50.º do CPPT) quanto às motivações e intenções subjacentes[9], tem que se reconhecer que não se pode atribuir a essa prestação de declarações um carácter profícuo ou determinante, na perspectiva do órgão decisor, para a exacta detecção da verdade material, já que, por estarem em causa os próprios interessados na operação reputada abusiva, não se antecipa que valor probatório peremptório possuiriam as respectivas declarações no âmbito da instrução do procedimento que não se reconduza ao improvável reconhecimento e confissão da actuação abusiva. Acresce que a verificação, no prisma da aplicação da cláusula anti-abuso do art. 38.º, n.º 2 da LGT, da “intenção subjacente aos actos jurídicos praticados” (art. 46.º da PI), da respectiva “motivação” (art. 49.º da PI) não consiste em “um puro subjectivismo, reconduzível, em última instância, à demonstração do estado psicológico e emocional dos agentes no momento da prática do acto ou da celebração do negócio”, mas “relevará a motivação tal como revelada em factos objectiva e concretamente apreensíveis”, o que não se confunde com simples “declarações de intenção” (cita-se o acórdão proferido no proc. n.º 51/2014-T deste CAAD). Na verdade, para recorrer a uma imagem de outras áreas, o rio brota da nascente, mas esta só se descobre pelo rio.

 

Aliás, dificilmente se pode compreender que uma tal diligência probatória assuma relevância no caso em apreciação quando se verifica que a Requerente não solicitou, em sede do procedimento tributário, que sobre qualquer facto pessoal tido por pertinente fosse inquirido qualquer um dos contribuintes ou sujeitos passivos envolvidos. Lembre-se que, como acima se citou (n.º 19), a LGT consagra igualmente, no n.º 1 do art. 59.º, um recíproco dever de colaboração, o qual exige ao contribuinte que coopere activamente com a administração tributária no sentido da descoberta da verdade. Ora, foi dado como provado (n.º 43 do probatório) que, durante o procedimento inspectivo, em particular na fase da audição prévia (cfr. o doc. n.º 12 junto à PI a que se alude no n.º 42 do probatório), a Requerente não solicitou quaisquer diligências instrutórias complementares, não tendo indicado quaisquer particulares meios probatórios que a AT ainda devesse considerar. Deste modo, no circunstancialismo em presença, não se pode aceitar, sob pena até de inaceitável venire contra factum proprium, que se configure uma omissão relevante desta espécie de diligência instrutória perante a atitude do interessado que se limita a aguardar negligentemente que a AT lhe enderece o convite para prestar declarações sobre as suas motivações. No caso, a irrelevância dessa diligência parece tanto mais manifesta quanto se observa que, igualmente no âmbito do presente processo arbitral, não foi requerida pela Requerente a realização da prestação de declarações de parte ou a produção de prova testemunhal.

 

Como sintetiza pertinentemente PEDRO VIDAL MATOS[10]: “O dever de inquirir da Administração Tributária é (...) limitado, desde logo pela função que o mesmo desempenha. Assim, ele existe apenas relativamente a factos fiscalmente relevantes e, de entre estes, apenas quanto àqueles relativamente aos quais existam dúvidas sobre a sua ocorrência ou exactos contornos. Por outro lado, o dever de inquirir da Administração pode apenas existir quando existam diligências abstractamente aptas a dilucidar as dúvidas concretas relativamente a factos que careçam de investigação”.

 

22. Nestes termos, dado que se verifica que a Administração Tributária concluiu, em face dos elementos documentais recolhidos, sobre a ocorrência da factualidade tributariamente relevante (cfr. o que consta do RIT citado no n.º 44 do probatório), nos termos de “um juízo valorativo pela Administração Tributária dos elementos recolhidos na actividade instrutória que determine uma conclusão de certeza quanto à ocorrência do facto em questão[11], e não tendo a Requerente solicitado quaisquer outras actuações probatórias, não se apura a omissão de diligências instrutórias relevantes em sede de fixação da base factual necessária à aplicação da cláusula anti-abuso.

 

Improcede, pois, a pretendida ilegalidade, que foi suscitada no pedido de pronúncia arbitral, quanto à preterição do dever de inquirir consagrado no art. 58.º da LGT e à omissão de diligências instrutórias pela AT no procedimento inspectivo.

 

V.3. REQUISITOS DE APLICAÇÃO DA CLÁUSULA GERAL ANTI-ABUSO

 

23.  Segue-se agora, tendo em atenção a relação de subsidiariedade dos vícios invocados estabelecida pela Requerente, apreciar a questão decidenda fulcral que se prende com a legitimidade, em face dos factos provados e não provados, da aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista no n.º 2 do art. 38.º da LGT.

 

Conforme se transcreveu acima no n.º 44 do probatório, entendeu-se no Relatório de Inspecção Tributária que “cumpre à Administração Fiscal recorrer à cláusula anti-abuso, nos termos do disposto no artigo 38° - n° 2 da LGT (...), uma vez que estamos perante um sucessivo e meticuloso encadeamento de actos configurando negócios jurídicos abusivos dirigidos por meios artificiosos à eliminação de impostos que seriam devidos em resultado de actos de idêntico fim económico”, porquanto, tendo em conta que os “valores acumulados ao longo de vários anos na conta de reservas, a serem distribuídos aos accionistas, seriam susceptíveis de tributação em sede de IRS, designadamente no âmbito da Categoria E, de acordo com a norma de incidência prevista no art. 5.º - n°. 2, alínea h) do CIRS”, com “a “interposição” da sociedade A..., SGPS entre a sociedade B…, SA e os titulares do capital social desta última empresa (na data anterior às sucessivas compras e vendas de acções da sociedade …, SA em benefício da SGPS) (...), os accionistas da sociedade B…, SA lograram receber valores que estavam inscritos nas contas de reservas da SA e que, sendo-lhes directamente distribuídos, seriam sujeitos a tributação na Categoria E de IRS”, ou seja, “pela venda de acções da B…, SA à A..., SGPS conseguiu-se transfigurar o que seria uma regular distribuição de dividendos aos accionistas, num conjunto de alienações de acções sobre as quais acabou por não incidir qualquer tributação efectiva na esfera pessoal dos intervenientes”, e, em relação à contribuinte N..., “não obstante o procedimento seguido não ser igual ao dos demais accionistas, a verdade é que o mesmo também visou evitar o pagamento de impostos decorrentes da transmissão de acções efectuada à A..., SGPS, procurando contornar, desde logo, a tributação da operação no âmbito da categoria G de IRS, sob o artifício de uma cessão de créditos efectuada pelo seu avô, sendo que, por sua vez aqueles créditos, resultaram da venda da quase totalidade das acções de que C...era titular na sociedade B…, SA”.

 

Refutando este entendimento administrativo, considera a Requerente que não estão preenchidos os pressupostos de aplicação da cláusula geral anti-abuso previstos no artigo 38.°, n.º 2, da LGT, por i) inexistência de motivação essencial ou principal de natureza fiscal para a compra e venda de acções da sociedade B..., S.A e, bem assim, para o aumento de capital da Requerente por entrada em espécie de acções da referida sociedade; ii) inexistência de recurso a meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas; iii) inexistência de vantagem fiscal obtida como resultado da compra e venda de acções e, bem assim, do aumento de capital por entrada em espécie; iv) inexistência de desconformidade do resultado obtido com a ratio legis das normas aplicadas.

 

24. Para sustentar esta posição, a Requerente na sua PI e nas alegações apresentadas (vd. nestas os §§ 25 a 59), invoca, no essencial, os seguintes argumentos:

a) Foram “motivos de natureza não fiscal que estiveram subjacentes aos dois actos de aquisição de participações questionados pela Administração Tributária” (art. 72.º da PI), porquanto: “a Requerente identificou claramente a aquisição de 90% do capital social da sociedade B..., S.A - 85,5% através de contratos de compra e venda, efectuados em Junho e Setembro de 2009, e 4,5% através de aumento do seu próprio capital social por entrada em espécie da participação, realizada em Dezembro de 2010 - com o objectivo de se posicionar como a empresa de topo de toda a actividade do Grupo P no sector têxtil (art. 68.º da PI); “[p]or seu turno, na perspectiva dos accionistas alienantes, aqueles que eram também accionistas da Requerente compreenderam a vantagem de concentrar numa só entidade o controlo de toda a actividade do sector têxtil do Grupo, permitindo ganhos de eficiência e uma gestão integrada das três sociedades participadas, mas também muito concretamente o interesse de proteger a actividade empresarial desenvolvida pelo Grupo de eventuais perturbações decorrentes de vicissitudes inerentes à respectiva matriz familiar - como sejam prerrogativas ou idiossincrasias individuais, disputas ou desavenças pessoais, óbitos ou querelas por questões sucessórias, etc. - que, se não adequadamente segregadas, constituem uma séria ameaça ao normal funcionamento deste tipo de empresas” (art. 69.º da PI); “[q]uanto à accionista que não era também accionista da Requerente, colocada perante a decisão dos demais accionistas da B..., S.A - seus tios e avós - de concentrar nesta as participações até então detidas a título individual, adoptando desse modo um modelo de gestão empresarial do Grupo centralizado na Requerente, é perfeitamente compreensível que pouco mais de um ano volvido sobre tal concentração tenha surgido o desejo de trocar a participação detida na B..., S.A por uma participação na Requerente, sociedade de controlo do Grupo” (art. 70.º da PI), pelo que não pode “dar-se por preenchido o pressuposto de motivação essencial ou principal de natureza fiscal, resultando desde logo por isso manifestamente ilegal a aplicação do artigo 38.°, n.° 2, da LGT na situação em apreço “ (art. 79.º da PI).

b) “Não pode (...) dar-se por preenchido o pressuposto de conduta que se reconduza a actos artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, resultando também por isso manifestamente ilegal a aplicação do artigo 38.°, n.º 2, da LGT na situação em apreço” (art. 104.º da PI), porquanto:

- “a Requerente é desde o ano 2000 uma sociedade gestora de participações sociais com existência e actividade efectiva, não se tratando de entidade cuja constituição tenha sido motivada pela realização da operação questionada pela Administração Tributária, com nenhuma outra actividade ou papel que não fosse o de adquirir acções da B..., S.A” (art. 86.º da PI);

- “a Administração Tributária não questiona em momento algum que os termos e condições de aquisição acordados entre a Requerente e os accionistas vendedores corresponderam aos que normalmente seriam aceites e praticados entre partes independentes em operações comparáveis - respeitando desde logo o disposto no artigo 63.°, n.º 1, do CIRC” pelo que “aceitando o preço e condições de pagamento acordadas entre as partes como correspondendo às de mercado, não se vê como pode a Administração Tributária retirar qualquer conclusão quanto à (suposta) natureza artificiosa ou fraudulenta e abusiva da transmissão de acções com base no facto de parte do preço devido pela Requerente aos vendedores ter sido diferido e pago com recursos financeiros resultantes da distribuição de lucros pela sociedade B..., S.A” (arts. 88.º e 89.º da PI);

- “a Requerente desconhece, sem ter obrigação ou direito a conhecer, os motivos que presidiram à decisão de C...de efectuar a referida cessão a favor de N…, mas supõe que subjacente à mesma estarão os laços familiares que unem cedente e cessionária, tudo apontando para que tal cessão traduza nada mais do que uma oferta patrimonial de um avô à respectiva neta” sendo que “não obstante a coincidência temporal da cessão realizada com a entrada de N… no capital social da Requerente - mas também, diga-se de passagem, com a época natalícia -, o que é verdade é que a Administração Tributária nada de concreto demonstra que possa infirmar o presumido espírito de liberalidade da cessão efectuada” (arts. 92.º e 93.º da PI);

- “a Administração Tributária insurge-se contra o facto de não haver sido seguida uma via fiscalmente mais proveitosa para os Cofres da Fazenda Pública, desligando-se de qualquer juízo quanto à razoabilidade do comportamento dos contribuintes, ao ponto de configurar como abusiva uma venda (ou permuta) de participações perfeitamente linear e enquadrável no exercício legítimo do correspondente direito de propriedade sobre tais valores mobiliários”, pelo que “não compreende no que em bom rigor se traduz a exigência do Elemento Meio para a aplicação do disposto no artigo 38.°, n.º 2, da LGT, passando por completo ao lado da necessidade de aferir do recurso a «meios artificiosos ou fraudulentos» e a existência de «abuso das formas jurídicas»” (arts. 98.º e 101.º da PI).

c) “Para que se possa dar por verificado o Elemento Resultado enquanto pressuposto de aplicação do artigo 38.°, n.º 2, da LGT há (...) que concluir por uma equivalência de resultado económico - entre a adopção ou não dos meios considerados artificiosos ou fraudulentos e abusivos das formas jurídicas - a que não corresponde, por lei, uma equivalente oneração tributária (apresentando-se mais vantajoso o tratamento fiscal resultante dos meios adoptados)” (art. 107.º da PI).

Ora, “a comparação efectuada pela Administração Tributária se reconduz a duas situações perfeitamente distintas: a isenção de tributação em Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) dos dividendos percebidos pela Requerente, sociedade gestora de participações sociais, que se justifica pela necessidade de eliminar o fenómeno da dupla tributação económica dos lucros distribuídos de sociedades afiliadas para as respectivas sociedades-mãe, e a eventual tributação dos dividendos na esfera dos accionistas, sujeitos passivos de IRS e destinatários finais do fluxo de rendimento” (art. 111.º da PI), pelo que “se a comparação pretendida pela Administração Tributária é entre a distribuição de dividendos antes e depois da entrada da Requerente no capital da sociedade B… S.A. e a vantagem alegadamente obtida pelos accionistas alienantes das acções (enquanto também accionistas da Requerente), não poderia deixar de se equacionar uma adicional e subsequente distribuição de dividendos da Requerente para tais accionistas, pois que só assim se atingiria um resultado comparável à distribuição de dividendos, pela sociedade B…, S.A., em momento prévio às transmissões de acções” e “configurando-se essa hipotética distribuição de dividendos, nenhuma dúvida existirá que tais rendimentos de capitais teriam na esfera dos contribuintes accionistas da Requerente o mesmo tratamento fiscal em sede de IRS que teria tido uma distribuição de dividendos pela sociedade B…, S.A. - sendo em ambos os casos tributados à luz do artigo 5.°, n.° 1, e n.° 2, alínea h), do CIRS” (arts. 113.º e 114.º da PI).

“Contra semelhante conclusão não se diga que os accionistas vendedores receberam da Requerente valores a título de preço pelas acções transmitidas com origem em parte em lucros distribuídos à Requerente pela sociedade B…, S.A., desde logo porque não é essa a comparação feita pela Administração Tributária em sede de fundamentação do acto tributário em causa e do suposto preenchimento do Elemento Resultado, mas também porque essa linha de argumentação esbarraria igualmente com a não equivalência de resultados económicos, porquanto: a) É jurídica e economicamente diferente o recebimento de um dividendo - que se traduz na participação nos lucros de uma sociedade que permanece na titularidade do beneficiário - e o recebimento de um preço pela venda de uma participação social que é alienada - o que implica que o vendedor abdique do direito de propriedade sobre a mesma e, como tal, de qualquer direito sobre lucros distribuídos futuramente -, mesmo se a uma outra sociedade na qual também se participa, sendo certo que a Administração Tributária não põe em causa a efectividade da transmissão de participações sociais realizada; b) Parte significativa dos valores devidos pela Requerente a título de preço pela entrada no capital da sociedade B…, S.A. não foi paga aos vendedores, sendo utilizada para aumento do capital social da Requerente (e realização de prestações suplementares de capital), no contexto do respectivo robustecimento económico e financeiro inerente ao seu posicionamento como sociedade dominante do Grupo P permanecendo pois tais recursos na esfera jurídica da Requerente, o que de modo algum se mostra similar à (configurada como equivalente) distribuição de dividendos pela sociedade B…, S.A. em momento anterior à transmissão de participações (art. 115.º da PI).

“Ainda quanto à suposta verificação do Elemento Resultado, importa frisar que nada é referido pela Administração Tributária a respeito da permuta de partes sociais realizada entre a Requerente e a accionista N…, sendo a esse respeito totalmente omisso o Relatório Final de Inspecção” (art. 116.º da PI).

d) - É “tão incompreensível quanto inaceitável que a Administração Tributária, tendo ao longo do Relatório de Inspecção identificado os diversos elementos da norma e inclusive profusamente citado Doutrina e Jurisprudência sobre da mesma, acabe por concluir que o Elemento Normativo se verifica na medida em que a Requerente tem capacidade contributiva e foram levados (alegadamente) a cabo negócios jurídicos visando evitar a tributação” (art. 128.º da PI), pelo que “também relativamente ao Elemento Normativo, a Administração Tributária não satisfez o ónus de demonstrar o preenchimento dos pressupostos de aplicação do artigo 38.°, n.º 2, da LGT” (art. 130.º da PI).

- “De todo o modo, impõe-se a este respeito referir que a vantagem fiscal aparentemente apontada pela Administração Tributária como resultante da venda de acções da sociedade B…, S.A. à Requerente - assente no diferente tratamento fiscal das mais-valias geradas com a venda de acções e da percepção de dividendos - não se apresenta como minimamente contrária ao espírito legislativo subjacente ao artigo 10.°, n.º 2, alínea a), do CIRS, ou atentatória do ordenamento jurídico-tributário nacional vigente à data dos factos” (art. 131.º da PI), pois “Não é minimamente crível que a assinalada diferença de tratamento fiscal entre vendas de acções (detidas não especulativamente) e a percepção de dividendos possa ser fruto do acaso ou de uma qualquer espécie de distracção do legislador fiscal, devendo antes ser vista como uma escolha consciente de privilegiar a existência, criação e investimento em sociedades anónimas, ao mesmo tempo que são tributados nos termos gerais os dividendos distribuídos enquanto rendimentos de capitais” (art. 135.º da PI), pelo que “tem que aceitar-se como não contrária ao espírito do legislador fiscal a decisão de um investidor de favorecer a alienação da sua participação não especulativa numa sociedade anónima sobre a redução de valor dessa participação através da distribuição de dividendos, mesmo que à mesma presidissem razões essencial ou principalmente de natureza fiscal” (art. 137.º da PI).

- “Semelhantes considerações devem fazer-se quanto à não verificação do Elemento Normativo relativamente à aplicação no caso em apreço da norma do artigo 51.° do CIRC, que garante a eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos de sociedades afiliadas para as suas sociedades-mãe” (art. 139.º da PI), sendo que: “No caso concreto, os resultados registados pela sociedade B…, S.A. foram naturalmente sujeitos a tributação em sede de IRC na esfera desta - o que não é contestado pela Administração Tributária -, motivo pelo qual a eventual tributação na esfera da Requerente da parte desses resultados a si distribuída como dividendos redundaria na dupla tributação económica de tais rendimentos” (art. 141.º da PI).

- “ainda que nada seja a esse respeito invocado pela Administração Tributária em sede de fundamentação do acto tributário impugnado (...) importa ainda frisar que o Elemento Normativo está também absolutamente ausente da operação de permuta de acções realizada em Dezembro de 2010 entre a Requerente e a accionista N…”, pois “a vantagem fiscal decorrente do regime previsto nos artigos 73.° e 77.° do CIRC e, bem assim, no artigo 10.°, n.º 8, do CIRS - traduzida no diferimento da tributação pela eventual mais-valia gerada com a permuta - reconduz-se a um regime de neutralidade fiscal das operações de concentração empresarial como aquela muito claramente levada a cabo pela Requerente, tendo esta à data uma participação maioritária no capital social da sociedade B…, S.A. - mercê das aquisições efectuadas em Junho e Setembro de 2009 -, a qual reforçou mediante atribuição a N… de acções representativas do seu próprio capital social” (arts. 143.º e 145.º da PI).

 

25. Por seu turno, a Requerida sustenta na sua R. e reitera nas suas contra-alegações (n.ºs 50 e seguintes), no essencial, o seguinte:

a) “Por força da concretização de um conjunto de actos entre si encadeados, os accionistas/administradores da Requerente (e da sociedade B…, S.A.) lograram obter um resultado económico equivalente à distribuição de dividendos sem incidência do imposto que, em circunstâncias normais, seria devido”; “Todos os actos foram praticados com um propósito fiscal, sendo que não fora esse propósito fiscal, e o procedimento natural seria o de distribuição directa de dividendos aos accionistas da sociedade B…, S.A. (e da Requerente)”; “Nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea h) do CIRS, são sujeitos a tributação os lucros das entidades sujeitas a IRC, colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares”; “Tomando em linha de conta o teor do mencionado artigo, torna-se evidente a razão da opção da Requerente, em conjunto com os respectivos accionistas/membros do conselho de administração, da alienação das acções no ano de 2009, sem que as mesmas lhes fossem pagas no imediato e, em alternativa, aguardando que a sociedade B…, S.A. distribuísse os seus dividendos à Requerente para que esta, posteriormente, “devolvesse” aos ditos accionistas os valores que lhes eram devidos, a título de direitos de crédito” (arts. 187.º a 190.º da R.); “Perante a factualidade que reveste a arquitectura levada a cabo, deparamo-nos com o designado negócio indirecto combinado, que resulta da combinação de diversos actos ou negócios jurídicos, que embora formalmente separados, se conjugam com um único fim: o de atingir um resultado económico, isento de tributação, que, de outra maneira, caso se tivesse seguido a conduta negocial típica, não seria possível” (art. 193.º da PI).

b) “O elemento meio remete-nos para a via utilizada para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal, o que Courinha traduz por “(…) os actos ou negócios jurídicos cuja estrutura se encontra determinada em função de determinado fim fiscal.” (art. 198.º da R.). Ora, “[f]ace ao manifesto objectivo dos accionistas em manter o controlo das participações sociais da sociedade B…, S.A. que mantinham antes de as alienarem à Requerente – sociedades de que eram accionistas e administradores - C..., D…, E..., G… e F… optaram pelo negócio mais artificioso, complexo, inusitado e até contraditório possível” (art. 202.º da R.); “Para quê a venda de 427 405 acções, ao seu valor contabilístico, à Requerente – sociedade que não tinha disponibilidades financeiras para liquidar o valor por que foram vendidas – quando podiam simplesmente ter alienado as ditas acções à Requerente por via de aumento de capital por entrada em espécie com entrega de acções, ao seu valor nominal de € 5,00?” (art. 203.º da R.); “atendendo a que a Requerente e a sociedade B…, S.A. são controladas pelas mesmas pessoas, que autodeterminaram toda a montagem da operação e condições, – na prática, pessoas que fizeram negócios consigo mesmas – que não alienaram a actividade têxtil a entidade independente, mas antes a sociedade por eles controlada, pergunta-se: Tem racionalidade económica a venda de acções por €91.892.075,00 quando podiam, simplesmente, ter “subsidiado” o aumento de capital social da Requerente com entradas em espécie por acções ao seu valor nominal? Não tem!” (arts. 212.º a 214.º da R.).

c) Demonstram a motivação subjectiva da Requerente e dos accionistas/administradores os elementos indiciários seguintes: “1) a venda “desnecessária” de acções da sociedade B…, S.A. com recurso ao seu valor contabilístico, ao mesmo tempo que a Requerente não tinha disponibilidades financeiras para liquidar a referida dívida, isto numa altura em que a alienação de acções não era tributada; 2) a distribuição de dividendos para a Requerente ocorrida em 2010, 2011 e 2012 e que, posteriormente, foram entregues aos accionistas, não a título de dividendos, mas antes a título de direitos de crédito; 3) o posterior aumento de capital da Requerente, em 2010, por via das entradas em espécie com acções (ao valor nominal) da accionista N…, que esta detinha da sociedade B…, S.A., seguida de duas cessões de crédito, efetuadas por seu avô, C..., que a beneficiou, sem o peso da tributação, num valor total de € 4.608.475,00” (art. 240.º da PI). Assim, “não tendo havido qualquer alteração significativa no quotidiano das sociedades em questão, - conjugado com o facto de a política de distribuição de dividendos se ter alterado de forma notória após a aquisição das acções por parte da Requerente - demonstra que a motivação subjacente a todo este negócio foi a distribuição dos resultados da sociedade B…, SA, interpondo, entre a sociedade e os respectivos accionistas, uma outra sociedade cuja administração é coincidente, a Requerente” (art. 268.º da PI).

d) “Se a Requerente e os accionistas tivessem escolhido o negócio economicamente equivalente ao ora em apreço, por via do aumento de capital social da Requerente com entradas em espécie por acções ao valor nominal, - que os accionistas detinham na sociedade B…, S.A. - não receberiam, livres de imposto, os valores depositados nos cofres desta sociedade, normalmente destinados a serem distribuídos como dividendos”; “Ou, se tivessem distribuído dividendos antes da venda das acções, seriam tributados em sede de imposto sobre o rendimento, nos termos do artigo 5.º, nº 2, al. h) do CIRS”; “O resultado económico seria idêntico ao da venda de acções à Requerente, seguido da distribuição de dividendos da sociedade B…, S.A. àquela”; “Deste modo, só por causa da exclusão de tributação, os Requerentes actuaram como actuaram, contrariamente ao espírito da lei” (arts. 278.º a 281.º da R.).

e) “É nesta desconformidade entre o fim visado pela norma e o concreto fim visado na utilização da norma (e da forma jurídica) pelo sujeito passivo, que reside o carácter antijurídico, ou censurável, ou, na linguagem mais disseminada, o elemento normativo” (art. 299.º da R.). “Foi intenção do legislador e, mais importante, é inerente à ratio da mencionada norma tributária [art. 5.º, n.º 1 do CIRS], a tributação de todos os rendimentos que se reconduzam à natureza da categoria E, – rendimentos de capitais – entre os quais se incluem a distribuição de dividendos, provenientes dos lucros das entidades sujeitas a IRC” (art. 301.º da R.). “Conclui-se que, no caso que nos ocupa, a lei pretendeu, em toda a sua extensão, tributar os rendimentos passíveis de recondução à categoria E, como acontece com a distribuição de dividendos (ainda que encapotada de reembolso de direitos de crédito)” (art. 303.º da R.).

“O mesmo se diga em relação à mens legis (e mens legislatoris) inerente ao pretérito artigo 10.º, n.º 2, al. a) do CIRS” (art. 305.º da R.). “Se a alienação de acções da sociedade B…, S.A. à Requerente foi levada a efeito com finalidades exclusivamente fiscais, se foi efetuada em abuso de direito, movendo-se apenas aparentemente dentro da lei, não serve o propósito extra fiscal pela lei visado”, “Sendo manifesto que o legislador não excluiu de tributação as mais valias provenientes da alienação de acções para proporcionar a alguns poupança fiscal” (arts. 329.º e 330.º da R.).

 

26. Expostas as posições e argumentos essenciais das partes, proceda-se, agora, à resolução da questão sub judice.

 

Como está em causa, neste âmbito, apreciar, em relação à factualidade dada como provada, os pressupostos da cláusula geral anti-abuso prevista no n.º 2 do art. 38.º da Lei Geral Tributária (cfr. igualmente o disposto no art. 63.º do CPPT), cabe começar por citar o teor daquela disposição: “São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”.

 

Esta disposição, na esteira da conhecida monografia de GUSTAVO LOPES COURINHA[12], tem sido usualmente objecto de uma aplicação em termos analíticos, consistente na detecção, na situação que esteja em julgamento, de cinco elementos, “correspondendo quatro deles aos requisitos de aplicação da CGAA e um à respectiva estatuição da norma” a saber, “a forma utilizada – elemento meio; a vantagem fiscal e a equivalência económica obtidas - elemento resultado; a motivação do contribuinte – elemento intelectual; a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida – elemento normativo; a efetivação da Cláusula – elemento sancionatório”, sendo que estes elementos “embora devam ser tratados autonomamente, pelo menos do ponto de vista doutrinal, não deixarão com frequência (...) de auxiliar-se mutuamente”, pois a “fixação de um elemento pode, na prática, depender de um outro”.

 

Pode apontar-se como exemplo da adopção, na jurisprudência, deste esquema analítico o arrêt de principe representado pelo acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 15.02.2011, processo n.º 04255/10, que acolheu o entendimento segundo o qual: “A previsão da norma em análise consagra quatro pressupostos da sua aplicação, os quais são: 1-O elemento meio - o qual tem a ver com a forma utilizada, portanto, com a prática de certos actos ou negócios dirigidos, essencial ou principalmente, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos; 2-O elemento resultado - o qual visa a vantagem fiscal como fim da actividade do contribuinte, portanto, a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos; 3-O elemento intelectual - o qual tem a ver com a motivação fiscal do contribuinte, portanto, com o facto dos actos ou negócios pelo mesmo praticados serem essencial ou principalmente dirigidos ao resultado que é a vantagem fiscal; 4-Elemento normativo - o qual tem a ver com a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida, portanto, o contribuinte atua com manifesto abuso das formas jurídicas (cfr. art°. 63, n° 2, do C.P.P. Tributário). Na estatuição da norma vamos encontrar o elemento sancionatório que se traduz na ineficácia, no âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos em causa, os quais passam a ser inoponíveis à A. Fiscal (...). O elemento sancionatório corresponde, por isso, à estatuição da norma em apreciação, dependendo a sua aplicação da verificação cumulativa dos pressupostos consagrados na sua previsão”.

 

Na jurisprudência arbitral tributária deste CAAD encontra-se igualmente esta dissecação do art. 38.º, n.º 2 da LGT em cinco elementos, como se pode exemplificar com os acórdãos proferidos nos processos 143/2014-T e 208/2014-T, em que se explana o seguinte: “A doutrina e a jurisprudência têm vindo a desconstruir a letra da norma apontando cinco elementos nela patentes. Correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatro afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir – como se de um teste se tratasse – quanto à verificação de uma actividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo”, elementos estes que consistem: “– no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida – acto ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de actos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal; – no elemento resultado, que contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos actos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente; – no elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja «essencial ou principalmente dirigid[a] [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objectivamente, se o contribuinte «pretende um acto, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam»; – no elemento normativo, que «tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela » ; – e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT)”[13].

 

Pois bem, é precisamente este esquema analítico de cinco elementos que se encontra no Relatório de Inspecção Tributária (vd. o n.º 44 do probatório) e que preside às posições expostas pelas partes nos presentes autos, conforme resulta da descrição acima efectuada (n.ºs 24 e 25), pelo que, na apreciação aqui em causa, este Tribunal vai igualmente
orientar-se por tal esquema analítico, o qual, independentemente da sua valia dogmática, apresenta préstimo para o exame da integração na cláusula geral anti-abuso objecto do n.º 2 do art. 38.º da LGT das operações sub judice.

 

Não se pode, todavia, obnubilar que o vector decisivo na verificação da legitimidade da aplicação da cláusula geral anti-abuso é sempre a apreciação casuística, em função dos valores e objectivos do ordenamento jurídico-tributário, das circunstâncias que estão presentes na situação fiscalmente relevante em julgamento. Como se escreve no citado acórdão do TCA Sul proferido no proc. n.º 04255/10 “a questão de determinar se algum expediente em particular é “puramente artificial” deve ser resolvida nos tribunais domésticos caso a caso”. Com efeito, o funcionamento da cláusula geral anti-abuso, consagrada no n.º 2 do art. 38.º da LGT, pressupõe sempre uma tarefa de realização concreta do Direito em função das circunstâncias fácticas e dos contornos materiais da situação sub judice, não sendo viável, a seu propósito, sob pena de se desprotegerem as necessidades reais que presidiram à sua consagração, reduzir a sua aplicação à subsunção estrita e automática das realidades a categorias jurídicas abstractas.

 

De qualquer modo, sem prejuízo desta advertência e de algumas precisões que à frente se realizarão (vd. infra n.º 30), vai-se adoptar aqui, como se disse, o indicado esquema analítico de aplicação da cláusula geral anti-abuso, tendo em conta que é nele que as partes moldaram as suas posições e argumentos.

 

27. Mas justifica-se principiar por uma apreciação global, de modo a facultar o enquadramento, em atenção à factualidade dada como provada, das operações de aquisição pela Requerente, em Junho e Setembro de 2009, de 85,5% do capital social da sociedade B... e de aumento de capital por contribuição em espécie de participação de 4,5% da mesma sociedade B..., em Dezembro de 2010, bem como da cessão de créditos no montante total €4.608.475,00 de C...a favor de N…, também em Dezembro de 2010, que foram sujeitas à aplicação da cláusula geral anti-abuso.

 

Ora, a este respeito, não se pode deixar de observar que é conhecido (vd., por exemplo, o acórdão deste CAAD proferido no proc. n.º 258/2013-T)[14] um esquema de elisão fiscal destinado a transferir, sem sujeição a tributação em sede de IRS, para a esfera pessoal dos sócios lucros acumulados das sociedades, mediante a transformação daquilo que seriam dividendos tributáveis em mais-valias não tributáveis (normalmente assentes na disposição do art. 10.º, n.º 2, al. a) do CIRS na redacção anterior à alteração legislativa do regime de tributação das mais-valias mobiliárias operada pela Lei n.º 15/2010, de 26.07). Numa certa modalidade, este esquema envolve, como passos essenciais, que pessoas singulares, sócios dominantes de uma sociedade que possui avultadas reservas disponíveis, traduzíveis em elevada liquidez, que derivam de uma política sistemática de não distribuição de dividendos, procedem à alienação onerosa das acções de que são titulares a uma outra sociedade, designadamente uma Sociedade Gestora de Participações Sociais (SGPS), igualmente por eles controlada, com pagamento diferido do preço, que será efectuado uma vez distribuídas as reservas disponíveis à sociedade adquirente, a qual não suporta qualquer tributação sobre esses lucros recebidos por força dos mecanismos da eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos (vd., à data dos factos, o art. 32.º, n.º 1 do Estatuto dos Benefícios Fiscais e o art. 51.º, n.º 1 do CIRC), com o que os sócios pessoas singulares conseguem receber como mais-valias não tributadas, advenientes do preço das acções alienadas de cujo crédito são titulares na SGPS, aquilo que, em termos normais, receberiam sob a forma de dividendos tributados em sede de IRS.

 

Precisamente, segundo o Relatório de Inspecção Tributária que sustentou a aplicação da cláusula anti-abuso que se encontra na base das liquidações impugnadas é esta a situação dos autos (vd. n.º 44, iii) do probatório), conforme se observa dos seguintes excertos:

- “Os valores acumulados ao longo de vários anos na conta de reservas, a serem distribuídos aos accionistas, seriam susceptíveis de tributação em sede de IRS, designadamente no âmbito da Categoria E, de acordo com a norma de incidência prevista no art. 5.º - n°. 2, alínea h) do CIRS (Código do IRS), a qual abrange «os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o art. 20.º».

A tributação de tais rendimentos na óptica dos accionistas, deveria efectivar-se através da aplicação das taxas liberatórias previstas actualmente no art. 71° do CIRS, sem prejuízo da opção pelo englobamento nos termos nela previstos.

A opção tomada pelos accionistas de transmitir as acções da sociedade B…, SA à sociedade A..., SGPS (relembrando-se que a estrutura accionista e o Conselho de Administração de ambas as sociedades é exactamente igual) permitiu-lhes constituir um crédito sobre a SGPS, o qual foi parcialmente pago através de dividendos distribuídos pela primeira à segunda das sociedades atrás identificadas.

Tal crédito foi pago através de valores provenientes das reservas acumuladas ao longo de sucessivos exercícios económicos pela sociedade B…, SA, os quais, se tivessem sido directamente distribuídos aos seus accionistas, ficariam sujeitos a tributação através de taxas liberatórias, nos termos anteriormente referidos.

Com a «interposição» da sociedade A..., SGPS entre a sociedade B…, SA e os titulares do capital social desta última empresa (na data anterior às sucessivas compras e vendas de acções da sociedade B…, SA em benefício da SGPS) (...), os accionistas da sociedade B…, SA lograram receber valores que estavam inscritos nas contas de reservas da SA e que, sendo-lhes directamente distribuídos, seriam sujeitos a tributação na Categoria E de IRS.

Ou seja, pela venda de acções da B…, SA à A..., SGPS conseguiu-se transfigurar o que seria uma regular distribuição de dividendos aos accionistas, num conjunto de alienações de acções sobre as quais acabou por não incidir qualquer tributação efectiva na esfera pessoal dos intervenientes”.

- “o objectivo e consequência da realização dos sucessivos negócios jurídicos, foi a distribuição dos dividendos gerados pela sociedade B…, SA através da sociedade A..., SGPS, excluída de tributação em sede de IRS, sob a forma de pagamento de uma dívida previamente constituída e proveniente da venda das acções efectuada pelos accionistas da B…, SA à A..., SGPS, sendo pertinente registar que a estrutura accionista de ambas as empresas é, ao cabo e ao resto, exactamente igual, ainda que em momentos temporais diferentes”.

 

Feito este enquadramento, aprecie-se, agora, em termos específicos, os indicados elementos “resultado”, “intelectual”, “meio” e “normativo” de aplicação da cláusula anti-abuso.

 

28. Principie-se pelo “elemento resultado”, em que se trata de “demonstrar que o sujeito logrou, pelos seus actos (...), a verificação de uma certa vantagem fiscal e a equivalência dos efeitos económicos com aqueles do ato normal tributado[15].

 

Note-se, a este respeito, que, como igualmente assinala GUSTAVO LOPES COURINHA[16], “[a]s situações de vantagem fiscal devem entender-se, para efeitos da CGAA, como qualquer situação pela qual, em virtude da prática de determinados actos, se obtém uma carga tributária  mais favorável ao contribuinte do que aquela que resultaria da prática dos actos normais e de efeito económico equivalente, sujeitos a tributação. Assim, estaremos perante uma comparação entre os ónus fiscais normalmente suportados e os evitados com a actuação produzida. Se de tal análise resultar uma efectiva diferença, aritmética ou de outra natureza, que seja objectivamente vantajosa para o contribuinte, ter-se-á por verificado este requisito”.

 

Ora, entende-se que o regime fiscal que, com o conjunto de operações realizado (vd. os factos descritos nos n.ºs 18, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29 e 34 do probatório), os accionistas da Requerente e da B... conseguirem alcançar, se apresenta como manifestamente vantajoso em relação ao tratamento fiscal que seria aplicável caso se tivesse realizado o acto normal de distribuição de dividendos, particularmente antes da alienação de acções. Na verdade, a obtenção de mais-valias não tributadas (cfr., à data dos factos, o art. 10.º, n.º 2, al. a) do CIRS e o art. 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 de 30 de Novembro, que aprovou o CIRS) por via da configuração da dívida de preço da alienação das acções em vez da obtenção de dividendos tributados (art. 5.º, n.º 2, al. h) e art. 71.º, n.º 1, al. c) do CIRS) implica uma clara evitação de tributação, pois esta teria lugar caso se tivesse procedido, como é pressuposto genérico nas sociedades anónimas (cfr. art. 294.º do Cód. das Sociedades Comerciais), à entrega directa aos sócios a título de lucros distribuíveis dos montantes que foram estabelecidos como contrapartida da aquisição de acções pela Requerente (vd. n.º 25 do probatório).

 

Esclareça-se, antes de mais, que é esta comparação da obtenção de fluxos financeiros por via da dívida de preço da Requerente resultante de actos de transmissão de acções da B... com a obtenção de fluxos financeiros por via da distribuição de dividendos provenientes directamente desta mesma sociedade B... que releva decisivamente em atenção à constatação do dito “elemento resultado”.

 

Não assiste, a este respeito, razão à Requerente quando alega que “se a comparação pretendida pela Administração Tributária é entre a distribuição de dividendos antes e depois da entrada da Requerente no capital da sociedade B…, S.A. e a vantagem alegadamente obtida pelos accionistas alienantes das acções (enquanto também accionistas da Requerente), não poderia deixar de se equacionar uma adicional e subsequente distribuição de dividendos da Requerente para tais accionistas, pois que só assim se atingiria um resultado comparável à distribuição de dividendos, pela sociedade B…, S.A., em momento prévio às transmissões de acções” (arts. 113 e 114.º da PI – vd. supra n.º  24, c)). É que, precisamente, essa subsequente distribuição de dividendos pela Requerente não teve lugar em atenção aos fluxos financeiros provenientes da B... porquanto os montantes recebidos pela Requerente foram afectos ao pagamento da dívida de preço resultante das acções adquiridas aos accionistas (vd. n.ºs 30, 32, 34, 35, 36, 37 e 38 do probatório). Isto mesmo é o que expressamente se refere no RIT (vd. as transcrições constantes do n.º 44 do probatório) em que, depois de se notar que: “se aqueles dividendos tivessem sido distribuídos anteriormente à transmissão das acções em favor da SGPS, os mesmos seriam objecto de tributação às taxas liberatórias na esfera dos respectivos accionistas e na proporção das participações detidas”, se aponta que: “a sociedade A... não dispunha de meios financeiros que lhe permitissem solver a dívida decorrente da aquisição das acções da sociedade B..., pelo que a importância recebida em 2010, a título de dividendos – € 33 742 500,00 – foi parcial mas principalmente aplicada no pagamento a credores, por sinal, aos anteriores accionistas da B... e simultaneamente accionistas da A...”.

 

Na verdade, por força destas operações de aquisição de acções da B..., a Requerente ficou constituída numa dívida, resultante do preço das acções adquiridas, para com os seus accionistas, o que lhes permite, à medida que a sociedade B... distribui dividendos não tributados à Requerente, obter as quantias que resultariam destes mesmos dividendos caso estes lhes tivessem sido distribuídos directamente por esta sociedade B... em que detinham participações significativas (que, depois destas operações, passaram ser residuais – cfr. n.º 31 do probatório). Isso sucede, também, em relação à accionista N…  em virtude da cessão de créditos a título gratuito que, na decorrência da sua entrada no capital social da Requerente (vd. o n.º 27 do probatório), C... lhe efectuou no valor de €2.246.500,00, correspondente a crédito pelo preço de aquisição das acções detido na Requerente, e de €2.361.975,00, correspondente a prestações suplementares, no montante global de €4.608.475,00 (vd. n.º 29 do probatório).

 

Assim, pois, em face das operações referidas de transmissão à Requerente das acções detidas na sociedade B... pelos accionistas C..., D..., E..., G..., F… (vd. n.ºs 18 e 22 do probatório) e N… (n.º 27 do probatório) e, ainda, quanto a esta de cessão de créditos (n.º 29 do probatório), estes accionistas colocaram-se na posição de credores da Requerente em atenção, em última instância (dadas as operações subsequentes de aumento de capital e realização de prestações suplementares – cfr. n.º 26 do probatório), ao preço estabelecido de venda de acções de €91.892.075,00 (vd. n.ºs 24 e 25 do probatório), com o que os fluxos financeiros resultantes de dividendos distribuídos pela B... à Requerente não chegam aos accionistas C..., D..., E..., G..., F… e N… como dividendos sujeitos a tributação em IRS, mas unicamente sob a forma de reembolso de créditos (em parte convertidos em capital e prestações suplementares) sem tributação em IRS.

 

Surge, pois, aqui uma equivalência de resultados não fiscais – a obtenção pelos accionistas pessoas singulares das reservas livres e dos montantes pecuniários disponíveis na sociedade B... – sem equivalente oneração tributária. Por outras palavras, por força da concretização dos actos de aquisição de acções pela Requerente e de cessão de créditos, actos entre si encadeados e dirigidos a colocar os diversos familiares de C...na mesma posição societária e fiscal (e daí a permuta realizada em 2010 por N… sob pena de esta, enquanto sócia da B..., como beneficiária da distribuição de dividendos, suportar uma tributação a que os demais familiares escapavam), C...e os seus familiares, accionistas da B..., lograram atingir, por via da constituição de uma dívida na Requerente no montante de €91.892.075,00 (vd. n.º 25 do probatório) um resultado económico equivalente à distribuição de dividendos na B... sem incidência da tributação em sede de IRS que seria devida (art. 5.º, n.º 2, al. h), 7.º, n.º 3, al. a) e 71.º do CIRS).

 

Entende-se, pois, que se mostra verificado o “elemento resultado”, dado que, se o direito às quantias reconhecidas aos accionistas da B... por via da aquisição de acções desta sociedade pela Requerente tivesse sido alcançado por via da distribuição de dividendos, os montantes colocados à disposição pela B... (recordando-se que, entre os exercícios de 2000 e 2009, não foram distribuídos pela B…, S.A dividendos aos accionistas, com excepção do exercício de 2008, em que se procedeu à distribuição de lucros no valor de €1.750.000,00, e que, no ano de 2009, esta sociedade dispunha de reservas livres no valor de €93.621.066,18 e disponibilidades financeiras de € 45.757.083,55 – cfr. n.ºs 15 e 16 do probatório), seriam objecto de tributação na esfera dos accionistas à taxa liberatória prevista no art. 71.º do CIRS.

 

29. Passando, de seguida, ao dito “elemento intelectual”, que concerne à motivação fiscal do contribuinte, no sentido de que os actos ou negócios jurídicos praticados foram essencial ou principalmente dirigidos à obtenção de uma vantagem fiscal, impõe-se concluir imediatamente, em face da matéria fáctica dada como provada e como não provada (vd. supra n.ºs 12 e 14), que se encontra preenchido tal elemento na situação sub judice.

 

É que, como acima se consignou (n.º 14), não foram dadas como provadas as “motivações económicas” que a Requerente alegou como base determinativa da realização do conjunto de operações em causa, designadamente não se provou que:

i) em 2009, em face do bom funcionamento da Requerente demonstrado até então, os accionistas da B..., S.A que também eram accionistas da Requerente, mostraram-se disponíveis para a alienação à Requerente das participações dessa sociedade como forma de aí concentrarem a gestão de toda a actividade do sector têxtil da família S…, para dinamizar a actividade têxtil do Grupo P através da integração da actividade das diversas sociedades que o compõem sob a direcção da Requerente e para reforço do cunho profissional na gestão da B..., S.A, para progressiva demarcação da imagem redutora de negócio familiar, identificado com a pessoa do seu fundador e principal accionista C...;

ii) para a Requerente, a aquisição de uma posição dominante no capital da sociedade B..., S.A foi vista como uma clara oportunidade de negócio, permitindo-lhe ganhar uma escala muito maior enquanto sociedade gestora de participações sociais, posicionando-se inequivocamente como a líder empresarial de toda a actividade têxtil do Grupo P, o que desde logo permitiria uma apresentação fortalecida do grupo perante terceiros, reforçando a imagem de uma gestão de cariz profissional, a salvo de eventuais disputas ou desavenças familiares, bem como permitiria, com a consequente formação de jure de um grupo de sociedades com a Requerente como sociedade directora, estabelecer novas e mais profundas sinergias na administração e funcionamento das diversas sociedades do grupo, seja ao nível da complementaridade de actuação das diferentes sociedades, seja ao nível da gestão integrada de tesouraria do Grupo;

iii) N…, única accionista individual da B..., S.A que não era accionista da Requerente, manifestou a sua vontade de passar a participar no capital da Requerente, para o que se dispunha a contribuir em espécie a sua participação na B..., S.A pelo que, pelos mesmos motivos que haviam presidido à decisão de aquisição de participações sociais em 2009, a Requerente teve naturalmente interesse em reforçar a sua participação na sociedade B..., S.A, através de emissão de novas acções e correspondente aumento do seu capital social.

 

Como assinalava SALDANHA SANCHES[17]: “[à]s empresas, e apenas às empresas, compete a escolha dos meios específicos pelos quais realizarão os seus negócios: necessário é que exista, como motivo para a sua escolha, não uma certa via de obtenção de uma poupança fiscal contra a intenção expressa da lei, mas, sim, o que pode considerar-se uma razão comercial legítima. A operação deve ser capaz de resistir ao business purpose test”, o qual “nada mais é do que uma razão comercial legítima tal como pode vir a ser demonstrada pelo sujeito passivo, em particular, no caso de este ter adoptado uma via pouco habitual”.

 

Justamente, nas operações em causa, tendo em conta os factos não provados, não se encontram razões comerciais legítimas, mas acham-se apenas objectivos de eliminação da carga fiscal.

 

Efectivamente, não razões empresariais ou económicas, mas só a motivação fiscal de transformação de dividendos tributáveis em mais-valias não tributáveis, de modo a não sujeitar os accionistas (simultaneamente da Requerente e da B... nos termos referidos sub n.º 1, 12 e 13 do probatório) C..., D..., E..., G..., F… e N… a tributação em IRS pelos rendimentos auferidos com base nos lucros acumulados na sociedade B... – que, no ano de 2009, dispunha de reservas livres no valor de €93.621.066,18 e disponibilidades financeiras de € 45.757.083,55 (n.º 16 do probatório), e que já tinha atingido o limite legal de 10% de acções próprias (n.º 17 do probatório) – é que explica que a Requerente tenha procedido à aquisição aos accionistas em 2009 de acções da B... (n.ºs 18 e 22 do probatório) – para cujo pronto pagamento não dispunha de recursos financeiros suficientes (n.º 24 do probatório), pelo que ficou em dívida para com os alienantes seus accionistas no montante de €91.892.075,00 (n.º 25 do probatório), os quais subsequentemente converteram em aumento de capital social e prestações suplementares parte do crédito assim obtido com o preço da venda das acções (n.º 26 do probatório) –, bem como que tenha sido realizado um aumento do capital social por entrada em espécie de acções da B..., S.A detidas por N… (n.º 27 do probatório), acompanhado da cessão de créditos gratuita  no montante de € 4.608.475,00  efectuada a seu favor por C...(n.º 29 do probatório), e que, por fim, a B..., que, entre os exercícios de 2000 e 2009, não distribuiu dividendos aos accionistas, com excepção do exercício de 2008, em que se procedeu à distribuição de lucros no valor de € 1.750.000,00 (n.º 15 do probatório), tenha decidido, em 27 de Dezembro de 2010, após as aquisições de acções pela Requerente, incluindo a contribuição em espécie de N…, distribuir reservas livres no montante de € 33.750.000,00 com a justificação de que “As disponibilidades financeiras da empresa são muito elevadas e não necessárias ao funcionamento normal da empresa e muito superiores a qualquer empresa do sector. Esta distribuição promoverá uma maior eficiência da estrutura de capitais do grupo” (n.º 30 do probatório), o que possibilitou à Requerente obter dividendos no montante de €33.742.500,00 (n.º 32 do probatório), para efectuar o pagamento de parte do preço ainda em dívida num total de €21.370.250,00 em 2010 (n.º 34 do probatório), situação que se veio a repetir em 2011 e 2012 (n.ºs 36, 37 e 38 do probatório).

 

Nestes termos, falecendo a demonstração da presença das razões de estratégia empresarial, bem como dos intuitos individuais dos accionistas, apresentados na PI, emerge decisivamente do conjunto dos factos dados como provados, como motivação subjacente às operações realizadas, o objectivo de poupança fiscal conseguido pelos accionistas da B... como sujeitos passivos de IRS que constituiriam em relação aos dividendos que seriam normalmente distribuídos por esta sociedade.

 

É isto, na verdade, o que resulta dos factos provados (vd. os n.ºs 9, 10, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 32, 34, 37 e 38 do probatório), sendo certo que o apuramento da motivação fiscal se tem de fazer na base de factos objectivos concretamente apreensíveis, pois, na ausência de confissão expressa, só assim se podem detectar estados subjectivos. Ora, é imediata e directa a apreensão, com base num juízo de razoabilidade e de normalidade, a que, naturalmente, não são alheios os accionistas C..., D..., E..., G..., F… e N… e a Requerente (de cujo Conselho de Administração participam – cfr. n.º 1 do probatório), do evidente ganho fiscal, em sede de tributação em IRS dos indicados accionistas, desta operação de “conversão” de dividendos tributados em mais-valias não tributadas. Como tal, os comportamentos adoptados, seja pela Requerente seja pelos accionistas indicados, não podem deixar de ser caracterizados como possuindo como intenção essencial a redução da carga fiscal.

 

Em suma, não se tendo provado a existência de motivos económicos não fiscais na determinação das condutas que foram adoptadas pelos accionistas C..., D..., E..., G..., F… e N… e pela Requerente, não se pode senão concluir que a motivação essencial dessas condutas, em conformidade com a verificação do “elemento resultado” que se referiu no ponto anterior, residiu na obtenção da vantagem fiscal consistente na eliminação da tributação em IRS incidente sobre os dividendos resultantes dos lucros acumulados na B..., a qual seria devida, sem aquelas condutas, pela directa distribuição dos lucros (art. 5.º, n.º 2, al. h) do CIRS).

 

30. Vistos estes dois elementos, impõe-se agora sublinhar que o que é determinante para a aplicação da cláusula anti-abuso e, como tal, de indispensável verificação na situação em julgamento, é a detecção de uma actuação abusiva ou em fraus legis, portanto, nos termos da emaranhada formulação normativa constante do art. 38.º, n.º 2 da LGT, a adopção de “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas”. O ponto nodal da aplicação do disposto no art. 38.º, n.º 2 da LGT é, na verdade, a qualificação como abusiva ou fraudulenta da conduta ou operação (una ou plúrima) sob apreciação, o que envolve, naturalmente, a reprovação dos meios assim utilizados. Nestes termos, depara-se com uma prática de evasão fiscal, com uma actuação extra legem de poupança fiscal, que se pretende contrariar por via da cláusula geral anti-abuso, quando “apesar de não haver uma violação directa da lei, verifica-se o exercício abusivo de um direito por parte do sujeito passivo ou a adopção por este de um comportamento em fraude à lei (fraus legis), isto é, um comportamento que tem como finalidade exclusiva ou principal contornar uma ou várias normas jurídico-fiscais, de modo a conseguir a redução ou a supressão do encargo fiscal[18].

 

Daí que haja que reconhecer ao “elemento meio” da cláusula anti-abuso, que “corresponde à via escolhida pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal, i. e. o(s) actos(s) ou negócio(s) jurídicos(s) cuja estrutura se encontra determinada em função de um dado resultado fiscal” e que se afere pelo “nível de incoerência entre a forma ou estrutura escolhida e o propósito económico-prático final do contribuinte, entre o fim para que é empregue concretamente essa forma adoptada e a causa que lhe é própria[19] o vector fundamental da sua aplicação.

 

Tanto isto é assim, acrescente-se imediatamente, que, em ordem à concretização do esquema analítico habitualmente adoptado na aplicação da cláusula anti-abuso, a ponderação do dito “elemento normativo”, no qual se joga a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida, tem de acompanhar necessariamente, não podendo ser disso separada, a verificação do “elemento meio”. É que é dogmaticamente inaceitável, em homenagem à unidade axiológica do ordenamento jurídico-tributário, pretender que, não obstante observados todos os elementos meio, resultado e intelectual próprios da cláusula geral anti-abuso, seria possível não se corroborar o dito elemento normativo. Só um ultrapassado e inadmissível formalismo conceptualista poderia propiciar tal ideia, da qual derivaria que se poderia reconhecer, ao mesmo tempo e sem contradição, a adopção pelo contribuinte de actos ou negócios jurídicos artificiosos, com abuso de formas jurídicas ou em fraude à lei, e a não reprovação ou a aceitação dessa conduta pelo ordenamento jurídico. Daí que se deva concluir que a autonomização do elemento normativo pode ser conveniente à explicitação destas matérias, mas dogmaticamente, para efeitos de resolução dos casos concretos, tem que se ter em conta que ele não é senão a destilação do segmento normativo do art. 38.º, n.º 2 da LGT que respeita aos “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas” e em que se consubstancia, afinal, o elemento meio.

 

Pois bem, entende-se que o conjunto de operações levadas a cabo pela Requerente e pelos accionistas da B... constituem actos ou negócios que devem ser objecto de qualificação como “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas”.

 

É que, ao serviço de uma finalidade exclusivamente fiscal, esses actos de aquisição de acções pela Requerente foram objecto de uma utilização distorcida destinada simplesmente a conseguir, sem tributação, o esvaziamento de reservas disponíveis existentes na sociedade B... mediante distribuição “encapotada”, “indirecta” ou “oblíqua” de dividendos aos seus accionistas (e da Requerente) C..., D..., E..., G..., F… e N…. Assim, através dos actos praticados e do recurso à Requerente, em ordem a evitar a aplicação do n.º 1 e da al. h) do n.º 2 do art. 5.º do CIRS, segundo os quais “os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares” constituem rendimentos de capitais sujeitos a IRS (art. 1.º do CIRS), configurou-se, sem qualquer substância económica, por razões estritamente fiscais, uma situação negocial que produz os mesmos resultados materiais e financeiros, mas que possibilita evitar as consequências tributárias aplicáveis à distribuição de dividendos.

 

Como explica SALDANHA SANCHES[20]: “a natureza artificiosa de um negócio jurídico revela-se no abuso das formas jurídicas (escolhidas com base numa intenção fiscal) e demonstra a sua intenção fraudulenta pelo recurso às formas abusivas que lhe dão natureza artificiosa”, sendo que “[u]m negocio jurídico será artificioso (um requisito que se verifica, ou não, depois da comparação entre o negocio jurídico utilizado e aquele que teria sido não fora a lei fiscal) e, por isso, e num certo sentido fraudulento quando a sua utilização só puder ser explicada por razões de natureza fiscal”.

 

Reputa-se, pois, verificado, na situação sub judice o “elemento meio”, porquanto o conjunto de operações desencadeado pelos accionistas beneficiários, com a utilização instrumental da Requerente A…, SGPS, consistiu na configuração artificiosa do pagamento de uma dívida em vez da obtenção de lucros distribuíveis de modo a obter uma vantagem fiscal, no caso, a eliminação da tributação que incidiria sobre os dividendos como rendimentos de capitais, o que configura uma utilização anómala, porque desviada dos seus fins típicos, da aquisição de acções através do recurso à Requerente, entidade dominada pelos accionistas beneficiários. Visaram, deste modo, os accionistas transmitentes das acções da sociedade B..., S.A com tais alienações, obter, através da Requerente, pela configuração do pagamento de uma dívida, rendimentos que, caso não tivessem sido praticados tais actos artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, corresponderiam a dividendos procedentes da referida sociedade B....

 

Elucide-se, em face disto, que não procede o argumento da PI (vd. supra n.º 24, b)) de que a Requerente não constitui uma “entidade cuja constituição tenha sido motivada pela realização da operação questionada pela Administração Tributária, com nenhuma outra actividade ou papel que não fosse o de adquirir acções da B..., S.A”, pois o que está em jogo não é a respectiva constituição em 2001 (vd. n.º 1 do probatório), mas sim a utilização instrumental que da Requerente foi feita a partir de 2009 (vd. n.ºs 18, 22, 24, 25, 27, 34, 36 e 38), por via da aquisição de acções da B... e da consequente constituição de dívida de preço, para distribuição “oblíqua” de lucros desta aos accionistas C..., D..., E..., G..., F… e N…. A Requerente, na verdade, atentos os factos provados, foi utilizada e serviu como veículo para elidir o disposto no art. 5.º, n.º 2, al. h) e no art. 71.º, n.º 1, al. c) do CIRS, através do uso que lhe coube da “roupagem” negocial do pagamento de dívida de preço de aquisição de participações sociais substitutivo do pagamento de dividendos resultante da B....

 

Nesta sequência, também não é pertinente a alegação da Requerente (vd. arts. 88.º e 89.º da PI e §§ 31 e 32 das alegações) de que “a Administração Tributária não questiona em momento algum que os termos e condições de aquisição acordados entre a Requerente e os accionistas vendedores corresponderam aos que normalmente seriam aceites e praticados entre partes independentes em operações comparáveis” e que, como tal, se tem de concluir que “o preço e condições de pagamento acordadas entre as partes (...) corresponde[m] às de mercado respeitando desde logo o disposto no artigo 63.°, n.º 1, do CIRC”. É que a AT, no RIT (vd. n.º 44 do probatório), no âmbito da justificação da aplicação da cláusula anti-abuso, que assim coloca a montante do regime dos preços de transferência, o que questiona é a substância económica da constituição da dívida de preço em que a Requerente assim incorreu (vd., por exemplo, as seguintes referências do RIT: “Após a aquisição das acções da sociedade B..., no decurso de 2009, a sociedade A..., SGPS, ficou com uma dívida para com os accionistas (...) no valor global de € 91 892 075,00 (...), verificando-se, face aos valores evidenciados na contabilidade, que a A..., não teria disponibilidades que lhe permitissem liquidar a dívida contraída”; “a sociedade A... não dispunha de meios financeiros que lhe permitissem solver a dívida decorrente da aquisição das acções da sociedade B...”). Por outro lado, não se deixe de destacar que foi dado como provado (n.º 19 do probatório) que o preço de €215,51 por acção, conforme se declara na carta de 8.6.2009 da O... junta como doc. n.º 7 à PI, foi determinado de acordo com o método patrimonial indicado pelo Conselho de Administração da Requerente, método este que, embora “seja uma das abordagens mais fáceis e simples para se avaliar empresas, em situações específicas pode ser adequado e utilizado”, “há que salientar que na grande maioria das vezes, o comprador de uma empresa ou de um negócio está sobretudo interessado nos resultados futuros gerados por sua aquisição e não propriamente no valor dos activos que integram o património da empresa a adquirir” (cfr. a referida carta junta como doc. n.º 7), preço esse que foi ainda arredondado para a unidade de euro inferior (EUR 215,00) – cfr. n.º 21 do probatório.

 

Os actos de aquisição de acções da sociedade B... pela Requerente, bem como a cessão de créditos realizada entre C...e N…, com a inerente constituição de um crédito a ser objecto de pagamento aos accionistas C..., D..., E..., G..., F… e N…, traduzem-se na realização de operações destinadas a facultar a estes accionistas rendimentos sem sujeição à tributação a que, de outro modo, especificamente sob a forma de distribuição de dividendos, estariam sujeitos. Como tal, a compra e venda em 2009 de acções da sociedade B... e o aumento de capital da Requerente por entrada em espécie em 2010 constituem actos anómalos dado que não pretenderam qualquer propósito económico-prático que não a eliminação de impostos que seriam devidos caso tivesse lugar uma directa distribuição de dividendos aos accionistas.

 

O uso anómalo das formas jurídicas resulta da contradição entre a finalidade da disciplina tributária concedida a certas estruturas negociais e a utilização concreta que delas é efectuada – “esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum”[21]. Surge, assim, um resultado fiscal assistemático porque alheio aos fins visados pela normatividade impositiva, pois a roupagem jurídica adoptada visou, simplesmente, retirar lucros e reservas disponíveis da sociedade sem a tributação inerente.

 

Dado que se depara, assim, com a prática de actos artificiosos ou fraudulentos, com abuso das formas jurídicas, pois, ainda que por actos jurídicos formalmente lícitos, se actua materialmente contra os valores do ordenamento jurídico-tributário – no caso a sujeição de rendimentos de capitais à tributação devida nos termos dos arts. 5.º, n.º 2, al. h) e 71.º, n.º 1, al. c) do CIRS – incorrendo-se, assim, numa prática abusiva de evitação fiscal, necessariamente cabe considerar preenchido o elemento normativo, dada a reprovação normativo-sistemática da actuação realizada.

 

É, na verdade, inquestionável a intenção legislativa de tributar em sede de IRS, como rendimentos de capitais na Categoria E (arts. 1.º, n.º 1 e 5.º, n.º 1 do CIRS), “os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros” (al. h) do n.º 2 do art. 5.º do CIRS).

 

A reprovação normativa da vantagem fiscal obtida resulta, pois, directa e imediatamente do regime fiscal aplicável aos dividendos colocados à disposição de pessoas singulares, pois a actuação artificiosa e fraudulenta de alienação de acções e configuração de dívida de preço com recurso à Requerente enquanto entidade relacionada com os accionistas da B... como forma de distribuição “encapotada”, “oblíqua” ou “indirecta” de dividendos encontra-se, evidentemente, ao arrepio do programa normativo que resulta da disciplina de tributação dos rendimentos de capitais (arts. 5.º, n.º 2, al. h) e 71.º, n.º 1, al. c) do CIRS).

 

31. Como, em face do exposto, este Tribunal reconhece no conjunto dos actos indicados uma actuação de evitação fiscal abusiva, conclui-se, deste modo, pela legalidade da actuação da AT ao aplicar, no caso, a cláusula anti-abuso prevista pelo n.º 2 do art. 38.º da LGT, porquanto a Requerente e seus accionistas, com o conjunto de operações de compra de acções e aumento de capital por entrada em espécie que entre si realizaram, bem como com a cessão de créditos a título gratuito efectuada entre C...e N…, procederam à adopção de meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas em ordem exclusivamente à não tributação de dividendos resultantes de lucros acumulados na sociedade B..., o que não seria alcançado sem a adopção daqueles meios.

 

Termos em que se julga improcedente a questão suscitada quanto à falta dos pressupostos necessários à aplicação da cláusula geral anti-abuso consagrada pelo n.º 2 do art. 38.º da LGT.

 

V. 4. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA E OPONIBILIDADE DA CLÁUSULA ANTI-ABUSO

 

32. Consideremos, agora, a questão da repercussão do que ficou exposto na posição da Requerente enquanto substituto tributário.

 

A liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2014 … aqui impugnada assume como referente, na base do tratamento fiscal como rendimento com a natureza de dividendos (al. h) do n.º 2 do art. 5.º do CIRS) dos pagamentos de parcela do preço de aquisição das acções da B... e dos aumentos de capital ocorridos em Dezembro de 2010, que a Requerente não procedeu à retenção na fonte de IRS sobre os lucros colocados à disposição (art. 71.º, n.º 1, al. c) e art. 101.º, n.º 2, al a) do CIRS), com a sua consequente responsabilização como substituto tributário, por força do disposto no artigo 103.° do CIRS.

 

Entendeu, então, a AT que a aplicação da cláusula geral anti-abuso implicava que se deveria proceder à tributação dos rendimentos obtidos como dividendos enquadráveis na categoria E do IRS por força da norma de incidência prevista na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, tributação esta feita através da retenção na fonte à taxa liberatória prevista no art. 71.º n.º 1, alínea c) do CIRS, com natureza de pagamento liberatório (sem prejuízo da opção pelo englobamento, nos termos do art. 71.º, n.º 6 e 22.º, n.º 3, al. b) do CIRS), sendo o imposto devido pela Requerente, por aplicação dos artigos 71.º, 101.º, n.º 2, al. a) e 103.º, n.º 4 do CIRS, uma vez que foi esta entidade que colocou estes rendimentos à disposição dos accionistas.

 

Consigna-se, com efeito, no RIT (vd. n.º 44, iii) do probatório) o seguinte a este propósito:

“propõe-se, em síntese, a desconsideração para efeitos fiscais destas operações e a consequente tributação em sede de IRS, a título de dividendos, dos valores recebidos pelos accionistas.

De acordo com o artigo 101° - n° 2, alínea a) do CIRS, a obrigação de proceder à retenção na fonte competiria à sociedade A..., SGPS, uma vez que foi esta entidade que colocou estes rendimentos à disposição dos accionistas.

A taxa de retenção encontra-se prevista na alínea c) do n° 3 do art. 71° do CIRS, sendo de aplicar a redacção em vigor na data da colocação à disposição dos rendimentos (...)

A tributação dos dividendos distribuídos a sujeitos passivos residentes através da retenção na fonte à taxa liberatória prevista no art. 71° do CIRS tem a natureza de pagamento liberatório, sem prejuízo da opção pelo englobamento, nos termos do art. 71° n° 6 do CIRS.

O artigo 103° do CIRS tipifica a responsabilidade em caso de substituição, indicando a entidade à qual é exigível o imposto em falta, bem como os juros compensatórios, atendendo à qualidade de residente, ou não, em território português dos beneficiários destes rendimentos, sendo que, no caso em apreço, seria de aplicar o n°. 4 do art. 103° do CIRS.

Face a tudo quanto fica exposto propõe-se que seja tributada a sociedade A..., SGPS, pela falta de retenção na fonte de IRS”.

 

Deste modo, uma vez reconhecida a legalidade, em atenção ao disposto no n.º 2 do art. 38.º da LGT, da actuação administrativa de aplicação da cláusula geral anti-abuso, cabe agora enfrentar a questão suscitada da inoponibilidade à Requerente, como substituto tributário, da reconfiguração, para efeitos fiscais, como rendimentos de dividendos, e não como créditos pelo preço de compra de acções, dos montantes pecuniários e das entradas de capital de que beneficiaram as pessoas singulares accionistas da Requerente (e da B...), C..., D..., E..., G..., F… e N…, que foi efectuada ao abrigo da estatuição do mencionado art. 38.º, n.º 2 da LGT, o que constituiria fundamento de ilegalidade da liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2014 …, relativa ao ano de 2010, de que foi objecto a Requerente.

 

33. Sobre esta questão, sustenta a Requerente, na sua PI e nas alegações apresentadas (vd. nestas §§ 60 a 75), no essencial o seguinte:

a) “A Administração Tributária não imputa à Requerente qualquer actuação subsumível à previsão normativa do artigo 38.°, n.° 2, da LGT, fundamentando a liquidação de IRS impugnada apenas na alegada responsabilidade por não retenção na fonte de imposto aquando do pagamento de parte do preço devido pela aquisição das acções da B..., S.A – considerando a Administração Tributária que essa retenção deveria ter ocorrido em face da ineficácia fiscal da aquisição de acções e consideração do preço pago como distribuição de dividendos” (art. 150.º da PI). Ora, “o artigo 38.°, n.º 2, da LGT não tem aptidão para junto de terceiros despoletar o nascimento de obrigações fiscais acessórias – mormente de retenção na fonte – existentes apenas em face da reconfiguração jurídico-fiscal operada no contexto da aplicação da cláusula geral anti-abuso, sob pena de inconstitucionalidade da norma em face dos princípios da certeza e segurança jurídicas, ínsitos ao Estado de Direito democrático consagrado no artigo 2.° da CRP, e, bem assim, de violação inadmissível do direito à propriedade privada garantido pelo artigo 1.° do Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, face ao conceito de lei aí ínsito” (art. 151.º da PI).

b) - “Invocando o artigo 103.° do CIRS, ao emitir a liquidação de IRS impugnada, a Administração Tributária considerou a Requerente como sujeito passivo do imposto, na qualidade de entidade pagadora do preço que, na ausência do alegado abuso, corresponderia a rendimento sujeito a tributação como dividendos, como tal sujeito a retenção na fonte nos termos dos artigos 101.°, n.º 2, alínea a), e 71.°, n.º 1, alínea c), do CIRS” (art. 154.º da PI).

- “Sucede que a elevação da Requerente à condição de obrigada tributária no caso em apreço traduz uma errada interpretação pela Administração Tributária do alcance da aplicação do artigo 38.°, n.º 2, da LGT – nessa medida inquinando de ilegalidade a liquidação impugnada –, já que a cláusula geral anti-abuso não opera para fazer nascer obrigações fiscais acessórias – ou seja, para impor a terceiros obrigações instrumentais como a de reter e entregar imposto nos Cofres da Fazenda Pública”, pois “o escopo e propósito do artigo 38.°, n.º 2, da LGT é permitir o nascimento da obrigação tributária principal, possibilitando à Administração Tributária a liquidação do imposto abusivamente evitado pelo contribuinte (neutralizando os efeitos fiscais da conduta abusiva)”, pelo que “não se pode razoavelmente pretender que o imposto tivesse sido arrecadado por terceiro, em observância de um dever acessório de retenção existente apenas à luz da aplicação, promovida a posteriori pela Administração Tributária, do artigo 38.°, n.° 2, da LGT”, portanto, “a Administração Tributária não pode pretender, com base na aplicação da cláusula geral anti-abuso, operar uma reconstituição da realidade hipotética e alternativa que existiria se tivessem sido de facto distribuídos dividendos em vez de rendimentos de mais-valias, ao ponto de responsabilizar um contribuinte que não denotou qualquer comportamento abusivo – no caso, a Requerente – por haver incumprido uma obrigação de retenção na fonte existente apenas na realidade imaginada para aferição da vantagem fiscal cuja produção, porque abusivamente obtida, o artigo 38.°, n.º 2, da LGT impede” (arts. 155.º, 156.º, 159.º e 164.º da PI).

- “Aliás, diga-se, se a Administração Tributária pudesse de facto redefinir juridicamente a realidade em função da situação que assume teria ocorrido na ausência dos negócios jurídicos reputados abusivos – e não apenas ter estes por ineficazes para efeitos fiscais para subtracção da vantagem abusivamente obtida –, o terceiro que estaria obrigado à retenção do imposto em causa seria a B..., S.A e não a Requerente” (art. 165.º da PI).

- “através da aplicação da cláusula geral anti-abuso a Administração Tributária só pode exigir (dos respectivos contribuintes) a obrigação tributária principal que abusivamente foi evitada, invocando para o efeito a ineficácia fiscal dos actos e negócios jurídicos que materializaram esse abuso, sem todavia alterar os efeitos e qualificação jurídica de tais actos perante terceiros” – “Dito de outro modo, a ineficácia para efeitos fiscais dos negócios abusivos permite à Administração Tributária proceder à tributação que existiria na ausência desses negócios – in casu, tributar os dividendos que considera que teriam sido distribuídos –, mas o artigo 38.°, n.º 2, da LGT não determina nem permite que se ficcionem deveres acessórios de terceiros, os quais só existiriam se os negócios jurídicos praticados tivessem sido, de facto, outros” (arts. 166.º e 169.º da PI).

- “Fazendo uma vez mais apelo à própria letra do artigo 38.°, n.º 2, da LGT, constata-se que a estatuição da referida norma impõe muito claramente que se elimine a vantagem fiscal obtida, o que só ocorrerá naturalmente se os efeitos da respectiva aplicação se repercutirem directamente na esfera do contribuinte que abusivamente se eximiu da obrigação tributária” (art. 171.º da PI).

c) “Diferente entendimento, interpretando a cláusula geral anti-abuso no sentido de produzir efeitos fiscais sobre terceiros que não o contribuinte que agiu motivado para a obtenção de vantagem fiscal, atentará claramente contra os valores constitucionalmente consagrados da certeza e segurança jurídicas, decorrentes do conceito de Estado de Direito democrático postulado no artigo 2.° da CRP, bem como contra o princípio da proporcionalidade na restrição do direito de propriedade privada da Requerente, decorrente dos artigos 18.°, n.° 2, e 62.°, n.º 1, da CRP”, pois “Admitir que um terceiro possa ser responsabilizado por falta de retenção na fonte em situações em que essa obrigação não existe face aos actos jurídicos concretos em que o terceiro teve intervenção, mas decorre apenas atendendo a uma conduta da respectiva contraparte reputada de abusiva pela Administração Tributária, equivaleria a impor ao substituto tributário um desproporcionado e inadmissível ónus de fiscalização daquele abuso” em que “qualquer potencial substituto tributário, relativamente a todos os actos jurídicos em que tivesse intervenção, teria que proceder à determinação, não apenas do respectivo (e normal) enquadramento jurídico-fiscal, mas também apurar se, e em que medida, as respectivas contrapartes estariam a tomar parte em tais actos motivadas essencial ou principalmente por preocupações de natureza fiscal e, bem assim, se na perspectiva dessas contrapartes os actos jurídicos em causa poderiam ser considerados como abusivos – na acepção do artigo 38.°, n.º 2, da LGT –, caso em que incumbiria ao substituto proceder à retenção que eventualmente se mostrasse devida em face, não do acto jurídico praticado, mas daquele que previsivelmente teria lugar caso a actuação abusiva não existisse” (arts. 175.º a 177.º da PI).

“Mas mais: “admitir-se que à Administração Tributária, apurada a posteriori a existência de uma conduta abusiva, competiria apenas exigir do substituto o imposto abusivamente evitado pelo contribuinte com o argumento de que foi incumprido um dever de retenção na fonte, corresponderia a transferir integralmente para a esfera do substituto, não apenas o dever de fiscalização tributária de condutas fiscalmente abusivas – obrigação da Administração Tributária –, mas também o próprio encargo do imposto – obrigação do contribuinte –, porquanto apurada a posteriori uma conduta abusiva o substituto ver-se-á invariavelmente numa situação em que não disporá já das quantias sobre as quais a retenção haveria de ocorrer, suportando assim directamente na sua esfera o Imposto como consequência da aplicação do artigo 103.° do CIRS” (178.º da PI).

d) - “Em matéria fiscal, o princípio da certeza e da segurança jurídica [consagrado no art. 2.º da CRP em decorrência do conceito de Estado de Direito] implica claramente que seja garantida aos sujeitos passivos - entre os quais os substitutos tributários - uma medida de segurança no que respeita ao correcto cumprimento das regras fiscais, impondo ao legislador que enuncie expressa e pormenorizadamente os pressupostos jurídicos e factuais das obrigações tributárias, para que estas possam ser adequadamente cumpridas” (arts. 180.º e 181.º da PI). “Ora, não é minimamente compaginável com essa segurança a conclusão de que a existência ou não de uma obrigação de retenção na fonte de imposto - que, se incumprida, determinará a responsabilidade tributária do substituto - depende, não do acto ou negócio jurídico praticado pelo substituto tributário, mas da motivação subjectiva da sua contraparte” (art. 182.º da PI).

- “do artigo 18.°, n.º 2, da CRP decorre também um princípio geral de proporcionalidade – ou de proibição do excesso – na restrição de direitos, liberdades e garantias” – ora, “se é certo que a limitação ínsita no artigo 18.°, n.º 2, da CRP resulta inaplicável à obrigação de imposto stricu sensu, o mesmo não sucede relativamente a obrigações fiscais acessórias – como sucede com a obrigação de retenção na fonte que a Administração Tributária entende impender sobre a Requerente –, não se reconduzindo tais obrigações acessórias já a um limite imanente a direitos, liberdades e garantias, mas apenas a um dever de cooperação, determinado legalmente”, pelo que “ainda que se não questione a existência e necessidade desses deveres de cooperação, é inequívoco que a extensão e intensidade da concretização legal dos mesmos não pode deixar de se encontrar sujeita ao princípio da proporcionalidade” (arts. 183.º, 186.º e 187.º da PI). Assim, “[c]onstitui entendimento da Requerente, atendendo à já referida impassibilidade de apurar com a necessária certeza as motivações subjectivas das suas contrapartes no referido negócio, que semelhante interpretação do artigo 38.°, n.º 2, da LGT colide frontalmente com o princípio da proporcionalidade das normas restritivas dos direitos, liberdades e garantias – consagrado no artigo 18.°, n.º 2, da CRP e cujo escopo protector abrange, atento o disposto no artigo 17.° da CRP, o seu direito à propriedade privada, consagrado no artigo 62.°, n.º 1, da CRP” (art.. 190.º da PI).

e) “a referida tributação consubstancia em todo o caso uma violação do artigo 1.° do Protocolo Adicional à CEDH” (art. 195.º da PI) que consagra “um dever geral de respeito pelos bens que são propriedade privada dos particulares, ainda que limitado por razões de interesse público” (art. 196.º da PI), sendo que “o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem afirmou que legislação fiscal pouco clara, atenta a respectiva falta de capacidade ordenadora, não pode servir de base para justificar uma afectação do património individual dos particulares através da tributação, traduzindo-se na violação do artigo l.º do Protocolo Adicional à CEDH por não revestir a qualidade de "lei" no sentido da parte final desse normativo” (art. 200.º da PI).

“No caso concreto dos presentes autos (...) é manifesta a incerteza decorrente do artigo 38.º, n.º 2, da LGT no que diz respeito à existência de uma obrigação acessória de retenção na fonte de imposto na esfera da Requerente, motivo pelo qual tal norma – que conjugada com o artigo 103.° do CIRS determina a responsabilidade patrimonial da Requerente pelo incumprimento dessa obrigação – não pode ser tida como revestindo a qualidade de "lei" necessária à compatibilidade da tributação por ela determinada com a protecção da propriedade privada consagrada no artigo 1.º do Protocolo Adicional à CEDH” (art. 203.º da PI).

 

34. Pelo seu lado, a Requerida sustenta na sua R. e reitera nas suas contra-alegações (n.ºs 77 e seguintes), no essencial, o seguinte:

a) - “no caso em apreço, não poderá desde logo considerar-se que a Requerente seja um “terceiro”, porquanto os intervenientes nas operações em causa são exactamente os mesmos, não podendo por esta via a Requerente alegar desconhecimento quanto às motivações dos envolvidos” (art. 352.º da R.), “[s]endo a própria Requerente quem assume que não dispõe de outros colaboradores além dos seus administradores, que, sendo os mesmos administradores da B…, S.A, não poderiam desconhecer as motivações que estiveram por detrás das operações” (art. 355.º da PI).

- “a Requerente pretende ainda fazer crer que o mecanismo de retenção na fonte a que se encontra sujeita nos termos do CIRS, é uma mera obrigação acessória, ideia que pretende ancorar a sua afirmação de que apenas será um terceiro, alheio aos negócios jurídicos em causa”, porém, “tal afirmação é contrária ao disposto no artigo 31.º da LGT, que distingue as obrigações dos sujeitos passivos entre principais e acessórias, visando estas últimas apenas «possibilitar o apuramento da obrigação de imposto, nomeadamente a apresentação de declarações, a exibição de documentos fiscalmente relevantes, incluindo a contabilidade ou escrita, e a prestação de informações», pelo que “não pode a requerente, para forçar a sua tese de ser um terceiro estranho aos negócios em causa, pretender que elementos essenciais da relação jurídica tributária (cf. artigo 36.º, n.º 2 da LGT), como os sujeitos (cf. artigos 18.º e 20.º da LGT) e o objecto da mesma (cf. artigo 30.º, n.º 1, alínea a) da LGT) sejam meras obrigações acessórias” (arts. 356.º, 357.º e 358.º da R.).

- “a liquidação sub judice assentou na desconsideração das diversas operações identificadas no RIT, e na sua requalificação para efeitos tributários como distribuição de dividendos resultantes dos resultados líquidos positivos acumulados pela sociedade B…, S.A. ao longo de vários anos” e “nessa medida, a Administração Fiscal demonstrou que os negócios jurídicos celebrados, assumem, no seu todo, a natureza de construção artificiosa que tinha por objectivo último, precisamente, a distribuição de dividendos aos seus accionistas por parte da Sociedade B…, S.A., sem a correspondente retenção na fonte, os quais estão sujeitos a tributação nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS” (arts. 372.º e 373.º da R.). Ora, “os pagamentos/entregas que a ora Requerente efectuou aos seus accionistas como estorno de (supostos) créditos resultantes da venda de acções não liquidadas, são o culminar da operação/estrutura que foi montada e da qual a ora Requerente constituiu um “veículo”” (art. 374.º da R.). “Esses pagamentos/entregas foram desconsiderados pela Administração Tributária enquanto reembolsos de crédito (isentos de tributação) e havidos como a concretização, na esfera jurídica dos accionistas, do direito desta à percepção dos dividendos de que eram “credores” na B…, S.A” (art. 375.º da R.).

- “Como tal, por se mostrar preenchida a previsão de um tipo legal de imposto (cf. artigo 5º, n.º 2, alínea h) do Código do IRS) e, ainda, a existência, por imposição da lei, de uma situação de substituição tributária (cf. artigo 20º da LGT) a obrigação de retenção de imposto não pode deixar de estar “ligada” à ora Requerente, pois foi a entidade que procedeu ao pagamento das quantias em causa” (art. 376.º da R.), e “encontrava-se, então, obrigada à retenção na fonte daqueles rendimentos, nos termos do artigo 101.º, n.º 2, alínea a) do Código do IRS, à taxa liberatória prevista no artigo 71.º do mesmo Código, enquanto entidade que colocou os rendimentos à disposição dos accionistas”, pelo que “a Requerente é – como bem se referiu no Relatório inspectivo, de acordo com o disposto no artigo 103.º do Código do IRS – responsável pela entrega nos cofres do Estado das importâncias devidas a título de imposto, bem como dos respectivos juros compensatórios”, o que “a constitui, nos termos do n.º 3 do artigo 18.º da LGT, como sujeito passivo da relação jurídica tributária que teve concretização nas liquidações de imposto e juros ora impugnadas” (arts. 377.º a 379.º da R.).

b) “no caso em apreço, não poderá considerar-se que a AT impôs sobre a Requerente um qualquer ónus de fiscalização de terceiros, porquanto, repete-se, os intervenientes nas operações em causa são exactamente os mesmos, não podendo por esta via a Requerente alegar desconhecimento quanto às motivações dos envolvidos” (art. 387.º da R.). A Requerente “é sujeito passivo e parte activa desta relação tributária e responsável pela retenção na fonte de IRS”, pelo que não pode “aceitar-se a alegação de inconstitucionalidade material do artigo 38º, nº 2 da LGT sufragada na ideia de que se está a transferir para a Requerente o encargo do imposto, enquanto entidade alheia à relação jurídica tributária (como se não fosse, como se viu, sujeito passivo da mesma nos termos do artigo 18.º, n.º 3 da LGT)”, “[m]ormente quando a mesma foi interveniente nas operações em apreço, não podendo desconhecer que a distribuição de dividendos - que se pretendeu evitar com a transmissão das acções – estaria sujeita a retenção da fonte” (arts. 396.º a 398.º da R.).

- “no caso dos autos, com base no conjunto de operações já elencado, os intervenientes conseguiram transmutar os fluxos monetários resultantes dos “dividendos gerados pela sociedade B…, S.A. ao longo de vários anos”, numa amortização de créditos, pelo que se concluiu estarmos perante uma operação de “transformação” de dividendos, efetuada no seio da A..., SGPS SA, em pagamento de crédito aos referidos accionistas”, pelo que “a igualdade, aferida pelo parâmetro da capacidade contributiva, exige que se proceda, como de facto se procedeu, à tributação” (arts. 401.º e 402.º da R.).

c) “o princípio da legalidade fiscal constitui um princípio estruturante do Estado de Direito, assegurando o princípio da tipicidade e da segurança jurídica”, mas isso não significa que “com base naquele, se exija que a lei tudo preveja, sob pena de na maior virtude do princípio da legalidade residir, simultaneamente, a sua maior fraqueza” (arts. 426.º e 427.º da R.). “No caso vertente, não se vislumbra que a interpretação vertida no RIT e de que resultaram as liquidações em crise, possa levar a que a norma ínsita no artigo 38.º, n.º 2 da LGT deixe de revestir a qualidade de lei necessária à tributação nos moldes em que foi efetuada, ou que tenha ocorrido qualquer ingerência no direito de propriedade da Requerente contrário do artigo 1º do Protocolo Adicional à CEDH” (art. 428.º da R.).

- “considerando-se que os montantes envolvidos nos negócios desconsiderados teriam sido, em circunstâncias normais, tributados como dividendos distribuídos aos accionistas da B…, S.A., forçoso será concluir-se que o direito de propriedade da Requerente não se vê minimamente afectado com a aplicação da cláusula geral anti-abuso, ou, dito de outra forma, não seria a propriedade da Requerente a ser afectada, mas sim a dos accionistas que sempre teriam de ser tributados pela distribuição de dividendos a título de retenção na fonte”, “[s]endo o imposto, in casu, devido pela Requerente, por aplicação do disposto nos artigos 71º, 101º, nº 2, al. a) e 103º, nº 4 do CIRS, uma vez que foi esta entidade que colocou estes rendimentos à disposição dos accionistas” (arts 432.º e 433.º da R.).

 

 35. A resolução da questão em apreço passa pela determinação do resultado que, para a situação dos autos, advém da estatuição da norma anti-abuso do n.º 2 do art. 38.º da LGT, a qual se manifesta nos segmentos normativos relativos à ineficácia no âmbito tributário dos actos ou negócios jurídicos dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem a utilização desses meios, e à efectivação da tributação de acordo com as normas aplicáveis na ausência e à não produção das vantagens fiscais referidas.

 

Pois bem, o “arco normativo” que in casu tem que ser aplicado para que se efective a tributação de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos actos ou negócios jurídicos dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução de impostos prende-se com a tributação de dividendos em conformidade com a norma de incidência prevista na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, o que envolve a aplicação de retenção na fonte à taxa liberatória prevista no art. 71.º n.º 1, alínea c) do CIRS, com natureza de pagamento liberatório (sem prejuízo da opção pelo englobamento, nos termos do art. 71.º, n.º 6 e 22.º, n.º 3, al. b) do CIRS), a qual deve ser efectuada pela entidade devedora dos rendimentos (art. 101.º, n.º 2, al. a) do CIRS) no momento da sua colocação à disposição (art. 7.º, n.º 3, al. a), n.º 2 do CIRS), sem o que o substituto é responsável pelo pagamento do imposto não retido nos termos do n.º 3 do art. 104.º do CIRS e do n.º 3 do art. 28.º da LGT.

 

Ora, entende este Tribunal que a efectivação da tributação de acordo com as normas aplicáveis nos termos estatuídos pelo n.º 2 do art. 38.º da LGT implica caber à Requerente a assunção do papel de substituto tributário nos termos das indicadas disposições fiscais relativas à tributação em IRS dos dividendos, constituindo, como tal, a destinatária da liquidação decorrente da desconsideração, para efeitos fiscais, dos actos e negócios jurídicos abusivos, porquanto foi ela que surgiu como entidade devedora e que colocou à disposição, ainda que sob a forma elisiva de pagamento de dívidas ou de entradas em aumentos de capital, os acréscimos patrimoniais que cabiam aos accionistas C..., D..., E..., G..., F… e N… em razão, em última instância, das reservas disponíveis na B...SA que vieram a ser distribuídas à Requerente. Nestes termos, o pressuposto da obrigação de proceder à retenção na fonte, tal como determinado pelos arts. 71.º, n.º 1, al. c) e 101.º, n.º 2, al. a) do CIRS, por força da aplicação da cláusula anti-abuso e da efectivação da tributação de acordo com as normas aplicáveis, formou-se em relação à Requerente.

 

Dado que a tributação dos rendimentos de dividendos opera por retenção na fonte a título definitivo à taxa liberatória prevista no art. 71.º n.º 1, alínea c) do CIRS, com a natureza, pois, de pagamento liberatório (embora com possibilidade de opção pelo englobamento, nos termos do art. 71.º, n.º 6 e 22.º, n.º 3, al. b) do CIRS), resulta da própria estatuição da cláusula geral anti-abuso, ao prescrever a aplicação da tributação correspondente ao negócio ou acto elidido (“efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas” como se refere in fine no n.º 2 do art. 38.º da LGT) que o imposto devido tem que ser exigido do substituto tributário, que é, no caso, dado o circunstancialismo que se verificou quanto aos actos e negócios empreendidos (vd. os n.ºs 18, 22, 23, 25, 26, 27, 29, 34, 36, 38 e 39 do probatório), a Requerente.

 

Nestes termos, impõe-se reconhecer que, quando isso esteja em causa nos termos da tributação que deve ser efectuada segundo as normas aplicáveis, conforme determina o n.º 2 do art. 38.º da LGT, o funcionamento da cláusula anti-abuso é inteiramente oponível ao substituto tributário, que não pode deixar de ser abrangido pela sua estatuição.

 

Deve-se até acrescentar que se julga mesmo obrigatório para a Administração Tributária, por força do n.º 2 do art. 38.º da LGT, a aplicação, em tal circunstancialismo, ao substituto tributário do regime tributário elidido, porquanto, de outro modo, não se estaria a efectivar a tributação de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos meios artificiosos e fraudulentos e com abuso das formas jurídicas. Nem outra solução se compreenderia no caso em apreço pois a actuação abusiva visou precisamente evitar a tributação, por retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória relevante, que é aplicável à colocação à disposição de lucros das entidades sujeitas a IRC (art. 5.º, n.º 2, al. h) e 71.º, n.º 1, al. c) do CIRS).

 

36. Recorde-se, nesta sequência, que, segundo o art. 20.º da LGT, a “substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte” (n.º 1) e “é efectivada através do mecanismo da retenção na fonte do imposto devido” (n.º 2). Ora, de acordo com o art. 18.º, n.º 3 da LGT, “sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável”.

 

O substituto é, assim, sujeito passivo por determinação da lei, como devedor em nome próprio, ainda que em atenção ao pressuposto de facto do imposto respeitante ao contribuinte, que é o titular da capacidade contributiva. É, assim, característico da situação jurídico-tributária da substituição o “carácter legal da obrigação”, pois, como escrevem DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA[22]: “o legislador obriga um sujeito a realizar determinadas prestações que constituem o objecto de uma obrigação tributária a cargo de outro sujeito passivo, o que preenche os pressupostos do facto tributário. É o facto tributário realizado por uma pessoa, substituído, que dá origem à obrigação. O preenchimento de outro pressuposto de facto leva a que o substituto esteja obrigado ao cumprimento da obrigação”; “A substituição tributária envolve o preenchimento do quadro legal que determina o nascimento da obrigação tributária para um determinado sujeito passivo que é o que preenche o pressuposto de facto. Este preenchimento do quadro legal converte-se em pressuposto de facto para a obrigação do substituto”. Por isso, e como notam ainda estes Autores[23], “a substituição exige que o sujeito activo se dirija contra o substituto para exigir o cumprimento da obrigação tributária, na medida em que a lei o imponha” e “cumprida esta obrigação tributária, ele libera-se da sua obrigação, liberando também o substituído”.

 

Também RUI DUARTE MORAIS[24] assinala sobre a retenção na fonte a taxas liberatórias que: “Nestes casos, o cumprimento da obrigação de imposto (incluindo o das inerentes obrigações acessórias) cabe, em exclusivo, ao substituto, que é o sujeito passivo da relação jurídico-fiscal, a título originário. O cumprimento esgota-se com a entrega do montante retido na fonte. Na falta de pagamento voluntário, a cobrança coerciva será dirigida contra o substituto. O substituído só será chamado à execução a título subsidiário (na falta de bens do devedor originário, o substituto) e, apenas, se - e na medida em que - tiver recebido mais do que aquilo que seria o valor dessa prestação líquida da retenção na fonte que deveria ter tido lugar (cfr. art. 28.º da LGT)”.

 

Nestes termos, por força da estatuição do n.º 2 do art. 38.º da LGT, dado que está em causa como regime elidido a tributação de dividendos por retenção na fonte com natureza definitiva e liberatória (art. 5.º, n.º 2, al. h) e 71.º, n.º 1, al. c) do CIRS), em que o cumprimento da obrigação de imposto cabe exclusivamente ao substituto, exige-se mesmo que as correcções a que haja lugar nos termos da cláusula anti-abuso e a correspondente liquidação de imposto tenham necessariamente como destinatário o substituto tributário - “a substituição exige que o sujeito activo se dirija contra o substituto para exigir o cumprimento da obrigação tributária, na medida em que a lei o imponha[25].

 

Entende-se, pois, que nenhuma censura de ilegalidade se pode fazer, em atenção ao art. 38.º, n.º 2 da LGT, quanto ao facto de a liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2014 ,,, ter sido concretizada em relação à Requerente, dado que é esta que surge como substituto tributário.

 

37. De qualquer modo, sempre se acrescente, não resulta da emissão desta liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2014 6… qualquer afectação da posição patrimonial específica da Requerente, nem violação do princípio da capacidade contributiva que, nas circunstâncias em presença, se reporta materialmente aos accionistas individuais C..., D..., E..., G..., F… e N….

 

É que não se pode esquecer o funcionamento próprio da substituição tributária no que concerne às relações entre substituto e substituído que se centram no “direito de regresso” (hoc sensu) e que permitem assegurar a ligação do imposto aplicado ao substituto com o princípio da capacidade contributiva que vale em relação ao substituído. Esse direito de regresso é, como regra, prévio (caso em que a expressão regresso é, claro está, imprópria), pois tem lugar por retenção na fonte (art. 20.º, n.º 2 da LGT), operando por dedução às quantias que o substituto deve, paga ou coloca à disposição do substituído. Pode, porém, suceder que tenha lugar posteriormente, como regresso em sentido próprio, de que é exemplo precisamente o caso de o substituto ter omitido a retenção na fonte definitiva que era devida (art. 103.º, n.º 3 do CIRS e 28.º, n.º 3 da LGT).

 

Como já se escreveu a este propósito: “é característico da substituição tributaria que o substituto tem o dever ou, pelo menos, a faculdade de descontar a importância entregue ou a entregar nos cofres do Estado nos rendimentos que deve ao contribuinte ou então pode – e muitas vezes, deve – exercer contra ele o direito de regresso para reaver o que foi despendido”; “[t]em sido este elemento da existência do direito de regresso, pelo qual quem suporta economicamente o encargos tributário é o substituído que levou à distinção entre o devedor em sentido formal (substituto) do devedor em sentido substancial (substituído), já que é este último quem deve legalmente sobre o desfalque patrimonial correspondente[26].

 

Pois bem, este regresso é de exercício obrigatório pelo substituto – no caso, a Requerente – porquanto o art. 45.º, n.º 1, al. c) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), na redacção aplicável ratione temporis, determina que não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os “impostos e quaisquer outros encargos que incidam sobre terceiros que o sujeito passivo não esteja legalmente autorizado a suportar[27].

 

Nestes termos, encontra-se assegurado, no âmbito da figura da substituição tributária, o princípio da capacidade contributiva, já que resultam do ordenamento tributário os meios necessários (a saber, a retenção na fonte prévia ou o direito de regresso posterior) para que o encargo definitivo do imposto recaia, não sobre o substituto (no caso a Requerente), mas sobre o substituído (no caso os accionistas C..., D..., E..., G..., F… e N…

38. Diga-se, ainda, que este Tribunal não desconhece que, em recentes acórdãos proferidos no CAAD sobre esta matéria, tem sido adoptada orientação diferente, tendo-se entendido, em face da redacção do n.º 2 do art. 38.º da LGT, o seguinte (vd., por exemplo, o acórdão proferido no proc. n.º 379/2014-T, de onde se retiram as transcrições subsequentes):

- “a parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT (redacção da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro), ao estabelecer as consequências da aplicação da cláusula geral anti-abuso «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» aponta decisivamente no sentido de a aplicação ter de ser efectuada em moldes que permitam afastar a produção das vantagens fiscais”;

- “sendo esta eliminação das vantagens fiscais o objectivo expresso da cláusula geral anti-abuso, o destinatário da aplicação desta cláusula, aquele em cujo património se irão produzir os efeitos da aplicação, não pode deixar de ser quem usufruiu dessas vantagens fiscais”;

- “Sendo os accionistas os beneficiários das vantagens referidas, a aplicação da cláusula geral anti-abuso nos termos em que foi efectuada não permite afastar essas vantagens, pois, impondo à Requerente o pagamento das quantias equivalentes a essas vantagens, é apenas a ela que é imposto este ónus, permanecendo os accionistas na titularidade intacta das vantagens patrimoniais obtidas”;

- “a interpretação correcta do artigo 38.º, n.º 2, terá valer generalizadamente, em relação a qualquer tipo de sociedades anónimas, inclusivamente as cotadas em bolsa em que a estrutura accionista se altera constantemente, relativamente às quais é evidente que a imposição da tributação à sociedade por, com a sua intermediação, os accionistas terem criado para si próprios vantagens fiscais indevidas não ter qualquer efeito sobre quem usufruiu dessas vantagens e deixou, depois, de ser accionista”;

- “a esta luz, é evidente que o alcance daquele artigo 38.º, n.º 2, ao estabelecer como efeito necessário da aplicação da cláusula geral anti-abuso a não produção das vantagens fiscais, pressupõe o entendimento legislativo de que a «tributação de acordo com as normas aplicáveis» incida sobre quem obteve as vantagens e não sobre quem meramente teve intervenção nos actos de que elas resultam sem beneficiar daquelas, pois só assim é possível garantir o efeito pretendido de não se produzirem as vantagens fiscais referidas”;

- “é seguro que a redacção do n.º 2 do artigo 38.º da LGT introduzida pela Lei n.º 30-G/2000, exige que a aplicação da cláusula geral anti-abuso tenha como efeito a não produção das vantagens fiscais indevidas, pelo que está pressuposto nesta norma que, pelo menos nos casos em que as vantagens fiscais já se tenham produzido, o destinatário da aplicação seja quem delas usufrui”;

- “Por isso, no caso em apreço, não tendo a Requerente usufruído qualquer vantagem fiscal, está afastada a possibilidade de ser responsabilizada pelo pagamento das quantias correspondentes às vantagens fiscais indevidas que a Autoridade Tributária e Aduaneira invoca”.

 

Com o devido respeito, julga-se que este entendimento não pode ser acolhido.

 

Desde logo, em termos literais, importa ter em conta que a redacção do art. 38.º, n.º 2 da LGT autonomiza duas fenomenologias, quer a nível de hipótese quer a nível de estatuição: i) por um lado, os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico relativamente aos quais cabe efectuar a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e ii) os actos ou negócios jurídicos dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização de meios, relativamente aos quais cabe não se produzirem as vantagens fiscais referidas.

 

Como elucida, em termos que aqui inteiramente se acompanham, SALDANHA SANCHES[28] sobre as duas manifestações principais da fraude à lei em matéria fiscal: “[n]uma primeira manifestação, a escolha de um negócio jurídico ou mesmo de factos ou actos jurídicos fiscalmente relevantes, como forma jurídica de atingir um certo objectivo com menor oneração jurídica [rectius, fiscal] implica a opção por determinado caminhos para a obtenção de certos objectivos finais numa lógica alternativa: seguiu-se o caminho B em lugar do caminho A, para atingir o mesmo objectivo, X”; “[n]a outra das suas principais manifestações, podemos ter um conjunto de operações em que não há alternatividade (a escolha alternativa seria a ausência de negócio jurídico), o que acontece quando, por exemplo, se faz operações com o único objectivo de obter um custo dedutível para a redução do lucro tributável”. Pois bem, explica então este Autor que: “Na previsão normativa do n.º 2 do art. 38.º da LGT essas duas vias estão claramente prefiguradas”, pois a “primeira encontra-se prevista na lei quando esta contrapõe o negócio jurídico artificioso, com a sua desoneração fiscal, e “os factos, actos ou negócios jurídico de idêntico fim económico” (a via normal foi preterida por mera razões fiscais)” e a segunda “encontra-se igualmente prevista na lei quando esta refere “a obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”, concluindo, então, que: “Se, no primeiro caso, a consequência é “a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência”, no segundo temos uma consequência de mera anulação de efeitos, “não se produzindo as vantagens fiscais referidas”, aquelas que se procura alcançar por meio dos negócios jurídicos artificiosos, sendo que o carácter artificial da segunda parte, marcado pela construção deliberada do efeito, é geralmente constituído por uma perda dedutível do lucro tributável”.

 

Nestes termos, uma leitura da referência a “vantagens fiscais” como a chave exclusiva de aplicação da cláusula anti-abuso entende-se, com a devida vénia, constituir uma sobre-interpretação de um vocábulo que possui um sentido bem preciso e delimitado no âmbito da estrutura do n.º 2 do art. 38.º da LGT. Nos termos de uma interpretação contextual do próprio n.º 2 do art. 38.º da LGT, a obtenção de “vantagens fiscais” é apenas um dos momentos constituintes da aplicabilidade da norma anti-abuso, como definido pela sua hipótese legal, com a correspondente produção das consequências jurídicas pertinentes.

 

Ora, precisamente, no caso dos autos, do que se trata é antes da dimensão normativa objecto do n.º 2 do art. 38.º da LGT atinente aos actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico relativamente aos quais cabe efectuar a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência – precisamente, como se viu (n.º 36), na situação sub judice, tais normas são constituídas pela disciplina de tributação de dividendos por retenção na fonte com natureza definitiva e liberatória (art. 5.º, n.º 2, al. h) e 71.º, n.º 1, al. c) do CIRS), em que o cumprimento da obrigação de imposto cabe exclusivamente ao substituto.

 

Depois, também não se julga pertinente o argumento de que, por força desta repercussão sobre o substituto das consequências advenientes da cláusula anti-abuso, este vai suportar o ónus do encargo do imposto correspondente às vantagens patrimoniais obtidas que permanecem na titularidade intacta dos accionistas. É que, como acima se antecipou (n.º 37), a substituição tributaria envolve, por natureza, quando o substituto tenha omitido a retenção na fonte definitiva que era devida, o exercício de um direito de regresso, o qual se destina a assegurar precisamente que o encargo final atinente ao imposto vai incidir sobre os titulares da capacidade contributiva, no caso os accionistas beneficiários dos acréscimos patrimoniais que foram reconfigurados como dividendos.

 

Por fim, não podemos ainda deixar de aditar, recorrendo a uma perspectiva sinépica, de “ponderação das consequências da decisão[29], que o entendimento em referência, numa conjuntura como a que se encontra em causa, pode ter como consequência, sempre ressalvado o devido respeito, da pura e simples inviabilidade da aplicação da cláusula anti-abuso nos casos em que, como este, o esquema abusivo visa evitar a tributação dos rendimentos de dividendos que é efectuada por retenção na fonte a título definitivo à taxa liberatória prevista no art. 71.º n.º 1, alínea c) do CIRS. É que, caso a AT dirigisse a liquidação contra os accionistas beneficiários dos acréscimos patrimoniais em causa, estes poderiam natural e fundadamente sustentar a ilegalidade dessa liquidação mediante a invocação de que não foi respeitada a determinação, constante do n.º 2 do art. 38.º da LGT, de que a tributação se deve efectuar de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, a qual exige a tributação por retenção na fonte a título definitivo à taxa liberatória quando os contribuintes não optem pelo englobamento dos rendimentos em causa. Implicando, assim, uma consequência paradoxal, inviabilizadora da aplicação, em qualquer caso, da cláusula anti-abuso, entende-se aqui não se poder subscrever a indicada posição.

 

Termos em que se reitera, nesta decisão arbitral, julgar conforme ao disposto no n.º 2 do art. 38.º da LGT que a liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2014 … tenha sido concretizada em relação à Requerente, dado que é esta que surge como substituto tributário.

 

39. Passando, agora, à questão, também suscitada neste âmbito, da inconstitucionalidade material do art. 38.º, n.º 2 da LGT face aos princípios da certeza e da segurança jurídicas, decorrentes do conceito de Estado de Direito democrático postulado no artigo 2.° da CRP, e da proporcionalidade, decorrente dos artigos 18.°, n.° 2, e 62.°, n.º 1, da CRP, caso se interprete a cláusula geral anti-abuso no sentido de produzir efeitos fiscais sobre terceiros que não o contribuinte que agiu motivado para a obtenção de vantagem fiscal, deve-se notar, antes de mais nada, que é imprescindível ter devidamente em conta o sentido normativo que está em causa na hermenêutica do art. 38.º, n.º 2 da LGT na base da aplicação da cláusula anti-abuso à situação sub judice.

 

Para aferir a desconformidade constitucional que é imputada a uma certa interpretação normativa, é fundamental, na verdade, fixar com rigor o sentido juridicamente relevante com que a norma foi aplicada, por outras palavras, determinar com exactidão o critério normativo decisória, “a regra abstractamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica” (cfr. o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 77/2013).

 

Ora, o critério normativo da aplicação administrativa da cláusula anti-abuso – e que, dada a decisão sobre a legalidade da aplicação da cláusula anti-abuso acima tomada, vale também neste aresto como ratio decidendi – reconduz-se simplesmente ao entendimento de que há lugar a tributação por retenção na fonte, imposta, como substituto tributário, à Requerente que constitui entidade relacionada (art. 63.º, n.º 4 do CIRC), dominada pelo accionista C...e seus familiares D..., E..., F…, G... e N……a que foram beneficiários dos créditos constituídos por via da aquisição de acções, e que funcionou como participante conhecedora e consciente do esquema abusivo realizado, dado que o seu Conselho de Administração, a quem é imputável a vontade colectiva de aquisição das participações sociais da B..., é constituído pelos referidos accionistas C..., D..., E..., F… e G... (cfr., a este respeito, o n.º 1 do probatório).

 

Repare-se, com efeito, nas seguintes considerações constantes do RIT (vd. n.º 44, iii) do probatório):

- “a venda das acções da sociedade B…, SA em favor da A..., SGPS, cujos accionistas e administradores (...) são exactamente os mesmos, constitui a prática de um ato que, apesar de formalmente lícito, tem subjacente a intenção de obter rendimentos, mais concretamente dividendos, que de outra forma estariam sujeitos a efectiva tributação”;

- “A opção tomada pelos accionistas de transmitir as acções da sociedade B…, SA à sociedade A..., SGPS (relembrando-se que a estrutura accionista e o Conselho de Administração de ambas as sociedades é exactamente igual) permitiu-lhes constituir um crédito sobre a SGPS, o qual foi parcialmente pago através de dividendos distribuídos pela primeira à segunda das sociedades atrás identificadas”;

- “o objectivo pretendido com os negócios jurídicos celebrados não era uma efectiva transmissão das acções em benefício de terceiros mas tão somente, obter a distribuição de dividendos por parte da sociedade B…, SA, uma vez que esta continuou a ser controlada pelos seus anteriores accionistas, ainda que de forma indirecta, através da sociedade A..., SGPS”;

- “será pertinente trazer novamente à colação o facto de haver total coincidência entre os sócios de ambas as sociedades envolvidas no negócio, quer no que diz respeito aos direitos de voto, quer quanto às percentagens no capital social.

O conselho de administração de ambas as empresas é também o mesmo, sendo os seus membros remunerados apenas pela B…, SA”.

- “Repare-se inclusivamente que, entre todos os contribuintes (singulares e colectivos) envolvidos, existem relações especiais, nos termos do disposto nas alíneas a), b), c) e d) do n°. 1 do artigo 63° do CIRC”.

 

A solução hermenêutica promovida pelo órgão administrativo, nos termos da aplicação da cláusula anti-abuso a que procedeu, não é, pois, ao contrário do que pretende a Requerente, que a previsão do art. 38.º, n.º da LGT é entendida no “sentido de produzir efeitos fiscais sobre terceiros que não o contribuinte que agiu motivado para a obtenção de vantagem fiscal” (vd. acima al. c) do n.º 34), mas sim, para adoptar o mesmo tipo de enunciado, que é entendida no “sentido de produzir efeitos fiscais sobre entidade relacionada que não o próprio contribuinte, que, em conjunto com ele e participando na operação, agiram motivados para a obtenção de vantagem fiscal”. É esta última e só esta, efectivamente, a interpretação normativa adoptada pelo órgão administrativo em relação ao caso concreto, conforme resulta da fundamentação constante do RIT, e que, como tal, preside às liquidações impugnadas.

 

Assiste, por isso, razão à AT quando, na sua resposta (arts. 352.º, 353.º e 355.º) e nas suas contra-alegações (n.ºs 78, 83, 98), refere que a “aplicação da CGAA à Requerente ocorreu no âmbito de um procedimento em que se investigaram as diversas operações em apreço e se indagaram igualmente as relações que existiam entre os envolvidos (singulares e colectivos), concluindo-se que os intervenientes nas mencionadas operações são exactamente os mesmos, não podendo por esta via a Requerente alegar desconhecimento quanto às motivações dos envolvidos, nem ser qualificada como um terceiro”, bem como que é “a própria Requerente quem assume (...) que não dispõe de outros colaboradores além dos seus administradores, que, sendo os mesmos administradores da B…,S.A., não poderiam desconhecer as motivações que estiveram por detrás das operações”.

 

Pois bem, este Tribunal entende que só lhe cabe pronunciar-se aqui, em função da questão suscitada pela Requerente, sobre a interpretação consubstanciada no sentido jurídico acima descrito e não sobre a dimensão normativa mais vasta que é convocada pela Requerente a respeito da aplicação do art. 38.º, n.º 2 da LGT. Caso este Tribunal se pronunciasse sobre essa outra dimensão normativa mais vasta, estaria a fazê-lo em termos abstractos e alheios às liquidações de IRS (retenção na fonte) e de juros compensatórios aqui controvertidas, o que, mesmo que tivesse valor doutrinal, não possuiria qualquer pertinência na perspectiva da resolução do litígio sub judice.

 

40. Pois bem, entende-se que o sentido normativo dado à aplicação da cláusula anti-abuso em relação a um substituto tributário que participa no esquema abusivo, a quem não pode, pois, ser alheia a motivação subjacente de redução ilegítima da carga fiscal, não se mostra desconforme à Constituição em razão dos parâmetros constitucionais da certeza e da segurança jurídicas, bem como da proporcionalidade em atenção ao direito de propriedade, que são invocados pela Requerente.

 

Desde logo, não se mostra desconforme com os parâmetros constitucionais da certeza e da segurança jurídicas porquanto, se é certo que, como tem sido assinalado pelo Tribunal Constitucional, “o princípio do Estado de direito democrático postula «uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas», conduzindo à consideração de que «a normação que, por natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança jurídica que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica»” (vd. os acórdãos n.ºs 188/2009 e 303/90), a verdade é que se exige como requisito indispensável uma situação de confiança merecedora de tutela, ou seja, que as expectativas sejam “legítimas, justificadas e fundadas em boas razões” (acórdão n.º 188/2009).

 

Ora, como consigna SÉRGIO VASQUES[30], a expectativa, por invocação da segurança jurídica, “daquele que manifestamente pretende defraudar a lei fiscal não merece tutela”.

 

Pois bem, precisamente, aquilo com que se depara no caso é com a participação intencional da Requerente num esquema abusivo, como tal sujeito a um juízo de reprovação normativo-tributário. Na verdade: beneficium legis frustra implorat qui committit in legem.

 

Depois, também se mostra insubsistente a alegação de uma desconsideração desproporcional do direito de propriedade da Requerente, não só, mais uma vez, por estar em causa, na aplicação em apreço ao substituto da cláusula anti-abuso, a sua participação na actuação abusiva sub judice, mas sobretudo porquanto, como já acima se referiu (n.º 37), a posição de substituto tributário envolve a possibilidade do exercício do direito (dever) de regresso contra os accionistas efectivos beneficiários dos acréscimos patrimoniais obtidos com evitação da tributação que seria devida.

 

41. A afirmação antecedente sobre o direito de regresso do substituto tributário permite resolver igualmente a última questão suscitada pela Requerente no que concerne à liquidação de IRS (retenção na fonte) impugnada, a saber, que “sempre se se deverá entender que a referida tributação consubstancia em todo o caso uma violação do artigo l. ° do Protocolo Adicional à CEDH” (art. 194.º da PI), porquanto “é manifesta a incerteza decorrente do artigo 38.°, n.° 2, da LGT no que diz respeito à existência de uma obrigação acessória de retenção na fonte de imposto na esfera da Requerente, motivo pelo qual tal norma – que conjugada com o artigo 103.° do CIRS determina a responsabilidade patrimonial da Requerente pelo incumprimento dessa obrigação – não pode ser tida como revestindo a qualidade de "lei" necessária à compatibilidade da tributação por ela determinada com a protecção da propriedade privada”.

 

Antes, porém, note-se que, como é sabido, o art. 1.° do Protocolo Adicional à CEDH de 20.3.1952 (com as alterações resultantes das disposições do Protocolo n.° 11, entrado em vigor, em 1.11.1998), determina, sob a epígrafe “Protecção da propriedade”, o seguinte:

Qualquer pessoa singular ou colectiva tem direito ao respeito dos seus bens. Ninguém pode ser privado do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional.

As condições precedentes entendem-se sem prejuízo do direito que os Estados possuem de pôr em vigor as leis que julguem necessárias para a regulamentação do uso dos bens, de acordo com o interesse geral, ou para assegurar o pagamento de impostos ou outras contribuições ou de multas”.

 

Desde logo, a interpretação propugnada quanto à oponibilidade da cláusula anti-abuso ao substituto tributário justifica-se claramente como medida destinada a assegurar o pagamento de impostos, o que pressupõe contrariar as práticas abusivas.

 

Todavia, de qualquer maneira, não está posto em crise o direito de propriedade da Requerente, dado que, por força do exercício do regresso que lhe compete, o encargo tributário não recai em termos finais sobre o substituto, mas sim sobre o substituído.

 

Nestes termos não ocorre violação do direito da propriedade privada com a incidência da cláusula anti-abuso sobre o substituto pela simples razão de que não são atingidos, em termos efectivos e finais, bens da própria Requerente – o mecanismo da substituição, mediante retenção na fonte ou, em caso de incumprimento desta obrigação, mediante direito de regresso, afasta a consideração de uma ingerência (interference) no direito de propriedade da Requerente, o que constitui pressuposto para a invocação do art. 1.° do Protocolo Adicional n.º 1 à CEDH.

 

V.5. JUROS COMPENSATÓRIOS

 

42. Em face da não anulação da liquidação de IRS impugnada, fica, naturalmente, prejudicada a pretendida declaração de nulidade consequente da liquidação dos correspondentes juros compensatórios.

 

Deve-se, porém, apreciar, em termos específicos, a questão suscitada pela Requerente da falta dos pressupostos próprios, previstos pelo art. 35.º, n.º 1 da LGT, para a liquidação dos juros compensatórios, tendo em conta que o retardamento da liquidação tem que ser imputável ao contribuinte.

 

É sabido, com efeito, que o art. 35.º, n.º 1 da LGT estabelece, no seu n.º 1, que: “São devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.

 

Em face desta disposição legal, tem sido entendido pela jurisprudência que “a responsabilidade por juros compensatórios, tendo a natureza de uma reparação civil, depende do nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a actuação do contribuinte e da possibilidade de formular um juízo de censura a título de dolo ou negligência a essa actuação” (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19.11.2008, proc. n.º 0576/08), pelo que “para que o sujeito passivo deva juros compensatórios se exige um nexo de causalidade adequada entre o seu comportamento e a falta de recebimento pontual de prestação, sendo que a conduta do sujeito passivo deve ser censurável a título de dolo ou negligência, devendo, em todo o caso, indagar-se se a culpa está ou não excluída em concreto” (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 22.01.2014, proc. n.º 01490/13), pois “se a imputabilidade exigida para responsabilização pelo pagamento desse tipo de juros depende da existência de culpa por parte do contribuinte, esse juízo só pode ser aferido casuisticamente pelo julgador” (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 06.05.2015, proc. n.º 0196/15).

 

43. Pois bem, sustenta a Requerente que “agiu sem culpa, porquanto nenhuma dúvida restará que a sua interpretação das normas supra citadas é legítima, plausível e de boa fé, não se verificando assim a existência de qualquer negligência ou dolo mas uma mera divergência interpretativa em relação à Administração Tributária quanto à aplicação do disposto no artigo 38.°, n.° 2, da LGT com a qual a Requerente foi surpreendida” (art. 210.º da PI).

 

Em face do acima exposto, é manifesto que, muito ao contrário do assim alegado, se impõe reconhecer a legalidade da liquidação dos juros compensatórios, já que, em face dos factos dados como provados, verifica-se in casu o nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a actuação da Requerente e a censurabilidade, a título de dolo, da actuação realizada.

 

Na verdade, a Requerente participou, como “instrumento” decisivo e “veículo” indispensável, num conjunto de operações de aquisição de participações sociais detidas pelos accionistas da sociedade B..., S.A. que se destinou, como se viu, a evitar, com recurso a meios fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, a tributação em IRS, por retenção na fonte, de rendimentos de dividendos, que seria devida na ausência dessas operações, actuação que acima se reputou como abusiva, em conformidade com o disposto no art. 38.º, n.º 2 da LGT. Deste modo, não se pode, de modo algum, afirmar que a não aplicação da retenção na fonte de IRS que corresponderia a tais rendimentos constituiu simplesmente uma “compreensível divergência de critérios entre a Administração Fiscal e o contribuinte relativamente à qualificação de determinada situação tributária” ou se deveu a um qualquer “erro desculpável”. Na verdade, na factualidade em presença, não está em causa uma simples divergência de interpretação com a Administração Tributária sobre o sentido de particulares enunciados normativos tributários. Pelo contrário, do que se trata é do papel desempenhado pela Requerente de aquisição aos accionistas das acções em causa e de subsequente entrega de quantias a título de pagamento de dívida de preço ou de entradas de capital, que constitui actuação essencial para a obtenção do explícito desenlace visado de não tributação dos rendimentos de dividendos que, de outra forma, teria lugar, pelo que tal actuação da Requerente constitui uma conduta específica e intencionalmente dirigida a evitar o cumprimento das obrigações fiscais exigíveis de tributação por retenção na fonte de rendimentos de capitais, o que, como actuação abusiva que é, envolve inelutavelmente um juízo de censura quanto à conduta assim adoptada.

 

Nestes termos, em face da situação fáctica objecto dos autos, que envolve, em consequência da aplicação da cláusula anti-abuso do art. 38.º, n.º 2 da LGT, o juízo de censura sobre a conduta dolosa da Requerente de não liquidação do imposto que seria devido no momento da atribuição aos accionistas C...e seus familiares D..., E..., G..., F… e N… dos montantes que se encontram em causa, mostra-se legal a liquidação dos juros compensatórios impugnada.

 

V.6. JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

 44. Resta, por fim, apreciar o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios nos termos do art. 43.º, n.º 1, da LGT, pedido este que é formulado “na medida da procedência dos pedidos anteriores” (cfr. al. iv) do petitório final constante da PI).

 

Ora, tendo em conta que, nos termos acima expostos, o acto tributário de liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2014…não padece dos vícios de violação de lei que lhe são imputados no pedido de pronúncia arbitral, improcedendo, assim, o pedido de declaração da respectiva ilegalidade, necessariamente improcede o pedido de juros indemnizatórios, que é suscitado (cfr. arts. 216.º e 217.º da PI) como consequência das ilegalidades invocadas (cfr. art. 43.º, n.º 1 da LGT).

 

VI. DECISÃO

 

Termos em que se decide:

a) julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, manter os actos tributários de liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2014 …, de 13 de Janeiro de 2014 e de juros compensatórios n.º 2014 …, de 13 de Janeiro de 2014, impugnados nos autos, absolvendo do pedido a Autoridade Tributária e Aduaneira;

b) julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios, absolvendo do pedido a Autoridade Tributária e Aduaneira;

c) condenar a Requerente nas custas processuais.

 

VII. VALOR DO PROCESSO

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 1 e 2 do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a), e n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €6.197.119,79.

 

VIII. CUSTAS

 

De harmonia com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €77.418,00, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerente, dada a improcedência do pedido de anulação dos actos tributários objecto dos autos.

 

 Notifique-se.

 

 Lisboa, 22 de Maio de 2015

 

O Árbitro Vogal

(Carla Castelo Trindade)

 

O Árbitro Vogal

(João Menezes Leitão)

 

O Árbitro Presidente

(Jorge Lopes de Sousa)

 

Com declaração de voto de vencido em anexo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Adopta-se a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, incluindo, por razões de uniformidade, a grafia constante das citações efetuadas.

[2] Note-se que, no que concerne ao facto dado como não provado no n.º 1, apresentado neste art. 8.º da PI, nas suas alegações a Requerente invoca, a seu propósito, os docs. n.ºs 3 e 13 juntos à PI. Sucede que o doc. n.º 3 junto à PI constitui apenas o contrato de empréstimo celebrado entre o Banco J…, SA com a Requerente que (respectiva cláusula 1ª) “se destina ao pagamento de acções das firmas H…, S.A., e I..., L.da” e o doc. n.º 13  é o RIT, que não alude especificamente a tal factualidade.

[3] Note-se que, no que concerne ao facto dado como não provado no n.º 2, apresentado neste art. 12.º da PI, nas suas alegações a Requerente invoca, a seu propósito, os docs. n.ºs 12 e 13 juntos à PI. Sucede que o doc. n.º 12 junto à PI constitui o requerimento de exercício do direito de audição da Requerente (cfr. n.º 42 do probatório), portanto da sua própria autoria, e o doc. n.º 13 é o RIT, que não alude especificamente a tal factualidade. Esclareça-se que, ao contrário do pretendido pela Requerente no § 7, ix) das suas alegações, o disposto no art. 75.º da LGT não compreende “declarações” constantes do exercício do direito de audição.

[4] Igualmente quanto ao facto dado como não provado no n.º 3, apresentado neste art. 16.º da PI, nas suas alegações a Requerente invoca os docs. n.ºs 12 e 13 juntos à PI. Dá-se, pois, aqui por reproduzido o que se consignou na nota antecedente.

[5] Note-se que nas suas alegações (no § 7, xix)) a Requerente reporta-se a estes artigos 22.º e 23.º da PI, mas não inclui a matéria atinente às motivações que se refere na factualidade dada como não provado no n.º 5.

[6] DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª Edição, 2012, Encontro da Escrita Editora, pág. 488.

[7] Vd., por exemplo, LEBRE DE FREITAS, A Confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora, Coimbra, 1991, p. 44.

[8] Refira-se que no art. 77.º da PI e no § 37 das alegações a Requerente reporta-se à recolha de elementos “junto dos accionistas da Requerente, contrapartes nos actos jurídicos postos em causa” mas com subordinação à locução “por exemplo”. Já no art. 97.º da mesma PI a fórmula usada é “partes intervenientes nos actos e negócios jurídicos questionados”.

[9] Note-se, aliás, que no que concerne à matéria da determinação do preço das acções adquiridas se alude no RIT (pp. 11-12) a prestações de esclarecimentos, na sequência de pedidos da AT, pela Requerente e por E… (vd. a seguinte referência: “De acordo com os esclarecimentos prestados pela sociedade A..., SGPS (entrada n.º … de 05.01.2012, em resposta ao pedido de esclarecimentos remetidos através do oficio n°. … de 29.12.2011) e também pelo accionista E… (entrada n.º … de 05.01.2012, em resposta ao pedido de esclarecimentos remetidos através do ofício n°. … de 29.12.2011) ‘a determinação do preço unitário de EUR 215 teve por base o balanço da A…, S.A. a 30 de Dezembro de 2008 - de acordo com o qual o total dos capitais próprios dessa sociedade ascendia a EUR 96 978 785,23 - e o total de € 450 000 acções disponíveis, sendo o resultado aritmético arredondado para a unidade de euro inferior’ ”).

[10] PEDRO VIDAL MATOS, O princípio inquisitório no procedimento tributário, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 144.

[11] Cita-se, novamente,  PEDRO VIDAL MATOS, ob. cit., p. 78.

[12] GUSTAVO LOPES COURINHA, A Cláusula Geral Anti-Abuso no Direito Tributário - Contributos para a sua Compreensão, Almedina, Coimbra, 2004, p. 165.

[13] Suprimiram-se, por simplificação, as notas de rodapé existentes no texto original objecto da transcrição.

[14] Trata-se, aliás, de uma prática evasiva igualmente conhecida noutros ordenamentos. Cite-se, por exemplo, a regulação brasileira sobre a “distribuição “disfarçada” de lucros ou dividendos pela pessoa jurídica” através da “aquisição de bem da titularidade de pessoa com aquela relacionada” (art. 464 do Decreto n.º 3.000, de 26 de Março de 1999, que regulamenta a tributação, fiscalização, arrecadação e administração do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza, na sequência do disposto no art. 60 do Decreto-Lei n.º 1.598, de 1977 e no art. 20, inciso II, do Decreto-Lei nº 2.065, de 1983.

[15] GUSTAVO LOPES COURINHA, ob. cit., p. 176.

[16] GUSTAVO LOPES COURINHA, ob. cit., p. 172.

[17] SALDANHA SANCHES, Os limites do planeamento fiscal, Coimbra, 2006, pp. 175-176.

[18] JÓNATAS E. M. MACHADO, PAULO NOGUEIRA DA COSTA, ob. cit., p. 421.

[19] GUSTAVO LOPES COURINHA, ob. cit., pp. 165 e 166.

[20] SALDANHA SANCHES, Os limites do planeamento fiscal cit., pp. 170-171.

[21] Cita-se SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2011, p. 315.

[22] Ob. cit., pp. 204-205.

[23] Ob. cit., p. 209.

[24] RUI DUARTE MORAIS, Sobre o IRS, 3.ª ed., Coimbra, 2014, pág. 192.

[25] Para citar novamente DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., p. 209.

[26] J. MENEZES LEITÃO, A substituição e a responsabilidade fiscal no Direito Português, CTF, n.º 388 (1997), p. 136-137.

[27] Vd. a este respeito FREITAS PEREIRA, Fiscalidade, 5.ª ed., Coimbra, 2014, pp. 300-301

[28] Os limites do planeamento fiscal cit., pp. 172-173.

[29]Sinépica” é um neologismo entre nós introduzido por MENEZES CORDEIRO, na sequência de  WOLFGANG FIKENTSCHER (Synepëik), com o qual se pretende designar a necessidade de o intérprete-aplicador projectar as consequências do que vai decidir: “Ao intérprete-aplicador cabe desenvolver uma capacidade de “pensar em consequências”. “Confrontado com saídas contraproducentes ou paradoxais, o decisor reiniciará todo o processo até encaixar os diversos elementos. Pode suceder que uma decisão aparentemente correta tenha consequências contrárias ao projecto normativo. Nessa altura, deverá ser revista” (MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2012, p. 499).

[30] SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2011, p. 316.

 

Voto de vencido

 

1. A parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT (redacção da Lei n.º pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro), ao estabelecer as consequências da aplicação da cláusula geral antiabuso «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» aponta decisivamente no sentido de a aplicação ter de ser efectuada em moldes que permitam afastar a produção das vantagens fiscais.

Com efeito, embora a primeira parte deste artigo 38.º, n.º 2, contenha uma aparente distinção entre os objectivos visados pelo contribuinte entre «redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico e «obtenção de vantagens fiscais», é manifesto que o que está causa na redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos é sempre a obtenção de vantagens fiscais, tendo a referência expressa e genérica às vantagens fiscais apenas o objectivo de estender o alcance da norma a quaisquer vantagens fiscais, para além das especificamente indicadas, que são claramente os casos mais frequentes de concretização das vantagens fiscais, que são a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos.

Isto é, com a redacção dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, a cláusula geral antiabuso passou a poder aplicar-se a todas as situações de obtenção vantagens fiscais e não apenas às situações de redução ou eliminação dos impostos, já previstas na redacção inicial, e à de diferimento temporal, que também foi expressamente aditada na nova redacção. [1]

A esta luz, a referência feita na parte final do artigo 38.º, n.º 2, à não produção das «vantagens fiscais referidas» reporta-se a todas as referidas, quer as mais comuns que são especificamente referidas (redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos) quer as genericamente referidas, através da alusão às «vantagens fiscais que não seriam alcançadas».

Aliás, nem outra interpretação seria constitucionalmente admissível, já que, tratando-se, em todos os casos de obtenção de vantagens fiscais abusivas, seria arbitrária e violadora do princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º da CRP) uma hipotética distinção de tratamento entre as situações expressamente referidas e as genericamente referidas.

Sendo esta eliminação das vantagens fiscais o manifesto objectivo da cláusula geral antiabuso, o destinatário da aplicação, em cujo património se irão produzir os efeitos da aplicação, não pode deixar de ser quem usufruiu dessas vantagens fiscais.

No caso em apreço, as vantagens fiscais detectadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira que justificaram a aplicação da cláusula geral antiabuso não se verificaram no património da Requerente, pois todas as quantias que pagou sem retenção na fonte foram entregues aos seus accionistas.

A existirem vantagens fiscais indevidas na situação em apreço, designadamente por parte das quantias recebidas dever ser tributada a título de dividendos, como defende a Autoridade Tributária e Aduaneira, é manifesto que quem as obteve foram os accionistas, que receberam as quantias sem qualquer dedução de imposto, e não a Requerente, que pagou integralmente as quantias em causa.

Sendo os accionistas os beneficiários das vantagens referidas, a aplicação da cláusula geral antiabuso nos termos em que foi efectuada não permite afastar essas vantagens, pois, impondo à Requerente o pagamento das quantias equivalentes a essas vantagens, é apenas a ela que é imposto estes ónus, permanecendo os accionistas na titularidade intacta das quantias recebidas.

É certo que se pode aventar que, mais cedo ou mais tarde, o prejuízo patrimonial com a tributação que é imposta à sociedade se repercutirá sobre os accionistas, mas é também evidente que isso pode não suceder em relação aos accionistas que beneficiaram das vantagens indevidas, pois podem deixar de ser accionistas antes de o prejuízo imposto à sociedade ter uma efectiva repercussão no valor das suas acções. Apesar de, no caso em apreço, se estar perante uma sociedade com uma estrutura accionista que tem mantido considerável estabilidade, não deixaram de existir alterações, relatadas na matéria de facto fixada, e não há qualquer certeza de que isso não se possa vir a repetir.

No entanto, a interpretação da parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, como norma jurídica tributária de que resulta a imposição de tributação, não pode deixar de ter em conta a característica da generalidade, indispensável nas normas de tributação por força do disposto no artigo 5.º, n.º 2, da LGT, que é corolário do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos. Por isso, a interpretação correcta do artigo 38.º, n.º 2, terá de valer generalizadamente, em relação a qualquer tipo de sociedades anónimas, inclusivamente as cotadas em bolsa em que a estrutura accionista se altera constantemente, relativamente às quais é evidente que a imposição da tributação à sociedade por com a sua intermediação os accionistas terem criado para si próprios vantagens fiscais indevidas não ter qualquer efeito sobre quem usufruiu dessas vantagens e deixou, depois, de ser accionista.

Ora, a esta luz, é evidente que o alcance daquele artigo 38.º, n.º 2, ao estabelecer como efeito necessário da aplicação da cláusula geral antiabuso a não produção das vantagens fiscais, pressupõe o entendimento legislativo de que a «tributação de acordo com as normas aplicáveis» incida sobre quem obteve as vantagens e não sobre quem meramente teve intervenção nos actos de que elas resultam sem beneficiar daquelas, pois só assim, é possível garantir o efeito pretendido de não se produzirem as vantagens fiscais especialmente ou genericamente referidas.

Na verdade, conclui-se da parte final do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redacção da Lei n. 30-G/2000, que a cláusula geral antiabuso não tem em vista meramente atribuir à Administração Tributária compensação por actos que lhe tenham provocado perda de receita fiscal, antes visa, concomitantemente, eliminar as vantagens fiscais ilegítimas que alguém obteve, o que revela que lhe estão subjacentes preocupações de igualdade e justiça tributária, que só podem satisfazer-se com a imposição da tributação omitida a quem obteve essas vantagens.   

De resto é esta a única interpretação que se compatibiliza com os princípios constitucional da tributação segundo a capacidade contributiva (artigo 104.º, n.º 2, da CRP) e o princípio da tributação com respeito pela justiça material (artigo 5.º, n.º 2, da LGT).

Com efeito, estes princípios impõem que seja tributado em impostos sobre o rendimento quem obteve os rendimentos e não quem os não obteve e o valor da justiça material é claramente violado quando, numa situação em que existam vantagens fiscais indevidas, vá ser exigida a quantia correspondente a quem não beneficiou dessas vantagens, deixando intocados os que indevidamente delas beneficiaram.

Na verdade, a existir dever de retenção na fonte a título definitivo nos pagamentos a efectuar pelo substituto tributário, não há qualquer disposição legal que lhe assegure a possibilidade de reaver a quantia que tiver de pagar, mesmo que não tenha efectuado a retenção, pois a responsabilidade do substituído é meramente subsidiária, por força do disposto no n.º 3 do artigo 103.º do CIRS, e não existe qualquer disposição legal que assegure direito de regresso do responsável originário em relação ao subsidiário.

Nestas situações enquadráveis no n.º 3 do artigo 103.º do CIRS, vale plenamente a regra do artigo 21.º do mesmo Código, em que se estabelece que «quando, através de substituição tributária, este Código exigir o pagamento total ou parcial do IRS a pessoa diversa daquela em relação à qual se verificam os respectivos pressupostos, considera-se a substituta, para todos os efeitos legais, como devedor principal do imposto, ressalvado o disposto no artigo 103.º». ( [2] )

O direito de regresso pode resultar da lei ou contrato ( [3] ), existindo, nomeadamente, nas dívidas solidárias (artigos 497.º, n.º 2, 521.º e 524.º do Código Civil), o que não é o caso das dívidas tributárias que têm de ser pagas pelo substituto através de retenção na fonte.

Designadamente, a inovadora tese do «exercício obrigatório pelo substituto» que a tese que fez vencimento procura encontrar no artigo 45.º, n.º 1, alínea c) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), não se afigura minimamente razoável, pois parece que não se pode duvidar que quem é titular de um direito disponível, como é o caso da generalidade dos direitos pecuniários de que são titulares entidades privadas, exerce-o se quiser, sendo precisamente a natureza facultativa do exercício que distingue um direito de um dever. Aliás, no específico caso da aplicação da cláusula geral antiabuso, que tem lugar depois da entrega da quantia sujeita a imposto aos sujeitos passivos se o legislador, seria inexplicável que um legislador que se tem de presumir que consagra as soluções mas acertadas (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), preocupado em fazer incidir as consequências da aplicação sobre quem obteve vantagens fiscais, o fosse fazer através de um intermediário privado que não controla em vez de o garantir através dos seus próprios eficientes serviços.

Para além disso, é errada a interpretação que foi feita daquele artigo 45.º, n.º 3, alínea c), do CIRC como tendo alguma relação com m hipotético direito de regresso, para mais derivado da incongruente (pelo que se disse) aplicação da cláusula geral antiabuso.

Na verdade, aquele artigo 45.º, n.º1, alínea c)l, estabelece que «não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação: c) Os impostos e quaisquer outros encargos que incidam sobre terceiros que o sujeito passivo não esteja legalmente autorizado a suportar».

Desde logo, esta norma já constava do artigo 41.º do CIRC na sua redacção inicial, com teor praticamente idêntico, pois estabelecia-se que «não são dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como custos ou perdas do exercício: c) Os impostos e quaisquer outros encargos que incidam sobre terceiros que a empresa não esteja legalmente autorizada a suportar». Esta constatação garante, só por si, que a ratio legis subjacente a esta norma nada tem a ver com a cláusula geral antiabuso, pois ela não existia em 1988 e só foi introduzida no nosso ordenamento jurídico pela Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro, através do aditamento de um artigo 32.º-A ao Código de Processo Tributário de 1991.

Por outro lado, é seguro, a meu ver, que a norma do artigo 45.º, n.º 3, alínea c),  do CIRC ao proibir a dedutibilidade dos impostos «que incidam sobre terceiros que o sujeito passivo não esteja legalmente autorizado a suportar» visa impedir a diminuição de tributação que resultaria da assunção contratual do pagamento de impostos sobre o trabalho pela empresa que paga ao trabalhador. Na verdade, quem tiver algum atenção pela actividade desportiva e artística, sabe que é frequente que os contratos sejam efectuados com valores salariais líquidos comprometendo-se a entidade contratante a assumir o pagamento dos encargos fiscais, designadamente o pagamento do IRS. Neste tipo de situações, se o IRS pago pela empresa contratante fosse dedutível como custo fiscal em sede de IRC, ocorreria uma perda de receita fiscal na medida desta dedutibilidade.

Esta identificação segura do campo de aplicação desta norma, permite concluir que ela nada tem a ver com um hipotético direito de regresso, para mais obrigatório, pois ela visa, precisamente ao contrário, assegurar a receita que resultaria da incidência dos impostos sobre terceiros quando, por efeito de disposições contratuais, o pagamento é assumido pela empresa.

Isto é, esta norma não visa assegurar um direito de regresso (de natureza civil, com efeitos exclusivamente no âmbito privado, que são indiferentes para o legislador fiscal), antes visa assegurar a tributação de em situações em que não há esse direito e, por isso, a assunção do encargo pela empresa afectaria a receita fiscal.

Como é óbvio, nada disso sucede nos casos de retenção na fonte: nestes, a empresa deixa de pagar a terceiros a quantia que entrega a Administração Tributária e, por isso, não tem qualquer direito de regresso sobre o substituído. Por outro lado, nestas situações em que há dever de retenção na fonte, está-se perante situações em o sujeito passivo de IRC está «legalmente autorizado a suportar» os tributos que incidem sobre terceiros, pelo que é forçoso concluir que se trata de situações não abrangidas por aquela alínea c).

 Para além disso, o instituto jurídico previsto nas leis tributárias para ressarcimento de dívidas tributárias pagas por quem não é o devedor, que é a sub-rogação (artigos 41.º da LGT e 91.º do CPP), não tem aplicação nas situações de substituição tributária, pois o substituto não é terceiro na relação jurídica tributária, mas sim o devedor principal (artigos 28.º, n.º 3, e 41.º da LGT e 21.º e 103.º, n.º 3, do CIRS), «para todos os efeitos legais» e, por isso, também para este de aplicação da cláusula geral antiabuso, que não pode deixar de incluir-se na indelével e irredutível abrangência da palavra «todos».

Por outro lado, nem mesmo é de aventar a possibilidade de, com fundamento na lei civil, a Requerente reaver o que pagou na medida do enriquecimento dos accionistas, com fundamento em enriquecimento sem causa, pois a aplicação da cláusula geral antiabuso apenas permite considerar ineficazes os negócios ou actos «no âmbito do direito tributário», como resulta do texto do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, pelo que os negócios celebrados mantêm a sua plena eficácia para efeitos cíveis e, em termos do direito civil, a recepção integral das quantias recebidas pelos accionistas tem causa jurídica, pois é a contrapartida da transmissão das acções destes para a Requerente, no âmbito da compra e venda. À face da relação jurídica cível consubstanciada na transmissão das acções, que a aplicação da cláusula geral antiabuso não altera por a ineficácia de negócios e actos que determina se restringir ao «âmbito tributário», os vendedores têm direito a receber a totalidade do preço previsto no contrato.

Para além disso, como resulta do referido artigo 21.º do CIRS, o substituto é o devedor principal do imposto «para todos os efeitos legais», pelo que a exigência do imposto que lhe é feita também tem causa jurídica, pois trata-se de uma dívida sua, cujo pagamento só hipoteticamente pode ser exigido ao substituído, como responsável subsidiário, através de reversão em processo de execução fiscal e apenas em caso de insuficiência de bens penhoráveis do substituto (artigo 23.º, n.º s, 2 e 3, da LGT). ( [4] )

A isto acresce que os accionistas da Requerente relativamente aos quais se poderia aventar, se estivesse previsto na lei, um direito de regresso nem sequer são parte no presente processo, pelo que qualquer decisão nesse sentido que fosse proferida por um tribunal arbitral não lhes seria oponível, pelo que só por palpite se poderá afirmar que a posição da Requerente está salvaguardada por um hipotético direito de regresso, cuja afirmação, de resto, está manifestamente fora das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, definida no artigo 2.º, n.º1, do RJAT.

Sendo assim, é seguro que a redacção do n.º 2 do artigo 38.º da LGT introduzida pela Lei n.º 30-G/2000, ao determinar como efeito da aplicação da cláusula geral antiabuso a não produção das vantagens fiscais indevidas, pressupõe que o destinatário da aplicação seja quem delas usufrui, pois os efeitos da aplicação não são transmissíveis do substituto para o substituído. ( [5] )

            Por isso, no caso em apreço, não tendo a Requerente usufruído qualquer vantagem fiscal, está afastada a possibilidade de ser responsabilizada pelo pagamento das quantias correspondentes às vantagens fiscais indevidas que a Autoridade Tributária e Aduaneira invoca.

Ainda para além disso, mas decisivamente, o tratamento como se fossem dividendos das quantias pagas pela Requerente a título de preço das acções que ingressaram no seu património não podia ser decidido pela própria Requerente nos momentos em que fez os pagamentos, pois, independentemente do que a Requerente pudesse entender sobre a verificação dos requisitos da aplicação da cláusula geral antiabuso, esta aplicação e a consequente ineficácia fiscal dos negócios efectivamente praticados tinham de ser precedidas obrigatoriamente de autorização do dirigente máximo do serviço (artigo 63.º, n.º 7, do CPPT) que, obviamente, não podia existir no momento em que a Requerente fez os pagamentos.

Isso significa que, mesmo que entendesse que se verificavam os requisitos da aplicação da cláusula geral antiabuso, nos momentos em que a Requerente fez os pagamentos não tinha qualquer fundamento legal para efectuar a retenção na fonte sobre o preço das acções adquiridas, o que conduz necessariamente à conclusão de que não existia o hipotético dever legal de retenção na fonte.

  Isto é, o próprio regime legal da aplicação da cláusula geral antiabuso, que depende de uma autorização prévia obrigatória do dirigente máximo do serviço, é incompatível com a sua aplicação retroactiva a normas de conduta («regula agendi») impostas aos sujeitos passivos dos tributos, como é o caso das normas que impõem a retenção na fonte, pois a própria natureza destas normas impõe que a sua aplicação só se faça depois de estarem reunidos os requisitos legais da sua aplicação.

As normas de direito fiscal que vão dirigidas à vontade dos sujeitos das relações jurídicas tributária, visando determinar os seus comportamentos, não podem ter a pretensão inviável de influenciar condutas que são anteriores à verificação dos pressupostos da sua aplicação.

Por isso, tendo o cumprimento de deveres de retenção na fonte de tributos de ser contemporâneo dos actos de pagamento previstos na lei, esses deveres só podem ser impostos por regulae agendi, normas eficazes no momento em que se devem materializar esses deveres, nunca podendo ser determinados a posteriori, depois de ultrapassado o momento em que os actos de pagamento se concretizaram, por efeito de uma decisão casuística do dirigente máximo do serviço, proferida ao abrigo de uma regula decidendi, dirigida ao aplicador do direito, como é a do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, que, pela sua natureza, não pode influenciar condutas ocorridas anteriormente.

O que se reconduz a que, pela própria natureza do dever de retenção na fonte, a aplicação da cláusula geral antiabuso, dependente de uma verificação a posteriori dos requisitos da sua aplicação, não pode originar deveres de retenção na fonte que não existiam no momento em que foram praticados os actos ou negócios considerados abusivos de que emergiu uma vantagem fiscal indevida, à face circunstancialismo factual e jurídico existente nesse momento.

De qualquer modo, é esta a única interpretação constitucionalmente admissível pois, se a norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT fosse interpretada como admitindo a oponibilidade dos efeitos da aplicação da cláusula geral antiabuso ao substituto tributário, designadamente a imposição dos efeitos do incumprimento de um dever de retenção na fonte que não existia à face do negócio efectivamente celebrado, num contexto em que não está legalmente assegurada, por normas de direito tributário, a viabilidade de reaver as quantias não retidas cujo dever de retenção é determinado a posteriori, seria materialmente inconstitucional, à face dos princípios da proporcionalidade, do direito a propriedade e da tributação do rendimento com base na capacidade contributiva (artigos 18.º, n.º 2, 62.º, n.º 1, e 104.º, n.º 2, da CRP).

Com efeito, estando a existência de um dever de retenção na fonte dependente da natureza jurídica dos pagamentos efectuados e só sendo possível considerar ineficaz para efeitos fiscais o negócio celebrado depois de uma autorização casuística do dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência, o potencial substituto tributário ficaria juridicamente impossibilitado de impedir uma diminuição patrimonial provocada por dívidas fiscais de outrem, pois, no momento em que efectuou os pagamentos, não tinha fundamento legal para efectuar retenção na fonte e esse dever só surgiria, com efeito retroactivo, na sequência da aplicação da cláusula geral antiabuso que permitisse considerar fiscalmente ineficaz o negócio celebrado, sem possibilidade de reaver o que teria de pagar, nos casos de retenção a título definitivo em que o substituto é o devedor originário.

            Nestes termos, tem de se concluir pela ilegalidade dos actos impugnados por violação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, ao impor-se a tributação à Requerente.

 

3. No que concerne aos requisitos objectivos de aplicação da cláusula geral antiabuso, que em geral são brilhantemente apurados no presente acórdão, sobressai a falta de equivalência entre os negócios celebrados e o negócio ou acto a que a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu aplicar a tributação.

Na verdade, o artigo 38.º, n.º 2, da LGT, estrutura a cláusula geral antiabuso em termos de não interferência nas opções económicas dos sujeitos passivos, ao referir que, em suma, que a tributação consistirá nos «impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico».

O artigo 63.º, n.º 9, do CPPT, vigente em 2010, esclarecia e densificava a imprescindibilidade desta equivalência ao exigir como fundamentação do acto que determina a aplicação da cláusula geral antiabuso:

 

a) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e da sua verdadeira substância económica;

b) A indicação dos elementos que demonstrem que a celebração do negócio ou prática do acto tiveram como fim único ou determinante evitar a tributação que seria devida em caso de negócio ou acto de substância económica equivalente;

c) A descrição dos negócios ou actos de substância económica equivalente aos efectivamente celebrados ou praticados e das normas de incidência que se lhes aplicam.

 

A redacção vigente deste artigo 63.º, resultante da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, não é substancialmente diferente, quanto à referida exigência de equivalência, agora feita no seu n.º 3:

 

3 - A fundamentação do projecto e da decisão de aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 contém necessariamente:

a) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam;

b) A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais.

 

No caso em apreço, o acto unilateral sobre o qual a Autoridade Tributária e Aduaneira fez incidir a tributação, que é pagamento de dividendos, que se reconduz a atribuição patrimonial unilateral feita por uma sociedade em favor dos seus sócios, que continuam na titularidade das suas participações sociais, não tem fim económico equivalente a uma aquisição de acções aos sócios, que tem como efeito a transferência das acções do património dos sócios para os da sociedade adquirente.

Por isso, também por falta deste requisito o pedido de pronúncia arbitral deveria ser julgado procedente.

 

 

O Árbitro Presidente

(Jorge Lopes de Sousa)



[1] Essencialmente neste sentido, pode ver-se COURINHA, GUSTAVO LOPES, A Cláusula…, páginas 171-172.

( [2] )         Como explica SÉRGIO VASQUES, Manuel de Direito Fiscal, página 332, reportando-se à norma do artigo 28.º, n.º 3, da LGT, substancialmente equivalente ao n.º 3 do artigo 103.º do CIRS, «o legislador vê-se obrigado a sacrificar pontualmente o princípio da capacidade contributiva às razões mais imperiosas da praticabilidade. Também aqui a falha na retenção gera um reforço indevido da força económica do contribuinte substituído mas sucede, no entanto, que se mostra impraticável responsabilizá-lo em primeira linha pelo imposto, dado o particular campo de aplicação da retenção definitiva. Com efeito, a retenção a título definitivo materializa-se através da aplicação de taxas liberatórias que oneram preponderantemente rendimentos de não residentes ou rendimentos de capitais, relativamente aos quais a responsabilização do contribuinte substituído se mostra sempre difícil, por razões de facto presas com a distância ou por razões de direito ligadas ao sigilo bancário. Em virtude disso, o legislador dispõe no n° 3 do artigo 28° da LGT que o substituído apenas a título subsidiário é responsável "pelo pagamento da diferença entre as importâncias que deveriam ter sido deduzidas e as que efectivamente o foram", cabendo a responsabilidade primária ao substituto».

( [3] )          Acórdão do STJ de 31-03-1993, processo n.º 083431.

( [4] )          Assim, carece de suporte legal, à face da lei tributária vigente, a afirmação de SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, 7.ª edição, 1993, página 250, feita com alguma falta de convicção («Parece indiscutível...»), de que existirá um direito de regresso «nos termos dos princípios gerais do Direito e das normas inseridas no instituto do enriquecimento sem causa».Pelo que se referiu, esta fundamentação, que, tanto hoje como quando foi feita, é suficientemente vaga para não impressionar pelo seu vigor, apesar da pluralidade de fundamentos, carece actualmente de solidez dogmática.

( [5]  )         Chegando também a esta conclusão, pode ver-se se COURINHA, GUSTAVO LOPES, A Cláusula..., página 202, que refere que «as consequências fiscais, com a negação das mencionadas vantagens fiscais, apenas devem abranger o contribuinte que actuou com o propósito ou motivação essencialmente fiscal» e que «a extensão dos efeitos fiscais a outros contribuintes que não aqueles que visaram a obtenção da vantagem fiscal em termos contrários à CGAA, não pode deixar de conduzira injustiças e a situações de desnecessária complexidade».