Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 474/2022-T
Data da decisão: 2022-12-12  IRC  
Valor do pedido: € 136.914,33
Tema: IRC - Art. 22.º EBF. Fundos de investimento não residentes. Liberdade de circulação de capitais.
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SUMÁRIO

 

O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento colectivo (OIC) não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Professor Nuno Cunha Rodrigues (Árbitro-presidente), Dra. Sofia Quental e Professor Miguel Patrício (Árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral constituído em 07.10.2022, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

A..., Organismo de Investimento Coletivo constituído de acordo com o direito luxemburguês, número de contribuinte português ..., com sede em ..., ..., Luxemburgo (doravante “Requerente”), apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente e, bem assim, dos actos de retenção na fonte respeitantes a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) ocorridas em 2019, aquando da colocação à disposição do Requerente de dividendos decorrentes de participações detidas em sociedades residentes em território português, no montante global de € 136.914,33 (cento e trinta e seis mil novecentos e catorze euros e trinta e três cêntimos).

O Requerente pede também a restituição do imposto retido indevidamente, o pagamento de juros indemnizatórios, bem como a condenação da Requerida no pagamento das custas de arbitragem.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 01.08.2022.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 19.09.2022, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 10.07.2022.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que defendeu a improcedência do pedido arbitral.

Por despacho de 10.11.2022, e atendendo a que não existia necessidade de produção de prova adicional, para lá da prova documental já incorporada nos autos, nem matéria de excepção sobre as quais as partes carecessem de se pronunciar, e que no processo arbitral vigoram os princípios processuais gerais da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º do RJAT, dispensou-se a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT tendo as partes sido notificadas para apresentação de alegações escritas facultativas pelo prazo sucessivo de dez dias, o que vieram a fazer.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT, sendo o mesmo competente.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

  1. O Requerente é uma pessoa coletiva de direito luxemburguês, mais concretamente um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), constituído sob a forma contratual, comumente designada de fundo de investimento, sendo um sujeito passivo de IRC, não residente para efeitos fiscais em Portugal, sem qualquer estabelecimento estável no país;
  2. O Requerente é gerido por uma entidade gestora de fundos de investimento, a B... B.V., entidade com sede nos Países Baixos;
  3. O Requerente detém investimentos financeiros em Portugal, consubstanciados na detenção de participações sociais em sociedades residentes, para efeitos fiscais, em Portugal;
  4. No ano de 2019, o Requerente era detentor de um lote de participações sociais em sociedades residentes, para efeitos fiscais, em Portugal, tendo recebido, na qualidade de acionista dessas sociedades, dividendos sujeitos a tributação em IRC em Portugal, por se tratar do Estado da fonte de obtenção dos mesmos;
  5. A entidade responsável pela custódia dos títulos detidos em Portugal era o C...;
  6. Os referidos dividendos recebidos no decorrer do ano de 2019 foram sujeitos a tributação em IRC por retenção na fonte liberatória, à taxa de 25% prevista no artigo 87.º do CIRC;
  7. O Requerente suportou, em Portugal, no ano em causa, a quantia total de imposto de EUR 136.914,33, valor melhor detalhado no seguinte quadro:

 

  1. Por discordar da retenção na fonte efetuada, no dia 30.12.2021, o Requerente apresentou, ao abrigo do artigo 78.º da LGT, pedido de revisão oficiosa para apreciação da legalidade dos referidos atos de retenção na fonte de IRC relativos ao ano de 2019, no qual solicitou a anulação dos mesmos por violação direta do Direito da UE, bem como o reconhecimento do seu direito à restituição do imposto indevidamente suportado em Portugal – processo que correu termos no Serviço de Finanças Lisboa  ...;
  2. Não tendo sido notificado de qualquer decisão expressa de no procedimento, e tendo decorrido o prazo legal para a presunção de indeferimento tácito do pedido, o Requerente apresentou, a 29.07.2022, pedido de pronúncia arbitral.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e os que constam do processo administrativo.

Não há controvérsia sobre a matéria de facto.

 

3. Matéria de direito

 

3.1. Enquadramento:

O Requerente é uma pessoa colectiva de direito luxemburguês, que está constituída como organismo de investimento colectivo (OIC), sendo sujeito passivo de IRC, não residente, e sem estabelecimento estável em Portugal, sendo residente no Luxemburgo, no ano de 2019.

Nesse período, o Requerente recebeu os dividendos descritos nos factos dados como provados, sobre os quais foram efectuadas retenções na fonte, a título liberatório, de harmonia com o previsto nos artigos 94.º, n.º 1, al. c), n.º 3, al. b), e n.º 5, à taxa de 25%, prevista pelo art.º 87.º, n.º 4, ambos do CIRC, em conformidade com o previsto nos artigos 10.º, n.º 2, e 11.º, n.º 2, alínea b), da Convenção entre a República Portuguesa e o Luxemburgo para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e sobre o Capital, aprovada pela Lei n.º 12/82, de 3 Junho (doravante “CDT”).

O Requerente solicitou o reembolso do montante correspondente à diferença entre a taxa de retenção na fonte efectuada em Portugal (i.e. 25%) e a taxa reduzida de retenção na fonte prevista no artigo 10.º, n.º 2, da CEDT Portugal/Luxemburgo (15%), pelo que solicita o remanescente do imposto retido, no montante de € 136.914,33, referente ao ano de 2019.

O artigo 87.º do CIRC estabelece o seguinte, no que aqui interessa:

 

Artigo 87.º

Taxas

(...)

4 - Tratando-se de rendimentos de entidades que não tenham sede nem direção efetiva em território português e aí não possuam estabelecimento estável ao qual os mesmos sejam imputáveis, a taxa do IRC é de 25 %, exceto relativamente aos seguintes rendimentos:

(...)

 

O artigo 94.º do CIRC, estabelece o seguinte, no que aqui interessa:

 

Artigo 94.º

Retenção na fonte

1 - O IRC é objeto de retenção na fonte relativamente aos seguintes rendimentos obtidos em território português:

(...)

c) Rendimentos de aplicação de capitais não abrangidos nas alíneas anteriores e rendimentos prediais, tal como são definidos para efeitos de IRS, quando o seu devedor seja sujeito passivo de IRC ou quando os mesmos constituam encargo relativo à atividade empresarial ou profissional de sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade;

(...)

3 - As retenções na fonte têm a natureza de imposto por conta, exceto nos seguintes casos em que têm caráter definitivo:

(...)

b) Quando, não se tratando de rendimentos prediais, o titular dos rendimentos seja entidade não residente que não tenha estabelecimento estável em território português ou que, tendo-o, esses rendimentos não lhe sejam imputáveis;

(...)

 

O artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 31 de Janeiro, estabelece o seguinte:

 

Artigo 22.º

Organismos de Investimento Coletivo

1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.

2 – O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

3 – Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.

4 – Os prejuízos fiscais apurados em determinado período de tributação nos termos do disposto nos números anteriores são deduzidos aos lucros tributáveis, havendo -os, de um ou mais dos 12 períodos de tributação posteriores, aplicando -se o disposto no n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRC.

5 – Sobre a matéria coletável correspondente ao lucro tributável deduzido dos prejuízos fiscais, tal como apurado nos termos dos números anteriores, aplica -se a taxa geral prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC.

6 – As entidades referidas no n.º 1 estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.

7 – Às fusões, cisões ou subscrições em espécie entre as entidades referidas no n.º 1, incluindo as que não sejam dotadas de personalidade jurídica, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 73.º, 74.º, 76.º e 78.º do Código do IRC, sendo aplicável às subscrições em espécie o regime das entradas de ativos previsto no n.º 3 do artigo 73.º do referido Código.

8 – As taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC têm aplicação, com as necessárias adaptações, no presente regime.

9 – O IRC incidente sobre os rendimentos das entidades a que se aplique o presente regime é devido por cada período de tributação, o qual coincide com o ano civil, podendo, no entanto, ser inferior a um ano civil:

a) No ano do início da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre a data em que se inicia a atividade e o fim do ano civil;

b) No ano da cessação da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre o início do ano civil e a data da cessação da atividade.

10 – Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1.

11 – A liquidação de IRC é efetuada através da declaração de rendimentos a que se refere o artigo 120.º do Código do IRC, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 89.º, no n.º 1 do artigo 90.º, no artigo 99.º e nos artigos 101.º a 103.º do referido Código.

12 – O pagamento do imposto deve ser efetuado até ao último dia do prazo fixado para o envio da declaração de rendimentos, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 109.º a 113.º e 116.º do Código do IRC.

13 – As entidades referidas no n.º 1 estão ainda sujeitas, com as necessárias adaptações, às obrigações previstas nos artigos 117.º a 123.º, 125.º e 128.º a 130.º do Código do IRC.

14 – O disposto no n.º 7 aplica -se às operações aí mencionadas que envolvam entidades com sede, direção efetiva ou domicílio em território português, noutro Estado membro da União Europeia ou, ainda, no Espaço Económico Europeu, neste último caso desde que exista obrigação de cooperação administrativa no domínio do intercâmbio de informações e da assistência à cobrança equivalente à estabelecida na União Europeia.

15 – As entidades gestoras de sociedades ou fundos referidos no n.º 1 são solidariamente responsáveis pelas dívidas de imposto das sociedades ou fundos cuja gestão lhes caiba.

16 – No caso de entidades referidas no n.º 1 divididas em compartimentos patrimoniais autónomos, as regras previstas no presente artigo são aplicáveis, com as necessárias adaptações, a cada um dos referidos compartimentos, sendo -lhes ainda aplicável o disposto no Decreto -Lei n.º 14/2013, de 28 de janeiro.

 

Nos termos do artigo 7.º daquele Decreto-Lei n.º 7/2015, «as regras previstas no artigo 22.º do EBF, na redação dada pelo presente decreto-lei, são aplicáveis aos rendimentos obtidos após 1 de julho de 2015».

No referido n.º 1 do artigo 22.º estabelece-se que o regime nele previsto é aplicável aos «fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional».

O Requerente é constituída ao abrigo da lei luxemburguesa e não da lei nacional, sendo por esse motivo que não lhe foi aplicado esse regime.

 

3.2. Posições das Partes

O Requerente defende, em suma, que resulta do regime que se prevê no artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) um tratamento discriminatório para os OIC não residentes em relação aos residentes, que é incompatível com o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que estabelece o seguinte:

 

Artigo 63.º

(ex-artigo 56.º TCE)

1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.

2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.

 

 

No entanto, o artigo 65.º do TFUE limita a aplicação deste princípio, estabelecendo o seguinte:

 

Artigo 65.º

(ex-artigo 58.º TCE)

1. O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros:

a) Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido;

 b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.

 2. O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados.

 3. As medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.

 

Alega o Requerente o seguinte, em suma, que:

- Conforme já foi confirmado pelo TJUE em acórdão proferido no passado dia 17 de março de 2022, no processo n.º C-545/19 (AllianzGI-Fonds AEVN) -, Portugal ao sujeitar, à data dos factos tributários em análise, a retenção na fonte em IRC os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal aos OIC estabelecidos em Estados Membros da União Europeia (“UE”) (in casu o Luxemburgo), simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OIC estabelecidos e domiciliados em Portugal viola, de forma frontal, o artigo 63.º do Tratado para o Funcionamento da União Europeia (doravante “TFUE”).

- A matéria de facto e de direito subjacente ao referido processo decidido pelo TJUE é em tudo idêntica à objeto dos presentes autos.

- Nos termos dos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.ºs 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, e 87.º, n.º 4, todos do CIRC, os dividendos de fonte portuguesa pagos a OIC estabelecidos noutros Estados-Membros são tributados em sede de IRC, mediante a aplicação do mecanismo da retenção na fonte, à taxa liberatória de 25%, a qual poderá ser reduzida ao abrigo de convenções para evitar a dupla tributação celebradas pelo Estado português;

- Os dividendos auferidos pelo Requerente em Portugal no ano de 2019 foram sujeitos a tributação em sede de IRC, através da aplicação do mecanismo da retenção na fonte, à taxa liberatória de 25%, nos termos dos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.ºs 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, e 87.º, n.º 4, todos do CIRC;

- Nos casos de distribuição de dividendos por parte de sociedades residentes em Portugal o OIC não constituídos ao abrigo da lei portuguesa, os rendimentos obtidos em Portugal estão sujeitos a retenção na fonte liberatória a uma taxa de 25%, tal como preceituado nos artigos 94.º n.º 1 alínea c), 94.º n.º 3 alínea b), 94.º n.º 4 e 87.º n.º 4 também do CIRC, não beneficiando do regime previsto no artigo 22.º do EBF.

- Nos casos de dividendos distribuídos a OIC constituídos ao abrigo da lei portuguesa, tais rendimentos estão isentos de imposto, ao abrigo do regime previsto (à data dos factos e ainda atualmente) no artigo 22.º do EBF.

- Entende o Requerente que o regime interno que impõe a aplicação de retenção na fonte a dividendos distribuídos a um OIC não residente – como o Requerente – (enquanto prevê que os dividendos distribuídos a OIC residentes estejam isentos dessa retenção) é claramente incompatível com o Direito da União Europeia;

- O tratamento discriminatório operado pelos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.ºs 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, 87.º, n.º 4, todos do CIRC e 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, encontra-se em violação do TFUE, ao constituir uma restrição às liberdades fundamentais, designadamente à liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63º, do TFUE, e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, por violação do primado do Direito Comunitário sobre o Direito interno, facto que deverá determinar a anulação das liquidações de IRC por retenção na fonte acima melhor identificadas, e a consequente restituição do imposto indevidamente liquidado ao ora Requerente;

- De acordo com as regras e princípios de Direito da União Europeia que prevalecem sobre a legislação nacional, nas situações como a ora em análise, impende sobre o Estado Português a obrigação de, no âmbito do exercício da sua soberania tributária sobre os dividendos auferidos pela Requerente, tratar os mesmos de modo equiparável aos dividendos auferidos por um OIC accionista residente em situação análoga – ou seja, de não discriminar entre OIC accionistas residentes e não residentes;

- Essa obrigação de não discriminar implica, necessariamente, que também os benefícios ou vantagens de natureza fiscal atribuídos a residentes devam ser concedidos, nas mesmas condições, a não residentes;

- Estando a Requerente isenta de tributação em sede de imposto luxemburguês sobre os rendimentos das pessoas colectivas, não poderá reclamar tal crédito de imposto no Estado da sua residência;

- Inexistindo um nexo directo entre a vantagem fiscal consagrada no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, e a compensação dessa vantagem pela liquidação de um determinado imposto sobre os OIC residentes, não poderá a discriminação sub judice ser justificada com a necessidade de preservar a coerência do sistema fiscal português;

- “[a] necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal”, que é em tudo idêntico ao caso dos presentes autos arbitrais (cfr. AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19, parágrafo 81).

- A liquidação de IRC, pelas retenções na fonte acima identificadas, enferma do vício de violação de lei, consubstanciado na violação do princípio da livre circulação de capitais, previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, a qual deverá, nos termos do artigo 163.º do CPA, determinar a anulação das liquidações, pelas retenções na fonte ora em crise, com a consequente restituição do imposto retido na fonte e ainda o pagamento de juros indemnizatórios.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende, em suma, que:

- Existem dois aspetos de grande relevância para a definição completa do quadro fiscal dos OIC, a que importa dar o devido relevo.

- O primeiro refere-se ao quadro fiscal dos OIC em que a opção legislativa teve por finalidade “aliviar” estes sujeitos passivos da tributação em IRC, mediante a subtracção à base tributável dos rendimentos típicos dos OIC, isto é, dos rendimentos de capitais (artigo 5.º do Código do IRS), dos rendimentos prediais (artigo 8.º do Código do IRS) e das mais-valias (artigo 10.º do Código do IRS) conforme previsto no n.º 3 do artigo 22.º do EBF, e ainda prevendo a isenção de derrama municipal e de derrama estadual, nos termos do n.º 6 do artigo 22.º do EBF, deslocando a tributação para a esfera do Imposto do Selo;

- Com efeito, foi aditada, à TGIS, a Verba 29, de que resulta uma tributação, por cada trimestre, à taxa de 0,0025% do valor líquido global dos OIC aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos, e à taxa 0,0125%, sobre o valor líquido global dos restantes OIC, sendo que, neste caso, a base tributável pode incluir dividendos distribuídos.

- A tributação em Imposto do Selo apenas recai sobre os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, o que significa que dela são excluídos os OIC constituídos e que operem ao abrigo de uma legislação estrangeira;

- O segundo prende-se com a tributação incidente sobre os dividendos, porquanto, além de não integrarem a matéria coletável do IRC, também beneficiam da isenção de retenção na fonte (cf. n.º 10 do artigo 22.º do EBF);

- Por conseguinte, os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF – tal como ocorre com os fundos de pensões - por beneficiarem de isenção parcial de IRC, estão obrigados a liquidar e entregar a tributação autónoma incidente sobre os lucros distribuídos, quando as correspondentes partes sociais não sejam detidas, de modo ininterrupto, há pelo menos um ano.

- Os OIC não abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, como é o caso da Requerente, não está sujeito a tributação autónoma sobre os dividendos.

- Os regimes fiscais aplicáveis aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional e dos OIC constituídos em Luxemburgo, não são genericamente comparáveis, pois que a tributação dos primeiros compreende uma tributação em IRC sobre um lucro tributável que integra rendimentos marginais e repousa sobretudo no Imposto do Selo, ao passo que, aparentemente, os segundos estavam isentos de tributação no imposto sobre o rendimento e, aparentemente, também de outros impostos.

- Não compete à Administração Tributária avaliar a conformidade das normas internas com as do TFUE, não podendo aceitar de forma direta e automática as orientações interpretativas do TJUE, quando estas não têm, na sua origem, a apreciação de compatibilidade entre as disposições do direito interno português e o direito europeu.

- Para se avaliar se o tratamento fiscal aplicado aos dividendos obtidos em Portugal é menos vantajoso do que o tratamento fiscal atribuído aos dividendos obtidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e se tal diferenciação é suscetível de afetar o investimento em ações emitidas por sociedades residentes, teria de ser colocado em confronto o imposto retido na fonte, com carácter definitivo, à taxa de 15%, e os impostos – IRC e Imposto do Selo - que incidem sobre os segundos, e que, em conjunto, podem, em certos casos, exceder 23% do valor bruto dos dividendos.

- O imposto retido à Requerente poderá eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional tanto na esfera da Requerente, bem como na esfera dos investidores, sendo que esta última questão a Requerente não esclareceu.

- Contrariamente ao afirmado pela Requerente, não pode afirmar-se que se esteja perante situações objetivamente comparáveis.

- Os erros que afetam as retenções na fonte não são imputáveis à Administração Tributária, pois não foram por ela praticadas e, consequentemente, não há direito a juros indemnizatórios derivado da sua prática, à face do preceituado no artigo 43.º da LGT.

 

3.3. Apreciação da questão

 

No caso sub judice está em causa determinar a compatibilidade do regime previsto no artigo 22.º, n.º 1, do EBF com o Direito da União Europeia, designadamente com o artigo 63.º do TFUE.

Esta questão já foi apreciada, no passado, por outros Tribunais arbitrais, nomeadamente nos processos 90/2019-T; 528/2019-T e 11/2020-T.

Porém, não era claro se se verificava a comparabilidade objectiva entre a situação da Requerente e a situação de um hipotético OICVM residente em Portugal, constituído e a operar em condições equivalentes à Requerente, ao abrigo do regime decorrente da Directiva 2009/65/CE, accionista de sociedades residentes em Portugal, para efeitos de aplicação do princípio da não-discriminação e da liberdade de circulação de capitais previstas no TFUE.

Na verdade, escrutinada a jurisprudência do TJUE até 2021 verificava-se que nenhuma dizia respeito a uma situação similar ao caso sub judice.

De forma exemplificativa, o acórdão do TJUE de 21 de Junho de 2018, proferido no processo C-480/16 (Fidelity Funds) dizia respeito à tributação dos OICVM na Dinamarca e o acórdão do TJUE de 10 de maio de 2012, proferido nos processos C-338/11 a C-347/11 (Santander Asset Management SGIIC, S.A.) dizia respeito à tributação dos OICVM na França.

A novidade que a situação em Portugal subjacente ao caso sub judice representou no contexto da jurisprudência do TJUE ficou, aliás, evidenciada, de forma clara, nas conclusões da advogada-geral Juliane Kokott, apresentadas em 6 de maio de 2021, no processo C-545/19.

Certo é que o TJUE acabou por proferir decisão esclarecedora, no processo C-545/19, que é aplicável, ceteris paribus¸ ao caso sub judice.

Na verdade, esta decisão do TJUE tem vindo a ser invocada em diversa jurisprudência recente do CAAD, proferida em casos muito semelhantes ao presente, nomeadamente nas decisões proferidas nos acórdãos nº 821/2021 e nº 711/2021-T, que aqui acompanhamos.

Assim, no referido acórdão do TJUE, proc. C-545/19, o litígio no processo principal dizia respeito a um pedido de anulação de atos que procederam à retenção na fonte dos dividendos pagos à recorrente no processo principal por sociedades estabelecidas em Portugal bem como à compatibilidade com o Direito da União de uma legislação nacional que reserva a possibilidade de beneficiar da isenção dessa retenção na fonte aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa ou cuja entidade gestora opera em Portugal através de um estabelecimento estável (cfr. parágrafo 32 do acórdão).

Nesse acórdão, o TJUE considerou ainda o seguinte:

“38      Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.

39      Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).”

Importa ainda observar que, de harmonia com o acórdão do TJUE que vimos acompanhando, considerou que os OIC não residentes estavam numa situação comparável com os OIC residente, ao contrário do defendido pela Requerida e anteriormente exposto no ponto 3.2., para quem “não pode afirmar-se que se esteja perante situações objetivamente comparáveis”.

Afirma-se, no parágrafo 67 do acórdão que vimos acompanhando, o seguinte:

67      Tendo a República Portuguesa optado por exercer a sua competência fiscal sobre os rendimentos auferidos pelos OIC não residentes, estes encontram‑se, por conseguinte, numa situação comparável à dos OIC residentes em Portugal no que respeita ao risco de dupla tributação económica dos dividendos pagos pelas sociedades residentes em Portugal” para, mais adiante, concluir da seguinte forma:

73      Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.” e ainda que, “no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis.” (cfr. parágrafo 74) (sublinhado nosso).

O acórdão proferido pelo TJUE no processo C-545/19 é, como referimos, absolutamente esclarecedor e aplicável ao caso sub judice.

Ora se já existir jurisprudência na matéria (e quando o quadro eventualmente novo não suscite nenhuma dúvida real quanto à possibilidade de aplicar essa jurisprudência ao caso concreto) um órgão jurisdicional nacional pode “decidir ele próprio da interpretação correta do direito da União e da sua aplicação à situação factual de que conhece”.[1]

Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, podem ver-se os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 25.10.2000, processo n.º 25128, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31.01.2003, p. 3757; de 07.11.2001, processo n.º 26432, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13.10.2003, p. 2602; de 07.11.2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13.10.2003, p. 2593).

No citado acórdão do TJUE de 17.03.2022, proferido no processo n.º C-545/19, concluiu-se da seguinte forma:

 

O artigo 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento colectivo (OIC) não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

 

Deve, por fim, ter-se presente que o primado ou primazia do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da CRP, em que se estabelece que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».

A este propósito não pode deixar de se observar que o princípio da legalidade a que a Requerida está adstrita abrange, naturalmente, o Direito da União Europeia.

Na verdade, as características próprias do sistema jurídico da União Europeia determinam que este integre um bloco de legalidade que enforma o conjunto global da ordem jurídica nacional e comunitária que compete, inter alia, ao juiz nacional respeitar e aplicar, como vimos anteriormente, atento o princípio do primado e o princípio da efectividade do Direito da União Europeia.

Recorde-se aqui o afirmado no processo n.º 77/2021-T, que aqui acompanhamos:

“(…) este bloco de legalidade onde se insere, naturalmente, o Direito da União Europeia, deve igualmente ser respeitado e aplicado pela administração pública de qualquer Estado-membro[2], incluindo, portanto, a Requerida AT.

Na verdade, os Estados-Membros (incluindo as respetivas administrações públicas) estão vinculados ao princípio da cooperação leal, pelo que devem facilitar à União o cumprimento da sua missão e abster-se de qualquer medida suscetível de pôr em perigo a realização dos objetivos da União (cfr. artigo 4.º, n.º 3, 3.º parágrafo do Tratado da União Europeia).

Mais. As “administrações públicas nacionais – e, assim, a administração pública Portuguesa – são a administração da União de direito comum sendo-lhes confiada, em primeira linha, a execução do direito da União enquanto missão “essencial para o bom funcionamento da União” e “matéria de interesse comum”” (cfr. artigos 197.º e 291.º do TFUE).[3]

Recorde-se, a este propósito, o acórdão do TJUE Larsy, proc. C-118/00, de 28 de junho de 2001, no qual o Tribunal considerou ser “incompatível com as exigências inerentes à própria natureza do direito comunitário qualquer norma da ordem jurídica interna ou qualquer prática legislativa, administrativa ou judicial que tenha por consequência a diminuição da eficácia do direito comunitário (…)” (cfr. parágrafo 51).

Mais adiante entendeu o TJUE, no mesmo aresto e com particular importância para o caso sub judice, que o “princípio do primado do direito comunitário obriga não somente os órgãos jurisdicionais, mas todas as autoridades do Estado-Membro, a dar pleno efeito às normas comunitárias (v., neste sentido, acórdãos de 13 de Julho de 1972, Comissão/Itália, 48/71, Colect., p. 181, n.° 7, e de 19 de Janeiro de 1993, Comissão/Itália, C-101/91, Colect., p. I-191, n.° 24).”

Este entendimento foi reiterado em inúmera jurisprudência do TJUE tal como os acórdãos Henkel, 12 de fevereiro de 2004, Proc. C-218/01, EU:C:2004:88, parágrafo 60 e Impact, 15 de abril de 2008, Proc. C-268/06, EU:C:2008:223, parágrafo 85.

Também no acórdão Gavieiro, 22 de dezembro de 2010, Procs. C-444/09 e C-456/09, EU:C:2010:819, parágrafo 73, o TJUE reiterou que ”não sendo possível efectuar uma interpretação e uma aplicação da regulamentação nacional conformes com as exigências do direito da União, os tribunais nacionais e os órgãos da administração têm o dever de o aplicar integralmente e de proteger os direitos que ele confere aos particulares, deixando de aplicar, se necessário, qualquer disposição contrária de direito interno (v., neste sentido, acórdãos de 22 de Junho de 1989, Costanzo, 103/88, Colect., p. 1839, n.° 33, e de 14 de Outubro de 2010, Fuß, C‑243/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 63).”

Por outras palavras, entende o TJUE que é incompatível com o Direito da União Europeia qualquer prática administrativa que tenha por consequência a diminuição da eficácia do direito comunitário pelo que compete a todas as autoridades do Estado-Membro dar pleno efeito às normas comunitárias. A esta luz, a Requerida AT, à semelhança dos tribunais nacionais, tem a prerrogativa – e o dever - de desaplicar normas de direito nacional com base na desconformidade com o direito comunitário.”

 

Assim, declara-se ilegal, por incompatibilidade com o artigo 63.º do TFUE, o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a sociedades constituídas segundo a legislação nacional, excluindo das sociedades constituídas segundo legislações de Estados Membros da União Europeia.

E assim sendo, tem de se concluir que as retenções na fonte e o indeferimento tácito do pedido de reclamação graciosa, enfermam de vício de violação de lei, o que justifica a sua anulação, de harmonia, com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT, com as demais consequências legais, designadamente o reembolso do imposto pago indevidamente.

 

3.4. Pedido de reembolso das quantias pagas e juros indemnizatórios

 

O Requerente pede reembolso do imposto indevidamente retido na fonte, acrescido de juros indemnizatórios.

Na sequência da anulação das retenções na fonte o Requerente tem direito a ser reembolsado das quantias retidas, o que é consequência da anulação.

No que concerne o direito a juros indemnizatórios, como explanado na decisão proferida no já referido processo nº 133/2021-T do CAAD, o TJUE tem decidido que a cobrança de impostos em violação do direito da União tem como consequência não só o direito ao reembolso como o direito a juros, como pode ver-se pelo acórdão de 18.04.2013, processo nº C-565/11 (entre outros), em que se refere:

 

«21 Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado, mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgesellschaft e o., C-397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C-113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).

 

22 Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados-Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.º 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.º 66).

 

23 A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o., já referido, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida)». 

 

No entanto, como se refere neste n.º 23, cabe a cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respectiva taxa e o modo de cálculo.

Como tem vido a entender o Supremo Tribunal Administrativo, «nos casos de revisão oficiosa da liquidação (quando não é feita a pedido do contribuinte, no prazo da reclamação administrativa, situação que é equiparável à de reclamação graciosa) (...) apenas há direito a juros indemnizatórios nos termos do art. 43.º, n.º 3, da LGT».[4]

Este regime justifica-se pela falta de diligência do contribuinte em apresentar reclamação graciosa ou pedido de revisão no prazo desta, como se prevê no n.º 1 do artigo 78.º da LGT.

O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

 

Artigo 43.º

 Pagamento indevido da prestação tributária

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.

 

No caso em apreço, não tendo o pedido de revisão oficiosa sido apresentado no prazo da reclamação graciosa (2 anos a contar da data do pagamento, nos termos do n.º 3 do artigo 137.º do CIRC), não se está perante uma situação enquadrável na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, em que o pedido de revisão oficiosa é equiparável à reclamação graciosa, como se refere no citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.

Consequentemente, não há direito a juros indemnizatórios com base nos n.ºs 1 e 2 do artigo 43.º da LGT, que pressupõem a existência de reclamação graciosa ou impugnação judicial tempestiva.

Assim, a norma à face da qual tem de ser aferida a existência de direito a juros indemnizatórios é a alínea c) deste n.º 3 do artigo 43.º da LGT, que estabelece que eles são devidos «quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária».

Em conformidade com as acima mencionadas decisões, o Requerente apenas terá direito a juros indemnizatórios a partir do fim do prazo de um ano após a apresentação do pedido de revisão formulado não tendo, consequentemente e no caso sub judice, direito a juros indemnizatórios desde a data do pagamento do imposto como peticionado, pelo que não pode o pedido, nesta parte, deixar de improceder.

        

4. Decisão:

 

De harmonia com o exposto acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Declarar ilegal o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a sociedades constituídas segundo a legislação nacional, excluindo das sociedades constituídas segundo legislações de Estados Membros da União Europeia;
  2. Julgar procedente o pedido de anulação das retenções na fonte efetuadas e identificadas na alínea G) dos factos provados, com as demais consequências legais;
  3. Julgar procedente o pedido de reembolso da quantia total de € 136.914,33 e condenar a Administração Tributária e Aduaneira a pagar este montante ao Requerente;
  4. Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios efetuado pelo Requerente;
  5. Condenar a Requerida Administração Tributária e Aduaneira no pagamento das custas.

 

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 136.914,33, indicado pela Requerente e sem oposição da Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

6. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.060 (três mil e sessenta euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifique-se o Ministério Público, representado pela Senhora Procuradora-Geral da República, nos termos e para os efeitos dos artigos 280.º, n.º 3, da Constituição e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional e 185.º-A, n.º 2, do CPTA, subsidiariamente aplicável.

 

Lisboa, 12 de dezembro de 2022

 

O Árbitro-Presidente

 

 

(Nuno Cunha Rodrigues - Relator)

 

 

Os Árbitros-vogais

 

 

(Sofia Quental)

 

 

 

(Miguel Patrício)

 



[1] Cfr. pontos 12 e 13 das recomendações aos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2012/C 338/01), do TJUE, disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2012:338:0001:0006:PT:PDF.

[2] A este propósito cfr., John Temple Lang, The Duties of National Authorities Under Community Constitutional Law, in European Law Review 23 (2) (1998): 109-131; e Maartje Verhoeven, The Costanzo Obligation. The Obligation of National Administrative Authorities in the Case of Incompatibility between National Law and European Law, disponível em https://intersentia.com/en/the-costanzo-obligation.html

[3] Assim, v. Sophie Perez Fernandes, O dever de anulação administrativa previsto no artigo 168.º, n.º 7, CPA – em busca de uma solução eurocompatível, in UNIO- EU law jornal, vol. 3, n.º 2, Julho 2017, p. 161.

[4] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12.07.2006, proferido no processo n.º 402/06.